sociedade

Cenário brasileiro | Imagem: reprodução/Outras Palavras

Os caminhos para uma reforma tributária justa

Outras Palavras*

A reforma tributária tem ocupado as atenções políticas há, pelo menos, 25 anos. Parece haver consenso quanto a sua necessidade. No entanto, sempre que o assunto ganha alguma relevância no cenário político, esse suposto consenso se desmancha, pois nem todos os que defendem a reforma comungam das mesmas motivações. Não é diferente, neste momento, com debates sobre programas para um governo de corte democrático e popular.

Para muitos, inclusive para nós, o problema central do sistema tributário é o seu caráter regressivo, cujas principais consequências relacionam-se ao aprofundamento das desigualdades de natureza econômica e social. Mas como traduzir mais precisamente essa regressividade do sistema tributário? Trata-se da sua característica de beneficiar os mais ricos pela débil tributação das altas rendas e das grandes riquezas e “transferir o fardo dos impostos”, como afirmou Chomsky, aos mais pobres. No caso brasileiro, esta transferência é mais visível na hipertrofia da carga tributária sobre o consumo.

Para outros, o único problema a ser corrigido se refere à complexidade do sistema tributário. São, estes, os conhecidos defensores de uma reforma restrita à tributação sobre o consumo, designada “simplificação tributária”, a ser supostamente resolvida pela unificação de praticamente todos os tributos indiretos, das competências municipal, estadual e federal, incluídas várias contribuições sociais, num único imposto sobre o valor agregado (IVA).

Lideram esse bloco, as grandes corporações que industrializam ou importam produtos considerados supérfluos, atualmente submetidos ao critério da seletividade e, portanto, à incidência de alíquotas mais gravosas do IPI e do ICMS, e em alguns casos, do PIS/Cofins não cumulativo, pois, certamente, seriam as maiores beneficiadas por uma reforma desse tipo. As instituições financeiras igualmente demonstram enorme disposição para tal mudança, com o objetivo de abolir a possibilidade da incidência de alíquotas maiores da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido. E a mesma lógica de interesses serve às empresas que, a depender da atividade econômica exercida, podem vir a ser submetidas a alíquotas maiores de qualquer uma das contribuições sociais existentes, possibilidade contemplada pelo §9º do Artigo 195 da Constituição Federal. Associam-se aos partidários da reforma restrita à tributação indireta, aqueles que defendem o esvaziamento do Estado Social e o fim das contribuições sociais, espécie de tributo cuja essência é a vinculação de sua arrecadação ao financiamento de políticas de seguridade.

O debate no campo popular

Interessa-nos, aqui, discutir as posições do primeiro bloco, formado pelos que atuam no campo popular e democrático. Entre nós, manifesta-se uma concordância fundamental sobre a necessidade de modificações estruturais no sentido de deslocar parte da tributação indireta incidente sobre as mercadorias e os serviços, para a imposição direta sobre as altas rendas e as grandes riquezas, mas, em outro sentido, uma divergência preocupante tem se destacado, sobre qual é a prioridade da reforma e, consequentemente, por onde começar.

A divergência aparece no debate em formulações sutis como, por exemplo, “Não basta simplificar, é preciso tributar mais a renda e o patrimônio”, que acabam por conferir à reforma dos tributos indiretos as qualidades de ser imprescindível e prioritária, ainda que seja ressalvada a necessidade de atribuir maior progressividade aos tributos diretos. As distintas visões também estão presentes na discussão sobre o alcance da reforma tributária no futuro próximo: ampla, abrangendo a tributação sobre o consumo e começando por aí, ou centrada na renda e patrimônio, pelo menos no primeiro momento.

Parece haver consenso, entre os que defendem uma reforma no sentido da progressividade, sobre cada componente do sistema tributário poder ser melhorado. Os tributos sobre a renda, tanto das pessoas físicas, como das pessoas jurídicas, deveriam ser modificados para adotar a capacidade contributiva, de fato, como o critério mais relevante e para elevar sua participação na arrecadação nacional total. Da mesma forma, deveria ser reforçado o papel dos tributos patrimoniais, principalmente, por meio da criação do Imposto sobre Grandes Fortunas, há tempos, previsto na Constituição Federal, mas, até hoje, sem a maioria política para ser implementado.

Os tributos sobre o consumo também deveriam sofrer modificações, com vistas a reduzir seu peso na arrecadação total e racionalizar sua forma de incidência, corrigindo características como o tributo por dentro da base de cálculo e sua cobrança na origem. Os tributos com natureza extrafiscal, como o IPI, os incidentes sobre o comércio exterior, o IOF e a Cide deveriam estar alinhados a um programa de desenvolvimento nacional e de sustentabilidade ambiental. Além disso, as mudanças tecnológicas e as consequentes mudanças ocorridas no mundo do trabalho, assim como a atuação no plano global das grandes corporações, vêm colocando desafios importantes para a tributação, exigindo a busca de novas fontes para o financiamento da proteção social.

No entanto, sabe-se que qualquer reforma ampla tende a potencializar resistências políticas, muitas delas, justas, sob a ótica das lutas sociais. As propostas de reformas dos tributos indiretos, em particular, fazem emergir conflitos e disputas internas ao empresariado e entre os entes federativos, provocam desgaste junto à parcela importante dos prefeitos e governadores, além de resultar na legítima oposição dos movimentos populares que lutam pela preservação e alargamento das políticas de proteção social, como demonstraram as propostas de reforma tributárias tentadas desde meados da década de 1990. Tais propostas não apenas alteram a distribuição da carga tributária entre os diversos setores econômicos, repercussão que sempre merece um bom debate, mas, afetam sobremaneira a autonomia dos estados e municípios e agridem o financiamento da Seguridade Social previsto na Constituição Federal de 1988.

Em partes, para avançar

Ainda que seja possível projetar a configuração geral de um sistema tributário socialmente justo, funcional para o desenvolvimento econômico e a sustentabilidade ambiental, sua implementação efetiva terá maiores chances de êxito se os projetos forem tratados separadamente, priorizando-se, inicialmente, aqueles cuja natureza afeta os problemas centrais do sistema e, ao mesmo tempo, está em sintonia com a maior parte dos setores organizados da sociedade, os aliados do financiamento progressivo das políticas públicas.

A reforma tributária silenciosa realizada no Brasil entre 1995 e 2002 iniciou-se por mudanças estruturais no Imposto de Renda. A reforma progressiva deve se iniciar também por aí, mas seguindo o sentido inverso. Está muito evidente que a criação de mecanismos como a isenção dos lucros e dividendos distribuídos e a possibilidade de dedução dos juros sobre o capital próprio, promovidas pela Lei nº 9.249/95, resultaram na desidratação substancial do IR em seus aspectos arrecadatório e distributivo. Os mais ricos pagam proporcionalmente muito menos do que os mais pobres.

Quanto à tributação corporativa, o fato de a maior parte das pessoas jurídicas não tributarem o lucro, mas sim frações da receita bruta, faz com que também o Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica (IRPJ) e a Contribuição Social sobre Lucro Líquido (CSLL) acabem onerando muito mais o consumo do que o resultado obtido pela atividade econômica. Em 2019, por exemplo, somente 3,05% das pessoas jurídicas registradas no país eram tributadas pela modalidade do Lucro Real. As demais são todas tributadas pelo Lucro Presumido (16,68%) ou pelo Simples (80,26%)1. Mesmo para as pessoas jurídicas tributadas pelo regime de Lucro Real, há um enorme conjunto de possíveis ajustes que reduzem substancialmente as bases de cálculo do IRPJ e da CSLL em relação ao lucro líquido da atividade – o resultado efetivo no período –, tornando a alíquota efetiva bem inferior à alíquota nominal. Estas PJ, embora submetidas a uma alíquota maior da CSLL, que, somada ao IRPJ, totalizaria uma alíquota nominal de 45%, na realidade estiveram sujeitas a uma alíquota efetiva de apenas 14,3% entre 2010 e 20192. É absolutamente falsa, portanto, a afirmação sobre as pessoas jurídicas serem excessivamente tributadas no Brasil, como os economistas liberais querem nos fazer crer.

Evidentemente, não se afasta a necessidade de aperfeiçoamento da tributação da renda das empresas, mas o caminho segue em outra direção. É importante reduzir as possibilidades de tributação de um lucro fictício, como ocorre atualmente, por meio da sistemática de lucro presumido e de outras formas de diminuição da base de cálculo do IR e da CSLL. Um bom objetivo é aproximar, o máximo possível, a base de cálculo desses tributos do lucro líquido efetivamente obtido pela atividade empresarial no período considerado.

Outro fator relevante da regressividade é a ausência injustificável da cobrança do Imposto sobre Grandes Fortunas (IGF), previsto na Constituição de 1988 e até hoje não implementado, mesmo diante do quadro dramático que vivemos no país, de profunda desigualdade social e de uma brutal concentração de renda e riquezas.

A solução para imprimir progressividade efetiva ao IR e instituir o IGF independe de modificações constitucionais e pode ser encaminhada pela aprovação de Leis ordinárias e complementares. Sem corrigir as distorções no Imposto de Renda e sem implementar o IGF, fica muito difícil, senão, impossível, avançar no sentido da justiça fiscal e pavimentar o caminho para o desenvolvimento nacional, inclusivo, com redistribuição de renda e riqueza.

Prioridade das mudanças na esfera de competência da União

Quase 70% de toda a arrecadação tributária se refere a tributos de competência da União, os quais abrangem todas as bases de incidência (renda, patrimônio e consumo). Tanto a redução da regressividade, quanto o alinhamento do sistema tributário às políticas de desenvolvimento, de redistribuição e voltadas à sustentabilidade ambiental podem ser implementadas por meio de medidas no âmbito das competências tributárias federais. As propostas de eliminação das distorções na legislação do IR e de implementação do IGF apresentam grande capacidade de aumento da arrecadação e, em contrapartida, permitirão viabilizar a gradativa redução da carga impositiva sobre as rendas mais baixas e sobre o consumo de mercadorias e serviços, por meio da correção da tabela de incidência do IRPF e da diminuição das alíquotas da Cofins e do PIS, aliviando o peso dos tributos sobre boa parte dos assalariados e dos consumidores de baixa e média renda.

Primeiro: reafirmar os fundamentos tributários da Constituição Cidadã!

Boa parte dos problemas identificados podem ser caracterizados como desvios dos marcos do sistema tributário previsto na Constituição Federal de 1988. A isenção dos lucros e dividendos distribuídos pelas empresas e a possibilidade de dedução dos juros sobre o capital próprio são os mecanismos mais graves e evidentes da ruptura entre o Imposto de Renda e os princípios e critérios constitucionais que o deveriam guiar. A isonomia de tratamento entre os contribuintes foi violada e o princípio da capacidade contributiva, desrespeitado. Além disso, ao isentar também o lucro remetido ao exterior, a legislação infraconstitucional promoveu um benefício indevido ao destinatário dos lucros, como também aos países onde estes residem, na medida em que a quase totalidade destes tributam os lucros recebidos pelos sócios e acionistas das empresas estrangeiras. O que deixamos de cobrar aqui, os países de residência cobrarão por lá.

Segundo: impulsionar o avanço da progressividade

É preciso atuar, ainda, na redução dos tributos que incidem sobre o consumo, e que, portanto, afetam mais a renda da população pobres. A tributação das empresas deve incidir preferencialmente sobre o resultado líquido e menos sobre o faturamento ou sobre a receita bruta. Para tanto, parte das contribuições sociais pode migrar para bases de incidência direta. O PIS e a Cofins, por incidirem sobre o faturamento, podem ter suas alíquotas reduzidas, o que reduziria o peso da tributação sobre o consumo e ao mesmo tempo diminuiria os custos de produção.

A compensação da redução na arrecadação das contribuições de natureza regressiva pode ser obtida pela criação de uma Contribuição Social sobre as Altas Rendas das Pessoas Físicas (CSAR), com incidência progressiva, uma vez que incidiria apenas sobre parcelas de rendimentos excedentes a R$ 60 mil mensais. Essa medida exige uma alteração constitucional.

Terceiro: alinhar a tributação à política de desenvolvimento econômico 

A progressividade na tributação em geral é, por si só, um fator favorável à atividade econômica, na medida em que os mais pobres, sendo menos tributados, teriam aumentada sua capacidade de consumo, o que amplia a demanda agregada. A elevação da tributação sobre as altas rendas e sobre as grandes riquezas amplia a capacidade do Estado para a promoção de políticas públicas, comprovadamente, um forte fator de estímulo à atividade econômica. Afinal, o gasto público se transforma imediatamente em receita privada.

Para o bom alinhamento da tributação à política econômica pretendida, no entanto, cabe acrescentar a maior utilização dos instrumentos extrafiscais da tributação. O Imposto de Exportação pode ser aplicado sobre as exportações de commodities em períodos de sobrevalorização no mercado internacional, como forma de o Estado reter parcela do resultado da atividade num Fundo de Desenvolvimento industrial voltado à criação de cadeias produtivas e ampliação das já existentes.

A orientação na alocação dos recursos privados pode ser obtida pelo uso do princípio da seletividade do IPI ou pela criação de Contribuições de Intervenção no Domínio Econômico. Assim, é possível estabelecer uma política de sustentabilidade ambiental, utilizando esses instrumentos.  A interferência do Estado na política monetária pode ser obtida pela definição das alíquotas do IOF.

Tão importante quanto a definição de um modelo de sistema tributário ideal para o país, considerando o estágio de desenvolvimento em que se encontra e ao qual se pretende chegar, é a definição da estratégia de como avançar na construção deste modelo. Assim, neste artigo, procuramos apontar uma proposta de caminho para implementação das propostas de modificações da legislação tributária com maior capacidade de alteração estrutural progressiva do sistema tributário, com baixo nível de dificuldade técnica legislativa, com enorme potencial de adesão popular e com menor volume de resistências.

Em síntese, entendemos que a reforma politicamente viável e socialmente desejável deva se iniciar pelos tributos da União, primeiramente com correções da tributação sobre a renda (IRPF, IRPJ e CSLL), incluindo a instituição do IGF, seguida por ajustes na tributação sobre o consumo (PIS, Cofins, IPI e Cide) de forma a reduzir a regressividade do sistema. E somente a partir dessa nova configuração da tributação federal é que se partiria para uma reforma dos tributos dos entes subnacionais, com uma ampla discussão do pacto federativo.

Texto publicado originalmente no portal Outras Palavras.


Por que Anielle Franco foi escolhida como ministra da Igualdade Racial no governo de Lula

Com larga experiência e trajetória como ativista das questões de raça e gênero no Brasil e os desdobramentos desses termos na violência política do país, a jornalista Anielle Franco, de 37 anos, assumiu na última quarta-feira (11) o cargo de ministra da Igualdade Racial.

Irmã da vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018, Anielle é nascida na Maré, na zona norte do Rio, é formada em Jornalismo pela Universidade Central da Carolina do Norte, nos Estados Unidos, em Inglês pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) e é mestre em Relações Étnico-Raciais pelo Cefet/RJ.

ministra do governo Lula é fundadora do Instituto Marielle Franco, que desenvolve projetos com meninas e mulheres negras, periféricas e LGBTQIA+. Além de defender a memória da vereadora assassinada no Rio tanto de fake news de movimentos autoritários e cobrar do poder público as respostas sobre os mandantes do crime, o instituto tem a proposta de fazer com que Marielle seja um espelho. 

"Vamos atuar na multiplicação do legado deixado por Marielle, para que o trabalho construído por ela e pela sua equipe seja espalhado e concretizado em todos os cantos", diz o instituto.

Em sua posse, Anielle reforçou a necessidade de intensificação de políticas públicas voltadas à questão racial, como as cotas que permitem o acesso às universidades públicas do país. "O Ministério da Igualdade Racial será um ministério que abrirá os portões para essa nova história. Uma história do futuro da vida no planeta passa pela preservação, solução e respostas das pessoas negras".

Anielle agradeceu à sua família pelo suporte, carinho e cumplicidade após a nomeação para o cargo de Ministra de Estado. "Aos meus pais Marinete e Toinho, ao meu esposo Fred, às minhas filhas, a minha sobrinha Luyara e também a minha irmã Marielle Franco, em nome de quem eu aceitei este desafio".

Novas leis

Durante a cerimônia, Lula sancionou a lei que equipara o crime de injúria racial ao de racismo, que é inafiançável e imprescritível.

Aprovado pelo Congresso em dezembro do ano passado, o texto inscreve a injúria, hoje contida no Código Penal, na Lei do Racismo e cria o crime de injúria racial coletiva.

Até agora, a pena para injúria racial era de reclusão de um a três anos e multa. A nova lei prevê punição de prisão de dois a cinco anos. A pena será dobrada se o crime for cometido por duas ou mais pessoas.

Discurso

Veja trecho de falas da ministra Anielle Franco, após ser nomeada para o cargo:

Um novo país começa hoje e o Brasil do futuro precisa responder às dívidas do passado.

Após um período de profundos ataques aos nossos direitos e humanidade, por meio do esgarçamento das leis, ataques às instituições e fragilização das próprias noções de solidariedade, podemos voltar a sorrir. Não porque as desigualdades raciais, sociais e de gênero estejam resolvidas, mas porque a partir de hoje elas voltam a fazer parte oficialmente do principal compromisso do Estado Brasileiro com seu povo: enfrentar as desigualdades para superá-las!

Ter sido submetidos ao maior genocídio do planeta, dentro dos tumbeiros (comumente chamados de navios negreiros), nos impôs a busca pelo resgate e reinvenção das nossas práticas coletivas de sobrevivência e reescrita dessa história de sangue, agora através da chave da liberdade, autonomia, dignidade, respeito, comunidade, amor, família (aquela ampliada, no plural).

Nada mais sobre nós (povo negro), sem a nossa participação. E tudo nos interessa e, com estratégia e muito trabalho, sobre tudo aquilo que se faz necessário para uma existência que tenha por base o bem-viver, nós estaremos de pé e em marcha, como mulheres e homens negros que lutaram para um Brasil de todos nos ensinaram.

Obrigada por serem minha base e sustentação. Obrigada por toda paciência e cuidado. Obrigada por me fazerem ser a minha melhor versão a cada dia.


Ato político-cultural terá caráter lúdico, com apresentações culturais, na manhã de domingo (15) - Foto: Sarah Benedita

Ato em defesa da democracia será realizado em Brasília neste domingo

Brasil de Fato*

Movimentos populares organizados em torno das frentes Brasil Popular (FBP) e Povo Sem Medo (FPSM) realizam neste domingo (15), em Brasília, um ato político-cultural em defesa da democracia e contra a tentativa de desestabilização institucional em curso no país.

O ato também servirá para denunciar a omissão do governador afastado Ibaneis Rocha (MDB) em relação aos atos golpistas que depredaram os prédios da República no último domingo (8). A manifestação está marcada para ocorrer na altura da Quadra 108 Sul, no Eixão, via que fica fechada aos carros no domingo e aberta à população. A ideia é que seja um ato lúdico e inicia a partir de 9 horas. 

"Esse ato será em defesa da democracia, contra as tentativas de golpe e violação ao Estado Democrático de Direito. Vai ser um ato cultural, com música e apresentações artísticas", explica Marco Baratto, da direção do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra no Distrito Federal (MST-DF) e integrante da FBP.

Segundo Baratto, o novo ato se soma à manifestação já realizada na última segunda-feira (9), por exemplo, um dia após os atos antidemocráticos, quando manifestantes foram ao Palácio do Buriti, sede do governo distrital, pedir a cassação de Ibaneis. A tendência é que novas manifestações ocorram, que podem ser impulsionadas com o andamento das investigações.

"A ideia é fazer constantemente atos que reafirmem a defesa democracia, que dê sustentáculo à democracia, que está e seguirá sob ameaça nos próximos anos", acrescenta. 

Apesar da forte reação institucional aos atos golpistas, que envolveu Judiciário, Poder Legislativo, governo federal, além dos governadores estaduais, o dirigente do MST-DF argumenta que é preciso ter resistência popular para impedir novas tentativas de golpe. 

:: Documento encontrado na casa de Anderson Torres revela plano para mudar resultado da eleição ::

"Não dá pra confiar apenas na institucionalidade, o povo organizado na rua deve resistir aos intentos golpistas", diz. Outra ideia das frentes populares é expandir os atos para outras regiões, além do centro da cidade. "Precisamos estrutura, a partir dos comitês populares, um trabalho mais organizado, que envolve formação política, de consciência da população", aponta Marco Baratto.

Texto publicado originalmente no Brasil de Fato.


Deputados reeleitos por SC, MG, ES e PB apoiaram ataques em Brasília

Denúncias recebidas pelo banco de dados Lupa nos Golpistas apontam que políticos no exercício de mandatos eletivos apoiaram os atos golpistas de domingo (8) em Brasília (DF), que resultaram em ataques ao Congresso, Palácio do Planalto e Supremo Tribunal Federal (STF). Entre eles, há pelo menos quatro deputados estaduais reeleitos.

Um deles é Sargento Rodrigues (PL), deputado estadual eleito para o segundo mandato em Minas Gerais. Em sua conta no Instagram, o parlamentar fez um post – que permanecia online até a tarde desta quarta-feira (11) – no qual afirmou que os atos foram uma “revolta popular” provocada pelas ações das “maiores autoridades” do Brasil.

“Primeiro, um militante da esquerda manda soltar o chefe da maior organização criminosa deste país. Depois, atrocidades são cometidas e a Constituição rasgada à luz do dia, rotineiramente”, escreveu Rodrigues, na rede social. O post é acompanhado por um vídeo em que um homem não identificado, com boné militar, óculos escuros e bandeira do Brasil nas costas, afirma: “tudo invadido aqui”.

Denúncias enviadas pelo banco de dados também registraram outra postagem feita pelo Sargento Rodrigues no Instagram, na qual ele compartilhou a imagem da pichação à estátua “A Justiça”, localizada em frente ao STF, com a frase “perdeu, mané” – em alusão à fala do ministro da Corte Luís Roberto Barroso, em 2022, ao se referir a apoiadores do então presidente Jair Bolsonaro (PL), após as eleições.

Outra parlamentar denunciada no Lupa nos Golpistas é Ana Campagnolo (PL), reeleita em Santa Catarina com a maior votação em 2022. No dia dos ataques, ela também publicou uma foto da estátua “A Justiça” pichada. Na legenda, afirmou que a decisão do presidente Luiz Inácio Lula da Silva de decretar intervenção federal em Brasília seria uma medida “contra brasileiros”.

Após o deputado federal Alexandre Frota (PROS-SP) acusar Ana Campagnolo de estar apoiando atos terroristas, a parlamentar utilizou novamente as suas redes sociais para afirmar que vai processar pessoas que a acusaram.

Quem também endossou a ação dos golpistas em Brasília foi o deputado estadual reeleito Capitão Assumção (PL), do Espírito Santo. Desobedecendo uma decisão do ministro do STF Alexandre de Moraes que o proíbe de acessar suas redes sociais, ele publicou, em seu perfil do TikTok, um vídeo sobre o ataque aos Três Poderes.

Na postagem, Assumção exibe trechos da invasão ao Congresso Nacional enquanto aparece sorrindo. No final, ele afirma: "como diz aquela máxima, supremo é o povo, não é verdade?". A conta do parlamentar foi apagada.

Assumção, inclusive, foi um dos alvos da operação deflagrada pela Polícia Federal em dezembro para investigar suspeitos de organizar e financiar atos antidemocráticos contra as eleições e formar milícias digitais para atacar o STF. Ele foi proibido de acessar as redes sociais e está sob monitoramento da Justiça, usando uma tornozeleira eletrônica.

Também há, entre as denúncias recebidas pela Lupauma postagem feita pelo deputado estadual reeleito Walber Virgolino (PL), da Paraíba. Nela, o parlamentar divulgou uma coleção de vídeos sobre a invasão ao Congresso e afirmou: “O POVO PELO POVO em sua fúria incontrolável” – o link permanecia online até a tarde desta quarta-feira (11).

Apesar de declarar na publicação que é contrário à violência, Virgolino destacou na legenda que "hoje ficou demonstrado que ninguém é invencível , intransponível e inquebrantável, nem mesmo o sistema".

Lupa procurou os políticos citados nesta reportagem foram procurados, porém, até a publicação desta reportagem, não houve retorno. 

Em decorrência dos ataques em Brasília, a Lupa pede a colaboração de seus seguidores para montar uma base de dados que reúna postagens antidemocráticas feitas em redes sociais ou aplicativos de mensagem. Este é um projeto colaborativo que busca entender como foram organizados os atos de vandalismo. Se você viu ou ouviu alguma postagem convocando para os ataques, colabore preenchendo este formulário. O conteúdo será usado para fins jornalísticos e/ou de pesquisa, e pode ajudar em futuras investigações sobre as invasões de 8 de janeiro de 2023. 

Texto publicado originalmente no portal Lupa.


Nas entrelinhas: Qual é o país que queremos?

Luiz Carlos Azedo | Correio Braziliense

O Correio Braziliense promove, hoje, o seminário Desafios 2023 — o Brasil que queremos, no auditório Alvorada do Centro de Convenções Ulysses Guimarães, com transmissão ao vivo pelo site e pelas redes sociais. O encontro será aberto pelo ex-presidente do Banco Central Armínio Fraga, às 14h, dando início a uma sequência de painéis: responsabilidade fiscal e responsabilidade social; retomada do crescimento e infraestrutura; educação e saúde. O ex-ministro da Fazenda Henrique Meirelles falará sobre a importância da credibilidade na economia, e o encerramento será feito pelo ex-presidente Michel Temer, um arguto observador da cena política.
O evento é oportuno porque existe um vazio de definições em relação à política do novo governo Lula, que assume o mandato num ambiente de contestação ao resultado das urnas e terra arrasada na gestão do presidente Jair Bolsonaro, até agora inconformado por não se reeleger. O fato é que o presidente Luiz Inácio lula da Silva foi eleito sem um programa de governo, com base na memória de seus dois mandatos e no próprio carisma. Entretanto, foi uma eleição difícil, apertada, que somada à indefinição programática faz com que as políticas do novo governo, principalmente nas áreas abordadas pelo seminário, estejam em disputa, dentro da aliança de forças democráticas que viabilizou a sua vitória, no segundo turno, e fora, na sociedade.

O seminário será porta-voz de setores da sociedade que atuam nessas áreas. Dele participarão especialistas reconhecidos por seu conhecimento e atuação na respectiva área, como Juliana Damasceno, economista da Tendências Consultoria; José Roberto Afonso, economista e um dos pais da Lei de Responsabilidade Fiscal; Gabriel Leal de Barros, economista-chefe da Ryo Asset, quanto à responsabilidade fiscal. Tony Volpon, estrategista da Wealth High Governance; Jorge Arbache, vice-presidente do Banco de Desenvolvimento da América Latina (CAF), e Zeina Latif vão tratar da questão da infraestrutura, apontada por todos como um gargalo para a retomada do crescimento.

A questão social, dramática nos últimos anos, também está no foco do seminário. O tema da educação será tratado por Cláudia Costin, diretora do Centro de Políticas Educacionais da FGV; Celso Niskier, presidente da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes); Raphael Lucchesi, diretor de Educação e Tecnologia da CNI e diretor-geral do Senai; Marcos Lisboa, economista e presidente do Insper.

O debate sobre a saúde, cujo pano de fundo é o caráter endêmico da covid-19 no Brasil, reunirá Humberto Costa, ex-ministro da Saúde; Paulo Rebello, presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS); Marlene Oliveira, presidente do Instituto Lado a Lado; e Igor Calvet, da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI).

A questão social, dramática nos últimos anos, também está no foco do seminário. O tema da educação será tratado por Cláudia Costin, diretora do Centro de Políticas Educacionais da FGV; Celso Niskier, presidente da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior (Abmes); Raphael Lucchesi, diretor de Educação e Tecnologia da CNI e diretor-geral do Senai; Marcos Lisboa, economista e presidente do Insper.

O debate sobre a saúde, cujo pano de fundo é o caráter endêmico da covid-19 no Brasil, reunirá Humberto Costa, ex-ministro da Saúde; Paulo Rebello, presidente da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS); Marlene Oliveira, presidente do Instituto Lado a Lado; e Igor Calvet, da Agência Brasileira de Desenvolvimento Industrial (ABDI).

O contexto

Voltando ao contexto do seminário, é uma discussão com muitas dimensões. A primeira, obviamente, é política. Há uma evidente crise da democracia representativa, que se reflete na polarização direita versus esquerda e que leva à busca de soluções com apelo popular, que nem sempre são as melhores e, na maioria das vezes, têm fôlego muito curto. O debate em curso na Câmara sobre a PEC da Transição, por exemplo, ilustra as dificuldades para encontrar saídas robustas, consistentes e sustentáveis. Por isso mesmo, o debate não pode ficar confinado aos partidos políticos, cuja lógica de negociação mira muito os interesses particulares dos políticos. Infelizmente, o velho patrimonialismo oligárquico é a força dominante, porém dissimulada, nas negociações entre o novo governo Lula e o Congresso.

A segunda questão é a contradição entre a necessidade de controlar a inflação e, ao mesmo tempo, recuperar a capacidade de investimento em infraestrutura, que pressupõe a captação de recursos privados nacionais e estrangeiros, porque o Estado perdeu seu poder de investimento. Utilizar a inflação como um mecanismo de financiamento da infraestrutura, como já se fez no passado, como todos sabem, é a antessala da hiperinflação e da desorganização das atividades produtivas. Como desfazer esse nó?

A PEC da Transição pretende resolver o problema básico da sobrevivência das famílias em condição de miséria absoluta, mas não resolve o problema social que enfrentamos. Por exemplo, há uma lógica perversa subjacente às políticas de educação e de saúde pública, que se descolou da necessidade de manter um grande exército industrial de reserva, saudável e escolarizado. As alterações na estrutura produtiva, com os sistemas flexíveis, a inovação, as novas tecnologias e os novos materiais, além da crise ambiental, modificam profundamente a relação trabalho e capital. As duas questões precisam ser tratadas como valores universais para uma sociedade próspera e saudável.

https://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-qual-e-o-pais-que-queremos/

Foto: João Rodrigues/FAP

“O Slam-DéF tira os meninos da rua, tira das drogas”, diz vencedor da batalha de poesias

João Rodrigues, da equipe da FAP

Reflexões, protestos, relatos de dramas cotidianos e muitas rimas. Assim foi a penúltima edição de 2022 do Slam-DéF, realizada no sábado (26/11), na Biblioteca Salomão Malina.

Pela segunda vez consecutiva, Rasta foi o grande campeão da batalha de poesias. O evento reuniu cerca de 30 pessoas no Conic, região central de Brasília.

A equipe da TV FAP esteve por lá, registrou os melhores do evento e bateu um papo com o grande vencedor da edição de novembro do Slam-DéF.  “Me sinto muito maravilhado. É uma oportunidade incrível que a Biblioteca traz pra gente. São pouquíssimos os espaços que a gente tem pra deixar a fala. Eu deixo a máxima gratidão à Fundação Astrojildo Pereira e a Biblioteca Salomão Malina”, agradeceu o poeta.

Confira, abaixo, o vídeo. ▶️📺



Sobre o Slam-DéF

SlaM nasceu em Chicago, Estados Unidos, nos anos 1980. Chegou ao Brasil duas décadas depois. No Distrito Federal, começou em 2015, com o Slam-DéF, que também atua no Entorno. O grupo integra pessoas de qualquer idade, cor, raça, etnia e orientação sexual.

Interessados podem solicitar mais informações por meio do WhatsApp oficial da Biblioteca Salomão Malina (61 98401-5561).

Serviço

Batalha de Poesias SlaM-DéF

Última edição de 2022: 10 de dezembro (sábado)

Horário: 10h

Onde: Hall de entrada da Biblioteca Salomão Malina, localizada no SDS, Bloco P, ED. Venâncio III, Conic, loja 52, Brasília (DF).

Realização: Slam-DéF, em parceria com Biblioteca Salomão Malina e Fundação Astrojildo Pereira (FAP).


Fernando Abrucio: Alimentar o ódio é minar a nação

Democracia Política e Novo Reformismo*

A construção de nações foi uma das tarefas mais complexas da história da humanidade. O primeiro passo é estabelecer os limites territoriais dos países, algo ainda inacabado em parte do mundo, tendo muitas vezes a guerra como solução. Mas o aspecto mais complicado está na produção da identidade nacional. Constituir um povo que conviva com suas diferenças não é nada trivial. Mesmo sendo escandalosamente desigual, o Brasil conseguiu edificar uma sociedade razoavelmente tolerante, com espaços de convívio e respeito mútuo. Só que o ódio entre brasileiros tem sido alimentado cotidianamente. Isso pode afetar o destino de curto e longo prazo da nação.

O ódio social nunca foi uma bússola para construir civilizações. Nos casos mais extremos, produziu-se a barbárie. Assim foi na Alemanha nazista, com a perseguição de vários grupos sociais, especialmente os judeus, com 6 milhões de mortos. O Brasil atual está longe disso, mas o crescimento do neonazismo nas redes sociais e manifestações declaradamente nazistas em universidades e até em escolas particulares de educação básica revelam que há sementes totalitárias sendo plantadas em nossa nação.

Mas o ódio pode ter uma forma mais branda e duradoura, com divisões sociais marcadas pelo rechaço completo entre as forças políticas, transformando a atividade da política em um jogo de mágoas perpétuas. A Argentina tem trilhado essa história desde a Segunda Guerra Mundial, com períodos autoritários muito violentos e com momentos democráticos em que o diálogo tem pouco espaço entre os diferentes. O fato é que o desenvolvimento econômico e social argentino foi barrado por um grau de polarização que dificulta qualquer decisão que resulte da negociação e do respeito mútuo. Esse é o efeito Orloff que o Brasil mais deveria temer.

Nos últimos 15 anos, um novo ciclo internacional de ódio político foi constituído. Ele é a combinação do avanço de redes sociais propositadamente polarizadoras com o discurso da nova extrema direita, caracterizada pela defesa de valores tradicionais, pelo nacionalismo excludente (nem todos os integrantes da nação são legítimos) e pela crítica às instituições impulsionadas a partir do Iluminismo ocidental. Por meio desses dois elementos, construiu-se um movimento baseado na busca da destruição dos inimigos, como a mídia tradicional, os liberais globalistas, a esquerda em seus vários matizes, a ciência e os intelectuais, além de grupos sociais politicamente minoritários (mulheres, negros, LGBTQIA+ etc.), para citar os principais alvos, realizando uma hiperpolitização de todos os espaços da vida humana.

A hiperpolitização significa que nenhum espaço da vida humana pode estar alheio às ideias políticas que norteiam o grupo que se pretende dominante, ou melhor, que pretende eliminar todos os que não concordam com ele. É uma noção similar ao conceito de ideologia usado por Hannah Arendt para descrever os totalitarismos do século XX. Os filmes de Goebbels muitas vezes falavam da vida cotidiana, da higiene que a raça ariana deveria cultivar para se tornar superior. Hoje, a hiperpolitização não define apenas o que se deve fazer na seara política, mas como se comportar na esfera privada.

A política é a atividade mais nobre entre os seres humanos, como já pensavam os clássicos como Aristóteles e Maquiavel, porém, quando tudo vira política, há grandes chances de se criar uma sociedade incapaz de conversar na padaria, de tomar o mesmo ônibus, de se sentar numa mesma sala de aula, de entender que o direito de um termina quando afeta a liberdade do outro - evitar que uma pessoa doente atravesse uma estrada é matar o sentido de uma nação. Será que a Copa do Mundo nos trará a ideia de brasileiros, iguais na sua diferença, de volta?

É muito assustador quando uma sociedade começa a funcionar segundo uma divisão baseada no ódio ao outro, a quem pensa diferentemente ou tem uma origem social distinta. O clima social geral e em todas as organizações fica extremamente pesado. Haverá mais conflitos desnecessários, em algumas situações se chegará à violência, com a possibilidade da morte de um irmão ou irmã não de sangue, mas de identidade nacional. As escolas se tornarão menos suscetíveis ao aprendizado como resultado do diálogo e do compartilhamento de experiências diferentes. As empresas também sofrerão com esse processo de disseminação do ódio, provavelmente reduzindo sua produtividade, porque o sucesso organizacional depende bastante da combinação de talentos e visões de mundo diferentes.

Para exemplificar a que ponto se chegou o ódio alimentado pelo bolsonarismo, basta lembrar que o Brasil precisa do Nordeste para a construção de seu imaginário cultural e de seu sucesso econômico - experimente segregar os estados, e barreiras econômicas nascerão a seguir, perdendo-se mercado consumidor e capital humano. Os meninos da escola privada que trataram seus colegas de forma preconceituosa terão enormes dificuldades de conseguir empregos no futuro, pois as empresas estão demandando diversidade, e quem for contra isso terá menos espaço na economia do século XXI. Voltando à Copa do Mundo, tema que vai ser dominante nas próximas semanas, seria impossível ganhar qualquer um dos cinco títulos que temos se o atual modelo de ódio definisse as convocações.

Aqui vale diferenciar o conceito de pátria do sentido da palavra nação. Ficou na moda em certos círculos sociais se definir como patriota. Gostar da bandeira e do hino nacional unifica as pessoas de um país. Só que a palavra pátria tem a ver mais com o lado oficial do Estado nacional, e relaciona-se menos com o que profundamente liga as pessoas em uma determinada sociedade. A pátria pode ser evocada por ditadores, por gente que mata seus semelhantes em nome de objetivos políticos - muitos dos autoproclamados patriotas que estão nas ruas querem destruir seus inimigos, mesmo que sejam seus vizinhos que um dia os levaram ao hospital ou cuidaram de seus filhos quando estavam fora de casa.

A nacionalidade, ao contrário, vai além da estrutura institucional do poder. Ela está lá também, entretanto, sua principal característica é ser um sentimento profundo e de longo prazo de pertencimento a uma coletividade. A nação unifica sem que se produza a homogeneidade social. Em vez disso, deve garantir a unidade na diversidade, alimentando consensos e gerindo dissensos. O pertencimento a uma nação é a possibilidade de discordar e conviver, como quem torce para times diferentes, discute quem é a melhor equipe, xinga o juiz do jogo, mas ao final aceita as regras e acredita que o futebol só tem graça porque há adversários. O que seria do Corinthians sem o Palmeiras, e vice-versa?

O ódio político está minando os vínculos básicos da nação brasileira. Em termos coletivos e intertemporais, ninguém ganha com isso, a não ser grupos organizados para conquistar o poder por meio da violência política e social. O problema é que esse tipo de extremismo convenceu uma parcela relevante da sociedade brasileira que, inebriada pela hiperpolitização que parece dar respostas a todas as angústias da vida social, mobiliza-se cegamente para a destruição das bases mais amplas da coletividade, colocando em risco o seu presente e, sobretudo, o futuro de seus filhos e netos.

No curto prazo, é preciso construir espaços públicos de diálogo entre os diferentes, mostrando como é possível conviver com a divergência, negociar posições e até mudar de opinião. Claro que aqueles que cometeram crimes contra a democracia, segundo define a lei, podem ser punidos. Todavia, a maioria que está descontente com o resultado eleitoral e acredita nas teorias conspiratórias que são alimentadas pela hiperpolitização pode ser trazida de volta ao debate democrático com suas diferenças em relação ao presidente eleito.

Para isso, é preciso que as principais instituições sociais, como a mídia e a universidade, e o novo governo se guiem pela maior abertura possível para conversar e incorporar demandas de diferentes setores sociais. No caso da terceira gestão presidencial de Lula, ele terá que se vigiar constantemente para evitar o hegemonismo que por muitas vezes acomete o PT. A frente ampla é a única forma de salvar a nação da doença do ódio que cresce no país, e ela será feita de grandes decisões e de pequenos atos, como o relativo à discussão da presidência do BID, quando o petismo se esqueceu das lições recentes e atuou como no passado hegemonista.

A solução estrutural para evitar o crescimento do ódio político e social está na educação. É preciso fazer da diversidade a peça central do ensino, da creche à universidade. Há quase 30 anos formo alunos com ideias diferentes, e sempre estimulei o convívio e o aprendizado entre os divergentes. Já falhei na minha jornada pedagógica, como num episódio recente em que fui desrespeitoso com quem pensava diferentemente de mim. Talvez todos estejamos envoltos em muito ódio, quando precisamos de paciência e de empatia. Por essa razão, dedico este artigo a Danielle Klintowitz, falecida precocemente há algumas semanas. Ela foi minha orientanda e seu doutorado mostrava que uma política pública bem-sucedida depende de negociação e acordos entre os diferentes. E o que vale para ações governamentais, vale para a convivência de todas as pessoas da nossa nação.

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.

Texto publicado originalmente no Democracia Política e Novo Reformismo.


Presidente do Cidadania, Roberto Freire repudia atos ilegais advindos do resultado das urnas | Foto: Cidadania23

Nota oficial: Cidadania repudia atos antidemocráticos contra resultado das urnas

Cidadania23*

O Cidadania 23, assim como a sociedade brasileira, suas instituições republicanas e democráticas, e chefes de Estado de todo o mundo reconhece a vitória eleitoral de Luiz Inácio Lula da Silva. O Brasil assiste apreensivo ao silêncio suspeito do presidente Jair Bolsonaro em relação ao resultado das eleições, sem que até agora reconheça a vitória do presidente legitimamente eleito.

De igual modo, acompanha com preocupação a movimentação política de seus partidários, que pregam um golpe militar contra o nosso Estado Democrático e programam manifestações golpistas às portas dos quartéis das Forças Armadas, com propósito de promover a insubordinação e a anarquia entre os militares.

O movimento dos caminhoneiros, que bloqueiam as estradas em todo o país, é a linha de frente de uma estratégia golpista que já nasceu derrotada pelo resultado das urnas, mas que exige uma pronta resposta das autoridades constituídas, sobretudo dos governadores, muitos dos quais reeleitos, em respeito à ordem pública e ao direito de ir e vir dos cidadãos.

Conclamamos todas as forças, instituições democráticas e a cidadania a cerrarem fileiras em defesa do resultado das eleições, de uma transição tranquila de governo e da posse do novo presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva.

A maioria da sociedade brasileira deseja voltar à normalidade e à boa convivência entre todos os cidadãos.

Roberto Freire

Presidente Nacional do Cidadania

Texto publicado originalmente no portal do Cidadania23.


Ocidente tem dever moral de apoiar protestos no Irã

Made for Minds*

Não é possível contar sobre as décadas de lutas da sociedade civil iraniana sem destacar a excepcional contribuição que as mulheres deram – e seguem dando. Há mais de 40 anos, elas são o maior grupo reprimido, discriminado e humilhado do Irã. Ao mesmo tempo, foram as primeiras a se defender corajosamente contra a liderança da Revolução Islâmica, enquanto intelectuais e políticos do sexo masculino se calavam.

Quase quatro décadas transcorreram dessa maneira, até que, em 2017-2018, manifestações públicas isoladas pela primeira vez colocaram em questão a legitimidade do regime islâmico. O que se presencia agora, contudo, é inédito, nessa forma: é a confrontação unida da população civil contra os mulás no poder. A morte de Jina Mahsa Amini bate de volta no sistema como um bumerangue, o protesto une todos os grupos até então empurrados para as margens e retorna à origem do descontentamento: a libertação das mulheres no Irã.

E agora é hora de o Ocidente falar em linguagem clara. Invólucros verbais vazios, exigências diplomáticas ou advertências frouxas não bastam, nem de longe. Nunca bastaram, mas agora estamos numa encruzilhada: a comunidade internacional precisa se colocar do lado da população iraniana com toda força, ameaçando com consequências rigorosas. Se necessário, com a suspensão das negociações sobre o programa nuclear de Teerã.

Ocidente trata Irã com luvas de pelica

Os governantes iranianos nunca empregaram uma linguagem civilizada de conciliação e moderação, e não levam a sério quem a emprega. Eles não têm medo de sanções simbólicas, aguentaram até mesmo um embargo de petróleo. Continuando-se a confrontá-los apenas com simbolismo, eles não hesitarão nem um momento em seguir matando para se manter no poder.

Eles sabem que, depois de um certo tempo, a real política de muitos países voltará a entrar em contato para negociar. Eles interpretam como um presente os longos anos de contemporização do Ocidente contra a expansão no Oriente Médio. O Irã não recua diante de operações de terror estatal em todo o mundo, em especial em países europeus. Os detentores de poder do Irã veem como seu "privilégio especial" poder ameaçar a existência de Israel e a falta de reação resultante.

O fato é que, em comparação com a Líbia de Muammar Kaddafi, o Iraque de Saddam Hussein e a Síria de Bashar al Assad, o Ocidente tem tratado com luvas de pelica o Irã de Ali Khamenei. Isso deixou a República Islâmica tão atrevida, que ela se permite continuar despreocupada com o massacre de seus próprios cidadãos.

O único ponto vulnerável do regime iraniano

No entanto, a República Islâmica teme que seu dossiê retorne a consideração perante o Conselho de Segurança da ONU. Recentemente, a Agência Internacional de Energia Atômica (AIEA) constatou que o Teerã não está disposto a prestar contas sobre seu programa nuclear e os vestígios de urânio enriquecido em três locais do país. Paralelamente, já há meses o regime brinca de gato-e-rato em suas negociações com o Ocidente, a fim de ganhar tempo para construir a bomba atômica.

O Ocidente teria razões mais do que suficientes para detonar as negociações com o Irã e iniciar o processo para retomada das sanções das Nações Unidas, o assim chamado "snapback". Essa seria a única mensagem que Teerã é capaz de entender e temer. Só assim não seria sufocda no berço a revolta civil do povo iraniano, com as mulheres no front avançado. Só sob esse tipo de pressão, o supremo líder religioso Ali Khamenei ordenaria o fim do assassinato dos manifestantes.

O mesmo se aplica ao atual presidente, Ebrahim Raisi: ele certamente não ousaria mandar mais uma vez executar milhares de presos em pouquíssimo tempo, como fez em meados de 1988.

O regime dos mulás em Teerã deve se sentir encurralado pelo mundo. Senão, o que ficará na memória das iranianas e iranianos será só o silêncio internacional e a cumplicidade tácita do Ocidente. Isso seria irresponsável. Não: seria imperdoável.

Behnam Bavandpour é jornalista da DW. O texto reflete a opinião pessoal do autor, não necessariamente da DW.

Texto publicado originalmente no Made for Minds.


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Como começou o patriarcado – e como a evolução pode mudá-lo

Ruth Mace*, BBC News Brasil

No Afeganistão, o Talebã volta a vigiar as ruas, mais preocupado em manter as mulheres em casa, seguindo os rígidos códigos de vestimenta, que com o iminente colapso do país frente à fome. Enquanto isso, em outro continente, parte dos Estados Unidos vem legislando para garantir que as mulheres não tenham mais acesso ao aborto legal.

Nos dois casos, crenças patriarcais ocultas ressurgiram com o fracasso da liderança política. Temos a estranha sensação de estarmos voltando no tempo. Mas quando o patriarcado começou a dominar nossas sociedades?

A condição das mulheres é uma questão de interesse da antropologia há muito tempo.

Ao contrário da crença popular, pesquisas indicam que o patriarcado não é uma espécie de "ordem natural das coisas". Ele nem sempre foi preponderante e pode, de fato, desaparecer algum dia.

As comunidades de coletores e caçadores podem ter sido relativamente igualitárias, pelo menos em comparação com alguns dos regimes que se seguiram. E sempre existiram mulheres líderes e sociedades matriarcais.

A riqueza dos homens

A reprodução é a moeda da evolução. Mas não só os nossos corpos e cérebros evoluem. Nossos comportamentos e culturas também são produtos da seleção natural.

Para maximizar o seu próprio sucesso reprodutivo, por exemplo, os homens muitas vezes tentaram controlar as mulheres e sua sexualidade.

Nas sociedades nômades onde há pouca ou nenhuma riqueza material, como costuma ser o caso entre os coletores e caçadores, a mulher não pode ser facilmente forçada a permanecer em um relacionamento. Ela e seu parceiro podem viver juntos com os parentes dela, com os parentes dele ou com outras pessoas. E, se estiver infeliz, ela pode simplesmente ir embora.

Isso pode ser difícil se ela tiver filhos, pois os cuidados dos pais ajudam no desenvolvimento e até na sobrevivência das crianças, mas ela pode ir viver com parentes em outro lugar ou encontrar um novo parceiro - sem necessariamente ficar em uma situação pior.

Mas o advento da agricultura, que ocorreu até 12 mil anos atrás em algumas regiões, virou o jogo.

Mesmo as hortas relativamente simples exigiam que a produção fosse defendida e, portanto, que as pessoas permanecessem no mesmo local. E os assentamentos aumentaram os conflitos entre os grupos e até dentro de um mesmo grupo.

Os cultivadores de hortas yanomami da Venezuela, por exemplo, viviam em residências coletivas altamente fortificadas, com ataques violentos contra grupos vizinhos e a frequente "captura de noivas".

Nos locais onde evoluiu a criação de gado, a população local precisava defender seus animais contra roubos, gerando combates e militarização. Como as mulheres não tinham tanto sucesso nos combates quanto os homens, por serem fisicamente mais fracas, seu papel caiu em relação a eles. Esse declínio ajudou os homens a ganhar poder, deixando-os encarregados dos recursos que estavam defendendo.

À medida que a população crescia e se assentava, surgiam problemas de coordenação. Desigualdade social florescia às vezes quando líderes (normalmente, homens) se estabeleciam após proverem benefícios à população, talvez na forma de bom desempenho em batalhas ou atendendo ao bem público de outra forma.

A população em geral, homens e mulheres, muitas vezes tolerava elites em troca de auxílio para proteger as suas posses.

À medida que a agricultura e a pecuária ficaram mais intensivas, a riqueza material, agora controlada principalmente pelos homens, tornou-se ainda mais importante. As regras de parentesco e descendência foram mais formalizadas para evitar conflitos sobre riqueza dentro das famílias e os casamentos ficaram mais contratuais. A transmissão da terra ou dos animais ao longo das gerações permitiu que algumas famílias acumulassem riquezas substanciais.

Monogamia x poligamia

A riqueza gerada pela agropecuária permitiu a prática da poliginia (um homem com diversas esposas). Já a poliandria (uma mulher com vários maridos) era rara.

Na maioria dos sistemas, as mulheres jovens eram o recurso mais procurado, pois sua janela para ter filhos era mais curta e elas normalmente cuidavam mais da prole.

Os homens usavam sua riqueza para atrair mulheres jovens para os recursos que eles tinham a oferecer. Os homens concorriam pagando o "preço da noiva" para a família dela. Com isso, os homens ricos podiam ter várias esposas, enquanto alguns pobres acabavam solteiros.

Os homens então precisavam da riqueza para competir pelas noivas, enquanto as mulheres adquiriam os recursos necessários para a reprodução por meio do seu marido. Desta forma, se os pais quisessem maximizar o número de netos, fazia sentido para eles dar sua riqueza para seus filhos e não para as filhas.

Isso fez com que a riqueza e as propriedades fossem transmitidas formalmente para a linhagem masculina. E também fez com que as mulheres, muitas vezes, acabassem vivendo longe de casa, com a família do marido, após o casamento.

As mulheres começaram a perder o controle das suas ações. Se as terras, os animais e os filhos fossem propriedade dos homens, o divórcio era quase impossível para as mulheres.

Uma filha que retornasse para a casa dos pais não seria bem-vinda e o preço da noiva precisaria ser devolvido. O patriarcado estava se estabelecendo com firmeza.

Quando as mulheres saem da casa dos pais para viver com a família do seu novo marido, elas não têm, na sua nova residência, o mesmo poder de barganha que teriam se ficassem na sua casa de origem. Modelos matemáticos indicam que a dispersão das mulheres, aliada ao histórico de guerras, fez com que os homens fossem mais bem tratados que as mulheres.

Os homens tinham a oportunidade de competir por recursos com outros homens por meio das guerras, enquanto as mulheres só competiam com outras mulheres dentro de casa. Por esses dois motivos, tanto homens como mulheres colhiam maiores benefícios evolutivos sendo mais altruístas com relação a homens do que com mulheres, gerando o surgimento dos "clubes de meninos".

Essencialmente, as mulheres entraram no jogo do viés de gênero contra elas próprias.

Em alguns sistemas agrícolas, as mulheres podem ter tido mais autonomia. Em locais onde a disponibilidade de terra para o plantio era limitada, pode ter havido limites para a poliginia, pois os homens não conseguiam sustentar diversas famílias.

Quando a agricultura era difícil e a produtividade era determinada mais pela dedicação ao trabalho que pela quantidade de terra, a mão de obra feminina era uma necessidade básica e os casais trabalhavam juntos em uniões monogâmicas.

Com a monogamia, se uma mulher se casasse com um homem rico, toda a riqueza iria para os seus filhos. Por isso, as mulheres competiam entre si pelos melhores maridos.

Mas, com a poliginia, é diferente. A riqueza da família é dividida entre os filhos de diversas outras esposas, de forma que as vantagens para as mulheres de se casar com um homem rico são menores.

Por isso, o pagamento pelo casamento monogâmico caminha na direção oposta da poliginia, assumindo a forma de "dote". Os pais da noiva dão dinheiro aos pais do noivo ou ao próprio casal.

O dote, que ainda é importante hoje em dia em grande parte da Ásia, é a forma que os pais têm de ajudar suas filhas a competir com outras mulheres no mercado de casamentos. O dote, às vezes, pode oferecer às mulheres maior controle ao menos sobre parte da riqueza da sua família.

Mas existe um fator complicador. A necessidade do dote pode fazer com que as meninas representem um custo mais alto para os pais, às vezes com terríveis consequências - como no caso de famílias que já têm filhas e que matam ou rejeitam novas bebês (ou, atualmente, o aborto seletivo das meninas).

A monogamia também trouxe outras consequências. Como a riqueza ainda era transmitida pela linhagem masculina para os filhos de uma única esposa, os homens faziam todo o possível para garantir que aqueles filhos fossem deles.

Eles não queriam investir inadvertidamente sua riqueza nos filhos de outro homem. Por isso, a sexualidade das mulheres passou a ser fortemente vigiada.

Manter as mulheres afastadas dos homens ("purdah", entre os muçulmanos), colocá-las em "claustros" como monastérios (clausura) na Índia, ou a prática de enfaixar os pés das mulheres para que eles ficassem pequenos, adotada por 2 mil anos na China, podem ser algumas consequências.

E, no contexto atual, a proibição do aborto torna as relações sexuais potencialmente caras, retendo as pessoas em casamentos e prejudicando as perspectivas de carreira das mulheres.

Sociedades matriarcais

É relativamente raro que a riqueza seja passada para a linhagem feminina, mas existem sociedades que adotam essa prática. Os sistemas matriarcais tendem a ser adotados em ambientes marginais, onde existe pouca riqueza a ser disputada.

Existem regiões na África, por exemplo, conhecidas como o "cinturão da linhagem matriarcal", onde a mosca tsé-tsé tornou a criação de gado impossível.

Em alguns desses sistemas de linhagem matriarcal africanos, os homens continuam sendo uma força poderosa nas residências, mas são os irmãos mais velhos e tios que tentam controlar as mulheres, em vez dos pais e dos maridos. Mesmo assim, em geral, o poder das mulheres realmente é maior.

Já sociedades onde os homens se ausentam por grande parte do tempo, devido a longas distâncias de viagem ou alto risco de mortalidade - causado pelos perigos da pesca oceânica na Polinésia ou pelas guerras em certas comunidades nativas americanas, por exemplo -, também adotaram a linhagem matriarcal.

As mulheres no sistema matriarcal muitas vezes dependem do apoio de suas mães e irmãs, não dos seus maridos, para ajudar a criar os filhos. Essa "criação comunitária" pelas mulheres, observada, por exemplo, em alguns grupos de linhagem matriarcal na China, faz com que os homens se interessassem menos (no sentido evolutivo) em investir na residência, que abrigam não apenas os filhos da sua esposa, mas também de muitas outras mulheres com quem eles não têm relação familiar.

Isso enfraquece os laços conjugais e facilita a transmissão da riqueza entre as mulheres da mesma família. As mulheres também são menos controladas sexualmente nessas sociedades, pois a paternidade certamente é uma preocupação menor quando as mulheres controlam a riqueza e a transmitem para suas filhas.

E, nas sociedades com linhagem matriarcal, homens e mulheres podem praticar a poligamia. O povo himba do sul da África é uma sociedade com linhagem matriarcal e tem algumas das mais altas taxas de bebês gerados desta forma.

Mesmo nos ambientes urbanos atuais, a alta taxa de desemprego dos homens gera estilos de vida mais centralizados nas mulheres, com as mães ajudando as filhas a criar seus filhos e netos, muitas vezes em relativa pobreza.

Mas a introdução de riqueza material, que pode ser controlada pelos homens, forçou em muitos casos a mudança dos sistemas de linhagem matriarcal, para que se tornassem patriarcais.

O papel da religião

A visão de patriarcado descrita acima pode fazer parecer que o papel da religião é minimizado.

As religiões frequentemente estabelecem instruções sobre o sexo e a família. A poliginia, por exemplo, é aceita no islã, mas não no cristianismo. Mas as origens dos diversos sistemas culturais pelo mundo não podem ser simplesmente explicadas pela religião.

O islamismo surgiu no ano 610 em uma parte do mundo (a península arábica) então habitada por grupos de pastores nômades, onde a poligamia era comum. Já o cristianismo surgiu no império romano, onde o casamento monogâmico já era a norma.

Por isso, as instituições religiosas certamente ajudam a impor as regras, mas é difícil defender que elas tenham sido a causa original.

Por fim, a herança cultural das normas religiosas, ou de quaisquer outras regras, pode preservar preconceitos sociais hostis muito depois que a causa original já desapareceu.

O patriarcado está acabando?

O que está claro é que as normas, as atitudes e a cultura trazem enormes consequências para o comportamento das pessoas. Essas normas podem mudar e, de fato, mudam ao longo do tempo, principalmente em caso de alterações da ecologia ou da economia vigentes. Mas algumas normas ficam arraigadas ao longo do tempo e, por isso, sua mudança é lenta.

CRÉDITO,GETTY IMAGESLegenda da foto,

O controle da natalidade e os direitos reprodutivos das mulheres oferecem mais liberdade, tanto para as mulheres quanto para os homens

Ainda nos anos 1970, filhos de mães solteiras no Reino Unido foram retirados das suas mães e embarcados para a Austrália, onde foram colocados em instituições religiosas e oferecidos para adoção. E pesquisas recentes também demonstram como o desrespeito pela autoridade das mulheres ainda é generalizado nas sociedades europeias e americanas, que se orgulham da sua igualdade de gênero.

Isto posto, fica claro que as normas de gênero estão ficando muito mais flexíveis e o patriarcado é impopular junto a muitos homens e mulheres em grande parte do mundo. Muitos estão questionando a própria instituição do casamento.

O controle da natalidade e os direitos reprodutivos das mulheres oferecem mais liberdade, tanto para as mulheres quanto para os homens. Embora o casamento poligâmico agora seja raro, o acasalamento poligâmico é bastante comum e é visto como uma ameaça, tanto por incels - celibatários que odeiam mulheres - quanto por conservadores.

Além disso, os homens querem participar cada vez mais da vida dos seus filhos e apreciam não precisar ser os principais responsáveis pelo sustento das famílias. Por isso, muitos homens estão dividindo ou até assumindo todo o peso do trabalho de casa e da criação dos filhos.

Ao mesmo tempo, estamos vendo as mulheres mais confiantes, ganhando cargos de poder no mundo do trabalho.

Enquanto homens e mulheres geram cada vez mais sua própria riqueza, o velho patriarcado está achando mais difícil controlar as mulheres. A lógica do investimento dos pais orientado aos filhos homens fica muito prejudicada se as meninas tiverem o mesmo benefício da educação formal e as oportunidades de emprego forem abertas para todos.

É difícil prever o futuro. A história e a antropologia não progridem de forma linear e previsível. Guerras, fomes, epidemias ou inovações estão sempre surgindo, com consequências previsíveis e imprevisíveis para as nossas vidas.

O patriarcado não é inevitável. Precisamos de instituições que nos ajudem a resolver os problemas do mundo. Mas, se as pessoas erradas chegarem ao poder, o patriarcado pode se fortalecer.

* Ruth Mace é professora de antropologia do University College de Londres.

Texto publicado originalmente no portal da BBC News Brasil.


Mercado informal artigo | Imagem: reprodução/conexis

Revista online | Mercado informal e a recuperação fiscal

Eduardo Rocha*, especial para a revista Política Democrática online (48ª edição: outubro/2022)

A pandemia da covid-19 provocou tragédias humanas que afetaram os municípios, os estados e a União de forma sem precedentes com a rápida transformação da emergência sanitária numa crise econômica e social de grandes proporções. Isso provocou recessão econômica; queda do investimento, produção e consumo; fechamento de empresas; aumento do desemprego e precarização nas relações de trabalho; ampliação da economia informal; agravamento do endividamento, inadimplência e calotes de pessoas físicas e jurídicas; ampliação da vulnerabilidade financeiro-social das famílias; aumento dos gastos públicos, queda da arrecadação tributária e piora do desequilíbrio estrutural e conjuntural das contas públicas.

O avanço da vacinação durante 2022 contribuiu para amenizar e retomar positivamente alguns indicadores econômicos, mas o desafio fiscal ainda persiste e a sua superação exige, além da necessária reforma tributária, o enfrentamento da informalidade no Brasil.

Veja todos os artigos da edição 48 da revista Política Democrática online

Mais claramente coloca-se a questão de como trazer para o mundo fiscal formal o gigantesco mercado informal, que, segundo a Fundação Getúlio Vargas (FGV), em 2019 as transações de bens e serviços operadas dentro da economia informal movimentaram R$ 1,2 trilhão. O montante é equivalente a 17,3% do PIB brasileiro. Valor este superior ao PIB das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste.

Fica claro, assim, que essas transações informais de bens e serviços representam uma gigantesca perda de arrecadação fiscal para os três entes federativos, cujos atuais mecanismos arrecadatórios não as abraçam fiscalmente, além de provocar enormes prejuízos sociais e financeiros aos trabalhadores.

Em relação ao mercado de trabalho, o Brasil registrou uma taxa de informalidade de 39,7% no trimestre até agosto de 2022. Ou seja, o país atingiu o recorde de 39,307 milhões de trabalhadores atuando na informalidade no período, segundo os dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua), apurada pelo Instituto Brasileiro de Economia e Estatística (IBGE).

Confira, abaixo, galeria de imagens:

Mercado informal | Foto: J.M. Image Factory/Shutterstock
Indicador econômico | Foto: megaflopp/Shutterstock
Projeção econômica para 2023 | Foto: RenataP/Shutterstock
Produto interno bruto Brasil | Imagem: rafastockbr/Shutterstock
Macroeconomia | Imagem: TarikVision/Shutterstock
Salário no Brasil | Imagem: rafastockbr/Shutterstock
Mercado informal artigo | Imagem: reprodução/conexis
Pobreza no Brasil | Imagem: rafastockbr/Shutterstock
Inflação de mercado no Brasil | Foto: FJZEA/Shutterstock
Indicador econômico fundo desfocado | Foto: StunningArt/Shutterstock
Mercado informal
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Projeção econômica para 2023
Produto interno bruto BRasil
Macroeconomia
Salário no Brasil
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Pobreza no Brasil
Inflação de mercado no Brasil
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Produto interno bruto BRasil
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Pobreza no Brasil
Inflação de mercado no Brasil
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O IBGE considera como trabalhador informal aquele empregado no setor privado sem carteira assinada, o doméstico sem carteira assinada e o que atua por conta própria ou como empregador sem CNPJ, trabalhadores por conta própria sem CNPJ, além daquele que ajuda parentes em determinada atividade profissional. Este trabalhador informal atua à margem do mundo formal sem beneficiar-se das garantias constitucionais, como, por exemplo, 13º salário, Fundo de Garantia por Tempo de Serviço (FGTS) ou benefícios do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), como auxílio-doença, salário maternidade, Seguro-Desemprego etc.

A retomada sustentável no plano nacional exige medidas inéditas diante dessa crise inédita e a União, estados e municípios podem e devem tomar iniciativas que desenhem um ambicioso e abrangente plano de reativação de sua economia que pressupõe. Dentre outras variáveis macroeconômicas, a recuperação da saúde fiscal dos entes federativos (municípios, estados e União) e a elevação da renda pessoal disponível. E, para tanto, é preciso encontrar as vias para trazer ao mundo fiscal formal as transações de bens e serviços que se dão no mercado informal.

Todos sabem da fragilidade fiscal dos entes federativos (União, estados e municípios) seja para realizar investimento público para estimular o crescimento seja para ampliar a concessão de subsídios/benefícios fiscais ao setor privado – essa receita é impraticável nos curtos e médios prazos.

Portanto, é preciso criar uma nova relação quantidade/qualidade dos gastos públicos. Isto é: fazer mais e melhor com menos recursos, aumentando, assim, a eficiência e eficácia da gestão pública que promovam iniciativas inéditas que, combinadas às ações de saúde e defesa da vida, possibilitem criar de imediato as bases da retomada do crescimento e do desenvolvimento e articular os agentes econômicos nacionais e internacionais para criar um mecanismo de financiamento ao desenvolvimento, instrumento que será proposto e descrito à frente.

A saúde das finanças públicas é um grande desafio para a retomada do investimento público e privado, crescimento, emprego, renda, melhoria dos serviços e desenvolvimento no Brasil. É claro, também, que a obtenção da saúde fiscal demanda a realização de uma justa reforma tributária nacional, que recomponha a capacidade financeira dos três níveis do Estado brasileiro através de ações que potencializem a arrecadação, fortaleça e aprimore a gestão administrativa do aparato fiscal no combate à sonegação de tributos – estimada pelo Banco Mundial em 13,4% do PIB.

Para tanto, é preciso criar alternativas financeiro-fiscais inéditas que permitam, de um lado, a elevação das receitas públicas sem tirar mais um centavo de imposto do já espoliado, cansado e insatisfeito contribuinte, e, de outro, recompensar e valorizar cidadãos e empresas, ou seja, CPF e CNPJ, que terão alívio e retorno financeiro. Nos próximos artigos, apresentaremos as linhas gerais de uma proposta para trazer ao mundo fiscal formal boa parte das transações de bens e serviços que se dão na economia informal.

Sobre o autor

*Eduardo Rocha é economista pela Universidade Mackenzie, com pós-graduação em Economia do Trabalho pela Unicamp.

** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de outubro de 2022 (48ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.

*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.

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(crédito: Reprodução/Twitter)

Ataques aos nordestinos se multiplicam nas redes sociais após 1º turno

Correio Braziliense*

A central da ONG de proteção aos Direitos Humanos Safernet Brasil recebeu cerca de 14 denúncias de xenofobia por hora na última segunda-feira. Ao todo, foram 348 registros no dia após o primeiro turno das eleições. O número quase supera o total de reclamações registrado nos primeiros seis meses do ano passado (358). No domingo, dia do pleito, foram registradas 10 denúncias.

Uma onda de ataques a nordestinos nas redes sociais se estabeleceu conforme a apuração dos votos mostrou o favoritismo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) nos nove estados que compõem a região. As mensagens partiam principalmente de perfis anônimos, mas que se identificam como apoiadores de Jair Bolsonaro (PL), e reduziam o Nordeste a uma imagem de pobreza e subdesenvolvimento.

Ontem, viralizou um vídeo no qual a advogada Flávia Moraes, então vice-presidente da Comissão da Mulher da OAB de Uberlândia (MG) — depois da repercussão, ela deixou o cargo —, ataca os nordestinos e diz que vivem de migalhas.

"Nós que geramos empregos, nós que pagamos impostos, vocês sabem o que a gente faz? Nós gastamos o nosso dinheiro lá no Nordeste. Não vamos fazer isso mais. Vamos gastar dinheiro com quem realmente merece. A gente não vai mais alimentar quem vive de migalhas. Vamos gastar nosso dinheiro no Sudeste, no Sul ou fora do país", disse, ao lado de duas amigas. O presidente da OAB/MG, Sérgio Leonardo, disse que vai haver processo disciplinar, cujas penas vão da advertência até a expulsão.

Comparando o primeiro semestre deste ano com o de 2021, a organização já havia observado aumento de 520,6% nas denúncias de xenofobia: pulou de 358 para 2.222 este ano.

Texto publicado originalmente no Correio Braziliense.