STF
Reis Friede: Foro especial, um contraponto
Diferentemente do que pensam aqueles que pugnam pelo fim da prerrogativa de foro, a solução reside em aprimorar o sistema de Justiça criminal
Não obstante a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que restringiu o foro por prerrogativa de função inerente aos senadores e deputados federais, o tema deve ser analisado com prudência.
Efetivamente, o instituto em questão não pode ser extinto com base em argumentos desconectados das razões de sua criação histórica. Conforme se observou, há quem defenda a extinção do foro para qualquer autoridade, tais como ministros de Estado, governadores, juízes e promotores, sob o argumento de que o atual modelo ofende o princípio da isonomia e serve de estímulo à corrupção e à impunidade.
Tal raciocínio confunde a razão do instituto com o tema ineficiência —problema que, invariavelmente, atinge o Judiciário como um todo.
Diferentemente do que pensam aqueles que pugnam pelo fim da prerrogativa de foro, a solução reside em aprimorar o sistema de Justiça criminal, criando-se as estruturas necessárias para o cumprimento das respectivas competências, como o estabelecimento de varas federais especializadas e vinculadas aos tribunais superiores para o processamento de tais ações penais.
Tudo isso é possível sem que se altere profundamente o modelo previsto na Constituição.
Quando senadores e deputados federais são julgados por ministros do STF, o que se objetiva é assegurar que o julgador não sofra influência no desempenho de sua função jurisdicional. Afinal, sabe-se que determinadas pessoas dotadas de poder tendem a pressionar, ainda que veladamente, os juízes.
Para tanto, elas são capazes de lançar mão dos mais sórdidos expedientes, inclusive o de monitorar a rotina diária de um magistrado e de seus familiares. O próprio juiz federal Marcelo Bretas foi alvo de investidas intimidatórias.
Da mesma forma, seria estranho imaginar que um juiz pudesse julgar, com independência, um desembargador, pois aquele depende do voto deste para inúmeras questões, inclusive para eventual promoção na carreira. Igualmente, como um desembargador poderia julgar, com isenção, uma apelação criminal interposta por um ministro do Superior Tribunal de Justiça junto a um Tribunal Regional Federal, uma vez que o mencionado apelante, em seguida, participará da sessão destinada a escolher, dentre os desembargadores, aquele que integrará o STJ?
Subsiste, ainda, uma questão que precisa ser analisada com precaução. Refiro-me à falta de maturidade apresentada por certas pessoas que exercem cargos de elevada importância no cenário estatal.
Efetivamente, haverá casos em que juízes inexperientes vão se ver diante da incumbência de decidir questões relevantes para o país. Por sorte, os juízes que estão à frente da operação Lava Jato —Sergio Moro e Marcelo Bretas—, além de serem experientes e competentes para o mister, são magistrados com mais de 40 anos de idade e ostentam mais de 15 anos de carreira.
A prevalecer a tese pela extinção da prerrogativa de foro, não haveria impedimento para que julgamentos de autoridades fossem conduzidos por juízes de primeiro grau com pouquíssima experiência, notadamente quando, na condição de substitutos e recém-empossados, precisassem decidir temas de grande repercussão, tendo em vista o titular da vara se encontrar de férias ou de licença médica.
Um julgamento de impacto conduzido por um juiz inexperiente poderia levar a um resultado processual não apenas tecnicamente equivocado mas, especialmente, influenciado pela mídia ou pela opinião pública.
* Reis Friede é mestre e doutor em direito, é desembargador do Tribunal Regional Federal da 2ª Região (TRF-2) e professor emérito da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército
O Globo: STF mandará a outras instâncias 29 inquéritos ligados à Odebrecht
Toffoli já enviou 7 processos para cortes inferiores, após mudança no foro
Por André de Souza e Eduardo Bresciani, de O Globo
BRASÍLIA — Dos 74 inquéritos da delação da Odebrecht abertos no Supremo Tribunal Federal (STF) para investigar parlamentares, ao menos 29 deverão ser enviados para outras instâncias. Isso porque eles tratam de crimes sem relação com o mandato dos congressistas investigados. A redistribuição de processos é consequência do julgamento do STF que definiu, na quinta-feira, restringir o foro privilegiado para deputados e senadores. Até a edição da nova regra, todo crime relacionado a parlamentares federais era obrigatoriamente analisado pela mais alta Corte do país.
Ontem, o ministro Dias Toffoli mandou para instâncias inferiores seis ações penais e um inquérito envolvendo sete deputados. Em todos os casos, os supostos crimes ocorreram antes do mandato ou não têm relação com o exercício do cargo. Toffoli determinou o envio de processos de crimes supostamente cometidos por parlamentares quando eles ocupavam, por exemplo, cargos de prefeito e deputado estadual.
O envio dos processos para outras instâncias não será automático. Vai depender da análise, caso a caso, de cada ministro encarregado de relatar processos contra congressistas no Supremo. Dos 74 casos analisados pelo GLOBO, sete devem continuar no tribunal. Eles dizem respeito à atividade parlamentar, como a atuação de deputados e senadores pela aprovação de projetos de interesse da Odebrecht. Há ainda 38 inquéritos restantes que levantam dúvidas: dependendo da avaliação particular de cada ministro, podem ou não permanecer na Corte.
As ações penais dos deputados federais Takayama (PSC-PR) e Helder Salomão (PT-ES) foram enviadas respectivamente para a primeira instância em Curitiba e Cariacica (ES). Mas as constituições paranaense e capixaba dizem que cabe ao Tribunal de Justiça (TJ) local julgar crime de deputados estaduais e prefeitos. Assim, ao não enviar os processos para o TJ, Toffoli indicou que tudo deverá ser encaminhado para a primeira instância, mesmo que o investigado ou réu tenha passado por um cargo que garanta foro em alguma corte. Toffoli também mandou ações penais dos deputados Alberto Fraga (DEM-DF), Roberto Góes (PDT-AP), Marcos Reategui (PSD-AP) e Cícero Almeida (PHS-AL) para a primeira instância, assim como o inquérito contra o deputado Wladimir Costa (SD-PA).
No julgamento do STF, prevaleceu a proposta do ministro Luís Roberto Barroso: manter no tribunal apenas os processos de parlamentares abertos em decorrência de crimes cometidos durante o mandato e, ainda assim, se tiverem relação direta com o exercício da função. O próprio Barroso, no entanto, reconheceu que em alguns casos será difícil definir se essa relação existe ou não. Ele disse não haver decisão sobre o que ocorre, por exemplo, com deputados e senadores que cometeram crimes em mandatos anteriores e foram reeleitos. Há vários inquéritos da Odebrecht nessa situação.
VÁRIOS PARTIDOS
Os 29 inquéritos da Odebrecht que devem ser mandados para outras instâncias investigam parlamentares de vários partidos: DEM, PCdoB, PMDB, PP, PR, PRB, PSD, PSDB, PT e SD. Dois deles apuram irregularidades envolvendo o senador Aécio Neves (PSDB-MG) quando não era parlamentar. Um investiga, por exemplo, se houve pagamento de propina ao tucano por contratos da obra da Cidade Administrativa, quando Aécio era governador de Minas Gerais.
O senador Fernando Bezerra Coelho (PMDB-PE) também tem dois inquéritos que devem descer para a primeira instância. Eles tratam de crimes que teriam ocorrido em 2008 e 2010, quando não era parlamentar.
Alguns casos não devem ir para a primeira instância, mas para outros tribunais, porque envolvem outras pessoas com foro. Há um inquérito, por exemplo, aberto para investigar o senador Jorge Viana (PT-AC) e seu irmão, o governador Tião Viana (PT-AC). Sem foro para o parlamentar, vai prevalecer a regra de que cabe ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) analisar processos envolvendo governadores. A decisão do STF atingiu apenas senadores e deputados federais, mas não outras autoridades.
Eles tratam da atuação de parlamentares como o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), o presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE), os senadores Romero Jucá (PMDB-RR) e Renan Calheiros (PMDB-AL). Delatores da Odebrecht disseram ter feito pagamentos a ele em troca de sua ajuda no Congresso, onde havia projetos de interesse da empresa.
Dos cinco inquéritos da Odebrecht que investigam Jucá, por exemplo, quatro devem ficar no STF. Isso inclui um em que a Primeira Turma do STF aceitou denúncia, transformando Jucá em réu. O quinto é um caso em que há dúvida porque trata de supostas irregularidades de 2008, quando ele já era senador, mas em mandato anterior ao atual.
Assim como Jucá, há outros parlamentares nessa mesma situação. É o caso, por exemplo, do senador Fernando Collor (PTC-AL) e de outro processo de Rodrigo Maia. Outros processos que geram dúvidas tratam de pagamento de caixa dois em campanha pela reeleição, como um inquérito do ex-presidente da Câmara Marco Maia (PT-RS).
Dos 80 inquéritos em curso no STF, com base na delação da Odebrecht, seis não dizem respeito a parlamentares. Um investiga um suplente que já exerceu o cargo de deputado, mas ainda não foi enviado para outra instância. É apenas questão de tempo para que isso ocorra. Outros cinco apuram o envolvimento de ministros em irregularidades. Pela decisão do STF, que abrange apenas deputados e senadores, esses casos continuam na Corte.
Merval Pereira: Mais uma tentativa
Começou ontem mais uma ação da defesa do ex-presidente Lula para livrá-lo da cadeia, onde já está há um mês. Os ministros votam, no plenário virtual da Segunda Turma, uma reclamação contra a ordem de prisão que já foi negada pelo ministro Edson Fachin. O agravo regimental questiona determinação do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) ao juiz Sergio Moro para decretar a prisão do ex-presidente.
Os advogados de Lula alegam que havia recursos pendentes para análise no TRF-4 e, portanto, a decisão de reclusão foi ilegal, pois contrariaria a tese do Supremo no julgamento de 2016, que fixou a execução provisória da pena após finalizado o processo de condenação em segunda instância.
A defesa se refere aos embargos de declaração e aos “embargos dos embargos”, estes considerados meramente protelatórios, e que nunca são levados em conta pelos desembargadores do TRF-4, por não terem efeito suspensivo.
Criado em 2007 para dar celeridade à Justiça, o plenário virtual usualmente trata de questões sem grande significação, em que já existe uma decisão pacificada pelo Supremo. Não há debate entre ministros, nem sustentações dos advogados, e o conteúdo dos votos só é conhecido após a publicação do acórdão com a decisão final.
Os ministros terão até 10 de maio, próxima quinta-feira, para votar. Os integrantes da Segunda Turma são os ministros Edson Fachin, Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli e Celso de Mello e, no plenário virtual, não são obrigados a votar. Quem não se pronunciar estará automaticamente apoiando o voto do relator, que já foi apresentado.
Embora não se conheça seu teor, é presumível que sua posição seja a mesma já revelada: contra o agravo dos advogados de Lula, Fachin deve alegar que o recurso está superado porque o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) já julgou e rejeitou os novos recursos do ex-presidente e a instância está exaurida.
Se algum ministro divergir, pode pedir vista e solicitar que o julgamento ocorra no plenário presencial da Corte. Caso isso ocorra, não há prazo para a retomada do julgamento.
A grande discussão nos bastidores do STF é sobre os motivos do ministro Edson Fachin, relator da Lava-Jato, ter levado o agravo ao plenário virtual, evitando o presencial. A explicação mais plausível é que ele quis dar liberdade aos ministros que votaram a favor do habeas-corpus do presidente Lula, que ficaram em minoria no plenário do STF, mas têm a maioria na Segunda Turma. E indicando também que o assunto já está pacificado no Supremo.
Recentemente, o STF negou habeas corpus ao ex-presidente Lula em decisão tomada por 6 votos a 5, abrindo caminho para que o juiz Sergio Moro seguisse a determinação do TRF-4 de dar início ao cumprimento da pena, mesmo antes de encerrados todos os recursos, pois nenhum deles tem efeito suspensivo, não podendo alterar, portanto, o acórdão do julgamento do TRF-4 que condenou Lula em segunda instância. É improvável juridicamente, portanto, que a Segunda Turma resolva rever uma decisão que foi tomada por maioria no plenário do Supremo Tribunal Federal. Engano Recentemente, cometi um engano em uma coluna em que me referia às últimas tentativas do MDB, depois PMDB, de eleger candidatos à Presidência da República. Na verdade, em 1989, o deputado Ulysses Guimarães, saído da Constituinte como o protagonista da cena política brasileira, chegou em sétimo lugar, mas não atrás de Enéas, que chegou em 14º. Quem foi suplantado por Enéas foi Orestes Quércia, em 1994.
Fernando Gabeira: Marolas e tsunami
Delação da Odebrecht castiga não só o PT, mas outros partidos, como PSDB e PMDB, e devasta a política na América do Sul
Aos trancos, caminhamos. Caiu o foro privilegiado, caiu o esquema de doleiros que atendia a políticos e milionários de modo geral. Houve também uma evolução interessante, naquela decisão de retirar a delação da Odebrecht do processo contra Lula. Menos de uma semana depois, a delação da Odebrecht voltou a assombrar. Dessa vez, Lula e mais quatro foram denunciados pelos investimentos em Angola. Se volto ao tema é apenas para enfatizar a amplitude da delação da Odebrecht, uma empresa que se organizou de forma profissional e sofisticada para corromper autoridades. Talvez tenha sido a maior do mundo nessa especialidade.
No entanto, não apenas os ministros Gilmar, Lewandowski e Toffoli tentam neutralizar as confissões da Odebrecht. Há uma dificuldade geral de reconhecer sua importância. Inicialmente, foi descrita como um tsunami. Mas não era. Ela apenas castiga com ondas fortes não só o PT, mas também outros partidos, entre eles, PSDB e PMDB.
A delação da Odebrecht cruzou fronteiras e devastou a política tradicional na América do Sul. No Peru, por exemplo, praticamente todos os ex-presidentes foram atingidos, um deles caiu, outro foi preso por um bom período. Talvez a dificuldade de avaliar como a delação da Odebrecht bateu fundo seja uma espécie de constrangimento nacional pelo fato de o Brasil ter se envolvido oficialmente no ataque às democracias latino-americanas.
O escritor peruano Vargas Llosa afirmou que a delação da Odebrecht fez um grande favor ao continente. E disse também que Lula era um elo entre a empresa e os governos corrompidos. Nesse ponto, discordo um pouco. O esquema de corrupção que cruzou fronteiras não era apenas algo da Odebrecht com a ajuda de Lula. Era algo articulado entre o governo petista e a empresa. A abertura de novas frentes no exterior não se destinava apenas a aumentar os lucros da Odebrecht, embora isto fosse um elemento essencial. Dentro dos planos conjuntos, buscava-se também projetar Lula como líder internacional, ampliar a influência do PT em todas as frentes de esquerda que disputavam eleições.
A ideia não era apenas ganhar dinheiro, embora fosse, em última análise, o que mais importava. O esquema brasileiro consistia em enviar marqueteiros para eleger aliados, com o mesmo tipo de financiamento consagrado aqui: propina da Odebrecht. Da mesma forma como tinha se viabilizado na esfera nacional, o PT exportava seus métodos com um objetivo bem claro de ampliar seu poder de influência no continente.
Portanto, Lula não era simples emissário da Odebrecht. A empresa estava consciente de seu projeto de influência. Não sei se ideologicamente acreditava numa América Latina em que todos os governos fossem como o do PT. Mas certamente a achava a mais lucrativa e confortável das estratégias e se dedicou profundamente a ela. Uma das hipóteses que levanto para que o tema não fosse visto com toda a transparência é o constrangimento em admitir que através de seu presidente e de uma política oficial de financiamento o Brasil se meteu até o pescoço na degradação das democracias latinas. Algum dia, teremos de oficialmente pedir desculpas. Nossas atenuantes, no entanto, são muito fortes: foi a Lava-Jato que desmontou o esquema, e o uso do dinheiro foi um golpe nos contribuintes nacionais.
Esta semana, o Congresso decidiu que vamos pagar o crédito de R$ 1,1 bilhão à Venezuela e a Moçambique.
Subestimamos o papel do Brasil e pagamos discretamente as despesas da aventura. Gente fina é outra coisa.
Merval Pereira: Avanço republicano
O fim do foro privilegiado de deputados e senadores por unanimidade mostra que, apesar das diferenças de visão, o Supremo Tribunal Federal tem uma posição firme sobre o assunto, variando apenas a maneira de aplicar a decisão. Mesmo que os ministros que eram contra a proposta tenham aderido a ela apenas diante do fato consumado.
Quatro dos onze ministros ficaram vencidos na proposta de Alexandre de Moraes, que previa que o foro privilegiado seria mantido para os parlamentares durante o mandato, não importando que o crime tivesse sido cometido sem ligação com sua atuação parlamentar.
Mesmo assim, a proposta era um avanço, pois os parlamentares poderiam ser julgados por crimes passados, o que hoje não acontece. A maioria do Supremo decidiu, no entanto, avançar mais, e o foro só valerá para crimes cometidos no mandato e em função dele.
O recebimento de propina na campanha eleitoral, por exemplo, será julgado na primeira instância, pois o candidato não tem foro privilegiado. O interessante é que essa maioria de 7 a 4 está prevalecendo nas recentes decisões do STF, mas a composição da maioria não se repete.
Os ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes têm votado em bloco, enquanto os ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin, Luiz Fux e Cármen Lúcia votam geralmente com a mesma posição. Os ministros Alexandre de Moraes, Celso de Mello e Rosa Weber são os swing votes, isto é, votos que podem ajudar a formar a maioria, sem tendência fixa.
Mas os ministros que hoje fazem a maioria na Segunda Turma, deixando quase sempre em minoria o relator da Lava-Jato, Edson Fachin, e, em alguns casos, o decano Celso de Mello, raramente têm tido a maioria no plenário.
Nesse caso, vai ser mais difícil para os ministros derrotados decidirem os casos que devem ir para a primeira instância baseados no critério que foi rejeitado pela maioria, como alguns ministros fazem no caso da prisão em segunda instância.
Os quatro que votaram para que a Corte julgue crimes cometidos durante o mandato, independentemente se o delito tem relação com a função parlamentar, foram Alexandre de Moraes, que abriu a divergência, Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes.
Dos cinco ministros que votaram contra a prisão em segunda instância, apenas a ministra Rosa Weber acata a maioria, mesmo contra sua opinião. O ministro Dias Toffoli também se pauta pelo respeito à maioria, em que ele formava no julgamento de 2016, mas mudou de ideia e hoje propõe que a prisão se dê após a decisão do STJ.
O ministro Gilmar Mendes, que também formou a maioria naquela ocasião, anunciou mudança de posição e vem concedendo habeas corpus, assim como Marco Aurélio Mello, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski. Fazem isso porque a decisão foi em caráter liminar, permitindo, mas não obrigando a decretação da prisão.
No caso do fim do foro privilegiado, a decisão é terminativa, e provavelmente as dúvidas que surgirem sobre se o crime foi cometido em razão do cargo deverão ser definidas pelo relator, com recurso nas Turmas.
Outro avanço alcançado ontem impede, pelo menos em parte, a chamada “gangorra processual”, em que o político aguarda até perto da decisão final do STF e renuncia ao mandato, levando seu processo à estaca zero para a primeira instância. Os ministros decidiram que o processo não mudará de instância nos casos envolvendo a fase de intimação para as alegações finais, isto é, após a colheita de provas.
A consequência da decisão do Supremo, a médio prazo, será sua extensão para as Assembleias Legislativas e as Câmaras Municipais. Mas a proposta de emenda constitucional que está em tramitação no Congresso é mais radical ainda, acabando com o foro privilegiado para todos, com exceção de presidentes de Poderes: Presidência da República, do Congresso (Câmara e Senado) e do Supremo.
Foi arquitetado como uma reação à decisão do Supremo, e na próxima legislatura deve tornar-se pauta prioritária. Dependendo da nova formação do futuro Congresso, a mudança constitucional pode manter os avanços agora feitos pelo Supremo.
Se, ao contrário, o espírito vigente for o mesmo que hoje impera no Congresso, teremos mais uma crise institucional, com forte reação da opinião pública contra um eventual retrocesso.
Eliane Cantanhêde: Fim do foro, fim da festa?
Restrição ao foro foi grande passo, mas as dúvidas são muitas e vão durar
Ao restringir o foro privilegiado para senadores e deputados federais apenas por crimes cometidos durante o mandato e relativos a ele, o Supremo quebrou um paradigma, abriu uma ampla avenida para derrubar o foro de demais autoridades e lavou a alma da opinião pública. Mas isso é só o começo.
Depois da sessão, perguntei à presidente Carmen Lúcia quando a mudança vai começar na prática: “Imediatamente”, ela respondeu, sem titubear. E pode ser hoje. As dúvidas, porém, são muitas:
1) O próprio STF terá de avaliar, caso a caso, o que é e o que não é crime relativo ao mandato. Receber propina para votar um projeto, evidentemente, é. O marido bater na mulher, ao contrário, não tem nenhuma relação com a função. E quando o deputado dá um tapa na cara de alguém num evento político, como aconteceu no Pará?
2) Após a decisão do STF, os advogados vão avaliar se é melhor para o réu ficar no STF ou ir para a primeira instância. E vem a maratona de recursos, numa direção ou outra. Quanto tempo isso dará ao réu e quanta energia tomará do ministro e de uma turma do STF?
2) Não haverá mudança de instância após a instrução do processo – quando o ministro dá prazo às partes para alegações finais –, pelo princípio da “prorrogação de competência”. Afinal, o juiz que acompanha um caso, ouve acusação e defesa e conhece as provas é o mais apto para proferir a sentença. Então, dois casos semelhantes poderão ter destinos diferentes por questão de timing. Um ficará no STF, outro irá para a primeira instância. Uma confusão.
4) Todos os processos referentes à Lava Jato irão automaticamente para o juiz Sérgio Moro, ou uns vão para o Rio, outros para Brasília, outros ainda para a Bahia e assim por diante? Com 18 mil juízes no País, há ou não o risco de olhares, interpretações e sentenças muito díspares? Para uns réus, a ida para a primeira instância será o inferno e, para outros, o paraíso?
5) Mais: Moro está numa Vara especializada nos crimes da Lava Jato, mas em Belo Horizonte, por exemplo, há dezenas de juízes com milhares de processos referentes a tráfico, estelionato, assassinato etc. Quando um juiz receber um caso do Supremo, por sorteio, vai se deparar com um processo complexo, cheio de minúcias e de excelentes advogados pagos a peso de ouro. Isso vai ou não parar tudo até ele tomar pé da situação?
6) Renan Calheiros, Romero Jucá e Aécio Neves, campeões de inquéritos entre os que têm foro no STF, enfrentam processos por variados motivos. Cada processo vai para um Estado, uma Vara, um juiz? Vão ter advogados em Curitiba, Brasília, São Paulo, Minas, Alagoas, Roraima? Vão virar muitos Renans, Jucás e Aécios?
7) Como indagou o ministro Gilmar Mendes, o que acontece com os processos de parlamentares que trocam de cargo? Detalhando: como deputado, o sujeito era julgado no STF, agora cai na primeira instância, aí vira ministro e volta para o STF? E, se é demitido, volta de novo para o juiz de primeira instância?
8) Aliás, quando virá a “isonomia” cobrada por Dias Toffoli? Ou seja, e a restrição de foro também para ministros, governadores, membros do próprio Supremo...? Nesse caso, um dos 18 mil juízes poderá pedir busca e apreensão no Planalto e no STF?
9) E a principal dúvida é se, e quando, vier o fim da prisão em segunda instância. O sujeito será julgado antes na primeira e depois na segunda instância, mas, condenado, o que acontecerá? Nada. Ele fará um ar indignado, posará de injustiçado, culpará os inimigos e a mídia e irá para casa curtir mil e um recursos durante 20 anos. Até seu caso voltar à origem: o próprio Supremo.
O Brasil precisa mesmo rever o foro, mas não achem que será rápido, fácil, muito menos uma festa.
O Globo: Veja o destino de alguns casos que hoje estão no STF, após restrição da prerrogativa
Foro privilegiado: Veja o que acontece com os processos de Aécio, Bolsonaro e outros políticos
BRASÍLIA — O Supremo Tribunal Federal (STF) decidiu na quinta-feira restringir o foro privilegiado para deputados e senadores. Agora, só serão processados na Corte os congressistas investigados por fatos relacionados ao mandato, cometidos durante o exercício do cargo. A decisão, tomada com os votos de sete dos 11 ministros do tribunal, vai provocar a transferência de inquéritos e ações penais para a primeira instância do Judiciário.
Ainda não há um levantamento de quantos processos serão afetados, até porque muitas situações, segundo o próprio autor da proposta, o ministro Luís Roberto Barroso, continuam em aberto. Ele reconheceu que em alguns casos será difícil definir se o crime cometido durante o mandato tem ou não relação com o exercício do cargo. Entre os 21 inquéritos com denúncia e ações penais que integram a Lava-Jato e seus desdobramentos no STF, dez devem permanecer na Corte, dez geram dúvidas sobre qual será seu destino e apenas um deve ser baixado.
Veja aqui o futuro de alguns processos e inquéritos de senadores e deputados que tramitam hoje no STF:
DESCEM PARA A 1ª INSTÂNCIA
Aécio Neves
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A presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Cármen Lúcia retoma o julgamento sobre a restrição ao foro STF reduz foro privilegiado para deputados e senadores
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (RJ), no plenário da Câmara, durante sessãoMaia determina instalação de comissão para analisar proposta que restringe foro também no Judiciário
Ministro do Supremo Tribunal Federal Dias Toffoli negou pedido de habeas corpus feito pela defesa de Erton Medeiros Fonseca, executivo da Galvão EngenhariaToffoli altera voto para estender decisão sobre foro para além de parlamentares
O plenário da Câmara dos DeputadosDelação da Odebrecht: saiba quais são os políticos investigados no Supremo que têm foro
Em um dos nove processos a que responde no Supremo, o senador tucano é investigado por ter recebido da Odebrecht propina de R$ 5,2 milhões na construção da Cidade Administrativa, quando era governador de Minas Gerais (2003-2010). Pela tese aprovada no STF, o inquérito deixa a Corte e vai para a primeira instância.
Fernando Bezerra
O senador foi denunciado pela PGR pelo recebimento de R$ 41,5 milhões de propina de empreiteiras que executaram obras na refinaria Abreu e Lima, em Pernambuco. À época, ele ocupava cargos no governo estadual. Caberá a Edson Fachin mandar o processo para a primeira instância, como defende a proposta de redução do foro, ou para o TJ.
FICAM NO STF
Quadrilhão do PMDB
Em setembro de 2017, a PGR denunciou um grupo de senadores do PMDB, acusando-os de participar de uma organização criminosa que deviou dinheiro dos cofres públicos. Os alvos foram Edison Lobão (MA), Jader Barbalho (PA), Renan Calheiros (AL), Romero Jucá (RR) e Valdir Raupp (RO). Segundo a denúncia, a atuação criminosa deles é até os "dias atuais", ou seja, já durante o exercício atual do mandato.
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Romero Jucá
O senador é réu no STF por ter recebido R$ 150 mil da Odebrecht em doação eleitoral, em 2014. Em troca, teria usado o mandato para apresentar emendas em projetos que favoreceram a empreiteira. Como o caso é relativo ao mandato, seria mantido no Supremo mesmo com a alteração na regra. Ele é acusado de corrupção passiva e lavagem de dinheiro.
DÚVIDA
Quadrilhão do PP
A PGR denunciou um grupo de parlamentares do PP por atuação na organização criminosa investigada na Lava-Jato que desviou dinheiro dos cofres públicos. O grupo, que inclui o presidente do partido, senador Ciro Nogueira (foto), teria atuado até 2014, antes do mandato atual. Casos ocorridos em mandatos anteriores são uma questão em aberto.
Jair Bolsonaro
O deputado responde a processo por ter afirmado, em 2014, que sua colega Maria do Rosário não servia para ser estuprada por ser feia. Sua defesa afirma que sua declaração está protegida pela imunidade parlamentar. Caberá ao Supremo decidir se o caso tem relação com a função e como fica a situação pelo fato ter ocorrido no mandato anterior.
El País: STF restringe foro de parlamentares, mas não se manifesta sobre outras 54.400 autoridades
Em decisão unânime, Supremo entendeu que deputados e senadores só podem ser julgados por delitos cometidos durante o mandato ou em função dele
Por Afonso Benites, do El País
O Supremo Tribunal Federal decidiu nesta quinta-feira restringir a prerrogativa de foro privilegiado aos 594 deputados federais e senadores brasileiros. A decisão, tomada por unanimidade, excluiu outras 54.400 autoridades que têm a prerrogativa de serem julgadas por tribunais, ao invés de terem seus casos analisados em primeira instância. Os ministros decidiram sobre um processo envolvendo um ex-deputado federal do Rio de Janeiro e, por essa razão, entenderam que não era o momento de se debruçar sobre os privilegiados que não são congressistas.
Entre os que ainda permanecem com foro privilegiado nas esferas estadual ou federal estão presidente e vice-presidente da República, ministros de Estado, juízes, membros do Ministério Público, deputados estaduais, governadores, prefeitos, comandantes das Forças Armadas, entre outros.
Apesar de não estar oficialmente em debate, a ampliação da restrição do foro foi discutida intensamente entre os magistrados nas últimas duas sessões do plenário, na quarta e na quinta-feira. “Não dá para fazer distinção. Por que parlamentar não terá mais foro, mas promotor de Justiça que fez concurso público terá? Se isso valerá para deputado, valerá para juízes e comandante do Exército?”, questionou o ministro Gilmar Mendes o último a votar.
Em maio do ano passado, os senadores aprovaram uma proposta de emenda constitucional (PEC) que reduzia a prerrogativa de foro apenas ao presidente e vice-presidente da República, aos presidentes do Supremo Tribunal Federal, do Senado e da Câmara dos Deputados. Todos os demais, em caso de cometimento de crimes, seriam julgados por um juiz de primeira instância. A PEC não foi analisada pelos deputados e não a será neste ano porque, com a intervenção federal do Rio de Janeiro, nenhuma alteração constitucional pode ser feita. “Talvez provocado por nós, o Congresso aprovou uma tábua rasa de todas as considerações feitas na Constituição de 1988”, criticou o ministro Ricardo Lewandovski.
A decisão desagradou até deputados que defendem o fim do foro privilegiado, como Daniel Vilela (MDB-GO), presidente da Comissão de Constituição e Justiça. “Tem que ser para todo mundo. Senão, faremos uma carta para os privilegiados. E a ideia é justamente o contrário”, reclamou.
Independentemente das críticas dos magistrados e de parte dos legisladores, a partir de agora os parlamentares só responderão aos crimes no STF caso tenham cometido o delito durante o mandato. Por exemplo, se um deputado empossado em 2019 estiver sendo processado por estelionato cometido em 2018, enquanto ainda não era parlamentar, ele será julgado no primeiro grau.
Apesar de os ministros terem sido unânimes nessa restrição do foro, houve divergências sobre um trecho do relatório do ministro Luís Roberto Barroso. O relator entendeu que os deputados federais e senadores só poderão responder a processos no Supremo caso tenham cometidos delitos relacionados à função. Esta tese prevaleceu pela votação de 6 a 5. Um caso hipotético: um congressista pode ser julgado no STF caso tenha recebido propina para aprovar um projeto de lei. No caso de cometer delitos considerados “comuns”, como o de ter se envolvido em um acidente de trânsito, responderá na primeira instância. Até a data do julgamento, todos os delitos envolvendo deputados e senadores eram julgados na Corte suprema.
“Lenda urbana”
Um dos principais críticos desse trecho do relatório de Barroso foi o ministro Dias Toffoli. Ele refutou a tese de que a prerrogativa de foro seja um benefício aos legisladores. “Não se trata, ao meu ver, uma questão de privilégio. Pelo contrário. Os que detêm a prerrogativa tem diminuídos as instâncias recursais e a redução da possibilidade de prescrição, já que o trânsito em julgado cabe ao Supremo”.
Em seu voto, Toffoli quis acabar com o que ele chamou de “lenda urbana”, que é o senso comum de que o Judiciário era conivente com o crime de corrupção. Segundo ele, apenas em 2001, após uma mudança legislativa, o STF teve condições de julgar diretamente os deputados e senadores. Antes, para qualquer processo tramitar na Corte era necessária a aprovação dos próprios legisladores, algo que jamais ocorrera.
Um levantamento feito junto ao STF mostra que entre 2002 e abril de 2018, entraram na casa 661 ações penais contra políticos. Em uma pesquisa menos ampla, que analisou o período entre 2006 e 2016, uma equipe do projeto Supremo em Números, da Fundação Getúlio Vargas, constatou que 95% dos casos envolvendo esses políticos com foro poderiam ser julgados em primeira instância, se a regra aprovada nesta quinta-feira já estivesse em vigor.
A mesma pesquisa da FGV concluiu também que, caso os processos desses políticos tramitassem em primeira instância, sua conclusão seria mais célere e as chances de prescrição dos crimes seriam menores. Em média, uma denúncia é analisada pelo STF em 591 dias, quando na primeira instância o prazo é de uma semana.
Ainda que o foro tenha sido restringido, nenhum dos casos que hoje tramitam no judiciário seguirá automaticamente para o juiz de primeiro grau. Cada processo será analisado individualmente.
Merval Pereira: Com os dias contados
A partir de hoje, o foro de prerrogativa de função, ou mais popularmente o foro privilegiado, será diferente de como o conhecemos, abrangendo cerca de 55 mil pessoas em cargos públicos. Embora trate apenas da questão de parlamentares federais, isto é, deputados e senadores, o ministro Gilmar Mendes, o único que falta votar, chamou a atenção para o fato de que a limitação do foro aos crimes cometidos “durante o mandato e em função dele” — proposta do relator, ministro Luís Roberto Barroso — acabará tendo de ser estendida aos demais detentores desse tipo de foro.
Isso acontecerá, no mínimo, com a aprovação de um projeto de emenda constitucional que já foi aprovado no Senado e está no momento na Câmara, que não pode aprová-lo durante a vigência da intervenção na Segurança Pública do Rio. Pelo projeto do Congresso, apenas os presidentes da República, de Câmara, Senado e Supremo Tribunal Federal terão foro privilegiado, e todos os demais serão julgados na Justiça comum.
Com 10 a 0 no plenário do STF, tudo indica que hoje a discussão ficará entre a proposta do ministro Luís Roberto Barroso — o foro no cargo e em razão do cargo —, que amplia o alcance do fim do foro em relação aos deputados e senadores sem prescrição temporal, e a do ministro Alexandre de Moraes, que já teve o apoio de Dias Toffoli e Ricardo Lewandowski, que fixa a diplomação dos parlamentares como o início do foro privilegiado para qualquer crime cometido durante o mandato. Os demais crimes, anteriores ao mandato, poderiam ser julgados.
Resta saber se a chamada “gangorra processual” será interrompida, pois a cada vez que um parlamentar é eleito ou nomeado para qualquer cargo que tenha foro privilegiado, o processo volta à estaca zero, saindo da Justiça comum para o STF.
Toffoli alegou que a definição do que seja crime cometido “em função do mandato” é muito subjetiva, e o Supremo, em vez de se ver desafogado dos processos criminais, terá que definir, caso a caso, quem pode ter foro privilegiado.
Mais uma vez o estudo sobre o tema da Fundação Getulio Vargas do Rio (FGV) foi criticado. Ele mostra que no Supremo Tribunal Federal (STF), uma das cortes que julga os que possuem foro privilegiado, de 404 ações penais concluídas entre 2011 e março de 2016, 276 (68%) prescreveram ou foram repassadas para instâncias inferiores porque a autoridade deixou o cargo.
A condenação ocorreu em apenas 0,74% dos casos. O ministro Lewandowski alegou que os processos penais representam apenas 5% das ações que o Supremo julga, e por isso não são representativos de uma suposta “lentidão do STF” que levaria à impunidade.
Dias Toffoli chegou a indignar-se em seu voto, dizendo que acusar o Supremo de favorecer a impunidade é uma crítica indevida aos ministros de plenários anteriores. Ao contrário de estar acusando o STF de negligência, o ministro Luís Roberto Barroso está chamando a atenção para a necessidade de uma atitude proativa antes que o Supremo seja soterrado por centenas de processos envolvendo políticos com foro especial por prerrogativa de função.
O processo sobre o senador Renan Calheiros, em que ele é acusado de peculato por ter usado dinheiro de uma empreiteira para pagar pensão alimentícia para uma filha fora do casamento, é exemplar da lentidão que favorece os que têm foro privilegiado. Os acontecimentos abordados pela Procuradoria-Geral da República ocorreram entre 2004 e 2007, e o processo ficou na PGR até 2013.
Lewandowski lembrou que a maioria dos processos demora devido a diligências na Polícia Federal ou na PGR. Outros ministros, como Gilmar Mendes, chamam a atenção para o fato de que é muito fácil abrir um inquérito, o difícil é encerrá-lo. Criticou a qualidade do trabalho que chega ao STF para julgar, e lembrou que em muitos casos é impossível condenar porque as provas, depois de anos de investigação, não são aproveitáveis ou conclusivas. Ou seja, não é o STF só que é culpado pelo atraso dos processos. O STF é juiz, e não busca as provas.
El País: “Não se pode permitir que o Judiciário escolha quem governa e quem pode ser eleito”, diz Eloísa Machado
Para advogada especialista em estudos sobre o Supremo, o STF tem pautado cada vez mais as eleições presidenciais
Por Marina Rossi, do El País
Na última terça-feira, o Supremo Tribunal Federal decidiu retirar das mãos do juiz Sérgio Moro parte das delações da Odebrecht que citam o ex-presidente Lula no caso do sítio de Atibaia. Dois dias depois, Moro desafiou o Supremo, decidindo que a ação deveria permanecer em Curitiba. Para Eloísa Machado de Almeida, especialista em Direitos Humanos e uma das coordenadoras do Supremo em Pauta, é difícil saber o que as decisões, tanto do Supremo, quanto de Moro, podem significar em termos práticos. Mas ela arrisca dizer que o juiz de Curitiba está "inaugurando uma queda de braço" com o STF. "Imagino que muito em breve teremos um novo pronunciamento do Supremo sobre isso", disse, em entrevista ao EL PAÍS.
A especialista também fala sobre os diferentes tratamentos da Justiça diante dos réus políticos. Isso porque, na mesma terça-feira, em Minas Gerais, o Tribunal de Justiça dava mais passo para a lenta caminhada da condenação do ex-governador mineiro ex-presidente do PSDB Eduardo Azeredo. Por um placar apertado – três a dois – os desembargadores rejeitaram os embargos da defesa de Azeredo e mantiveram a pena de 20 anos de prisão pelos crimes de peculato e lavagem de dinheiro no caso conhecido como mensalão tucano. "O grande desafio que está colocado é a capacidade da Lava Jato ir além de Lula", diz. "Mas que não se trata do mesmo tratamento [entre um político e outro], isso é evidente".
Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
Pergunta. O que essa decisão mais recente da segunda turma do Supremo, de tirar das mãos de Moro parte das delações que envolvem o processo do sítio de Atibaia, significa?
Resposta. O Moro já decidiu que não vai enviar este caso para a Justiça de São Paulo.
P. Mas ele pode fazer isso?
R. Eu acho que ele está inaugurando uma queda de braço com o Supremo. O que ele diz é que o acórdão sequer foi publicado, o que é verdade, e que não há uma referência direta sobre quais partes do processo devem ser remetidas a São Paulo. Ou seja, Moro está resistindo a essa decisão. Por isso acho que muito em breve teremos um novo pronunciamento do Supremo sobre isso. Talvez explicando quais fatos relativos ao processo de Atibaia não têm conexão com a Petrobras, justificando assim a decisão de tirar da Lava Jato.
P. Na mesma terça-feira, a Justiça de Minas Gerais deu mais um passo para a condenação de Eduardo Azeredo. O processo é sobre um crime que teria ocorrido há 20 anos. Diante de um julgamento que ocorreu em tempo recorde, o do ex-presidente Lula, há dois pesos e duas medidas?
R. O grande desafio que está colocado é a capacidade de a Lava Jato ir além de Lula. Alguns movimentos ocorreram logo após a prisão dele, como o recebimento da denúncia contra Aécio Neves e agora essa nova etapa do caso de Azeredo. Mas não se trata do mesmo tratamento e isso é evidente. Principalmente quando falamos em prisão, porque estamos falando de um símbolo muito forte para uma pessoa que vive da imagem pública como Lula. Tem um efeito simbólico que vai para além da condenação. E até agora não houve nenhuma prisão de alguma figura no mesmo nível de Lula.
P. Nas eleições de 2014, elegemos um Congresso ultraconservador. Naquela época, o Supremo, era visto como uma espécie de boia de salvação no debate de pautas mais progressistas. Discussões como a da descriminalização do uso da maconha e do aborto avançavam na corte, enquanto emperravam na Câmara ou no Senado. De lá para cá as coisas mudaram? Como enxerga os últimos quatro anos de atuação do Supremo?
R. O Supremo mudou. Aquele Supremo que julgou pesquisas com células tronco e ações afirmativas, por exemplo, não é mais o mesmo. Houve uma mudança relevante de composição no tribunal e de fato, agora, o tribunal não tem conseguido avançar em grandes matérias referentes aos direitos humanos. Ainda que algumas matérias tenham sido votadas, como demarcação de terras quilombolas, o reconhecimento de união para pessoas de mesmo sexo, as cotas para negros nos concursos públicos. Houve uma série de algumas ações positivas em relação aos direitos humanos, mas a impressão que a gente tem é que esses casos foram julgados com bastante esforço, sobretudo a demarcação de terras quilombolas. Não foram casos fáceis de passar no Supremo. Havia resistência, foram sessões interrompidas. Não é mais um tribunal que tem na predominância da sua pauta ações de direitos humanos.
P. Isso é só porque a composição mudou? Ou tem outro fator relevante para ser levado em consideração?
R. Tem outras coisas. Um fator, claro, é a composição. Você muda a composição, muda o tribunal. E isso faz diferença. Há também uma agenda que se instalou no Supremo, talvez desde o mensalão, de combate à corrupção. E aí, de certa maneira, as duas grandes operações, o mensalão e a Lava Jato, acabaram por monopolizar ou deixar quase monopolizada a pauta do Supremo para esses temas. E desde 2014, também com a deflagração do processo de impeachment da Dilma, o que a gente vê é o Supremo Tribunal Federal no centro da crise institucional brasileira, não necessariamente ajudando a resolver essa crise, e trazendo questões como por exemplo o afastamento do presidente da Câmara dos Deputados, afastamento de presidente do Senado, ou sobre prisão em flagrante de senador, suspensão de exercício de mandato de senador, prisão em segunda instância... Ou seja, o STF de 2014 para cá é o STF do impeachment, da Operação Lava Jato e o STF que marcou uma nova forma de relação com os demais poderes, impondo o que eu tenho chamado de uma agenda de moralização da política. Ainda que você possa ter, e claro, como tem, a relevância da descoberta de alguns casos de corrupção, o tribunal de certa maneira aproveitou a Operação Lava Jato para impor o que ele considera ser uma visão adequada de Justiça.
P. Você acha que o STF está funcionando como deveria funcionar?
R. Não, não está. Essa agenda de moralização da política é muito perniciosa para o ambiente democrático. Tribunais com agenda são bastante complicados em uma democracia e quando a gente analisa especificamente as ações, todas elas são ações tomadas em momentos de excepcionalidade, o que trouxe uma grande insegurança para o cenário jurídico. O exemplo mais recente, claro, é o da prisão em segunda instância, onde, por conta da excepcionalidade da Operação Lava Jato, se muda o entendimento, depois com votos contados se volta atrás, e em razão da excepcionalidade do caso do Lula não se revisita esse tema. Isso sem mencionar o poder enorme ao qual o Supremo se autoconferiu ao se permitir por exemplo suspender o exercício de mandato de deputados e senadores. Isso não é uma medida prevista na Constituição, foi uma medida adotada no caso do [ex-presidente da Câmara dos Deputados] Eduardo Cunha, agora novamente no caso do senador Aécio Neves [o Senado derrubou mais tarde a decisão do STF] e mostra o grau enorme de interferência do Supremo em relação ao sistema político. Claro, tem muita coisa na Operação Lava Jato que é um processo criminal, que é interpretação, que pode ser mais ou menos dura em relação ao crime de corrupção, que envolve caixa 1, caixa dois, toda essa jurisprudência mais ou menos pesada em relação a essa agenda de combate ao crime. Mas associada à Operação Lava Jato tem também uma proposta de moralização da política que no meu entender é bastante negativa.
P. Como esse superpoder do Supremo pode interferir nessas eleições?
R. Já está interferindo. Eu não tenho dúvida de que essas eleições estão pautadas talvez mais pelo Supremo Tribunal Federal do que pelo próprio sistema político. A gente tem um pré-candidato à presidência que teve seu caso julgado recentemente, que é o Lula, que teve seu caso julgado no Supremo e em razão disso foi preso e está cumprindo provisoriamente a sua pena. Outro pré-candidato à presidência da República muito bem colocado nas pesquisas, o Bolsonaro, já responde a um processo no Supremo, que é o crime de injúria contra a deputada Maria do Rosário [em 2014, Bolsonaro disse à deputada petista que não a "estupraria" porque ela "não merecia], e ele também pode ficar fora da disputa presidencial caso seja condenado, e tem uma nova denúncia agora apresentada pela Procuradoria Geral da República que ainda não foi julgada pelo Supremo [a PGR apresentou no último dia 13 uma denúncia contra Bolsonaro pelo crime de racismo. Em abril de 2017, o deputado disse em uma palestra que quilombolas "não servem nem para procriar"].
P. E são esses dois pré-candidatos que estão liderando as pesquisas.
R. Pois é. É evidente que tem uma relação muito grande do Supremo com as eleições. Há uma terceira figura relevante agora que é o Aécio Neves (PSDB) que se tornou réu. Além de outras várias decisões que mudaram drasticamente a maneira das eleições, como, por exemplo, a proibição do financiamento privado de campanha. São muitas decisões sobre o sistema eleitoral e essas decisões hoje, especificamente as que se referem à Operação Lava Jato, estão pautando o cenário eleitoral.
P. Isso poderia ser o reflexo de uma crise institucional?
R. Sem dúvida. Uma das coisas que foram reveladas durante esse processo é o grau de promiscuidade de parte da nossa classe política, mas isso não pode servir de pretexto para que o direito substitua a política. Claro, todos esses casos devem ser investigados e devidamente punidos, mas não se pode permitir que o judiciário escolha quem governa e quem pode ser eleito. Isso gera problemas muito grandes para a qualidade da nossa democracia. E o que a gente vê hoje é que de fato, com este grau de abrangência do Supremo e da Operação Lava Jato, tudo é decidido no âmbito do Judiciário.
P. E neste contexto, temos um ex-presidente do Supremo que nem lançou a sua pré-candidatura e já aparece nas pesquisas com 10% das intenções de voto. Como você enxerga a possível candidatura de Joaquim Barbosa?
R. Ele se tornou uma figura bastante popular em razão talvez desta postura bastante dura na ação penal 430, o mensalão. E isso não é só o caso de Joaquim Barbosa. Se a gente analisar o fenômeno que se desenvolveu em torno da figura de Sérgio Moro é algo muito parecido. E isso é um reflexo deste debate que eu estou trazendo: o judiciário tem uma agenda de moralização da política onde a política passa a ser vista como algo sujo, eminentemente corrupto, onde o próprio sistema presidencialista passa a ser acusado de algo criminoso, onde ações que não são criminosas, mas são políticas, passam a ser enxergadas como algo ruim. E aí tem a substituição da via da política por esses heróis do judiciário. Me parece que é um movimento natural dessa agenda que tem sido encampada pela Procuradoria Geral da República, pelo Ministério Público -e isso é importante que se diga- mas completamente abraçada pelo judiciário.
P. Qual balanço você faz sobre a alteração da jurisprudência para prisão em segunda instância?
R. Eu sou muito crítica a essa posição do Supremo. Primeiro porque a Constituição é bastante clara. Não bastasse a Constituição, há também o Código de Processo Penal que é ainda mais explícito em relação à possibilidade de prisão até o trânsito em julgado. O tribunal que ignora uma garantia que se tem da Constituição em nome de uma suposta necessidade de se realizar justiça é algo inadmissível. Além disso, o nosso sistema de justiça é seletivo. As pessoas pobres e negras são alvos preferenciais e isso faz com que as nossas prisões sejam lugares absolutamente desprovidos de qualquer condição humana de se manter uma pessoa ali. Portanto, não há nenhuma razão para se acreditar que essa medida tomada pelo Supremo também não será afetada pela seletividade. Permitir prisão em segunda instância, inclusive sem aguardar até o habeas corpus, é bastante preocupante. E é evidente que, sendo o nosso sistema de justiça seletivo, essa medida também será aplicada seletivamente.
P. Acha que essa alteração colaborou para superlotar os presídios ou reduzir a corrupção?
R. Não. A gente não pode afirmar que isso especificamente tenha gerado superlotação. A causa principal de superlotação nos presídios ainda está associada à prisão antes de qualquer sentença. Entre 30% e 40% das pessoas que estão nos presídios sequer receberam sentença. Estamos falando de um sistema que funciona muito mal. Você não vai melhorar esse sistema simplesmente antecipando a pena com trânsito em julgado.
El País: STF diante de uma decisão histórica ao julgar foro privilegiado para os políticos
Após um ano, Corte retoma julgamento com maioria favorável a mudança nas regras. 95% dos casos que hoje estão na Corte já poderiam estar na primeira instância
Por Afonso Benites, do El País
O Supremo Tribunal Federal (STF) retoma nesta quarta-feira, dia 2, um julgamento que pode estremecer as estruturas políticas do Brasil: a restrição do foro privilegiado para deputados federais e senadores. Atualmente, os 594 parlamentares federais são julgados diretamente pela Corte Suprema do país. A tese que já obteve 8 votos favoráveis dos 11 ministros prevê que eles só teriam essa sede especial caso cometessem crimes durante o mandato e em razão de sua função. Por exemplo, se um parlamentar for investigado por agressão à sua mulher, ele responderia ao delito na primeira instância. Mas, se o crime fosse negociar propina para a aprovação de algum projeto de lei durante a atual legislatura, o foro seria o Supremo. Com a maioria do STF favorável a restringir o polêmico foro, a decisão deve ser aprovada, a não ser que dois dos ministros que ainda não se pronunciaram voltem a pedir vistas e protelem de novo o processo.
A mudança de paradigma deverá interferir em 95% dos casos que estão no STF e envolvem parlamentares, de acordo com um estudo feito pelo projeto Supremo em Números, da Fundação Getulio Vargas. Hoje, há 431 inquéritos e 101 ações penais contra políticos tramitando na principal Corte brasileira. Um processo pode ter mais de um único denunciado.
O mesmo levantamento da FGV concluiu também que, caso os processos desses políticos tramitassem em primeira instância, sua conclusão seria mais célere. E, possivelmente, as punições ocorreriam com maior frequência. Em duas de cada três ações penais o mérito da acusação contra o parlamentar sequer chega a ser avaliado pelo Supremo, em razão do declínio de competência (63,6% das decisões) ou da prescrição da pena (4,7% das decisões). Esse segundo caso ocorreu em uma ação penal contra o deputado Fernando Giacobo (PR-PR). Acusado pelos crimes de formação de quadrilha e falsificação ideológica, a denúncia levou 11 anos para ser analisada e prescreveu. Para o estudo, foram analisados casos que entraram na Corte entre 2006 e 2016.
Só na Lava Jato, há 80 pessoas com foro privilegiado com processos abertos no STF. Entre elas, o presidente da República, Michel Temer, quatro de seus ministros e ex-ministros (Moreira Franco, Eliseu Padilha, Helder Barbalho, Gilberto Kassab), além de 43 deputados federais, 3 governadores, 28 senadores e um ministro do Tribunal de Contas da União. A maioria delas deverá disputar a eleição. Apesar de a decisão do STF de restringir o foro estar perto da conclusão, em ela se confirmando, todos os casos envolvendo os políticos ainda terão de ser analisados individualmente.
Atualmente, cerca de 55.000 autoridades brasileiras têm a prerrogativa de foro. Entre eles estão juízes, ministros de cortes superiores, membros do ministério público, governadores, prefeitos, entre outros. O processo em análise trata apenas dos deputados federais e senadores. Mas há projetos em tramitação no Congresso Nacional que visam reduzir esses privilégios a apenas os presidentes dos poderes: Executivo, Legislativo e Judiciário.
"Provável privilégio pessoal"
Em seu voto como relator do processo, o ministro Luís Roberto Barroso ressaltou que só para receber uma denúncia a Corte leva quase 581 dias (pouco mais de 19 meses), enquanto que um juiz de primeira instância o faz em até uma semana. Disse Barroso: “Parece claro que se o foro privilegiado pretende ser, de fato, um instrumento para garantir o livre exercício de certas funções públicas, e não para acobertar a pessoa ocupante do cargo, não faz sentido estendê-lo aos crimes cometidos antes da investidura nesse cargo e aos que, cometidos após a investidura, sejam estranhos ao exercício de suas funções. Fosse assim, o foro representaria reprovável privilégio pessoal”. Esse entendimento foi acompanhado por sete colegas: Cármen Lúcia, Celso de Mello, Alexandre de Moraes, Rosa Webber, Edson Fachin e Luiz Fux.
O processo que trata da prerrogativa de foro dos parlamentares volta a ser analisado quase um ano depois de ter seu julgamento iniciado. Sua primeira votação ocorreu em 31 de maio de 2017. Depois voltou a ser analisado em novembro passado. Ficou esse tempo paralisado porque o ministro Dias Toffoli pediu vistas, mais tempo para analisar o processo, e só o liberou para julgamento no mês passado. Apesar dessa liberação, ainda há o risco de algum dos outros dois ministros que ainda não votaram, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandovski, utilizem-se do mesmo expediente e protelem a conclusão.
O caso concreto analisado está no Judiciário há dez anos. Envolve o atual prefeito de Cabo Frio (RJ), Marcos da Rocha Mendes, conhecido como Marquinho. Em 2008, ele foi acusado de comprar votos na eleição municipal. Como foi eleito prefeito, seu caso subiu para a segunda instância, Tribunal Regional Eleitoral. Esse tribunal levou cinco anos para julgar o caso e Mendes não era mais prefeito. O processo voltou para a primeira instância. Apenas em dezembro de 2014, ele ficou pronto para ser julgado, mas nessa época, o político tinha acabado de ser eleito primeiro suplente de deputado federal. Com o afastamento de políticos eleitos em sua coligação, tornou-se deputado. Ao assumir o cargo, o processo chegou ao STF. Ainda assim, o sobe desce de instâncias não acabou. Em 2016, Mendes renunciou o mandato na Câmara porque foi eleito prefeito. Assim, seu caso deveria retornar ao TRE do Rio.
El País: O que a Lava Jato mudou na Justiça brasileira, e o que STF pode reverter
Quando prender, como interrogar e a forma de investigar se moldam ao "padrão Lava Jato" Brasil afora. Mas a maneira como as alterações ocorreram são criticadas por quem enxerga punitivismo excessivo
"Esse caso que fica em 3 a 2... Sinceramente, o Ministério Público fica até constrangido. Como que eu vou começar o início da execução em segundo grau com um julgamento tão apertado desde o início do recebimento da denúncia?", disse o procurador do Ministério Público de Minas Gerais Antônio Pádova Marchi Júnior após o julgamento dos embargos infringentes do ex-governador Eduardo Azeredo, na terça-feira. Pádova pediu a prisão do grande símbolo do mensalão tucano, mas está tendo de explicar até agora o constrangimento que manifestou ao fazê-lo. O desfecho desse e de outros casos espalhados pelos tribunais federais e estaduais do país provavelmente seria outro sem a existência da Operação Lava Jato.
Outro caso: depois que o processo da Lava Jato contra o ex-governador Geraldo Alckmin (PSDB) foi encaminhado para a Justiça Eleitoral em abril, contrariando pedido do Ministério Público Federal, o Ministério Público Estadual de São Paulo chamou o caso para si, e abriu um inquérito civil por conta própria para investigar o caso. O mesmo voluntarismo em nível estadual pode ser visto no Rio de Janeiro, onde o Ministério Público local acabou provocado pelos processos do Ministério Público Federal que diziam respeito a serviços estaduais. Bem ao estilo agressivo e obstinado da força-tarefa da Lava Jato, uma série de processos decorrentes da operação desmontou o MDB fluminense.
Para a procuradora federal Silvana Batini, que atua na operação no Rio, essas podem ser consideradas reverberações do "padrão Lava Jato", que se consolidou para além do caso no Ministério Público Federal. A Lava Jato estaria forçando uma integração entre os ministérios públicos federal e estadual, além de ampliar as estruturas de cooperação internacional. Além disso, a operação motivou mudança de parâmetros no sistema jurídico nacional. "A prisão preventiva, que antes estava muito ligada à questão de periculosidade e a crimes praticados com violência, agora passou a ser trabalhada no crime de colarinho branco nas primeira e segunda instâncias e até no STJ [Superior Tribunal de Justiça]", comenta.
Outra grande vitória da agenda Lava Jato é a possibilidade de prender após condenação em segunda instância, uma luta de anos do Ministério Público Federal, com estudos publicados desde 2009. "Quando muda, muda estimulado pelo evento Lava Jato, mas ela [a operação] não caiu do céu. Ela é fruto de uma evolução institucional", diz Batini, que também defende a condução coercitiva, outra grande polêmica da operação. "É uma medida mais branda que a prisão temporária, e a gente viu isso acontecer na Operação Skala". A procuradora se refere ao caso em que pessoas próximas ao presidente Michel Temer, como o ex-assessor da Presidência José Yunes, foram presas para dar depoimento. "Eles ficaram presos por 48 horas, quando poderiam ter ficado cinco ou seis", argumenta Batini.
Na Operação Skala, a procuradora-geral da República, Raquel Dodge, pediu a prisão temporária de José Yunes e do ex-coronel da Polícia Militar de São Paulo João Batista Lima porque não podia pedir a condução coercitiva. Em dezembro passado, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes vetou liminarmente esse tipo de procedimento. O plenário do STF deve julgar em definitivo no dia 30 de maio esse dispositivo, que foi usado livremente pela força-tarefa da Lava Jato até que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva se tornasse alvo dela. Esse será apenas mais um dos embates que vêm sendo travados apaixonadamente na Corte Suprema em decorrência da expansão do "padrão Lava Jato".
Insegurança jurídica
O STF decidiu em 2016 que a pena de um condenado pode começar a ser cumprida a partir da condenação em segunda instância. Em 2009, a decisão de um STF composto por outros ministros tinha sido em sentido contrário, de cumprimento da pena apenas após o trânsito em julgado — ou o último recurso possível, no próprio Supremo. Apesar do pouco tempo após a última decisão sobre o assunto, alguns ministros foram substituídos desde então e a questão permanece rondando o tribunal em duas ações diretas de constitucionalidade.
O Supremo também tem se debatido com os parâmetros para a concessão de habeas corpus e mesmo sobre a possibilidade de um ministro alterar a decisão de um colega. As trocas de críticas públicas durante as sessões e por meio da imprensa opõem dois grupos mais amplos: aqueles que acham importante "ouvir a voz das ruas" e os legalistas, mais interessados em respeitar garantias de direitos dos condenados e investigados.
No plenário do tribunal, têm favorecido decisões que contemplam o primeiro grupo, ao contrário do que ocorre na Segunda Turma, onde a maioria dos processos da Lava Jato são julgados. Isso levou ao desenvolvimento de uma estratégia pelo relator dos processos, Edson Fachin. Em vez de encaminhar os casos mais relevantes para a Segunda Turma, ele tem optado por mandá-los direto para o plenário, onde a apertada maioria de seis a cinco tende a combinar com seus pareceres. A lógica deve mudar a partir de setembro, quando o ministro Antônio Dias Toffoli, entre os garantistas, assume a presidência da Corte, e a atual presidenta, Cármen Lúcia, vai para o lugar dele na Segunda Turma: Toffoli controlará a pauta do tribunal, mas a pequena maioria da turma, de três a dois, passará para o lado de Fachin.
"Hoje, para entender o plenário do Supremo, só com bola de cristal", resume o advogado Gustavo Badaró, professor de direito processual penal da USP. Ele atribui boa parte as mudanças processuais provenientes da Lava Jato à utilização da opinião pública pelos procuradores. "A Lava Jato soube usar essa pressão popular para gerar um constrangimento para que os tribunais não pudessem ir contra uma opinião pública ou publicada. O Supremo foi deixando até uma certa hora. Por que teve de fazer um freio de arrumação? Porque deixou o bonde desgovernar. Se os procuradores querem [alterar procedimentos], têm de bater na porta do Congresso, não na porta do Supremo", critica.
Segundo Badaró, alguns vão dizer que os ministros começam a tomar medidas como a que retirou do juiz Sérgio Moro a delação da Odebrecht que citava Lula porque os casos chegaram em determinados políticos, enquanto outros vão dizer que o tribunal simplesmente percebeu que foi longe demais ao atender aos clamores populares. Mas o fato é que o Supremo tem pretendido resolver o que está além de sua alçada em alguns casos, e nem todas as decisões podem ser avaliadas a partir da mesma perspectiva. Para o advogado, Gilmar Mendes apenas "restringiu algo que nem deveria existir" ao proibir as conduções coercitivas, porque a legislação brasileira não admite condução coercitiva com a finalidade para a qual vinha sendo utilizada.
O professor da USP considera que a mudança mais relevante motivada pela Lava Jato é a perda da possibilidade de um condenado em segunda instância de apelar sobre o motivo de sua prisão. "Eu podia ir ao Supremo discutir se ele estava ou não ameaçando testemunha, se havia risco de fuga, se havia possibilidade concreta de reiteração delitiva. Quando a execução começa a partir do segundo grau, essa pessoa não está presa porque a prisão é necessária, mas porque está cumprindo a pena, ainda que possa ser absolvida depois".
Quando o STJ negou habeas corpus preventivo a Lula em março, seu advogado e ex-ministro do STF Sepúlveda da Pertence disse que o tribunal "preferiu manter-se na posição punitivista em grande voga no país". Nesta sexta-feira, quem reclamou foi o coordenador da força-tarefa da Lava Jato, Deltan Dallagnol, ao saber pelo noticiário da intenção de ministros do STF de investigar o procurador Carlos Fernando dos Santos Lima por suas críticas ao Supremo. "Não são críticas que mancham imagem do tribunal, mas posturas como a do M. G. Mendes [ministro Gilmar Mendes], q vive atacando injustamente a Lava Jato e seus agentes, como o procurador Janot, o juiz Moro e procuradores de Curitiba. Como querer impor a outros limitações q tal Ministro não impõe a si?", escreveu Dallagnol em seu perfil Twitter. Quatro anos depois de começar, a Lava Jato não parece se intimidar com os limites que se avolumam no seu entorno à medida em que avança.