socialismo
A anti-globalização: do subcomandante Marcos a Trump
O protecionismo triunfa nos países mais desenvolvidos do mundo ocidental, nos quais nasceu a ideologia neoliberal
Em 01 de janeiro de 1994 se levantava no México o Exército Zapatista de Libertação Nacional, chefiado pelo subcomandante Marcos. Trata-se do dia em que entrou em vigor o Acordo Norte-Americano de Livre Comércio, o Nafta. Alguns consideram que este evento foi a primeira resposta à globalização, ou seja, o marco fundacional dos movimentos altermundialistas.
Em seguida, vieram mais protestos: entre o final dos anos 1990 e início dos 2000, cada cúpula dos organismos propulsores da globalização, bem como os seus signos de identidade, como o livre comércio, a desregulamentação e a liberalização e, em última análise, a eliminação das fronteiras para o capital (Organização Mundial do Comércio, o Fundo Monetário Internacional, Banco Mundial), se tornariam palco de protestos dos altermundialistas, como se denominavam seus protagonistas, uma vez que não propunham acabar com a globalização, mas sim construir um outro modelo para ela ("outro mundo é possível" era seu lema). No inventário de eventos, encontramos em Madrid, onde se celebrou o cinquentenário do FMI, a importantíssima contra-cúpula de Seattle, contrária à OMC, Génova, Gotemburgo, Barcelona, Praga. Ao mesmo tempo, os fóruns sociais surgiram como caminhos, sendo o mais importante o de Porto Alegre (Brasil), onde diferentes movimentos de todo o mundo se reuniram para discutir os problemas globais e, sobretudo, para se sentirem em comunidade.
Nestes encontros contrários a globalização neoliberal, que também eram reuniões internacionais de contestação a um sistema que se expandiu e se radicalizou desde os anos oitenta com Thatcher e Reagan e, especialmente, depois da queda da União Soviética, seu único e grande rival histórico, surgiram pessoas de muito brilho, de grande personalidade, e até mesmo com aura. Talvez pudessem ser comparados aos filósofos e ativistas de maio de 68. Entre os protagonistas da anti-globalização havíamos mencionado Marcos. Outro nome que merece ser apontado é o de José Bové, sindicalista agrário, ativista anti-globalização, defensor da soberania alimentar, e co-fundador da ATTAC, em 1998. Bové também foi candidato à presidência da República Francesa, porém com péssimos resultados.
A ATTAC, grande instituição antiglobalização ainda atuante, nascia como um grupo de pressão, que defendia a introdução de um imposto sobre as transações financeiras internacionais, a chamada taxa Tobin, com o duplo objetivo de, por um lado, reduzir a especulação nos mercados e, por outro, ajudar a compensar, ainda que minimamente, algumas sociedades que estiveram à margem dos predicados reais da globalização. A globalização era acusada de desestruturar economias nacionais e desprezar os princípios democráticos, impondo pressões sobre os Estados para liberalização e desregulamentação econômica, aumentado as desigualdades sociais. Estas eram mais ou menos as ideias expressas por Ignacio Ramonet em um editorial publicado no “Le Monde Diplomatique” em 1997, no momento da crise asiática. Ramonet, também co-fundador da ATTAC, foi um dos principais disseminadores da anti-globalização.
No rastro da queda do Muro de Berlim e, posteriormente, da URSS, quando o capitalismo se apresentava sem um modelo rival, de modo que se criavam condições para que se expandisse em todo o mundo em sua forma mais pura, a União Europeia dava o maior impulso de sua história para a sua integração: em 1992, firmou-se o de Tratado Maastricht e, em 2002, o euro começou a circular nas ruas de doze países europeus. A mini-globalização europeia também sofreu contestações, ainda que minoritariamente. Na Espanha, a “Esquerda Unida” se colocou contra Maastricht. Na França, houve uma mobilização relativamente importante contra o projeto de constituição europeia. Além disso, houve dois casos altamente divulgados: os da Dinamarca e do Reino Unido, que não renunciaram à sua soberania monetária. Hoje, esses dois países ainda seguem fora do euro e um deles iniciou o processo de auto exclusão da União Europeia.
O grande paradoxo
Muitos anos após os primeiros protestos contra a globalização passamos a falar de “desglobalização”. Não se trata apenas de reclamações e protestos da sociedade civil. Agora se trata de vitórias que estão apontando forças do próprio sistema (o Partido Republicano americano, por exemplo) apoiadas em determinadas ocasiões por outsiders (Donald Trump, um homem de negócios que apresenta sua faceta mais heterodoxa se tornando um político anti-elites). Além disso, a ideia de desglobalização triunfa em países centrais, nos maiores do mundo ocidental, nos mesmos locais de nascimento da ideologia liberal.
O paradoxo é enorme: 23 anos após o levante zapatista, é o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, que ameaça as empresas americanas com as tarifas para os produtos fabricados no México a serem vendidos nos EUA. Ademais, Trump alerta para uma futura renegociação do NAFTA e apela pela saída norte americana do Tratado Transpacífico (TPP). Somado a isso, em seu primeiro discurso como presidente, Trump fez um apelo para que as empresas dessem prioridade aos trabalhadores americanos. Prometeu recuperar os empregos perdidos e a riqueza para a classe média americana, perdidos, em sua análise, em consequência da globalização. No Reino Unido, os cidadãos decidem, em um referendo chamado pelo primeiro-ministro do Partido Conservador, se excluir da União Europeia. A Frente Nacional de Marine Le Pen aproveita as “vitórias” de Trump e do Reino Unido para declarar que a próxima ocorrerá na França, que também procura retrair-se para as limitadas fronteiras do Estado nacional. E talvez poderemos ver algo semelhante na Itália, onde a Liga do Norte, o Movimento Cinco Estrelas e Forza Italia planejam, mais ou menos abertamente, um referendo para deixar o clube europeu. Como dito no fim de semana passado, a extrema-direita europeia se reunia, encorajada pelos bons agouros que Trump lhes transmitiu dias antes: haverá mais rupturas na Europa similares ao “Brexit”.
O descontentamento gerado pela globalização está se manifestando nos países que eram considerados os grandes vencedores do livre mercado global. Explica-se, talvez, porque tenham negligenciado que mesmo dentro destes países beneficiados pelo desaparecimento das fronteiras do capital haveria grupos sociais excluídos, ou seja, às margens da globalização. Estes grupos não são apenas afetados na vida material (as deslocalizações os deixaram sem trabalho e as migrações fazem com que o valor de sua força de trabalho seja reduzido), mas também na vida "espiritual": as diluições das fronteiras parecem ameaçar a identidade dos grupos mais fracos. Daí a retração das identidades ante a novos fenômenos, como o afluxo de refugiados para países onde a imigração tem sido quase inexistente, como a Hungria e outros países da Europa Central e Oriental, outro foco geográfico principal da desglobalização.
A anti-globalização que venceu as eleições no Sul a que vence no Norte
A anti-globalização, por sua vez, teve sucessos institucionais nos países emergentes, particularmente na América Latina, como escreveu o vice-presidente boliviano Álvaro García Linera, no jornal argentino Página 12: "Os primeiros passos em falso da ideologia da globalização são sentidos no início do século XXI na América Latina, onde os trabalhadores, plebeus urbanos e rebeldes indígenas se aglutinam para tomar o poder do Estado. Combinando maiorias parlamentares com ação de massa, os governos progressistas e revolucionários implementaram uma variedade de opções pós-neoliberais mostrando que o livre mercado é uma perversão econômica passível de ser substituída por modelos de gestão econômica muito mais eficientes para reduzir a pobreza, criar igualdade e promover o crescimento econômico".
“Existe alguma relação entre o altermundialismo de vinte anos atrás com as estratégias nacionalistas de hoje?” Jaime Pastor, professor do Departamento de Ciência Política e Administração da Universidade Aberta, afirma que o movimento de duas décadas atrás foi uma resposta à globalização financeira e neoliberal, a concentração de poder nas mãos de grandes empresas multinacionais, ao ataque à propriedade comunal indígena; foi um movimento contra a "globalização feliz". Por outro lado, em sua opinião, Trump e Brexit representam uma reação à crise dessa "globalização feliz". Ambos, surgem, diz Jaime Pastor, para defender a prioridade nacional na sua qualidade de grandes potências. Há também neles, na opinião do professor, razões competitivas: querem sair com o mínimo de danos possíveis da desaceleração econômica. Os desglobalizadores atuais se apoiam, continua Pastor, no sentimento de piora nas condições de vida de uma parcela da população, a saber, as vítimas da desindustrialização do norte. Em suma, o que estamos testemunhando agora, como afirma Pastor, é uma combinação de egoísmo nacionalista de grande potência que se apoia no mal estar popular daqueles que perderam com as deslocalizações de empresas que percorriam o mundo em busca de redução de custos e maximização do lucro.
Na mesma linha, Jorge Fonseca, Professor de Economia Internacional da Universidade Complutense de Madrid e membro do Conselho Científico da ATTAC, afirma: "Por enquanto, o que existe é luta pela hegemonia na globalização em que os Estados Unidos perderam seu status de potência hegemônica absoluta e que agora buscam recuperá-la “renegociando a globalização”, que permanecerá neoliberal, a menos que uma crise profunda como a dos anos trinta tenha força para romper com este cenário”. Continua Fonseca: "Na verdade, os movimentos anti-sistêmicos são altermundialistas e a suposta atitude anti-globalização de Trump é, na verdade, uma chantagem para renegociar com mais vantagem os termos dos acordos de livre comércio num momento em que os Estados Unidos estão socialmente divididos. E não são comparáveis as políticas de soberanias "defensivas" dos países latino-americanos com as ofensivas nacionalistas de países como os EUA ou o Reino Unido. Enquanto uma procura limitar espoliação internacional, a outra procura irá aumentá-la".
O economista Ramón Casilda observa que, na verdade, Donald Trump não fez campanha contra a globalização, de modo que o presidente dos EUA está apenas lançando propostas para resolver os sintomas gerados por seus efeitos negativos sobre a economia dos EUA, recorrendo a um modelo antigo, o da industrialização por meio de substituição de importações.
Miguel Angel Diaz Mier, professor da Universidade de Alcalá, sintetiza uma possível resposta ao que está acontecendo: "Uma questão importante é definir o que se entende por globalização, cuja principal característica é se tratar de um processo dinâmico. Consequentemente, parece claro que a globalização do século XXI tem algumas das características em comum, ainda que não todas, com a globalização do século XX. Nesse sentido, é possível falar de desglobalização, embora pareça claro que a ideia de globalização será definida novamente". Assim, as características da nova globalização podem responder, de acordo com Diaz Mier, a novas situações como a luta contra as alterações climáticas, as respostas à migração, com o seu impacto sobre a divisão internacional do trabalho. O capitalismo entrou, portanto, em uma dinâmica que deve ser acompanhada de perto.
Porém, frente aos recentes acontecimentos, a questão é saber se houve mais vítimas no norte do que no sul, dado que no norte a antiglobalização agora triunfa, enquanto que no sul, gradualmente, governos que a ascenderam na América Latina agora se dissolvem.
"Vítimas existiram no norte e no sul", disse Pastor. Mas talvez se manifestaram em diferentes momentos históricos. No sul, a antiglobalização explodiu com a força institucional na década de noventa, após as imposições de políticas de ajuste e de super-exploração de recursos e trabalho praticadas ao longo dos anos oitenta. A queda de alguns líderes de esquerda nos últimos anos na América Latina se deve, de acordo com Gonzalo Berrón, pesquisador associado da TNI (Transnational Institute), falando do Brasil, ao fato de que a crise econômica impediu que se cumprissem as promessas de bem-estar. Tais promessas não foram cumpridas sobretudo para as classes médias. "Estamos em uma inversão de ciclo. A primeira onda anti-globalização levou ao poder governos progressistas, que não corresponderam às expectativas, de modo que agora estamos tornando a opções liberais", descreve Berrón.
Em comparação com o sul, continua Pastor, os trabalhadores do norte foram privilegiados, embora estes últimos parecem ter acabado por deflagrar um movimento que Pastor chama de “o chauvinismo do declínio do bem estar". Mas de qualquer modo, como afirmou Fonseca, "esta globalização, neoliberal e de predomínio das finanças e domínio monopolista das grandes multinacionais, é prejudicial para o desenvolvimento não só dos países do Sul, mas também para os desenvolvidos, onde crescem a desigualdade e a pobreza. A exceção é a China, que está passando por um processo de industrialização contínuo de mais de trinta anos e mais limitadamente seus países vizinhos, como Malásia e Vietnã, que melhoraram seu nível de desenvolvimento humano de acordo com as Nações Unidas, mas também encaram limites difíceis de se superar. "
Os últimos movimentos que surgiram nos países desenvolvidos são muito institucionalizados e procuram ganhar poder de forma convencional em parte porque seus protagonistas saem do próprio poder. Há vinte anos, a anti-globalização, como Pastor Jaime define, foi um movimento de nômades, com pouco alcance em território nacional. E sua força sempre limitada se esgotou rapidamente. Talvez, como Pastor observou, seu último episódio foi a mobilização contra a guerra no Iraque. Desse modo, terminou a onda de antiglobalização progressista no norte. "Não houve tempo para um alcance a nível de estado nacional no norte, ao contrário Sul", afirmou Pastor. Os movimentos antiglobalização não se concretizaram no norte e pareciam sempre minoritários. Isto, para além da suas idiossincrasias horizontais e quase espontâneas, também se deu por outras razões, como explica Gonzalo Berrón: "O primeiro lugar da antiglobalização foi o Sul, a América Latina, porque se opôs mais fortemente ao Consenso de Washington, que impunha desregulamentação e liberalização. No norte, é verdade que naqueles anos houve uma realocação significativa de empresas para outros países com custos trabalhistas mais baratos, mas isso pôde ser compensado pelo crescimento no setor de serviços e o forte crescimento do consumo. A reação à globalização entrou em vigor na América do Sul com governos progressistas que detiveram seu fluxo. O próprio Morales era parte do movimento anti-globalização, por exemplo. Acrescenta Berrón: "Agora parece que os efeitos nocivos da globalização chegaram ao norte e foram acentuados pela crise que eclodiu em 2008 e trouxe não só uma longa recessão, mas também cortes e ajustes". Os anos oitenta da América Latina correspondem à segunda década de 2000 na Europa?
Há vinte anos, os movimentos antiglobalização partiam de dentro da esquerda. Agora aqueles que triunfam são patrimônio da direita. Nos países desenvolvidos, em vez de se atacar o neoliberalismo ataca-se os imigrantes, vistos como os perdedores ocidentais da globalização, ou os chineses, que produzem mais barato, o que leva a uma guerra entre pobres e empobrecidos, como observa Pastor.
E, ainda de acordo com Pastor, a social-democracia tem sido um dos motores da globalização, enquanto que outros setores da esquerda se concentraram mais em outros movimentos. Por outro, lado, movimentos como o Podemos se encontra enraizado em movimentos antiglobalização. Na verdade, muitos de seus líderes participaram da sua mobilização e também de sua institucionalização na América Latina. Berrón aponta também o sucesso de líderes de esquerda, como Bernie Sanders nos EUA ou Jeremy Corbyn no Reino Unido. O primeiro quase venceu a batalha contra Hillary Clinton para a candidatura à Presidência pelo Partido Democrata. O segundo se consolidou como líder do Partido Trabalhista britânico, sendo seu representante mais à esquerda das últimas décadas, embora às vezes pareça dar credibilidade às inquietudes das posturas anti-imigração, atribuídas as bases tradicionais do trabalhismo.
De qualquer forma, Jaime Pastor acredita que o verdadeiro fracasso, a responsabilidade pela globalização que se arruína e que agora fará esses perdedores se sentirem um pouco órfãos da esquerda (ou mesmo capturados pela nova direita nacionalista?) está no movimento operário: "os sindicatos apontaram para o neocorporativismo competitivo nacional. Na melhor das hipóteses, eles deram um ‘sim crítico’ para eventos tais como o Tratado de Maastricht na Europa. Eles não responderam à desvalorização da força de trabalho, tanto dos salários diretos quanto indiretos".
Evidências da Desglobalização?
A anti-globalização tem se consolidado na cena política do norte, mas é possível visualizar evidências quantificáveis mundo afora de desglobalização? A verdade é que os bancos de investimento e o mundo financeiro como um todo estão preocupados com esta questão. Em relatório recente do Bank of America, Merrill Lynch diz: "A era do comércio livre e da mobilidade de capital e trabalho que se desenvolveu entre 1981 e 2015 parece estar chegando ao fim. Eleitorados estão virando para uma direção anti-imigração. O populismo contrário ao livre-comércio está crescendo (a pesquisa recente mostrou que 65% dos americanos dizem que as políticas comerciais têm levado a uma queda do emprego nos EUA, em comparação com 13% que acreditam que estas criaram trabalho). As eleições do Brexit e dos norte-americanos representam reações de repúdio populista do status quo global”. Martin Wolf, do Financial Times, também se mostra preocupado com este assunto: "Com a era da globalização chegando ao fim, o protecionismo e o conflito irão definir a nova fase?", pergunta em um artigo recente. E Nouriel Roubini encabeçando outro artigo diz: "América primeiro e, depois, conflito global ".
Para David Lubin, de Citi, a desglobalização é uma evidência. Desde 2012, ele observa um crescimento dos limites ao livre comércio, bem como uma nova reação dos países emergentes que realizam estratégias de redução da dependência econômica em relação ao estrangeiro, isto é: estratégias econômicas nacionalistas. Não só Polônia, Hungria e Rússia seguiram esse caminho. A China também está tentando depender menos das exportações para o exterior em troca de reforço do consumo interno. Por isso, para Lubin, a Argentina de Macri ou o Brasil de Michel Temer parecem um anacronismo por continuarem tentando adotar políticas para parecerem confiáveis aos olhos do capital estrangeiro. Embora o nacionalismo econômico traga taxas de crescimento modestas, ao que parece, aos olhos de Lubin, é o mais apropriado para o contexto atual.
O analista financeiro Juan Ignacio Crespo cita a Organização Mundial do Comércio demonstrando que, entre outubro de 2015 e maio 2016, o G-20 adotou 145 leis para levantar barreiras protecionistas. Desde 2008, 1.500 medidas deste tipo foram aprovadas. Crespo aponta também para as estimativas do economista britânico Simon Evenett, segundo as quais qual existem cerca de 4.000 leis e regras protecionistas registradas no mundo, 80% destas no G-20, que são responsáveis por 90% do comércio mundial. Ou seja, antes de Trump e Brexit, já existiam medidas para limitar o livre comércio, que agora podem ir mais longe.
É a crise ou a globalização?
Para Juan Ignacio Crespo, os resultados políticos que estamos vendo no Reino Unido, nos Estados Unidos e na Áustria, onde a extrema direita chegou às portas do governo, resultam da pequena desglobalização que havia começado por conta da crise. Crespo recorda que em 2008 o comércio mundial desabou completamente e agora está crescendo a taxas mais baixas do que o PIB, embora isso se explique também pelo arrefecimento da China e seu menor consumo de matérias-primas. O declínio no comércio mundial é uma das manifestações da crise econômica e piorou as condições de vida de certos grupos sociais, que votaram nestas novas forças políticas, mais por cansaço que por convencimento. Neste fato encontram-se as razões pelas quais houve uma rebelião contra as elites, mas que, ainda assim, de acordo Crespo, não é muito grande: o Brexit venceu por pouco e nos EUA em voto eleitoral, Hillary Clinton venceu.
Para Crespo, a precarização e a insegurança coletivas que estão por trás das novas vitórias eleitorais não se devem à globalização, mas a crise econômica e as novas tecnologias. O mal-estar é oriundo da crise econômica que levou a canalização de forças como o Podemos na Espanha e Donald Trump nos Estados Unidos. Talvez, poder-se-ia ter evitado todo esse processo que estamos vivendo nos últimos anos se não houvesse eclodido a crise financeira, o que poderia ter sido evitado caso o setor financeiro não houvesse sido desregulamentado, o que, como diz Crespo, teria sido muito difícil de alcançar em um contexto de prosperidade econômica.
O economista Ramón Casilda, que acaba de publicar Crise e reinvenção do capitalismo, nos dá uma outra visão. Na verdade, a globalização é uma consequência do capitalismo. E, talvez, se a globalização não passa por seu melhor momento é por conta da crise do capitalismo. Em sua opinião, o que precisa ser abordado é se esta crise é temporária, se é uma fase passageira para recuperar a forças ou se está anunciando o declínio do próprio sistema.
Uma desglobalização favorável para o desenvolvimento interno dos países?
Em qualquer caso, esta desglobalização, que já pode demonstrar alguma evidência, pode contribuir para o desenvolvimento interno dos países até agora excessivamente dependentes de outros? Pode-se fixar isso criticando a injusta divisão internacional do trabalho que emergiu da globalização ou esta tornou-se crônica por sua culpa? Para Crespo, o auto-desenvolvimento não é mais útil, porque a globalização faz com que todos no mundo se tornes dependentes. Se os países emergentes precisam de capital, os desenvolvidos possuem a necessidade de colocar seu excesso de liquidez. Foi construído um sistema, em sua opinião, em que todos tiram proveito de todos. A própria Espanha, diz ele, viveu este processo de desenvolvimento: a Espanha também era um país emergente que se abriu para o exterior, atraindo investimentos e, em seguida, sofreu deslocalizações para substituir aquelas indústrias por um setor de serviços altamente desenvolvido, ainda que, acrescentamos, nunca de maneira suficiente, de acordo com a elevada taxa de desemprego, que tem sofrido a economia doméstica.
Mas Berrón acredita que a globalização não resultou no desenvolvimento das economias latino-americanas. A indústria que chegou não foi capaz de gerar cadeias produtivas. O Cone Sul foi condenado a uma inclusão subordinada e dependente do norte. Sua inserção internacional era apenas como um fornecedor de matérias-primas ou bens de pouco valor agregado. Embora, em seguida, as estratégias de desenvolvimento interno que os governos progressistas colocaram em prática foram ineficazes na sua implementação, em seu desenho, ou porque o ambiente global impediu seu sucesso. Por isso Berron não confia no sucesso das estratégias de re-nacionalização. Especialmente porque é possível que a onda desglobalizadora não dure o suficiente para países da periferia global desenvolverem suas próprias estratégias. E se acaso prolongar-se no tempo, antecipará grandes movimentos nas placas tectônicas dos processos do sistema e de transformação que não vão ser nada suaves. No final, todos eles se rearmariam para uma nova realidade, embora possa levar anos, já que a globalização tem desmantelado modelos de auto-desenvolvimento e de desenvolvimento regional. "Se Donald Trump se consolidar enquanto um líder nacionalista e fizer o que diz, o mundo pode ser outro", resume Berron.
Uma nova onda anti-globalização progressista?
No norte, ou talvez globalmente, tem havido uma retomada da anti-globalização progressista, apesar de seu pequeno reavivamento contra TTIP e CETA, mas Gonzalo Berrón antecipa uma nova onda, que deve ser contrária a Trump e contra a globalização neoliberal enquanto sistema, e não em relação suas manifestações concretas sob a forma de acordos de livre comércio. Esta última, diz, é insuficiente. Assim, começa-se a apostar em medidas para desprivatizar a democracia tornando-a pública, de modo que o Estado passe a financiar as eleições e campanhas eleitorais em vez de o mercado, com vistas a impedir que magnatas como Trump não iniciem a disputa em vantagem. Ademais, também têm-se empreendido uma luta na ONU para que se imponham obrigações às empresas multinacionais no intuito de reequilibrar as desigualdades geradas pela globalização; também há comprometimento em relação a um severo questionamento da propriedade intelectual e das patentes sob as quais se construíram grandes impérios que mercantilizam a vida; além disso, também se aposta na recuperação do acesso a natureza como um bem comum que agora se encontra nas mãos de companhias ligadas à indústria alimentícia e a exploração de recursos minerais. Com estas reinvindicações o movimento anti-globalização das esquerdas pretende capitalizar a revolta global. Chega tarde? Não sabemos, mas como disse Jorge Fonseca, o que agora está em causa no mundo é se se aposta na humanidade ou na depredação selvagem: “uma globalização humanizada deve ter o objetivo de favorecer as pessoas com um modelo econômico socialmente justo e ambientalmente sustentável. Na verdade, nem sequer devemos falar sobre "globalização", que é uma categoria desprestigiada. Caminhemos rumo a uma sociedade mundialmente humanizada.”
Cristina Vallejo é jornalista especializada em finanças e socióloga.
Fonte: http://ctxt.es/es/20170118/Politica/10625/globalizaci%C3%B3n-Seattle-Zapata-Trump-portoalegre-nafta.htm#.WIivOQkMya0.facebook
Tradução e revisão de texto: Germano Martiniano, Marcus Oliveira e Victor Missiato
Pedro Del Picchia: Soares fez província imperial virar nação orgulhosamente europeia
Não seria despropositado dizer que o moderno Portugal nasceu não propriamente com a Revolução dos Cravos, em 1974, mas no ano seguinte, quando Mário Soares convocou uma das maiores manifestações realizadas em Lisboa.
Aquele dia marcaria o início do fim da tentação totalitária que animava, por um lado, os jovens oficiais das Forças Armadas; de outro, o Partido Comunista; e, por fim, mas com menos intensidade, os nostálgicos do salazarismo.
Os primeiros sonhavam com um regime autoritário progressista; os segundos, com um Estado soviético; e os terceiros, aproveitando-se da ameaça "vermelha", com a volta da ditadura que dominara o país de 1926 a 1974.
Foi nesse quadro que Mário Soares apresentou o "socialismo em liberdade", em oposição aos comunistas e à extrema-direita. "Sou um homem de esquerda, sou socialista. Mas, antes de ser socialista, sou democrata".
Até a situação política chegar a esse ponto de confrontação, Portugal vivera os 15 meses mais vibrantes da história do país no século 20.
Tudo começara numa alvorada de abril de 74, em que um grupo de oficiais das Forças Armadas, contrariados com os rumos insanos da guerra colonial, mandara para o exílio o ditador Marcello Caetano.
Caetano era herdeiro ideológico e sucessor político de António de Oliveira Salazar, que erigira os contornos do chamado "Estado Novo" na longínqua década de 1930, inspirado nos exemplos de Adolf Hitler e Benito Mussolini.
Salazar assumiu a presidência do Conselho de Ministros nos primórdios da ditadura, em 1932. Oito anos antes, a 7 de dezembro de 1924, nascera em Lisboa o homem que poria fim ao seu legado: Mário Alberto Nobre Lopes Soares.
Seu pai, o educador João Lopes Soares, fora ministro da República e era dono do renomado Colégio Moderno, na capital. Opôs-se ao salazarismo até o fim da vida. Em casa e na escola, Mário aprendeu a odiar a ditadura.
Na faculdade tornou-se comunista, chegando a pertencer ao PCP. Licenciou-se em Ciências Histórico-Filosóficas em 1951 e em Direito em 1957, sempre pela Universidade de Lisboa. Foi advogado, professor, jornalista e escritor.
Participou de todos os movimentos de oposição a Salazar, e depois, a Marcello Caetano, e chegou a ser candidato a deputado em 1961, em eleições fajutas que a ditadura promovia e que a oposição eventualmente conseguia entrar.
EXÍLIO
Por sua militância implacável, Soares foi preso 12 vezes pela Pide —a temível polícia política lusitana, treinada pela Gestapo— e chegou a ser torturado. Azucrinou tanto o regime que foi enviado por Salazar a São Tomé, na África.
Seis meses depois, o ditador adoece e é substituído por Marcello Caetano. O motivo da punição extremada fora a investigação provando que o general Humberto Delgado foi assassinado na Espanha pelos esbirros da Pide.
Dissidente do regime, Delgado concorrera à Presidência contra o candidato de Salazar, fora perseguido e se exilara no Brasil. Tentava voltar clandestinamente a Portugal quando, na Espanha, foi alcançado pela polícia política.
Em São Tomé, o socialista escreve o primeiro tomo de seu livro de memórias, "Portugal Ameaçado", ao qual se seguirá, já na década de 70, "Portugal Amordaçado", lançado em Paris às vésperas da Revolução dos Cravos.
Perdoado pelo governo, deixa a ilha africana no final de 1968 e organiza a participação de grupos oposicionistas nas eleições de 1969, quando o país vive um clima de esperança com os acenos liberalizantes do novo governante.
Mais uma vez, porém, as trevas prevalecem e Marcello Caetano volta a apertar os ferrolhos da repressão, entoando a velha ladainha salazarista do "nós ou o comunismo" que faz sucesso no Ocidente em tempo de Guerra Fria.
A Soares resta o caminho do exílio. Parte com a mulher, a atriz Maria Barroso, e os dois filhos para Paris, onde foi professor universitário. Graças aos recursos da família, nunca lhe faltou dinheiro para poder se dedicar à política.
A esta altura suas ideias estão consolidadas. É socialista. Defende a democracia e a liberdade. Aceita o marxismo como método de análise histórica e econômica, mas abomina os regimes da União Soviética e dos seus satélites.
Vem dessa época a piada colhida no Partido Socialista francês e que repetiria tantas vezes: "Os comunistas não estão à nossa esquerda. Estão a leste".
15.jun.1975/AFP | ||
Em foto de 1975, Soares se encontra com o líder do Partido Social-Democrata alemão, Willy Brandt |
Aproxima-se dos líderes europeus da Internacional Socialista, do alemão Willy Brandt ao sueco Olof Palme, e em 19 de abril de 1973 cria o Partido Socialista, numa reunião na cidade alemã de Bad Münstenreifel.
Na plataforma da nova agremiação dois pontos se destacam: restauração da democracia e independência das colônias. Portugal mantinha, então, o maior domínio colonial do planeta: Moçambique, Angola, Guiné-Bissau, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe, na África; Goa e Macau, na Ásia; Timor-Leste, na Oceania.
ARTICULAÇÕES PARA O GOVERNO
Um ano depois, a 28 de abril, retorna como herói a Portugal. Desembarca de trem, aclamado na Santa Apolônia, em Lisboa, que representará para ele o que foi a Estação Finlândia para Lênin.
Só que desta vez o menchevique ganhará a parada. Encontra-se imediatamente com o general António de Spínola, oposicionista conservador guindado ao comando da nação pelos oficiais militares que não sabiam direito o que fazer.
Logo se torna ministro dos Negócios Estrangeiros do primeiro Governo Provisório da Revolução dos Cravos. No cargo cumpre um dos pontos fundamentais do programa do seu PS, a independência de todas as colônias.
O segundo ponto —a construção de um regime democrático estável— ainda demandará muita luta e será na adversidade que Mário Soares se transformará no líder político mais notável da história de Portugal no século 20.
25.mai.1975/AFP | ||
Mário Soares visita fazenda do líder socialista francês François Mitterand em Latche, em maio de 1975 |
Entre 74 e 76, Portugal terá seis governos provisórios, todos com premiês militares, e três presidentes, também militares e legitimados pelas armas, não pelo voto: António de Spínola, Costa Gomes e Ramalho Eanes (este depois confirmado nas urnas).
Foram tempos de grandes comoções sociais, com reforma agrária, ocupações de terras e indústrias, nacionalizações de bancos, radicalização na universidade. A revolução estava nas ruas e os governos adernavam desordenadamente à esquerda.
Nesse cenário destacavam-se três personagens: Álvaro Cunhal, dirigente inconteste do Partido Comunista; Vasco Gonçalves, coronel e primeiro-ministro do 4º e do 5º governos provisórios (os mais esquerdistas do período); e Otelo Saraiva de Carvalho, major e ponta de lança da extrema-esquerda militar.
Coube a Mário Soares dar combate aos três ao mesmo tempo para repor o país nos trilhos da democracia representativa que almejava.
Alvaro Cunhal, confessaria Soares, foi um dos homens que mais o impressionou na juventude por sua determinação antisalazarista e pela coragem de trocar uma confortável carreira universitária pela ação clandestina no Partido Comunista.
Preso por muitos anos, Cunhal empreendeu uma fuga espetacular e reentrou em Portugal no rastro da marcha do MFA para liderar os comunistas. A aversão de Soares ao modelo socialista totalitário afastou-o de Cunhal já nos anos 60.
Mas a divergência ganha fôro de ruptura no dia 1º de maio de 1975. Um ano após a Revolução, Mário Soares, ministro, é impedido de subir ao palanque das comemorações pela tropa de choque do PCP.
21.abr.1975/AFP | ||
Mário Soares discursa a seus seguidores no estádio 1º de Maio pouco antes das eleições de 1975 |
Este é o episódio que o fará convocar o povo às ruas naquele 19 de julho que marcará o início do declínio inexorável do PCP (até hoje uma força política de pouca expressão no país).
Afinal, a eleição para a Assembleia Constituinte, pouco antes, em 25 de abril de 1975, já conferira uma importante maioria relativa aos socialistas (38%). Mário Soares contaria mais tarde como foi o choque derradeiro com Cunhal:
"Ele estava eufórico e me diz: 'Nós e os rapazes (era assim que chamava aos homens do MFA) vamos para a frente. Vocês, socialistas, podem fazer um grande bocado do caminho conosco. Ou vêm ou são dizimados'. Eu não tinha grandes ilusões sobre o Partido Comunista, mas nunca me tinha passado pela cabeça que quisesse reproduzir em Portugal de 1974 a Revolução Russa de 1917."
A história mostrou que o juízo de Soares era correto. Enquanto no resto da Europa Ocidental os PCs faziam uma profunda revisão de conceitos, os comunistas locais trabalhavam para criar um estado soviético em Portugal —um desvario total sob a sombra da Otan e os olhares vigilantes dos EUA, no auge da Guerra Fria.
O fato é que os comunistas quase leva Portugal à guerra civil. Altura em que Soares bate às portas das embaixadas britânica e americana para pedir apoio em caso de confito. "Julguei algumas vezes que a guerra era inevitável".
Enquanto o líder do PS articulava as forças democráticas no campo civil, dois outros personagens que seriam fundamentais para os destinos da nação portuguesa operavam nas entranhas do MFA: os majores Vasco Lourenço e Melo Antunes.
Eles criam o Grupo dos Nove —por serem nove membros do Conselho da Revolução que assinam um documento de fundo socialista, mas com vigorosa defesa da solução democrática.
Começa aí, no mais alto organismo do MFA, a derrocada —mais adiante definitiva— da ala da esquerda militar representada por Vasco Gonçalves (aliado dos comunistas) e Otelo Saraiva de Carvalho (da extrema-esquerda).
O GOVERNO
Um ano depois, sob a égide da nova Constituição ± progressista e democrática ±, o PS obtém retumbante vitória nas eleições legislativas que levarão Mário Soares ao cargo de primeiro-ministro do 1ë e do 2ë Governos Constitucionais da República Portuguesa (76-78).
A faina principal agora é arrumar as finanças e reerguer a economia. Com o fim da espoliação das colônias, a desorganização administrativa, as nacionalizações desordenadas e as greves sem fim, Portugal está quebrado.
E lá vai Soares aos EUA apelar ao FMI. É do FMI e da Comunidade Econômica Europeia (atual União Europeia, à qual Portugal aderiria em 86) que virão os recursos para a reconstrução econômica. Com austeridade, estrutura um Estado capitalista e previdenciário nos padrões clássicos da social-democracia europeia.
Desde então, o embate político dá-se fundamentalmente entre forças de centro-esquerda, leia-se Partido Socialista, e o centro-direita.
Nesse contexto, ganhando e perdendo eleições, Soares foi mais uma vez primeiro-ministro entre 83 e 85 até surpreender o país em 1986, lançando-se candidato à Presidência da República quando sua popularidade está no fundo do poço.
Enfrenta dois candidatos de esquerda e um adversário de direita amplamente favorito, o ex-primeiro-ministro Freitas do Amaral.
21.jan.2006/AFP | ||
Mário Soares discursa em comício na campanha presidencial de 2006, em que obteve 14% dos votos |
Passa para o segundo turno raspando com modestos 25% dos votos contra 46% de Amaral. A centro-direita festeja antecipadamente, certo de que os comunistas (21% nas eleições) darão, enfim, o troco a Soares.
Não contavam que no dia seguinte ao primeiro turno, o taciturno Álvaro Cunhal reentraria em cena com a palavra de ordem: "Derrotar Freitas do Amaral". O velho comunista salva a carreira política de Soares.
Na chefia do Estado, Mário Soares, com seu jeito bonachão e firmeza de atitudes, transforma-se no líder mais popular do Portugal democrático, reelegendo-se em 1991 com mais de 70% dos votos no primeiro turno.
Dos três adversários, o que pontuou mais teve 14%. Terminou o segundo mandato presidencial em 1996 no ápice do seu prestígio e assumiu o comando direto da Fundação Mário Soares.
FRACASSO
Aos 81 anos comete talvez seu maior equívoco político, lançando-se novamente candidato à Presidência no pleito de 2006. Sofre uma derrota vexatória ao obter escassos 14,3% dos votos.
O conservador Aníbal Cavaco Silva vence no primeiro turno, com 50,6%. Admitiria mais tarde não ter seguido o sábio conselho da família: "de que era melhor que eu ficasse em casa".
Patrícia de Melo Moreira - 30.nov.2014/AFP | ||
Já debilitado, Mário Soares chega ao Congresso do Partido Socialista Português, em Lisboa, em 2014 |
Desde então, Soares dedicou-se à sua Fundação, à participação como membro de júris e comissões, portuguesas e internacionais, até que com o advento da crise econômica europeia desdobrou-se em palestras e entrevistas contra a austeridade imposta pela UE (leia-se Alemanha) e FMI a países à beira da insolvência —Portugal incluído.
Afirmando que a Europa "está à beira do precipício", apelou, em junho de 2012, ao povo português para se opor firmemente ao plano de austeridade do "governo de centro-direita", chegando a elogiar as greves. Nessa cruzada, não poupou críticas à chanceler alemã Angela Merkel que —dizem nos bastidores— detestava.
Em "Um político assume-se", de 2011, fez uma espécie de balanço de sua vida em que, em meio ao relato de sucessos e desencantos, conclui com uma afirmação de esperança nos destinos da humanidade e reafirma sua crença no socialismo democrático.
Jamais perdeu o bom humor que o acompanharia até o fim. Afinal, não poderia viver de mau humor alguém que moldou o período mais virtuoso da moderna história de Portugal.
Alguém que transformou a "província imperial" de Salazar —arcaica e sem graça, isolada e cruel— numa nação democrática, desenvolvida, alegre e culta, orgulhosamente europeia. De certa forma, Mário Soares é o pai dessa pátria.
* PEDRO DEL PICCHIA é jornalista e escritor. Foi correspondente da Folha em Roma de 1978 a 1981.
Fonte: http://m.folha.uol.com.br/mundo/2017/01/1847975-soares-fez-provincia-imperial-virar-nacao-orgulhosamente-europeia.shtml?mobile
Luiz Carlos Azedo: Refúgios ideológicos
Não é verdade que lutavam pela democracia. Lutavam para tomar o poder e implantar uma ditadura à moda cubana
Não é somente a narrativa do golpe que serve de refúgio para os setores da esquerda ultrapassada que meteu os pés pelas mãos e se lambuzou durante os governos Lula e Dilma. Há outros refúgios ideológicos, como a bandeira do nacionalismo, embora um tanto desmoralizada pelo assalto à Petrobras. Curiosamente, essa foi a trincheira da direita mais xenófoba na Europa desde o fim da Guerra Fria e, agora, mais recentemente, a essência de acontecimentos que colocam em xeque a esquerda mundial. Principalmente dois: a vitória do Brexit na Inglaterra, que está abandonando o projeto da Comunidade Europeia, e a de Donald Trump, nos Estados Unidos, que acaba de anunciar uma nova corrida nuclear.
No Brasil, chegou-se a dizer, no governo Dutra (PSD), que o país não se industrializaria sem a nacionalização do capital estrangeiro e a reforma agrária. No governo de Juscelino Kubitschek (PSD), eleito a partir de uma aliança com trabalhistas e comunistas, aconteceu exatamente o contrário. Anos mais tarde, durante a crise que resultou no golpe militar de 1964, a grande ameaça à hegemonia da esquerda na sucessão de João Goulart (PTB), prevista para 1965, não era a candidatura do então governador da antiga Guanabara, Carlos Lacerda (UDN), mas a volta de Juscelino. Por essa razão, o líder comunista Luiz Carlos Prestes articulava a reeleição de João Goulart.
Às vésperas do golpe, as forças políticas que davam sustentação ao governo de João Goulart estavam profundamente divididas: de um lado, as que defendiam a “política de conciliação” do ex-primeiro ministro San Thiago Dantas, deslocadas do eixo do governo desde o plebiscito que pôs fim ao parlamentarismo; de outro, a chamada “frente nacionalista”, na qual pontificavam Leonel Brizola (PTB), que defendia a nacionalização das empresas estrangeiras e pleiteava a candidatura à Presidência — “Cunhado não é parente!” —, e Francisco Julião, criador e líder das Ligas Camponesas, com sua “reforma agrária na lei ou na marra.”
É meia-verdade a afirmação de que o golpe militar foi obra do imperialismo ianque, cuja frota estava ao largo da costa brasileira. Sim, em plena Guerra Fria, os Estados Unidos estavam à espreita e seus agentes atuaram intensamente ao lado dos golpistas. Mas o marechal Castelo Branco não era um entreguista, era legalista e patriota.
“Deu o golpe na nossa frente, porque a posição da esquerda era golpista”, disse o último secretário-geral do PCB, Salomão Malina. O erro da esquerda em 1964 foi acreditar que a grande ameaça era Juscelino. E subordinar a questão democrática às bandeiras nacionalistas, porque acreditava que a revolução era nacional libertadora como nos países que lutavam pela independência do colonialismo.
Esse debate é mais atual do que muitos imaginam. Foi ele que dividiu a esquerda após o golpe de 1964, levando seus setores mais radicais à opção pela guerrilha urbana e rural, uma trágica tolice. Os mesmos setores que viam um agente imperialista em cada esquina acreditavam que seria possível resistir ao golpe militar, caso Jango não tivesse deixado o país. Jamais aceitaram que a derrota estava anunciada, porque a maioria da sociedade já havia derivado para a solução de força. E subestimaram o fato de que o Exército brasileiro foi constituído a partir da defesa da integridade territorial, contra dezenas de rebeliões e movimentos insurrecionais.
Saída liberal
Mesmo assim, anos depois, esses setores optaram pela aventura da luta armada. Não é verdade que lutavam pela democracia. Lutavam para tomar o poder e implantar uma ditadura à moda cubana, a começar pela Ação Libertadora Nacional (ALN), de Carlos Marighella. O que deu certo na luta contra o regime militar foi a defesa das reivindicações econômicas, dos direitos sociais e das liberdades políticas. As bandeiras da anistia, da liberdade de imprensa e da convocação de uma Assembleia Nacional Constituinte. As Diretas Já foram uma invenção liberal, à qual a esquerda aderiu com gosto. Mesmo assim, muitos acreditavam que a queda da ditadura se confundiria com uma revolução. A derrota dos militares, porém, só veio mesmo com a eleição de Tancredo Neves (PMDB) no colégio eleitoral. Ou seja, a hegemonia da transição foi dos políticos liberais. Daí decorre a democracia que temos e na qual precisamos resolver os nossos problemas.
Feliz ano-novo!
Fonte: http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-refugios-ideologicos/
Ferreira Gullar: A luta poética
Documentário - Ferreira Gullar, nasceu em 1930, em São Luís, Maranhão. Criado na periferia operária da cidade, Gullar trabalhou como radialista, até vir para o Rio de Janeiro, em 1951. Mas já trazia na bagagem o esboço do livro A luta corporal. Jornalista, dramaturgo, crítico de arte, Ferreira Gullar foi um militante das causas sociais e políticas. Faleceu em 04 de dezembro de 2016, aos 86 anos, no Rio de Janeiro.
Ferreira Gullar: Trump - après moi, le déluge
O capitalismo trumpariano se aproxima do nacionalismo nazista
Se a vitória de Donald Trump para a Presidência dos Estados Unidos, sob certos aspectos, foi uma surpresa, sob outros resulta coerente com determinadas mudanças verificadas nas últimas décadas na realidade contemporânea a partir do fim do sistema soviético
O término da Guerra Fria, que dividia o mundo em duas facções hostis, provocou uma série de mudanças políticas, econômicas e ideológicas.
Elas geraram desde o radicalismo islâmico no Oriente Médio até o populismo latino-americano, que vive seus últimos momentos. Mas não só: provocou também reações diversas tanto no capitalismo europeu quanto no capitalismo norte-americano, de que a eleição de Trump é, sem dúvida, uma das consequências mais graves.
É claro que o fim do sistema soviético fortaleceu o capitalismo tanto econômica como ideologicamente, mas também provocou divisões no próprio capitalismo, de um lado favorecendo a tendência mais moderna –que aprendera com o socialismo a lição da igualdade social– mas, de outro, estimulando ideologicamente o capitalismo atrasado, que se valeu do sectarismo comunista para justificar a exploração sem limites e o lucro máximo.
Não é novidade dizer que o sonho da sociedade justa que o comunismo inspirava estimulou o surgimento de partidos e movimentos políticos que, durante quase um século, puseram em questão o regime capitalista, cujo caráter explorador do trabalho humano é indiscutível.
Esses movimentos e partidos, por sua vez, provocaram da parte dos setores mais conservadores reações –nazismo e fascismo foram exemplos extremos, mas não os únicos. Em muitos momentos e países, estabeleceu-se uma divisão insuperável, que se define até hoje como esquerda e direita.
Se é verdade que os erros do regime comunista –mesmo antes de sua derrocada final– impediram uma pretendida hegemonia mundial, o fim dele como realidade política e econômica teria consequências diferentes nos diferentes países capitalistas, indo desde certa socialização do capitalismo em alguns países até, contraditoriamente, a exacerbação da exploração capitalista, já que –segundo estes– ficara demonstrado pela história como a tese de que o capitalismo seria um mal a ser extirpado era resultado de um preconceito e de um erro da esquerda.
E essa tese não foi aceita apenas pelos militantes anticomunistas, mas também pelos setores mais diversos de alguns países europeus que optaram recentemente por governos de direita, não radicais como o de Donald Trump, mas igualmente dispostos a apagar, de uma vez por todas, o pesadelo do anticapitalismo que os assustou por décadas e décadas.
Esse anticomunismo é, portanto, bem mais radical que o europeu, porque a ele se soma a necessidade de erradicar do capitalismo todo e qualquer preconceito socializante, o que o opõe não apenas ao falecido comunismo como também ao chamado capitalismo moderno, minado de intenções progressistas.
Esse caráter do capitalismo trumpariano caracteriza-o como uma opção abertamente reacionária que, não por acaso, o aproxima do nacionalismo nazista, do qual estão excluídos quaisquer sentimentos de solidariedade com o sofrimento humano. Tudo isso é encarado como hipocrisia.
O capitalismo, assim entendido, é o regime dos mais capazes e dos vitoriosos, como Donald Trump.
O que importa é o lucro, ou seja, o aumento do capital e da riqueza, não importando que consequências tenham. Azar daqueles que a natureza criou incapazes.
Por isso mesmo, Trump nega que o desenvolvimento industrial gere o aquecimento do planeta e ameace a sobrevivência da humanidade. Ou seja, "après moi, le déluge" (depois de mim, o dilúvio).
Gostaria de concluir esta crônica tranquilizando o leitor com a seguinte lembrança: todas as tentativas semelhantes a essas, que ignoraram a realidade do processo econômico, político e científico, fracassaram.
Puderam até por algum tempo ganhar o apoio dos menos lúcidos e ressentidos, mas não sobrevivem porque são fruto do sectarismo, de ilusões e de ressentimentos, sem base na realidade.
Fonte: http://gilvanmelo.blogspot.com.br/2016/11/o-capitalismo-trumpariano-se-aproxima.html