STF
Bernardo Mello Franco: Toffoli levou uma suprema enquadrada
Ao endossar censura, ministro Dias Toffoli levou uma enquadrada dos ministros mais velhos no STF. Ele ensaiou um recuo, mas sairá enfraquecido
Dias Toffoli foi o ministro mais jovem a assumir a presidência do Supremo Tribunal Federal. Ao completar sete meses na cadeira, levou uma enquadrada pública dos mais velhos.
O ministro irritou colegas ao instaurar um inquérito à revelia do Ministério Público. Ele alegou que pretendia defender a “honorabilidade” da Corte, mas deixou um clima de desconfiança no ar. Agora ficou claro que o motivo da preocupação era outro.
Toffoli buscava um escudo para proteger a própria imagem. Talvez soubesse que voltaria a ser citado na Lava-Jato. Ele já havia sido lembrado na delação da OAS. Na semana passada, apareceu num email interno da Odebrecht.
O presidente do Supremo se juntou à legião de figuras públicas com apelidos dados pela empreiteira. Depois do “Caranguejo”, do “Botafogo”, do “Decrépito” e do “Viagra”, despontou como o “Amigo do amigo de meu pai”. Em defesa do ministro, seu codinome foi citado sem a companhia de uma cifra.
Mesmo sem ter sido acusado de crime, Toffoli reagiu com fúria. Incentivou o colega Alexandre de Moraes a censurar a revista que publicou o e-mail. Depois da enxurrada de críticas, resolveu insistir no erro. “É necessário mostrar autoridade e limites”, justificou.
O excesso de soberba encorajou os ministros mais experientes a romperem o silêncio. O decano Celso de Mello bateu duro na censura. “Além de intolerável, constitui verdadeira perversão da ética do direito”, disse. A ministra Cármen Lúcia fez coro. “Toda censura é mordaça, e toda mordaça é incompatível com a democracia”, afirmou.
O ministro Marco Aurélio Mello advertiu que a decisão seria derrubada no plenário. “Aguardo um recuo”, complementou. Foi a senha para Moraes e Toffoli voltarem atrás antes de serem derrotados.
O recuo evita um desfecho mais humilhante para os dois. Mesmo assim, eles saem enfraquecidos do episódio. Os efeitos da enquadrada serão piores para Toffoli, que ainda tem 17 meses de presidência pela frente.
Luiz Carlos Azedo: O quarto poder
“O Estado não tem poder algum (…) de restringir e de inviabilizar o direito fundamental do jornalista de informar, de pesquisar, de investigar, de criticar e de relatar fatos e eventos de interesse público”
O papel de “poder moderador” que o Supremo Tribunal Federal (STF) avocou para si, a partir do princípio de que é o guardião da Constituição de 1988, está sendo gradativamente volatilizado pela Operação Lava-Jato, com a ajuda dos próprios integrantes da Corte. Nunca antes o Supremo esteve numa situação em que seu presidente passou do estado líquido para o gasoso, como no episódio da proibição da divulgação de uma reportagem da revista Crusoé e do site O Antagonista, pelo ministro Alexandre de Moraes.
A decisão decorreu do fato de o presidente do Supremo, ministro Dias Toffoli, ter sido apontado como suposto investigado pela Operação Lava-Jato, e provocou uma reação em cadeia nas redes sociais, na mídia e no Congresso em defesa da liberdade de imprensa. Depois da enxurrada de críticas, Moraes suspendeu a decisão, com o argumento canhestro de que se comprovou a real existência do documento citado pela reportagem. E Toffoli revogou decisão do ministro Luiz Fux que havia proibido a Folha de São Paulo de entrevistar, na prisão, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
Como a Procuradoria-Geral da República (PGR) e o Supremo tomaram conhecimento do conteúdo do documento anexado em um dos processos em que Marcelo Odebrecht é alvo na Justiça Federal de Curitiba, segundo Moraes, se tornou “desnecessária” a manutenção da medida que ordenou a retirada da reportagem do ar. “Diante do exposto, revogo a decisão anterior que determinou ao site O Antagonista e à revista Crusoé a retirada da matéria intitulada ‘O amigo do amigo de meu pai’ dos respectivos ambientes virtuais”, justificou. Moraes investiga vazamentos de documentos de caráter sigiloso da delação premiada do empresário Marcelo Odebrecht, supostamente por parte de integrantes da força-tarefa da Lava-Jato.
Todo mundo tirou uma casquinha do Supremo, até o presidente Jair Bolsonaro, que ontem participou de uma solenidade militar na sede do Comando Militar do Sudeste, na Zona Sul de São Paulo: “Prezados integrantes da mídia, em que pesem alguns percalços entre nós, nós precisamos de vocês para que a chama da democracia não se apague. Precisamos de vocês cada vez mais. Palavras, letras e imagens que estejam perfeitamente imanadas com a verdade. Nós, juntos, trabalhando com esse objetivo, faremos um Brasil maior, grande e reconhecido em todo o cenário mundial. É isso que nós queremos”, discursou.
Censura
O recuo ocorreu porque a maioria dos ministros pressionou Moraes e o presidente do Supremo, Dias Toffoli, para que a decisão fosse sustada sem necessidade de uma manifestação do pleno da Corte. Coube ao decano Celso de Mello expressar a posição da maioria, por meio de uma nota oficial: “A censura, qualquer tipo de censura, mesmo aquela ordenada pelo Poder Judiciário, mostra-se prática ilegítima, autocrática e essencialmente incompatível com o regime das liberdades fundamentais consagrado pela Constituição da República.”
Celso de Mello reiterou o papel da liberdade de imprensa na democracia: “O Estado não tem poder algum para interditar a livre circulação de ideias ou o livre exercício da liberdade constitucional de manifestação do pensamento ou de restringir e de inviabilizar o direito fundamental do jornalista de informar, de pesquisar, de investigar, de criticar e de relatar fatos e eventos de interesse público, ainda que do relato jornalístico possa resultar a exposição de altas figuras da República.” E abominou “a prática da censura, inclusive da censura judicial, além de intolerável, constitui verdadeira perversão da ética do Direito e traduz, na concreção do seu alcance, inquestionável subversão da própria ideia democrática que anima e ilumina as instituições da República”. Nas democracias do Ocidente, a liberdade de imprensa é uma espécie de “quarto poder”.
No Brasil, o “poder moderador” é uma herança do Império. Foi incorporado à Constituição de 1824 por Dom Pedro I, inspirado no esquema clássico de separação de poderes de Montesquieu, que os dividiu em Executivo, Legislativo e Judiciário, mas acrescentou mais um: o poder real. Em 1889, com a proclamação da República, o Poder Moderador foi extinto no Brasil, mas, na prática, seu papel passou a ser exercido pelos militares, o que provocou uma sucessão infindável de crises políticas. Desde a questão militar, após a Guerra do Paraguai, na década de 1890, até 1988, quando foi promulgada a atual Constituição, militares e políticos se digladiaram em vários momentos (1889, 1920, 1930, 1935, 1937, 1945, 1954, 1958, 1962, 1964, 1968, 1985), com episódios dramáticos.
Os militares sempre se acharam moralmente superiores aos políticos civis, porque se consideram os “salvadores da pátria”; e os políticos sempre temeram os militares, porque atuaram na política com a força das armas na maioria das vezes. As exceções foram as eleições de Floriano Peixoto (1891), Hermes da Fonseca (1910) e Eurico Gaspar Dutra (1946), que chegaram ao poder pelo voto. Todos passaram a Presidência para civis igualmente eleitos: Prudente de Moraes (1898), Venceslau Brás (1914) e Getúlio Vargas (1951). Bolsonaro, que mal começou seu mandato, apesar de certo dejà vu, faz parte de um novo ciclo democrático.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-o-quarto-poder/
Matias Spektor: Chegou a hora de reescrever a história da transição democrática
Episódio envolvendo o Supremo permite fazer o ajuste de contas com o passado
A reação de ministros da corte suprema a suspeitas sobre o possível envolvimento de magistrados com corrupção política é alarmante porque viola a Constituição.
No entanto, esse episódio tem um poderoso efeito pedagógico. Ele permite, finalmente, fazer o necessário ajuste de contas com o passado. Explico.
Nos últimos 30 anos, vingou a tese da suposta transição exitosa para a democracia. A narrativa dominante apresenta o Brasil como um caso de sucesso, em que pesem os vários percalços no meio do caminho.
Claro, essa visão reconhece que a travessia não foi perfeita. Mas as imperfeições são descritas como um mero resquício autoritário —aquela sobra incômoda que sempre tem numa obra grande e bem-sucedida. Não à toa, a expressão comum para descrever esses restos é “entulho autoritário”.
Essa continua sendo a forma hegemônica de descrever os últimos 30 anos. Segundo ela, o entulho atrapalha, mas não inviabiliza. Basta dar tempo ao tempo que uma democracia plena nascerá graças ao acúmulo de anos de governança virtuosa por parte de instituições democráticas, que estariam funcionando muito bem.
Tal visão da história ainda impera incólume em livros, artigos, universidades e na grande imprensa. Durante a década de 2000, quando o crescimento econômico puxado pela China permitiu esquecer o conflito redistributivo, ela virou dogma.
Alguns acadêmicos chegaram a vislumbrar um futuro próximo no qual o Brasil teria uma democracia de qualidade similar àquela hoje vista em Portugal e Espanha, exemplos de transições bem-feitas para longe do autoritarismo.
Ocorre que, nos últimos cinco anos, esse dogma ruiu. Aprendemos que o Executivo usa recursos de conglomerados privados para comprar o Legislativo.
Em conluio, políticos e empresários compram juízes e capturam agências reguladoras. Juntos, abocanham nacos da política de defesa e sequestram parte da política externa. As milícias servem como cabos eleitorais, enquanto o narcotráfico financia candidatos. Clientelismo e compra de voto não ficaram num distante passado arcaico. Permanecem vivos.
A censura impulsionada desde o STF é parte do pacote. Ela coroa as recentes revelações sobre como a corte funciona na prática, e o cenário é desolador.
Por isso, passou da hora de trocar a velha tese da transição bem-sucedida por outra, mais precisa. A dimensão autoritária da atual democracia não se resume ao escombro da reconstrução pós-ditadura. Ela é central a seu funcionamento.
É necessário um esforço coletivo para reescrever essa história à luz das novas evidências. Só assim entenderemos por que o velho pacto oligárquico conseguiu sobreviver à Nova República.
*Matias Spektor, professor de relações internacionais na FGV.
William Waack: Erro grotesco
No meio de grave luta política, o STF inflama as forças que querem emparedá-lo
Antonio Dias Toffoli assumiu a presidência do STF em setembro último com a proposta de baixar a temperatura das brigas institucionais e evitar surpresas, como uma canetada que libertasse Lula. Era o momento crítico pré-eleitoral (que o diga o atentado contra Bolsonaro) e o então comandante do Exército, general Villas Bôas, tinha combinado com o mais jovem presidente do Judiciário que seu chefe de Estado-Maior e hoje ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, uma das principais cabeças políticas das Forças Armadas, seria assessor especial de Toffoli.
O esquema de “pacificação” funcionou até ser engolido pelo agravamento da mais espetacular disputa da crise brasileira, que opõe expoentes de enorme projeção da Lava Jato, de um lado, e integrantes de peso do Supremo e do mundo político no Legislativo, de outro. E vai acabar arrastando também o Executivo na disputa para determinar quem exerce o poder de fato sobre os principais agentes políticos (e suas decisões).
A Lava Jato se entende como uma instância de controle externa sobre o mundo da política, descrito como irrecuperável, podre e intrinsecamente corrupto até que seu principal paladino, Sérgio Moro, decidisse fazer parte dele como ministro da Justiça. Do outro lado, há sólidas razões doutrinárias sustentando objetivos políticos lícitos, como os de assegurar que quem governa e legisla é quem foi eleito, e não procuradores e juízes. Razões desmoralizadas perante parte numerosa do público pelos que delas fazem uso só para escapar da Justiça. Mas o fato é que uma parte do Supremo e um número grande de políticos, entre eles muita gente honesta, acham que já passou da hora se de colocar limites e frear o ativismo de expoentes da Lava Jato.
É nesse contexto que ocorre o injustificável ato do Supremo de impor censura à publicação de material envolvendo Toffoli e encarado como parte da “guerra suja” movida por quem enxerga o STF como obstáculo, seja qual for o motivo. É um drama carente de heróis autênticos: o STF dispõe de sólidos indícios para supor que existe, sim, uma campanha organizada e dirigida para desmoralizar a Corte e alguns de seus integrantes, por razões somente políticas, e que seus adversários da trincheira da Lava Jato há muito se tornaram agentes políticos com agenda própria de poder (exercido direta ou indiretamente pelo controle da política).
Nesta altura da crise já importa pouco, embora possa parecer paradoxal, determinar quem tem razão, quem está do lado “certo”. Há uma notória atmosfera de desconfiança e perda de credibilidade das principais instituições (incluindo a grande mídia), em meio a um clamor difuso, porém virulento, expresso em “vamos expulsar a quadrilha do STF”, lema associado à visão de que, “com um Congresso cheio de corruptos, não é possível negociar”. É o tal do famoso “monstro”, chamado de “opinião pública” antes da era digital, e que todos os agentes políticos, incluídos os da Lava Jato, do Supremo e variadas lideranças políticas incitam, inflamam e ainda acham que conseguem dirigir.
Emparedar o Supremo e acuar o Legislativo em nome da imensamente popular campanha anticorrupção provavelmente aglutinará número nutrido de atores políticos, incluindo pedaços do Executivo. Há uma convergência tácita atualmente entre aqueles (como os expoentes da Lava Jato) que encaram o Supremo como obstáculo jurídico a ser superado e os “revolucionários” localizados na extrema franja, e com forte ascendência sobre Bolsonaro, para os quais a “limpeza” e o controle de instituições (incluindo Judiciário e Legislativo) têm de ser capitaneados a machadadas. Nesse sentido, a censura imposta pelo Supremo não só é inconstitucional e execrável em si. Trata-se de um grotesco e formidável erro numa luta política.
Bernardo Mello Franco: Toffoli não gostou, o Supremo censurou
Toffoli se disse vítima de “sites ignóbeis que querem atingir as instituições”. A frase contém dois erros. O ministro não deveria atacar a imprensa nem se confundir com o tribunal que integra
Ao anunciar uma investigação sobre supostas ofensas ao Supremo, o ministro Dias Toffoli disse que o tribunal “sempre atuou na defesa das liberdades, em especial da liberdade de imprensa e de uma imprensa livre”. Um mês depois, a Corte usou o inquérito para censurar uma reportagem sobre seu presidente.
Toffoli se irritou com um texto da última edição da “Crusoé”. A revista digital informou que o ministro era tratado, em e-mails internos da Odebrecht, pelo apelido de “Amigo do amigo de meu pai”. Ele foi procurado antes da publicação, mas não quis se manifestar.
Ao se queixar da reportagem, Toffoli determinou a “devida apuração das mentiras recém divulgadas por pessoas e sites ignóbeis que querem atingir as instituições brasileiras”. A frase contém dois erros. Um ministro do Supremo não deveria atacar jornalistas nem se confundir com a instituição que integra.
O apelido revelado pela “Crusoé” se refere a Toffoli, não ao tribunal. Ele é um entre 11 juízes e ocupa a presidência em caráter temporário, graças a uma regra de rodízio. O ministro deveria explicar a mensagem, que foi passada à Lava-Jato pelo empresário Marcelo Odebrecht. Preferiu atacar o mensageiro, a revista que revelou o seu codinome.
A censura foi decretada pelo ministro Alexandre de Moraes, escolhido por Toffoli para relatar o inquérito. Ele classificou a notícia como um “típico exemplo de fake news” e determinou que a reportagem fosse retirada do ar “imediatamente”. Também mandou a Polícia Federal tomar depoimento dos jornalistas, o que tem óbvio caráter de intimidação.
O Supremo dispõe de meios para se defender de ameaças e discursos de ódio — uma chaga que também atinge o Congresso, o governo, a imprensa e milhares de cidadãos comuns. Ao usar seus poderes contra um veículo de comunicação, a Corte só aumenta a desconfiança sobre o inquérito aberto em março.
Além de imprópria, a censura se revelou pouco inteligente. Antes da mordaça, a reportagem da “Crusoé” teve repercussão limitada. Depois dela, chegou aos telejornais e virou manchete nos portais de notícia.
Bruno Boghossian: Ministros temem que STF fique acuado em julgamento de 2ª instância
Ao adiar debate, ala do tribunal tenta poupar fôlego para enfrentar pressões
Contrariado com o novo adiamento da discussão sobre a prisão de condenados em segunda instância, Marco Aurélio sacou uma velha máxima dos togados. “Estou habilitado a relatar e votar desde 2017. Processo, para mim, não tem capa, tem conteúdo”, disse o ministro.
O caso, que se tornou o centro de um cabo de guerra no tribunal, de fato não tem sujeito definido. Desde o ano passado, porém, o processo carrega na primeira página uma grande fotografia do ex-presidente Lula.
A ação estava pautada para quarta (10), mas Dias Toffoli decidiu esperar. O presidente do STF entendeu que não era hora de expor a corte ao desgaste de julgar um processo que poderia tirar o petista da cadeia.
O debate sobre o cumprimento de penas se tornou o principal fator de divisão no tribunal. Ministros que querem mudar a interpretação atual temem que a hesitação em enfrentar o assunto indique um enfraquecimento de suas posições.
Depois de meses de bloqueio durante o período de Cármen Lúcia, Toffoli assumiu a corte disposto a enfrentar o assunto de vez. Parecia haver maioria para consolidar a tese de que as prisões se dariam após condenação em terceira instância.
Ao marcar o julgamento para abril, Toffoli acreditava que a prisão de Lula seria confirmada até aqui pelo Superior Tribunal de Justiça, o que faria com que o petista não fosse afetado pela ação do Supremo. Numa sucessão de manobras mal explicadas, porém, o STJ adiou essa decisão.
Lula seria um peso grande demais para a corte carregar num momento em que sua reputação se esfarela em ritmo acelerado. O STF, afinal, ainda tenta se recuperar de ataques sofridos depois que contrariou a Lava Jato e determinou a remessa de processos para a Justiça Eleitoral.
Alguns integrantes consideram a vacilação um mau sinal. Creem que o tribunal corre risco de ficar acuado diante da pressão popular e política. Para a ala que se denomina garantista, evitar um embate com o retrato de Lula como pano de fundo foi a única maneira de preservar fôlego.
Fernando Gabeira: O Supremo e o sacrifício de animais
O antropocentrismo vai, aos poucos, enfraquecendo, apesar do mundo institucional
O Supremo Tribunal decidiu que o sacrifício de animais em cultos religiosos afro-brasileiros é constitucional. Foi por unanimidade. E isso me decepcionou um pouco. Esperava uma corrente mais crítica ao antropocentrismo e sensível à dor dos animais.
Esses ventos ainda não sopram na Justiça brasileira. Mas já chegaram aqui da Argentina. Foi o caso de um habeas corpus concedido à chimpanzé Cecília, que visitei no Santuário dos Grandes Primatas, em Sorocaba. Cecília vivia triste e maltratada num zoo, mas ao chegar ao Brasil recuperou a alegria e até acasalou. Fiz um documentário sobre sua sorte.
Na mesma época entrevistei o escritor Peter Singer, autor do livro Libertação Animal, lançado em 1975, um texto inspirador do movimento moderno de defesa dos bichos. Singer estava exultante com a libertação de Cecília. Ele via ali os primeiros lampejos da aceitação de sua tese sobre os direitos dos animais.
Na vida cotidiana sabemos que essa é uma bandeira de minorias. E como tal precisa ser tratada com habilidade para atravessar a bandeira de ironia que se ergue diante dela.
Foi assim, por exemplo, que vi em Santa Catarina o movimento que criticava a Farra do Boi. É uma festa popular, tradicional na costa catarinense, onde para, os pescadores, o boi aparece como um invasor. A ideia na época não era acabar com a Farra do Boi, mas, na medida do possível, ajudar a transitá-la do boi real para um boi figurado, como, por exemplo, no Bumba meu Boi.
Creio que haveria uma possibilidade de argumentar com adeptos dos rituais de origem africana. Será que o sacrifício de animais é essencial para sua existência? Assim, como um leigo, posso afirmar que um dos mais belos rituais religiosos, envolvendo milhões de pessoas, são as oferendas a Iemanjá. Flores, quase todas flores. Na Baixada Fluminense documentei inúmeros trabalhos religiosos, nem todos usavam animais e, quando usavam, eram apenas uma parte das oferendas.
Creio que na própria religião afro-brasileira estão contidos os elementos que poderiam facilitar uma transição do corpo animal para o símbolo. Uma transição que a cultura popular brasileira, com suas representações do boi, já realizou.
Falei com um jovem político sobre o tema. Ele me respondeu: “Se me preocupar com isso, vou denunciar o peru de Natal”. Mas o peru de Natal é diferente. Ele é comido. Sempre afirmei que a proteína animal ainda é a maneira de alimentar tantas bocas no mundo. Mais ainda, para desalento dos vegetarianos, considero que o crescimento da humanidade, que nos levará aos 9 bilhões de pessoas em 2050, dificilmente dispensará a proteína animal. Mas o fato de comermos peru no Natal e sabermos que milhares morrem diariamente não justifica arrancar o pescoço de uma ave numa celebração mística.
A votação do Supremo lembrou-me de uma coisa: adianta apenas proibir? A experiência com a Farra do Boi, levei muitas pancadas por causa disso, é diálogo e compreensão. Mais que uma decisão da Corte, o ideal é uma transição em que o debate cultural realize o trabalho de suprimir maus-tratos aos animais.
Essa discussão no Supremo foi apenas um momento. Animais morrem inutilmente em grande escala no Brasil. E a causa, de certa forma, é o progresso material. Tenho documentando a mortandade dos jegues no Nordeste. Estão sendo substituídos pelas motocicletas. Morrem atropelados, abandonados pelos donos na margem das estradas.
Em alguns lugares, como em Apodi (RN), os jumentos foram recolhidos. Um promotor propôs que as pessoas passassem a comer carne de jegue. Ofereceu um churrasco. Sua proposta não vingou. Alguns empresários ainda esperam vender carne de jegue para a China.
Na verdade, uma extinção gradual vai tirando os jegues do cenário nordestino. Isso valeria uma política pública. Assim como o sacrifício de animais em cultos religiosos merecia um debate mais amplo.
Felizmente, nada vai deter o trabalho que se faz no Brasil. O próprio Santuário de Primatas em Sorocaba é um exemplo internacional. Em Três Rios há uma pousada que recebe bichos resgatados. A dona adotou uma jaguatirica que cruzou com uma gata e deu um belo gato mestiço. Na Serra da Mantiqueira, os chiqueiros estão cheios de filhos de javalis que cruzam com as porcas de madrugada. O que fazer com os javalis devastadores?
É todo um mundo girando. Levá-lo em conta ainda é muito difícil numa cultura em que o ser humana é o centro de tudo. Mas, apesar de decisões como a do Supremo, é possível dizer que está melhorando. Além disso, as crianças vêm aí e não são as mesmas do passado.
São Paulo já tem um hospital gratuito para animais. Em dezenas de lojas e restaurantes é possível ver tigelas de água para os animais de rua. Quando implodiram o presídio da Ilha Grande muitos cachorros fugiram para o mato. Hoje a ilha é cheia deles. Alguns estrangeiros às vezes retardam sua passagem pelo País apenas para adotar um cachorro da ilha.
O antropocentrismo aos poucos vai enfraquecendo, apesar do mundo institucional. Lembro-me das difíceis discussões no Congresso sobre experiências científicas com animais. Algumas envolvem a salvação de vidas humanas. No entanto, foi possível um nível de acordo. Acredito que hoje já exista uma tendência à simulação, fórmulas de cada vez eficazes para poupar os animais.
É uma escolha que transcende a polaridade esquerda-direita: um tipo de civilização está em jogo. Isso escapa ao próprio governo, preocupado, corretamente com a morte de 60 mil brasileiros por ano, mas totalmente perdido nas suas dúvidas sobre aquecimento global, nas suas estúpidas certezas como dizer que o nazismo foi um movimento de esquerda. Invadiu a União Soviética por engano? Milhões de mortes foram resultado de fogo amigo?
Animais racionais têm cada ideia.
El País: Prisão de Temer revigora Lava Jato e tumultua agenda do Governo no Congresso
Detenção de ex-presidente dá vitória a procuradores e escancara embate entre "novos" e "velhos políticos". Lavajatista Bolsonaro, porém, precisa das duas alas para aprovar Previdência
A Operação Lava Jato voltou a se impor na agenda política do Brasil nesta quinta-feira ao prender preventivamente Michel Temer. O segundo ex-presidente a dormir na cadeia na história do país é acusado de comandar uma "organização criminosa" que atuaria há 40 anos para desviar recursos públicos. A decisão contra o emedebista partiu do juiz carioca Marcelo Bretas, um ex-colega e aliado do atual ministro da Justiça, Sergio Moro. A detenção, alvo de um pedido de habeas corpus da defesa do ex-mandatário, é apenas o começo de mais um capítulo de embates entre procuradores e juízes da operação, a classe política tradicional no Congresso e o próprio Supremo Tribunal Federal.
Se não bastasse as divisões, há outra disputa em curso. Os novatos exaltam o ministro da Justiça, Sergio Moro. Ex-juiz responsável pela Lava Jato, Moro está em clara rota de colisão com Rodrigo Maia. Eles bateram boca publicamente na quarta-feira. O deputado criticou o pacote de leis anticrime enviado por Moro dizendo que ele não era prioridade e que a proposta era um “copia e cola” de outra proposição. Já o ministro disse que parte da classe política não entende a urgência do projeto. “Talvez alguns entendam que o combate ao crime pode ser adiado indefinidamente, mas o povo brasileiro não aguenta mais”, alfinetou Moro.
Em viagem oficial ao Chile, o presidente, possivelmente aliviado de ver o foco de atenção se descolar da pesquisa que mostrou sua queda de popularidade para o caso Temer, a princípio foi sóbrio: “A justiça nasceu para todos e cada um responde pelos seus atos”. Em seguida, conforme o portal UOL, fez uma avaliação mirando seus eleitores antissistema e alinhados à Lava Jato. Afirmou que o seu antecessor foi detido por causa de “acordos políticos em nome da governabilidade”. “A governabilidade você não faz com esse tipo de acordo, você faz indicando pessoas sérias e competentes para integrar o seu governo. É assim que eu fiz no meu Governo, sem acordo político", emendou, reforçando a retórica de campanha e provavelmente irritando ainda mais a outra ala de parlamentares que precisa conquistar.
Enquanto isso, no Palácio do Planalto, o presidente em exercício, Hamilton Mourão (PRTB), já rebatia as análises em circulação no mercado de que o contra-ataque da Lava Jato afetaria as votações no Congresso. Mourão descartou a hipótese, apesar de o MDB de Temer fazer parte do Governo com um ministério e dezenas de cargos de segundo e terceiro escalões. “Eu acho que não [atrapalha]. Tem ruído, vai ficar esse ruído, mas vamos aguardar, pode ser que daqui a pouco ele seja solto, vamos esperar o que pode acontecer", disse a jornalistas, segundo a Agência Brasil. Para Mourão, Temer pode ganhar, em breve, “um habeas corpus de um ministro qualquer”.
Crise crônica
Nesta quinta-feira, no Congresso Nacional, as reações à prisão de Temer e do ex-ministro Moreira Franco deixaram nítido o desvio do foco. Um dia após o Governo Bolsonaro apresentar a parte da reforma da Previdência que restava, a dos militares, poucos falavam dela.
Quem fazia oposição a Temer e hoje faz a Bolsonaro —mas não só—, reclamava da prisão do ex-presidente, por considerarem que houve uma precipitação, já que ele deveria ser preso apenas após o julgamento de seu caso, e não preventivamente, sem nem mesmo colher o seu depoimento no processo. “As coisas vão se precipitando pela notícia. Você imagina lá fora, o que vão pensar os investidores. Um impeachment em 2016. Que país é esse? Se tirou uma presidente, sem provas objetivas, se prendeu outro, sem provas objetivas, e agora, um ex-presidente preso dessa maneira”, avaliou o senador Jacques Wagner (PT-BA), ex-ministro de Dilma Rousseff e aliado do ex-presidente Lula, condenado e preso há quase um ano pela Lava Jato.
O PT, aliás, emitiu uma nota para condenar a prisão de Temer e na qual comentam que a própria Lava Jato e Sergio Moro "travam hoje uma encarniçada luta pelo poder contra o Congresso, o Supremo Tribunal Federal e a cúpula da PGR.” O texto faz referência aos reveses que a operação sofreu nas últimas semanas, quando, por exemplo, o STF determinou o envio de investigações sobre caixa 2, uma das espinhas dorsais da Lava Jato, para Justiça Eleitoral. Não à toa a ordem de prisão contra Temer emitida por Bretas faz questão de frisar que nada liga o caso à doações de campanha ilegais para tentar fugir da regra.
“Eu não sou advogado, mas não vejo nenhuma razão objetiva pra prisão do presidente Temer”, disse o senador tucano Tasso Jereissati, mostrando insatisfação também entre os parlamentares que podem ser alinhar ao Governo. “Isso é um processo de abuso de autoridade, o que vem acontecendo com alguma frequência”, criticou.
O tom era completamente distinto entre os neófitos bolsonaristas. “A notícia é maravilhosa. Demonstra que o Brasil está combatendo a corrupção. Com certeza os índices da bolsa de valores vão explodir”, dizia o líder do PSL, Delegado Waldir, ainda que tenha errado na previsão do mercado. Mesmo assim, Waldir não escondia sua preocupação com a agenda econômica e cobrava maior empenho do Governo no convencimento dos parlamentares, principalmente quanto às mudanças nas regras para os militares. “O Governo nos trouxe um abacaxi, mas a gente não tem como descascar no dente. Tem de nos dar a faca para descascar”.
O representante do PSL no Senado, Major Olímpio, também comemorou a prisão de Temer. Disse no Twitter: “O Brasil está mudando, a justiça será para todos! Grande expectativa para o povo brasileiro, estamos no caminho certo! O Brasil será passado a limpo, cadeia para todos aqueles que dilapidaram o patrimônio público brasileiro e envergonharam a política e o nosso povo”.
Os próximos dias serão de nova acomodação para avaliar o real impacto de prisão de Temer e de observação dos próximos passos ligados ao ex-presidente: será solto nas próximas horas? Se for, qual será a reação de uma parte da opinião pública irritada com o Judiciário que poda a Lava Jato? Trata-se de um ciclo crônico a que Brasília tenta se acostumar desde o início da operação, em 2014, e que já havia afetado o próprio Temer. Quando presidente, Temerencaminhava bem a votação de sua reforma da Previdência e tinha chances de aprová-la, explodiu a delação do empresário Joesley Batista, da JBS, que o implicava diretamente. O ano era 2017. Dois anos depois, e já fora do poder, ele pode protagonizar a virada decisiva para o destino da nova tentativa de mudar as aposentadorias.
Eliane Cantanhêde: Álcool na fogueira
Prisão de Temer era questão de tempo, mas acirra os ânimos no STF e no Congresso
Não há surpresa na prisão do ex-presidente Michel Temer, alvo de dez inquéritos e agora sem foro privilegiado, mas há uma preocupação: foi também um lance na guerra do Ministério Público e da Justiça contra o Supremo e o Congresso? Álcool na fogueira?
Há décadas ouve-se falar das ligações pouco heterodoxas de Temer com o Porto de Santos, mas a prisão do ex-presidente não foi determinada por isso, nem por desvios de mais de R$ 10 milhões da Odebrecht para o MDB, nem mesmo pela conversa de Temer com Joesley Batista no Palácio do Jaburu.
A prisão foi determinada pelo juiz Marcelo Bretas, do Rio, e por uma quarta frente contra Temer: a roubalheira na Eletronuclear e nas obras de Angra 3. E veio no rastro da decisão do Supremo – por um voto de diferença – de jogar para a Justiça Eleitoral os crimes de corrupção e lavagem de dinheiro conectados com caixa 2 de campanha. Segundo o MP, foi “o fim da Lava Jato”.
A dúvida no STF e entre políticos é se a prisão de Temer é um contra-ataque, uma demonstração de força da Lava Jato. E isso provoca uma aliança tácita e por baixo dos panos entre ministros “garantistas” e líderes importantes do Congresso, que acusam excesso de poder do MP e correspondente “demonização da política”.
No centro da guerra e da polêmica está uma pergunta bastante objetiva: há ou não justificativa para a prisão temporária (por tempo indeterminado), particularmente por se tratar de um ex-presidente da República?
Na versão de juristas e políticos que acusam procuradores e policiais federais de atropelarem leis e regras em nome do combate à corrupção, a prisão de Temer é injustificada, porque ele é réu primário, tem endereço certo, não ameaça a ordem pública. Logo, poderia ter sido simplesmente chamado a prestar esclarecimentos, sem prisão.
Na entrevista coletiva, porém, os procuradores classificaram Temer como “chefe da organização criminosa” e elencaram três motivos para a prisão temporária: 1) os desvios ocorrem há 40 anos e podem chegar R$ 1,8 bilhão; 2) é preciso “reparar os danos”, impedindo que o resultado da propina evapore; 3) a quadrilha estava destruindo todos os papéis dos escritórios e até coletando dados dos investigadores.
Esse embate sobre a legalidade da prisão pode incendiar de vez não apenas as relações entre Supremo e MP como incendiar de vez a irritação popular contra a mais alta Corte do País. Basta que a defesa de Temer apresente pedido de habeas corpus e um dos ministros mande soltar o ex-presidente. Já imaginou? A tentativa de Bretas e dos procuradores é tirar Gilmar Mendes e empurrar a relatoria do eventual HC para Luís Roberto Barroso ou Edson Fachin, ambos pró-Lava Jato.
No Congresso, o efeito é imprevisível, mas não é absurdo dizer que há uma confluência de fatores adversários à votação da reforma da Previdência. Assim como a delação de Joesley Batista abortou a aprovação no governo Temer, agora há a percepção de que o MP, ao prender o ex-presidente, atacou o MDB e cutucou o mundo político. E mais: a proposta dos militares e a queda brusca de Bolsonaro no Ibope, com apenas três meses.
O PT odeia Temer, mas sua prisão pode promover uma aliança entre parte da esquerda e parte da direita, contra o MP e atropelando a pauta do governo. Em vez de priorizar o pacote do ministro Sérgio Moro contra a corrupção e o crime organizado, o Congresso poderá ressuscitar justamente o oposto: a proposta contra o abuso de autoridade.
Por mais que haja um bilhão e 800 milhões de razões para a prisão de Michel Temer, que era só questão de tempo, “há muito mais mistério entre o céu e a terra do que supõe a nossa vã filosofia”.
Hélio Schwartsman: A morte da Lava Jato?
Decisão do STF de enviar para Justiça eleitoral os crimes envolvendo caixa dois pode ser positiva
Se todas as vezes que procuradores de Curitiba anunciaram a morte da Lava Jato a operação tivesse de fato ido a óbito, teríamos passado os últimos cinco anos sem arredar pé do velório.
Em vez disso, estamos diante de uma investigação continuada que já resultou em 285 condenações que somam mais de 3.000 anos de prisão e que recuperou R$ 13 bilhões desviados de cofres públicos.
É certo que a decisão do STF de remeter para a Justiça Eleitoral (e não a Federal) casos de corrupção que envolvam caixa dois não facilita a vida dos procuradores. A Justiça Eleitoral é um improviso só. Ela funciona com magistrados “emprestados” de outros segmentos do Judiciário, que podem ter ou não a expertise para julgar crimes complexos como corrupção e lavagem de dinheiro.
Se pensarmos a operação sob a lógica do retributivismo, no qual o que importa é condenar o maior número possível de criminosos, ela pode ter sofrido um revés com a nova jurisprudência do STF. Mas, se adotarmos uma perspectiva mais institucional, a decisão poderá até revelar-se positiva.
A Lava Jato trouxe uma grande novidade. Contrariando séculos de favorecimento, políticos de alto coturno e grandes empresários foram condenados. É um avanço civilizatório que eu nunca pensei que veria em vida. Registre-se, porém, que a operação também engendrou abusos, como vazamentos seletivos e o excesso de prisões cautelares.
Eu diria que o saldo é mais positivo do que negativo, mas, para que a Lava Jato se consolide como uma mudança de paradigma —e não como um mero soluço—, é preciso que a cultura de não poupar poderosos se espalhe por todas as engrenagens da Justiça. Não haverá avanço verdadeiro enquanto o sucesso depender do “heroísmo” de um juiz ou de um núcleo específico.
Ainda que inadvertidamente, o STF, ao trazer a Justiça Eleitoral para o jogo, pode ter dado um empurrão para disseminar o lava-jatismo.
Bernardo Mello Franco: Dobradinha suprema
Ofensiva contra a Lava-Jato é o lance mais ousado da dupla Toffoli-Gilmar. Um abriu inquérito; o outro chamou procuradores de ‘gentalha’
O ministro Dias Toffoli iniciou os trabalhos da quinta-feira com um pronunciamento fora do script. Em tom grave, anunciou a abertura de inquérito sigiloso para apurar “denunciações caluniosas” contra o Supremo Tribunal Federal. Alegou a existência de ameaças “à honorabilidade e à segurança” da Corte.
Na sequência, o ministro Gilmar Mendes disparou seu ataque mais radical à Lava-Jato. Chamou os investigadores de “desqualificados”, “cretinos”, “covardes”, “despreparados” e “gentalha”. “Assim se instalam as milícias. O esquadrão da morte é fruto disso”, sentenciou.
Ao fim da sessão, soube-se que o inquérito de Toffoli investigará procuradores de Curitiba e auditores da Receita. O presidente do Supremo dispensou o sorteio eletrônico e delegou o caso ao ministro Alexandre de Moraes. Em outro lance incomum, a Procuradoria-Geral da República não foi consultada ou convidada a participar das apurações.
A ofensiva é o movimento mais ousado da dobradinha Toffoli-Gilmar. Os dois ensaiavam uma ação conjunta desde fevereiro, quando se descobriram na mira do Fisco. Um relatório ligou Gilmar, sua mulher e a mulher de Toffoli a suspeitas de irregularidades financeiras.
Até aqui, a dupla conseguiu ganhar no grito. O ministro da Economia, Paulo Guedes, aceitou a pressão e transformou investigadores em investigados. O secretário da Receita, Marcos Cintra, prometeu “ações punitivas”. Chegou a chamar subordinados de“meliantes”.
O entrosamento entre Toffoli e Gilmar ficou conhecido nas sessões da Segunda Turma. No entanto, a sintonia não se limita aos julgamentos de políticos acusados de corrupção. Em ao menos dois episódios, o ministro mais antigo saiu em socorro do mais novo.
Em 2015, Gilmar livrou José Ticiano Dias Toffoli, ex-prefeito de Marília e irmão de quem o nome indica, de uma ação de inelegibilidade. No ano seguinte, ofereceu um escudo quando o colega foi citado na delação da OAS. Disse que era preciso “colocar freios” nos procuradores, a quem acusou de embarcar em “delírios totalitários”. “Calcem as sandálias da humildade”, prosseguiu. Se o ministro já tiver encontrado um par do seu número, ninguém ficou sabendo.
Há seis meses, a dobradinha ganhou poder inédito com a chegada de Toffoli à presidência do Supremo. Ele já retribuiu o apoio do colega ao comandar a reação contra a Receita. O maior risco para a dupla é exagerar na dose. Em vez de parar os ataques, a nova ofensiva atiçou a militância bolsonarista. Sua nova cruzada é para convencer o Senado a abrir um processo de impeachment contra Gilmar.
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De um ministro que ficou vencido na quinta-feira, quando a Corte despachou para a Justiça Eleitoral processos contra políticos acusados de caixa dois e corrupção:
“Se depois disso a gente ainda derrubar a prisão em segunda instância, vão depredar o prédio do Supremo. E eu sou capaz de sair para jogar pedra também”.
Vera Magalhães: A todo custo, não!
Agentes públicos esticam a corda de sua atuação, num vale-tudo institucional
O presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Dias Toffoli, vê em curso uma marcha para assassinar reputações e enfraquecer as instituições, tendo as redes sociais como veículo e fruto de uma orquestração que acredita ter bases inclusive internacionais. Propõe um pacto entre Poderes para se contrapor a isso e diz que combaterá essa rede a qualquer preço. O diagnóstico do fenômeno, salvo um evidente exagero, pode estar correto. O problema começa quando se analisa até onde ele e outros estão dispostos a esticar a corda para fazer prevalecer seus interesses e suas opiniões “a qualquer custo” no Brasil, neste momento. O custo, no caso, muitas vezes são a lei e as próprias instituições.
Vejamos o caso do próprio STF. Para se contrapor a uma campanha contra a Corte, Toffoli lançou mão de um instrumento mais do que controverso. Anunciou a abertura de um inquérito criminal, sem provocação nem objeto definido, para, de forma genérica e perigosamente abrangente, investigar ameaças, calúnias, difamações e sabe-se lá mais o que contra ministros e familiares.
Trata-se de um balaio no qual cabem desde os ataques virtuais até procuradores da República que tecem críticas aos ministros e auditores da Receita Federal. Senadores que propõem a CPI da Lava Toga estarão enquadrados? Jornalistas que criticarem ministros entrarão no rol dos investigados? Quem xingar ministro no avião entra na roda? Não se sabe. Justamente porque, sob o manto do sigilo, não se tem acesso ao escopo do tal inquérito.
Trata-se de uma arma desigual nas mãos de pessoas especialíssimas, que passam a ter a prerrogativa – única no País, da qual não podem se valer nem presidentes da República, vide os inquéritos que Michel Temer enfrentou no exercício da Presidência – de frear qualquer um que ouse questioná-las. Não há amparo constitucional para isso.
Os procuradores protestam, mas também estão no time dos que tentam dar aquela esticadinha nas suas prerrogativas, no vale-tudo institucional tão em voga. A história da super fundação urdida pela força-tarefa de Curitiba para administrar os R$ 2,5 bilhões fruto de um acordo com a Justiça americana, para que parte da multa devida pela Petrobrás fique no Brasil, é um claro exemplo de que o sucesso da Lava Jato envolveu os seus protagonistas numa aura mística de invencibilidade que os faz se sentirem acima da lei e até dos Poderes. Exorbita aqui, vira algo de arbítrio ali.
Quem perde, na ida e na volta, é a sociedade, refém de uma disputa por poder que inclui lances grotescos como o ataque apoplético proferido pelo ministro Gilmar Mendes aos procuradores do plenário do Supremo, sem ser admoestado pelo presidente da Corte, tão cioso das instituições quando é para blindar o tribunal, mas pouco vocal para segurar os arreganhos autoritários de seus pares.
E qual a saída? Para o Legislativo, parece ser uma CPI para chantagear os juízes e ministros do STF. Sendo que boa parte dos investigados e processados nas várias instâncias judiciais estão justamente no Parlamento. Mais uma vez o sentido da proposta nada tem a ver com preocupação de modulação entre os Poderes e contenção de cada um aos preceitos que a Constituição estabelece para sua atuação. Trata-se de vingança e revanchismo dos mais baratos, combinados com uma vontade insana de aparecer.
Pobre País, que assiste atônito a ataques diários às instituições, que começam num presidente que usa o Twitter para propagar fake news e atacar a imprensa e terminam nesse show de horrores pelo resto da Praça dos Três Poderes. A ideia de resolver as coisas “a todo custo”, como bravateou Toffoli, nada tem a ver com pacto pelo País. Trata-se, isso sim, de um investimento no caos.