STF

Bernardo Mello Franco: Toffoli, o ministro que colabora

Nem Moro, nem Guedes. Em sete meses de governo, o ministro que mais facilitou a vida de Bolsonaro foi Dias Toffoli, presidente do STF

Nem Moro, nem Guedes. Em sete meses de governo, o ministro que mais facilitou a vida de Jair Bolsonaro foi Dias Toffoli. O detalhe é que ele não integra o governo do capitão. Dá expediente como ministro do Supremo Tribunal Federal.

O presidente deve a Toffoli um favor de mãe: a liminar que paralisou as investigações contra o primeiro-filho, Flávio Bolsonaro. Com uma canetada em pleno recesso, o ministro tirou a polícia do encalço do Zero Um. Para salvá-lo, travou centenas investigações que também usaram dados do Coaf e da Receita Federal.

“Nunca na história brasileira um plantão judiciário concedeu liminar num caso sem urgência e a causar um tumulto de tal ordem”, resumiu o professor Walter Maierovitch.

A liminar surpreendeu pela ousadia, não pelo propósito. Desde a campanha, Toffoli se esforça para cortejar Bolsonaro e os militares que o cercam. Numa atitude inédita na democracia, o ministro instalou um general na presidência do Supremo. Depois saiu-se com a declaração de que preferia chamar o golpe militar de “movimento de 1964”.

Com Bolsonaro no poder, Toffoli virou habitué do Planalto e do Alvorada. Em abril, acompanhou o presidente num encontro com pastores evangélicos que o apoiaram na eleição. No mês seguinte, posou de figurante num café da manhã com deputadas e senadoras governistas.

As aparições foram complementadas pelo anúncio de um estranho pacto entre Poderes, a pretexto de “destravar o Brasil para retomar o crescimento”.

Após o recesso de julho, o ministro resolveu dar mais uma prova de fidelidade. Na revista “Veja” que circula neste fim de semana, ele relata encontros em que teria acalmado políticos, empresários e militares insatisfeitos com Bolsonaro. Toffoli emerge da entrevista como o fiador de um governo em apuros.

“O Supremo deve ter esse papel moderador, oferecer soluções em momentos de crise”, afirma.

O Poder Moderador foi abolido pela Constituição de 1891. O texto instituiu a separação dos Poderes, que deveriam funcionar com “independência e harmonia”. A ideia de um Judiciário governista, seja qual for o governo, contraria um princípio básico da República.

No Congresso, os movimentos do presidente do Supremo são interpretados como uma busca por proteção. Nomeado pelo ex-presidente Lula, ele costuma ser alvo da militância bolsonarista na internet. O ministro também se viu na mira da Lava-Jato ao ser citado na delação da OAS. No início do ano, soube-se que a Receita investigava sua mulher por suspeita de irregularidade fiscal.

Em março, Toffoli instaurou um inquérito sigiloso que, nas palavras da procuradora Raquel Dodge, transformou o Supremo em “tribunal de exceção”. Ele alegou que pretendia rebater “notícias fraudulentas” e defender a “honorabilidade” da Corte.

Há dez dias, o ministro Alexandre de Moraes usou o inquérito para suspender investigações da Receita. Beneficiou 133 pessoas, incluindo a primeira-dama do Supremo.


Bernardo Mello Franco: Tentativa de transferir Lula teve cheiro de vingança

Não é preciso simpatizar com o ex-presidente Lula para sentir cheiro de vingança na tentativa de transferi-lo para um presídio no interior de São Paulo

Não é preciso simpatizar com Lula para sentir cheiro de vingança na tentativa de transferi-lo para um presídio no interior de São Paulo. Na decisão divulgada ontem de manhã, a juíza

Carolina Lebbos citou até o barulho de militantes petistas no entorno da carceragem em Curitiba. Ela mencionou a “perturbação do sossego no local”, como se os vizinhos da Polícia Federal não estivessem acostumados ao som de sirenes e buzinas.

A juíza também alegou que a mudança forçada ofereceria “melhores condições de ressocialização do preso”. Soou como deboche, porque a defesa era contrária à transferência. O pedido foi feito pela PF, subordinada ao ministro Sergio Moro.

Se a ideia era dar uma demonstração de força da Lava-Jato, o tiro saiu pela culatra. A Operação Tremembé irritou até adversários históricos de Lula. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia, concordou com um deputado que apontou “perseguição” ao petista.

Mais tarde, ele chamou a decisão da juíza de “extemporânea” e paralisou as votações para que parlamentares fossem protestar no Supremo. A caravana reuniu deputados de 12 partidos, incluindo siglas de centro-direita que romperam com o PT antes do impeachment de Dilma Rousseff.

A procuradora Raquel Dodge, que tem rejeitado todos os pedidos da defesa de Lula, afirmou que a mudança forçada violava as regras de execução penal e os direitos do preso.

No plenário do Supremo, fez-se uma trégua na guerra entre “garantistas” e “lavajatistas”. Num fenômeno raro, Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso ficaram do mesmo lado e votaram contra a remoção do ex-presidente. O recurso da defesa foi acatado por ampla maioria: 10 a 1.

Os arquitetos da Operação Tremembé faltaram à aula de cálculo político. Passou o tempo em que o Supremo carimbava qualquer decisão vinda de Curitiba. Nas últimas semanas, aumentaram as críticas a métodos e modos da Lava-Jato.

O vazamento de mensagens em que os procuradores ironizam e atacam ministros deixou o clima mais carregado. O julgamento de ontem indica que o tribunal começou a dar o troco.


Eliane Cantanhêde: Brasília em chamas

Supremo dá recados fortes a Bolsonaro, mas os dois lados miram o mesmo alvo: o Coaf

Agosto começou quente e Brasília está em chamas. Não bastasse a seca inclemente que assola a capital da República nesta época do ano, o Supremo reabriu impondo derrotas ao governo Bolsonaro, já no primeiro dia do mês e do semestre do Judiciário, mas com um movimento estranho, intrigante: a confluência de interesses entre Supremo e o próprio Bolsonaro quando se trata de Coaf. Aí, é o ministro Sérgio Moro quem arde.

No 1.º de agosto, o Supremo fez um “strike”. Derrubou uma medida provisória de Bolsonaro, falou grosso sobre o desrespeito aos Poderes, proibiu a Receita de investigar seus ministros e familiares e confrontou Moro ao proibir a destruição das mensagens captadas pelos hackers e exigir cópia de toda a papelada. O Executivo não terá mais acesso exclusivo às conversas que vêm sendo divulgadas pelo site The Intercept Brasil. Como na Guerra Fria, os dois lados agora têm bomba atômica.

O arsenal do Supremo, porém, não para aí. Na pauta deste semestre, há o pedido de suspeição do então juiz Moro no processo que levou o ex-presidente Lula à cadeia, há a decisão monocrática do presidente Dias Toffoli de suspender todos os processos com dados do Coaf sem autorização judicial e, “last but not least”, paira no ar a delicadíssima questão da prisão após condenação em segunda instância. Todas com potencial de querosene na fogueira.

Nos holofotes, duras críticas a Bolsonaro e à “transgressão” contra a independência dos Poderes, como bem bradou o decano Celso de Mello. Nos bastidores, intensas articulações para dar um basta na desenvoltura do procurador Deltan Dallagnol, que acumula a dupla condição de porta-voz da Lava Jato e pivô da crise dos hackers e que ousou brincar de investigar as mulheres de ministros da mais alta Corte do País – com direito a posteriores vazamentos para a imprensa.

Num ponto, porém, Bolsonaro e Supremo parecem mirar o mesmo alvo: o Coaf, o órgão de inteligência financeira que detecta movimentações de grandes somas de dinheiro sem explicação aparente, e que, por exemplo, foi quem flagrou aquelas esquisitices do gabinete do filho “01” do presidente, o hoje senador Flávio Bolsonaro, na Assembleia Legislativa do Rio. Para quem se elegeu apontando o dedo contra todo mundo, não ficou muito bem.

Ao aceitar a Justiça, Moro só fez uma exigência: atrair o Coaf para o seu ministério. Assim foi feito no início, mas ele depois não só perdeu o Coaf como agora, como informa a repórter Thais Arbex, pode perder o seu escolhido para comandar o órgão, Roberto Leonel, auditor da Receita que participou diretamente da Lava Jato e atua há décadas em lavagem de dinheiro a partir de Curitiba.

Então, ficamos assim: o Coaf sai da Justiça, Dias Toffoli corta as suas asinhas ao bloquear os processos com base em seus achados e Bolsonaro completa o serviço trocando o chefe do órgão, parceiro de Moro. É isso mesmo? O Coaf, que tanta importância deveria ter assumido com Moro na Justiça, só vai minguando... E, com ele, a Lava Jato e o próprio combate à corrupção em suas diferentes frentes e diferentes dimensões.

Amazônia. Bolsonaro diz que os dados do Inpe sobre desmatamento “denigrem a imagem do Brasil lá fora”, mas muita gente boa acha que quem denigre é o próprio Bolsonaro, ao querer esconder a verdade, anunciar mineração americana em terras indígenas, cortar cabelo na hora da audiência a um ministro da França, demitir em seu próprio favor o fiscal que cumpriu seu dever ao multar pesca em área proibida e, enfim, ao dar tantos passos retrógrados numa área em que o Brasil é superpotência: o meio ambiente. A verdade dói, a mentira destrói.


El País: Supremo suspende investigação e alivia pressão sobre Flávio Bolsonaro

O senador e filho do presidente é acusado de malversação de fundos públicos, lavagem de dinheiro e organização criminosa

O presidente do Supremo Tribunal Federal tomou nesta terça-feira uma decisão que suspende provisoriamente a investigação por corrupção contra Flávio Bolsonaro, de 38 anos, senador e primogênito do presidente Jair Bolsonaro. A decisão do presidente do STF, José Antonio Dias Toffoli, foi tomada em resposta a um recurso apresentado pela defesa de Flávio Bolsonaro, investigado pela promotoria estadual do Rio de Janeiro por malversação de fundos públicos, lavagem de dinheiro e organização criminosa. O caso, que eclodiu antes que Jair Bolsonaro ganhasse as eleições, ganhou ainda mais relevância após sua vitória e tem causado danos político ao presidente, que durante a campanha se vangloriou de ter as mãos limpas em meio a uma legião de políticos que estão presos por — ou são suspeitos de — corrupção.

A investigação sobre Flávio Bolsonaro começou por uma série de pagamentos supostamente irregulares a Fabrício Queiroz, um motorista e assessor que trabalhava em seu gabinete quando o atual senador era deputado estadual do Rio. Dentro dessa investigação, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf), um órgão público que luta contra a lavagem de dinheiro, pediu e obteve informações sobre anos de movimentações bancáriasfeitas por Flávio Bolsonaro e por outros investigados.

O STF tem um enorme poder para administrar seus próprios tempos, para decidir se é urgente analisar uma causa ou adiá-la com ou sem prazo determinado, o que na prática lhe dá uma enorme influência sobre a política.

O presidente do mais alto tribunal do Brasil sustenta agora que, para evitar uma possível nulidade futura dos casos, ficarão suspensas provisoriamente todas as investigações em andamento no país nas quais o Ministério Público tiver obtido informações, sem autorização judicial, do Coaf, da Fazenda ou do Banco Central, segundo o jornal O Estado de S. Paulo. Todos os casos ficarão suspensos até novembro, quando o plenário do Supremo pretende analisar o mérito da questão. Os advogados de Flávio Bolsonaro recorreram com o argumento de que a Coaf usou um atalho para obter dez anos de movimentações bancárias de seu cliente.

A decisão de Toffoli é um sopro de oxigênio para o presidente Bolsonaro e seu filho senador, que tem se mantido discreto nos últimos meses, diferentemente de seus dois irmãos políticos. A suspensão temporária da investigação que envolve seu filho mais velho em um caso que inclui ligações com grupos paramilitares do Rio é a terceira boa notícia que Jair Bolsonaro recebe nos últimos dias, depois de uma primeira aprovação, na Câmara, da reforma da Previdência — projeto-chave de seu mandato que deve passar por nova votação na Câmara baixa antes de ir ao Senado — e do acordo de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul. O que não está tão claro é se o presidente conseguirá nomear seu terceiro filho, Eduardo, para o cargo de embaixador em Washington, porque não tem os votos necessários no Senado e porque as acusações de nepotismo não diminuem.

Queiroz, um policial aposentado que atuava como chefe de gabinete informal de Flávio, é acusado pela Coaf de ter movimentado 1,2 milhão de reais entre 2016 e 2017, algo incompatível com seu salário. Entre as transações, passou um cheque para a mulher do presidente, Michelle. Flávio já havia tentado, sem sucesso, paralisar as investigações sobre ele apelando para sua imunidade parlamentar.


Igor Gielow: Derrota de Lula mantém PT vítima e tira bônus de Bolsonaro

Partido ganha tempo para ajustar discurso; presidente perde chance de inflar antipetismo

A derrota da defesa de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) naquela que talvez tenha sido sua maior chance de ver o ex-presidente livre da cadeia é, por óbvio, péssima notícia para o petista.

Para o PT, contudo, é garantia de manutenção de seu arcabouço retórico, que até agora não conseguiu encontrar algo melhor do que as palavras golpe ou processo injusto para definir seu estado político atual. Não é preciso assistir ao documentário “Democracia em Vertigem” (Netflix) para entender isso, embora seja educativo.

Claro que um Lula solto seria bom para a imagem pública do PT, ao menos à centro-esquerda, e mesmo para o discurso de vitimização. Mas também obrigaria o partido a definir rumos que a mitologia do líder acorrentado convenientemente empurra para a frente, quando talvez o ambiente político seja mais favorável à esquerda. Esse momento não é agora.

Assim, PT e, ironicamente, o governador paulista João Doria (PSDB) são beneficiários indiretos dos eventos inusuais ocorridos na Segunda Turma do STF (Supremo Tribunal Federal) na tarde e noite desta terça (25).

Explica-se. Lula na rua, mesmo que apenas temporariamente, seria uma benesse inesperada para Jair Bolsonaro (PSL) no momento em que o presidente se vê numa grande ofensiva para tentar reforçar a imagem de sua conturbada administração.

Nada seria melhor para o presidente do que a volta à cena do espantalho-mor do eleitorado que o levou ao Planalto em 2018. Ele veria reforçada sua bandeira antipetista, visto que seria inevitável uma reação dessa fatia da população contra uma libertação do ex-presidente petista.

Aqui cabe a digressão sem análise de mérito: o ministro Gilmar Mendes operou com sagacidade, esticando a corda interna da Segunda Turma com sua promessa de adiar a votação da suspeição de Sergio Moro no processo que levou Lula à cadeia, só para quase fazer valer a ideia da soltura provisória.

Ao fim, contudo, foi derrotado com o outro legalista do colegiado, Ricardo Lewandowski. O peso da Lava Jato segue forte no Judiciário, ainda que tudo isso possa mudar lá na frente, quando Moro for de fato colocado sob escrutínio por suas conversas com a Lava Jato.

Voltando a Bolsonaro, com o Supremo e o Congresso alternando-se como fonte de derrotas para suas iniciativas fora da pauta única da reforma da Previdência, o mandatário passou as últimas semanas dando razão àqueles que o chamam de Donald Trump tropical.

Assim como o presidente americano, que viu sua agenda confrontada no Congresso só para lançar-se à óbvia tentativa de reeleição, Bolsonaro se colocou no jogo de 2022 com seis meses incompletos de mandato.

No processo, encastelou-se, reforçando seu time de colaboradores com nível familiar de proximidade, isso numa Presidência que já se assemelhava a uma casa imperial pela influência dos filhos do rei. Emasculou as alas militares que o apoiavam, demitindo generais e restringindo elementos moduladores de intensidade de ação.

Já tendo Moro enfraquecido pelas conversas reveladas com procuradores da Lava Jato, mas longe de estar abatido politicamente, mirou outro candidato potencial em 2022: Doria.

Em polêmicas ora centrais, como a questão da presença de estados e municípios na reforma da Previdência, ora laterais, como o destino da Fórmula-1, Bolsonaro chamou Doria para dançar e foi correspondido até aqui.

A saída de Lula da cadeia, por tempo limitado que fosse, daria a Bolsonaro o elemento galvanizador que falta para buscar retomar o apoio que viu se esvair no eleitorado de centro-direita fora da franja mais radical que o sustenta.

Essas pessoas são as mesmas que defendem a Lava Jato irrestritamente, mas hoje estão afastadas do presidente. Com Lula solto, os olhos tenderiam a voltar-se a Bolsonaro, ora fiador político de Moro e, por extensão simbólica, do combate à corrupção da operação. Assim é o presidencialismo à brasileira.

Com isso, Lula mantém-se como um elemento central do debate político, mesmo que de formas algo contraintuitivas.


Míriam Leitão: E no 444º dia, faltou um voto

Lula permanece preso, mas o STF ainda terá que dizer se a relação entre juiz e defesa comprometeu o julgamento da 1ª instância

Os ministros já foram para a reunião de ontem na Segunda Turma do STF sabendo que tudo poderia acontecer, inclusive a discussão sobre a liberdade do ex-presidente Lula, apesar de o assunto ter saído de pauta. O tema voltou, pelo pedido do advogado, mas principalmente pela tentativa do ministro Gilmar Mendes de encontrar um caminho alternativo, o da liberdade provisória do ex-presidente Lula até que os ministros deliberem sobre um mérito espinhoso: a arguição de suspeição do ex-juiz Sergio Moro.

Foi Gilmar Mendes que pediu vistas do pedido de suspeição em dezembro, e de lá para cá redigiu as 40 páginas do voto. Nele, contudo, não estão ainda as considerações sobre o que vem sendo divulgado pelo site “The Intercept Brasil”. Na véspera, a ministra Cármen Lúcia disse a Gilmar Mendes que havia 12 itens antes do julgamento da arguição de suspeição do Moro. E era a última sessão da 2ª turma antes do recesso. Portanto, a pauta estava congestionada, o assunto era complexo e o voto era longo. A decisão foi adiar. Por outro lado, desde o dia 4 de junho a PGR já se manifestou a favor de que o ex-presidente Lula cumpra a pena em regime semiaberto. Motivos havia para tentar abrir a porta.

As comunicações entre o ex-juiz Sergio Moro e o procurador Deltan Dallagnol, mostrando a excessiva proximidade entre julgador e acusador, não estavam em questão porque não haviam sido divulgadas quando foi apresentado o habeas corpus. Mas evidentemente elas reforçam o ponto da defesa. Na opinião de um dos ministros, o que se vê nos diálogos é um “contínuo de atos que levantam dúvidas sobre a parcialidade de Moro”. Esse ministro acha que as novas informações tornam toda essa questão ainda mais complexa, e que é preciso esperar os desdobramentos. O ideal, portanto, na opinião dele, era mesmo não debater ontem a suspeição do ex-juiz. O advogado Cristiano Zanin lembrou, contudo, que “o paciente cumpre pena, está preso há 444 dias”.

O ministro Gilmar Mendes tem já externado inúmeras críticas à operação Lava-Jato, e ao formato da força-tarefa que, na opinião dele, leva a uma relação próxima demais com o juiz. O ministro Ricardo Lewandowski tende a votar com a defesa. O ministro Celso de Mello, na maioria dos casos, apoiou as decisões do ministro Edson Fachin, mas é absolutamente contrário à prisão antes do término do julgamento na última instância. Por isso havia uma expectativa em torno do voto dele. Mas ele votou contra. O problema era a questão proposta: se Lula poderia esperar em liberdade até que eles decidam sobre a suspeição de Moro, quando condenou Lula.

O ex-presidente foi preso no dia 7 de abril do ano passado, depois de ter sua condenação confirmada pelo TRF-4, que ampliou a pena dada por Moro. Depois, a condenação foi confirmada pelo STJ, mas com redução de pena. E pela progressão da pena, na dosimetria do STJ, ele já poderia estar em semiaberto. Este é apenas um dos vários processos a que Lula responde, o caso do tríplex que nunca ocupou, mas que ele e seus familiares visitaram mais de uma vez e no qual foram feitas reformas para adaptar o imóvel a ele. A defesa sempre disse que o apartamento nunca pertenceu a Lula, a acusação sempre argumentou que corrupção é também “aceitar promessa de vantagens”, como diz o artigo 317 do Código Penal.

A Lava-Jato tem um enorme volume de serviços prestados ao país, prendeu e condenou centenas de corruptos, ouviu inúmeras confissões de crime, e devolveu aos cofres públicos bilhões de reais. Nenhuma outra investigação mostrou de forma tão clara a relação promíscua entre empresas, políticos, governo.

O que passou a ser discutido, após a divulgação dos diálogos entre Sergio Moro e Deltan Dallagnol, foi a maneira como as instituições têm que funcionar. Outras operações de combate à corrupção fracassaram porque os advogados descobriam erros processuais pequenos e fizeram deles o caminho para a anulação de todo o processo, mesmo diante dos fortes indícios de crime. A Lava-Jato se fortaleceu porque aprendeu com as falhas das anteriores. O problema é que agora não se pode chamar de pequeno erro o que está sendo revelado. E mesmo que adiem, os ministros do Supremo terão que dizer se isso é normal, procedimental, ou se houve por parte de Moro o avanço da fronteira que julgadores têm que guardar das duas partes.


Ricardo Noblat: O que fazer com Lula

Um abacaxi que o Supremo não gostaria de descascar

Se puder, o Supremo Tribunal Federal (STF) deixará para julgar no próximo semestre o pedido de habeas corpus para que o ex-presidente Luiz Inácio da Silva seja solto. Caso sinta-se forçado pelas circunstâncias a julgá-lo hoje, deverá negá-lo.

A defesa alega uma série de motivos para que o pedido seja deferido – o mais recente, o fato de o ex-juiz Sérgio Moro que condenou Lula em 2017 ser hoje ministro da Justiça do governo Bolsonaro. Isso provaria que ele agiu com parcialidade àquela época.

O argumento é fraco. Há dois anos, Bolsonaro não era candidato a presidente. A sentença de Moro foi confirmada e até expandida pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Tribunais superiores negaram todos os recursos contra a condenação. É jogo jogado, pois.

Por jogar, o pedido da defesa para a progressão da pena de Lula. Quer dizer: para que ele possa ser transferido para o regime de prisão semiaberto uma vez que está preso há 443 dias. No semiaberto, dormirá na cadeia, mas poderá trabalhar durante o dia.

Caberá ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidir sobre a progressão da pena. E, ali, ainda não há uma data marcada para isso. O STJ é considerado um tribunal mais duro do que o STF. E aparentemente menos permeável a pressões.

No futuro haverá outro jogo a ser jogado: Moro prevaricou ou não quando conduziu a Operação Lava Jato? O conteúdo das conversas com procuradores da República prova ou não que ele faltou com o cumprimento do dever por interesse ou má fé?

Se prevaricou, o julgamento de Lula deverá ser anulado e ele posto em liberdade de imediato. O processo então recomeçaria sob o comando de outro juiz. O novo jogo só terá início quando o site The Intercept Brasil der conta do arquivo que recebeu de presente.

Justiça para Dilma

Não é pelo dinheiro, mas pelo reconhecimento

Está marcada para logo mais, sob o comando da ministra Damares Alves, dos Direitos Humanos, a reunião da Comissão de Anistia que concederá ou não indenização à ex-presidente Dilma Rousseff que alega ter sido demitida de uma fundação pública em 1977 por perseguição política.

Solitariamente, de janeiro último para cá, Damares já rejeitou mais de mil pedidos de indenização. A não ser que o alegado por Dilma seja uma fraude, a indenização deveria ser concedida por uma questão de justiça. O contrário seria mesquinhez e certamente perseguição política.

A demissão da fundação pública não foi o único nem o principal dano causado a Dilma pela ditadura militar de 1964, ainda tanto festejada pelo presidente Bolsonaro. Dilma ficou presa durante anos. E foi barbaramente torturada. Nada será capaz de um dia curar suas feridas. Ela as carregará para sempre.

O pagamento de indenização significará tão somente que o Estado reconhece o crime que cometeu


El País: Maioria do STF decide que homofobia é crime

Seis dos 11 ministros votam por criminalizar a homofobia, mas julgamento, que ocorre no dia seguinte ao avanço no Senado de lei sobre mesmo tema, ainda não terminou

A maioria dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF)considera que a homofobia é crime, equiparando as penas por ofensas a homossexuais e a transexuais às previstas na lei contra o racismo. Uma das principais reivindicações de militantes LGBT no país, o tema chegou à Corte por meio de duas ações, movidas pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transgêneros e Intersexos (ABGLT) e o Partido Popular Socialista (PPS), em 2012 e 2013, respectivamente. O julgamento foi iniciado em fevereiro e, embora seis dos onze ministros já tenham votado pela penalização do crime com até três anos de prisão, a discussão foi suspensa antes de chegar ao fim, e deve ser retomada no próximo dia 5 de junho.

Num país clivado pela polarização política e pela "guerra cultural" entre progressistas e bolsonaristas, o debate no Supremo se transformou em mais um capítulo da disputa entre parte do Legislativo e a cúpula do Judiciário. Expoentes da bancada conservadora no Congresso, empoderados com a chegada do Governo ultradireitista de Bolsonaro ao Planalto, acusam a Corte de querer legislar em temas de costumes, sem ter poder para tal, enquanto os magistrados argumentam que têm independência para fazê-lo e que é dever do Judiciário proteger as minorias sociais. As ações em julgamento acabam tocando diretamente no ponto: elas pedem a fixação de um prazo para que seja criada uma lei específica para os crimes de homofobia. Ou seja: pedem que o STF inste o Parlamento a criar uma legislação e, até lá, estabeleça uma tipificação provisória. Apesar da maioria formada sobre o criminalização da homofobia, o STF ainda não deliberou sobre esse prazo.

A sessão desta quinta começou discutindo justamente se o Supremo deveria avançar no debate sobre a homofobia ou esperar pelo Parlamento. O motivo é que o julgamento ocorreu justamente um dia depois de avançar no Senado um projeto sobre o mesmo tema. Na quarta-feira, e tendo no horizonte a votação na Corte, foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) o PL 672/2019, que prevê incluir na Lei de Racismo a discriminação por orientação sexual ou identidade de gênero. Minutos antes da retomada da discussão no Supremo, o Senado enviou ao tribunal uma petição demonstrando que o tema já estava sendo apreciado no Congresso.

O presidente da Corte, Antonio Dias Toffoli, decidiu então colocar a questão em votação: julgar ou esperar os congressistas? "A preservação da integridade física e moral das pessoas não deve esperar", defendeu o ministro Luís Roberto Barroso. "Quem é atacado e discriminado tem pressa", completou. Já Toffoli, a favor da interrupção do julgamento, defendeu inclusive que a discussão sobre homofobia já havia causado efeito na redução da violência contra esse grupo. “Ao que tudo indica, já houve diminuição nas agressões e na violência”, afirmou, sem citar números. A tentativa de Toffoli de não acirrar ainda mais os ânimos com os conservadores do Congresso falhou. Por 9 a 2, o julgamento foi retomado.

Durante a sessão, o decano do STF, Celso de Mello, decidiu responder diretamente aos parlamentares conservadores que pedem seu impeachment justamente porque ele e outros três magistrados votaram para criminalizar a homofobia. O pedido de destituição foi feito pela deputada bolsonarista Bia Kicis (PSL-DF), uma das entusiastas da mobilização pró-Governo Bolsonaro marcada para o próximo domingo e que tem como um alvo das críticas o próprio Supremo. Mello disse que o pedido de impeachment era "manifestação de superlativa intolerância por parte dos denunciantes". “Sem juízes independentes não há cidadãos livres", afirmou.

O embate está longe de ter fim. Além da questão LGBT, há ainda o tema da política antidrogas. Na semana passada, o Senado aprovou lei que endurece a política antidrogas, às vésperas de o Supremo retomar julgamento sobre a descriminalização do uso e porte de maconha, que está parado desde 2015.Tanto a criminalização da homofobia como o tema da maconha devem voltar ao plenário em 5 de junho.

Caminho no Senado e religião

Boa parte do movimento LGBT comemorou a formação de maioria no Supremo para criminalizar a homofobia —ainda que setores, especialmente ligados ao movimento negro, critiquem a abordagem "punitivista" da legislação proposta, pelo seu potencial de acabar levando à cadeia mais negros e pobres, como acontece em todos os demais crimes.

No Parlamento, como esperado, integrantes das bancadas mais conservadoras lamentaram em meio a expectativa de que o PL 672/2019 aprovado na CCJ siga tramitando. O texto deve passar novamente pela comissão antes de seguir para a Câmara dos Deputados, já que o projeto aprovado é diferente do original apresentado aos deputados.

De acordo com o texto aprovado na CCJ do Senado, estão sujeitos a punição de até cinco anos de prisão os crimes em decorrência de preconceito com identidade de gênero e/ou orientação sexual, igualando-os aos crimes por preconceito de raça, cor, etnia, religião e procedência nacional. Também ficou estabelecida pena de um a três anos de reclusão para quem "impedir o acesso ou recusar o atendimento em restaurantes, bares, confeitarias ou locais semelhantes abertos ao público".

Às punições, foi acrescentada pena para quem impedir ou restringir "manifestação razoável de afetividade de qualquer pessoa em local público ou privado aberto ao público", com uma ressalva a templos religiosos. Mas não fica claro o que significa "manifestação razoável de afetividade".

A comunidade religiosa e principalmente a evangélica entrou na discussão argumentando temer pela liberdade de expressão. As lideranças dizem se preocupar com a possibilidade de que a eventual criminalização da homofobia os impeça de pregar que o relacionamento íntimo entre pessoas do mesmo sexo constitui pecado. Ou mesmo que sejam obrigados a celebrar a união homoafetiva.


Vera Magalhães: Bolsonaro deixa Moro mais de um ano na chuva

Jair Bolsonaro parece ter pretendido acalmar Sérgio Moro ao dizer em entrevista que vai nomeá-lo para a primeira vaga que aparecer no Supremo Tribunal Federal. O presidente pareceu querer dar uma satisfação à opinião pública de que seu ministro mais popular tem seu aval e, ao mesmo tempo, dizer ao auxiliar para aguentar o tranco do desgaste político porque, ao fim e ao cabo, o tão esperado prêmio da Mega Sena virá.

Será que o presidente é tão ingênuo assim politicamente? Porque ao tornar pública uma promessa que, agora revela, fez em público a Moro quando do convite para que ele aceitasse ser seu ministro da Justiça, Bolsonaro acaba por desgastá-lo ainda mais.

A ficha de Moro também demorou a cair. Em entrevista a uma rádio paranaense, recostado confortavelmente numa cadeira e esboçando um risinho orgulhoso, o ex-juiz parecia feliz com a promessa pública do presidente em entrevista na manhã de ontem.

Depois, diante da evidência de que anúncio tão prematuro o expõe e o deixa ao sabor das intempéries políticas por mais de um ano, Moro passou a dizer que a futura ida ao Supremo não foi condicionante para que aceitasse a Justiça.

É óbvio: ao associar os dois movimentos, Bolsonaro deixa Moro ao sabor das teorias de que agiu politicamente quando juiz da Lava Jato, transforma uma das pastas mais importantes de seu próprio governo num mero pedágio para um objetivo maior e dá tempo aos que não toleram Moro de tramar algo para dinamitar seu caminho ao Supremo nesse longo período de exposição.

Esse último movimento já começou: parlamentares se movimentam para aprovar nova extensão na idade compulsória para aposentadoria de magistrados, de 75 para 80 anos, para tentar tirar de Bolsonaro a prerrogativa de indicar o sucessor de Celso de Mello.

Moro é neófito na política, daí por que os tombos que vem levando nessa relação sejam compreensíveis. Bolsonaro, não. Que erre tanto e de forma tão sistemática em tudo que exige um mínimo de sofisticação de raciocínio é um bom indicador de por que seu governo patina tanto nesse começo.


Eugênio Bucci: Censura epidêmica

Ela maculou a reputação do Supremo Tribunal e abalou a expectativa de segurança jurídica...

Ao trancafiar os cálculos sobre a reforma da Previdência, impedindo jornalistas e, no mais, qualquer brasileiro ou qualquer brasileira de ter acesso aos números, o governo federal ultrapassou (mais uma vez) as imagens mais claustrofóbicas da ficção científica mais pessimista. Nos filmes Blade Runner (baseado num conto de Philip K. Dick) ou Matrix (inspirado no livro Neuromancer, de William Gibson), conhecemos as engrenagens maquínicas de um poder que se desumanizou por inteiro para se converter ele mesmo num ciborgue-leviatã, mas até mesmo ali os seres humanos conseguem, de um jeito ou de outro, fazer contas com dados reais.

As mais famosas distopias do século 20, como 1984, de George Orwell, ou Admirável Mundo Novo, de Aldous Huxley, também não nos ajudam nesse campo – embora no livro 1984 exista o Ministério da Verdade, cuja atribuição é construir e instalar as verdades oficiais que são mentiras absolutas. Essa coisa bolsonárica de decretar o sumiço das planilhas em que o governo trabalha para sustentar seu projeto de reforma da Previdência parece conter mais pulsões totalitárias do que o cardápio de expedientes tirânicos imaginado por George Orwell.

Não que o Brasil esteja virando um Blade Runner ou uma Laranja Mecânica (a obra-prima de Stanley Kubrick, cujos fantasmas nos vêm puxar a perna durante estas noites sufocantes de 2019). Não que o totalitarismo se tenha instalado no Brasil. O risco, por enquanto, é mais incipiente, mas é real.

A iniciativa de banir a aritmética do debate político escancara o que vai pela cabeça do comando do Executivo. Se ainda não temos aqui o Ministério da Verdade, e não temos, não é por falta de disposição do poder. Se ainda não viramos uma paródia depressiva de Admirável Mundo Novo, é só porque a malha institucional – um tanto pitimbada, mas efetiva – da nossa democracia tem resistido. Se dependesse dos novos inquilinos da Esplanada, o Ministério da Verdade já estaria em pleno funcionamento.

Nesta hora, a compreensão dos vetores que orientam os atos do poder é tão ou mais decisiva do que a análise do quadro objetivo. A subjetividade instalada no governo conta. As intenções contam – contam porque desnudam o projeto em curso. O governo que aí está pode parecer errático. Nada do que ele propõe dura. As idas e vindas – as tentativas erradas e os erros consumados – se embolam sem que se consiga extrair das condutas destrambelhadas uma linha coerente, lúcida. Para piorar a desorientação randômica das cabeçadas palacianas, há ainda as brigas internas entre facções que, também elas, são desorganizadas e violentas como gangues adolescentes. Num ponto, contudo, esse governo ostenta uma unidade coesa: esse ponto são as investidas contras as liberdades e os direitos. Nisso o impulso essencial da Presidência da República é uno e compacto. Trata-se de um denominador comum que dá uma racionalidade tanática ao desordenamento das aparências. É por isso, enfim, que se tornou essencial entender a subjetividade do delírio autoritário que tomou o poder no Brasil.

A intenção manifesta de reescrever os livros de História do Brasil para limpar a folha corrida da ditadura militar, o revisionismo de afirmar que o nazismo é de esquerda, as ações mais ou menos destrambelhadas para liberar (ainda mais) as armas de fogo se coadunam perfeitamente com essa medida de censurar os números. Vai ver, no entendimento de alguns deles lá em cima, esse negócio de conta de mais e conta de menos também é coisa de comunista. A mentalidade censória agora elegeu uma nova vítima: os algarismos e os sinais da aritmética.

Tudo já seria ruim se a mentalidade censória se restringisse ao Poder Executivo. Mas a situação é pior. O Supremo Tribunal Federal (STF), até ele, agora também enveredou por esse caminho. É sabido desde sempre que, em sua primeira e segunda instâncias, o Poder Judiciário tem cedido, e com frequência, à tentação de impedir que conteúdos jornalísticos alcancem o público. Mas a cúpula do Judiciário, o STF, vinha se pautando por princípios menos antimodernos, resguardando as liberdades e reformando decisões obscurantistas. Este jornal mesmo só se livrou da censura judicial graças ao STF. Em 31 de julho de 2009, o Estado foi proibido de publicar informações sobre a Operação Boi Barrica, da Polícia Federal. A situação só se normalizou 3.327 dias depois, em 8 de novembro de 2018, quando o Supremo desmontou a censura.

De duas semanas para cá, o cenário no STF mudou. A decisão de um de seus ministros de impor censura ao site O Antagonista e à revista eletrônica Crusoé discrepou da linha habitual da Corte sobre a matéria. Pior: o veto foi imposto no âmbito de um inquérito, sem que tivesse sido formalmente solicitado por uma parte que se declarasse prejudicada. O STF agiu de moto-próprio (de ofício). A medida censória foi revogada dias depois pelo ministro Alexandre de Moraes (pois a decisão era um disparate completo), mas a censura à revista Crusoé maculou a reputação da Corte e abalou a expectativa de segurança jurídica quando o que está em jogo é o livre exercício da profissão de jornalista.

Outra vez, aqui, a subjetividade faz toda a diferença. Por que o STF se desviou por esse caminho? O que vai na cabeça dos magistrados? A resposta a essas perguntas passa por uma incompreensão crônica da nossa cultura jurídica (e da nossa cultura política) do instituto da liberdade de imprensa. Já tratei dessa incompreensão em artigos anteriores (como em Não sabem o que é ‘news’ e querem caçar ‘fake news’, de 24 de maio de 2018).

O horizonte, que já era crítico, traz preocupações adicionais. Se o STF se afasta do papel de proteger as garantias fundamentais, de onde virão os freios e contrapesos para estancar os delírios autoritários do Executivo?

*Jornalista, é professor da ECA-USP


Demétrio Magnoli: Governo Bolsonaro é só uma escala técnica na rota do Partido dos Procuradores

O voo suicida do STF concentrou as atenções, desviando os olhares do fenômeno que motiva o inquérito

A crise institucional em curso transbordou como crise constitucional pelas decisões do STF de agir, simultaneamente, como parte, promotor e juiz no inquérito das fake news e de impor censura à divulgação de notícias. Curiosamente, o governo Bolsonaro tem relação apenas lateral com uma crise cujos protagonistas são o próprio STF e a corrente jacobina do Ministério Público.

Atuando em dobradinha, Dias Toffoli e Alexandre de Moraes conduzem um inquérito abusivo já na origem aos descaminhos da truculência. Desconhecendo os limites da lei, acalentam a ilusão de que seus alvos se deixarão intimidar. O fruto prático de seus atos arbitrários é a desmoralização do STF —ou seja, exatamente a finalidade buscada pelos promotores da campanha difamatória disseminada nas redes sociais. O recuo de Moraes, revogando o ato de censura, restabelece parcialmente a legalidade. Falta, ainda, devolver as prerrogativas de investigar e acusar a quem a detém, ou seja, ao Ministério Público.

O voo suicida do STF concentrou as atenções, desviando os olhares do fenômeno que motiva o inquérito. Não são meia dúzia de haters de redes sociais: há anos, como subproduto tóxico da Lava Jato, a corrente jacobina dos procuradores engajou-se num projeto de poder.

Os sinais iniciais emergiram em maio de 2017, na “operação Joesley Batista” e no artigo de Rodrigo Janot que denunciava “o estado de putrefação de nosso sistema de representação política”. O procurador-geral enunciava, então, nada menos que um objetivo estranho à missão judicial da Procuradoria: limpar a República, substituindo a elite política tradicional por uma outra, pura e casta. É essa meta que os pretendentes a Robespierres continuam a perseguir.

Janot foi protagonista circunstancial numa engrenagem que alastrou suas bases pelo Ministério Público, extravasou para setores da Polícia Federal e da Receita e se disseminou entre militares da reserva e políticos (tanto governistas como de oposição). Hoje, o projeto de poder tem seu próprio candidato presidencial, que atende pelo nome de Sergio Moro, e seu veículo oficioso de mídia, que é o site censurado pelo ato ilegal do STF. Bolsonaro flerta alegremente com a engrenagem, sem se dar conta de que seu governo é apenas uma escala técnica na rota imaginada pelo Partido dos Procuradores.

Mundo afora, da Rússia à Turquia, o populismo vale-se do pretexto do combate à corrupção para quebrar as mediações institucionais que limitam o poder do governo. O núcleo da Lava Jato ganhou popularidade ao atacar eficazmente a corrupção sistêmica que envenena a política brasileira. Dessa plataforma, nasceu o projeto do Partido dos Procuradores, que agora esculpe as investigações segundo as necessidades de seu objetivo político. É nessa lógica que se inscreve a ofensiva contra a Corte Suprema.

“Tenho vergonha do STF” —a frase lançada por um obscuro advogado contra Lewandowski funciona como palavra de ordem da campanha de mídia. O site O Antagonista publica fragmentos de notícias verídicas, mas descontextualizadas, oferecendo munição aos guerrilheiros das redes, que as convertem em petardos difamatórios contra os magistrados escolhidos como alvos. Pretende-se, no fim, eliminar as restrições legais à perseguição de inimigos políticos do Partido dos Procuradores. Nas Filipinas, o governo Duterte fez da “guerra às drogas” o alvitre para execuções extrajudiciais. No Brasil, faz-se da “guerra à corrupção” o pretexto para assassinatos de reputações.

O exército da difamação opera nas sombras, combinando vazamentos seletivos com torrentes de desinformação impulsionadas nos subterrâneos da internet. O STF tem a obrigação de expor os contornos da campanha criminosa por meio dos instrumentos legais, solicitando à Procuradoria inquéritos sobre fatos específicos. A luz do dia sempre é o melhor antídoto contra os combatentes das trevas.

*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.


Bruno Boghossian: Ao defender censura até a última hora, Toffoli encolheu o Supremo

Presidente do STF tentou amarrar o tribunal a uma cruzada e acabou isolado

Ao justificar a censura como ferramenta de defesa institucional, Dias Toffoli demoliu alguns pilares do próprio Supremo. O presidente do tribunal defendeu medidas excepcionais para construir uma muralha que possa proteger a reputação da corte. No fim da obra, o paredão estaria de pé, mas não sobraria muita coisa lá dentro para preservar.

Em entrevista ao jornal Valor Econômico, Toffoli deu de ombros para o desgaste provocado pela decisão de tirar do ar uma reportagem da revista Crusoé que noticiava uma menção a ele em emails internos da Odebrecht. O presidente do STF dobrou a aposta na repressão e tentou tratar a censura como algo banal.

“Se você publica uma matéria chamando alguém de criminoso, acusando alguém de ter participado de um esquema, e isso é uma inverdade, tem que ser tirado do ar. Ponto. Simples assim”, declarou.

Toffoli disse que só agia dessa maneira porque, “ao atacar o presidente, estão atacando a instituição”. Ele discursa em nome de toda a corte e insiste em se confundir com o próprio tribunal, mas alguns colegas parecem dispensar os arbítrios cometidos sob a capa da legítima defesa.

Após a publicação da entrevista, Marco Aurélio comparou o caso à imposição de uma mordaça. Horas depois, Celso de Mello divulgou uma longa nota em que chamou a decisão de autocrática e intolerável.

As reações isolaram Toffoli e o relator do inquérito sobre os ataques à corte. No fim do dia, Alexandre de Moraes decidiu capitular e suspendeu a censura. De quebra, foi obrigado a admitir que o documento citado na reportagem era verdadeiro.

O presidente tem razão quando diz que o STF é alvo de ataques baixos, mentiras e redes organizadas para desacreditar o tribunal. Parte dessas ações, diga-se, é incentivada por políticos e milícias partidárias.

A corte tem direito de responder, mas sem atropelos. Se ficar preso a uma cruzada mesmo depois de ter sido derrotado, Toffoli vai encolher o STF e passará a administrar uma delegacia de polícia numa terra sem lei.