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Dorrit Harazim: Ontem e hoje
Coube aos russos, sempre eles, estragar o calendário da Casa Branca, ao receber aprovação da revista ‘Lancet’ à sua vacina
Mais de meio século atrás, quando a ONU batizou 1957 de Ano Internacional da Geofísica, os Estados Unidos informaram ao mundo que seriam o primeiro país a lançar um satélite da Terra. Segundo a propaganda absorvida piamente, os bolcheviques de Moscou não representavam qualquer ameaça. Além de bárbaros, ateus e ignorantes, engatinhavam em tecnologia. O governo e os próprios serviços de inteligência dos EUA acabaram acreditando na propaganda criada. “Os primitivos cossacos não conseguem fazer nada que nós não podemos”, avaliou o chefe da CIA, Allen Dulles, quando confrontado com imagens de instalações de foguetes na Sibéria, produzidas por aviões de espionagem.
Também os analistas de inteligência da União Soviética trabalhavam sob uma ótica equivocada, mas diametralmente inversa — estavam convencidos da superioridade americana. Por isso, interromperam um projeto de satélite avançado e decidiram disparar logo o que tinham à mão: uma simples esfera de metal com quatro antenas, dotada de um radiotransmissor potente e primitivo. Foi o bastante.
Quando o Sputnik 1 rompeu os céus e entrou em órbita, na manhã de 4 de outubro de 1957, a autoconfiança dos americanos ficou prostrada. “Este é um golpe devastador no prestígio científico, industrial e tecnológico dos Estados Unidos”, resumiu à época o senador Henry Jackson. A humilhação maior foi que o raio do artefato russo emitia sons captáveis por qualquer radiorreceptor que seguisse instruções divulgadas por Moscou. Pior: o traçado do satélite, acoplado a um pedaço de foguete que pesava nove toneladas, era visível por qualquer bípede da Terra que tivesse um binóculo. De uma hora para outra, os soviéticos pareciam dominar o desconhecido naquele início da corrida espacial.
Um mês depois, novo revés quando os russos lançaram ao espaço um segundo Sputnik com a primeira criatura viva a bordo — a cadela Laika. E, para encerrar aquele ano indigesto, ainda houve um nocaute autoinfligido. O governo americano planejou restaurar a confiança na tecnologia made in USA no dia 4 de dezembro e convidou o mundo para aplaudir. O lançamento de seu primeiro satélite seria feito à vista de todos, com inédita transmissão direta de Cabo Canaveral. Deu ruim. As milhões de pessoas grudadas em seus aparelhos de TV acabaram assistindo ao vivo à explosão do malfadado foguete.
Poderia ter sido um coup de grâce, mas deu-se o contrário: já no ano seguinte o Congresso americano aprovou um incentivo maciço ao ensino da Ciência, da Matemática e de Engenharia, e criou a Nasa como agência civil para a exploração espacial. Em 1969, decorridos12 anos desde a humilhação do Sputnik, os Estados Unidos fincavam bandeira e pés na superfície da Lua. As fronteiras da imaginação humana haviam sido escancaradas.
O episódio de 1957 é aqui rememorado por remeter a algo perceptível nos EUA de hoje: em plena pandemia, uma crise de confiança nas instituições de ciência e tecnologia mais veneradas no país. Ao nomear prepostos domesticados para dirigir o respeitado CDC (centro de combate e prevenção de doenças) e ordenar à agência reguladora de alimentos e medicamentos (FDA) que abraçasse terapias não comprovadas, Donald Trump desmontou o que tinha de melhor no combate ao coronavírus.
Também atropelou a confiança nacional numa vacina segura e eficaz. Governadores de vários estados e dezenas de entidades médicas do país já comunicaram que deixarão de seguir automaticamente as orientações do CDC. Na sua cavalgada anticientífica mais recente, o presidente chegou a sugerir que, dos 187 mil americanos mortos em oito meses de pandemia, apenas 6% tenham, de fato, morrido por Covid-19. As causas mortis seriam múltiplas.
Não espanta, assim, que 81 sumidades americanas, todas laureadas com um Prêmio Nobel de Medicina, Química ou Física, tenham divulgado uma carta aberta de adesão a Joe Biden nas eleições de novembro próximo. O manifesto foi publicado pouco depois de o “Washington Post” reportar que um dos principais integrantes da força-tarefa de Trump no combate ao vírus é defensor ferrenho da estratégia da “imunidade de rebanho”. Também devem ter levado em conta o proclame presidencial de que a primeira vacina contra a Covid-19 seria americana. Disse mais: ela começaria a ser distribuída no país no dia 1º de novembro — antevéspera da eleição.
Coube aos russos, sempre eles, estragar o calendário da Casa Branca. No mês passado, eles haviam registrado a toque de caixa, e sem respaldo científico conclusivo, uma primeira vacina de nome sugestivo — Sputnik V. Foi recebida com reservas e suspeição pela comunidade científica mundial. Mas esta semana ela recebeu aprovação de uma das principais revistas médicas do mundo, a britânica “The Lancet”, que considerou bom o desempenho da Sputnik V nas primeiras fases de teste.
Ao descartar a expertise e integridade de instituições científicas que há muito servem de referência ao mundo, Donald Trump arrisca igualar-se aos líderes russos a qualquer custo. Perde a ciência, perde a saúde da Terra e de suas gentes.