socialismo
Revista online | A identidade imperial russa e a guerra na Ucrânia
Paulo César Nascimento e Leone Campos de Sousa*, especial para a revista Política Democrática online (48ª edição: outubro/2022)
“Tudo que cessa de crescer começa a apodrecer”, assinalou, certa vez, Catarina II, imperatriz da Rússia de 1761 a 1796, referindo-se à necessidade de seu país expandir-se constantemente de forma a garantir seu status de potência entre as nações europeias. Essa aspiração tem sua origem em Pedro I, que a antecedeu em quatro décadas, e prossegue, por vias tortuosas, até a atual Rússia pós-soviética de Vladimir Putin, influenciando inclusive sua fatídica decisão de invadir a Ucrânia.
Para sustentar a ambição russa de aumentar a influência e o poder do czarismo, Pedro e Catarina tinham tanto que competir com os países que então representavam o Ocidente desenvolvido – Inglaterra, Holanda, Alemanha e França –, quanto copiá-los em certos aspectos. Para tal, procuraram transformar a velha Rússia oriental, dotando-a de infraestrutura moderna. Racionalizaram sua enorme burocracia, incentivaram a ciência e, através do fortalecimento do exército, ampliaram as fronteiras do império por meio de várias conquistas militares. Um ponto muito importante dessas mudanças foi a transferência da capital de Moscou para São Petersburgo, cidade construída por Pedro I com o intuito de ser a “janela para a Europa” da Rússia.
Esse processo de modernização, contudo, nunca incorporou o iluminismo europeu, nem muito menos as instituições democráticas que se desenvolviam na parte ocidental do velho continente. Os sucessivos czares construíram extensas ferrovias, dotaram seus exércitos da mais moderna artilharia e formaram técnicos e especialistas no exterior; no entanto, não reformaram a monarquia autocrática absolutista, que permaneceu sem grandes alterações até à Revolução de 1917.
Essa característica da Rússia – desenvolver-se para competir com as potências europeias, mantendo ao mesmo tempo a tradição autocrática de governo –, refletia na verdade uma ambiguidade da identidade nacional do país, visível na intelligentsia russa. Parte dela, ressentida pelo atraso cultural e político da Rússia vis-à-vis o Ocidente, enaltecia elementos da sua cultura autóctone, como a enigmática “alma eslava”, a “simplicidade” do muzhik – o camponês russo –, assim como a espiritualidade do povo, representada pela igreja ortodoxa. Veneravam as tradições eslavas e, ao mesmo tempo, criticavam o materialismo e o racionalismo ocidentais, bem como a falta de humanidade e transcendência nas sociedades europeias.
Uma outra parte dos intelectuais russos, ao contrário, tomavam o Ocidente como modelo a ser seguido pela Rússia, para que esta pudesse progredir e entrar no mapa mundial como a potência que suas dimensões territoriais, recursos naturais e milenar civilização exigiam. Lamentavam a autocracia czarista, o atraso social e a falta de liberdades democráticas do país. Sua visão do Ocidente, no entanto, muitas vezes pecava por ingenuidade, como se fosse possível transferir mecanicamente para a Rússia as condições que propiciaram o progresso dos países europeus. Aliás, tal ingenuidade parece ser uma constante entre os “ocidentalistas” russos.
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Por óbvio, as posições pró e contra o Ocidente nunca apareciam de forma cristalina, nem suas fronteiras eram rigidamente delimitadas. Era comum intelectuais russos mudarem de visão ao longo da vida, relutando sobre o que a Rússia deveria ser. O escritor e publicista do século XVIII, Denis Ivanovich Fonvisin, resumiu assim o drama russo: “Como poderemos remediar os dois preconceitos contraditórios e muito danosos: o primeiro, que tudo o que temos é horrível, enquanto nos países estrangeiros tudo é bom; e o segundo, que nos países estrangeiros tudo é terrível, e conosco tudo é bom?”. Já no plano simbólico, nada atesta melhor essa dubiedade da identidade nacional russa do que a iconografia imperial da águia bicéfala, com uma cabeça apontando para o Oriente e outra para o Ocidente.
A revolução russa de 1917 não alterou significativamente o quadro da identidade nacional russa, mas deu a ela nova roupagem, além de ter conciliado, pelo menos temporariamente, seus aspectos mais contraditórios. O marxismo popularizou-se entre a intelligentsia russa, a partir da segunda metade do século XIX, justamente porque atendia tanto os sonhos da escatologia eslavófila, que previa que a Rússia se tornaria uma “terceira Roma”, como as aspirações dos ocidentalistas, para quem a ciência do materialismo histórico desenvolvida por Marx apontava para a necessidade de uma revolução socialista que tiraria a Rússia de seu atraso histórico.
A Rússia, a partir de 1917, colocou-se dessa forma como foco irradiador de uma nova era histórica da humanidade. Dalí em diante, seriam os russos, com sua revolução, que iriam mostrar os novos caminhos de desenvolvimento ao Ocidente. É certo que no bolchevismo havia certos elementos que lembravam a busca dos eslavófilos por raízes próprias. Afinal de contas, Lenin rompeu com a socialdemocracia europeia, formando um tipo de partido centralizado até então inexistente entre os marxistas, além de adaptar o marxismo às condições russas, ao saltar a etapa democrático-burguesa pregada pela teoria e avançar direto para o socialismo.
Estas considerações à parte, Lenin e os bolcheviques mantiveram uma firme perspectiva internacionalista. A revolução russa deveria servir como uma faísca irradiadora das revoluções nos países ocidentais, sem as quais a Rússia soviética teria muito mais dificuldades em construir plenamente uma sociedade socialista. O Ocidente, contudo, não respondeu ao apelo revolucionário, deixando a Rússia isolada entre as nações capitalistas. Essa conjuntura minou a perspectiva internacionalista do partido comunista, que sob o comando de Stalin, nos anos vinte do século passado, desenvolveu a teoria do “socialismo em um só país”, segundo a qual a Rússia, já sob o manto da União Soviética, seria capaz não somente de construir o socialismo sem ajuda do Ocidente, como ainda de desempenhar, para os revolucionários de todo mundo, o papel de “pedra-de-toque” do movimento comunista.
Posteriormente, a espetacular vitória sobre o nazismo na Segunda Guerra Mundial elevou ainda mais o status da URSS, que atingiu, junto com os EUA, a condição de superpotência, realizando dessa forma o velho sonho dos profetas da eslavofilia, já que Moscou se tornou finalmente uma “terceira Roma”, ultrapassando, em termos de poder, influência e grandeza, a Roma dos latinos e a Constantinopla do Império Bizantino.
Somente ancorando nossa análise na sociologia weberiana, que enfatiza a importância dos valores e da motivação dos atores na orientação da ação social, somos capazes de compreender como a velha Rússia dos czares, atrasada e camponesa, pôde dar esse gigantesco passo em poucas décadas. A revolução de 1917 elevou a Rússia a este patamar grandioso não tanto por causa da doutrina marxista ou da economia socialista, mas porque soube canalizar, impulsionar e dar um sentido novo à milenar aspiração russa ao status de uma civilização ímpar na história da humanidade.
Ainda assim, a URSS continuava sendo um gigante de pés de barro. Alcançou paridade em ogivas nucleares e força militar com os Estados Unidos, mas continuava atrás dos países ocidentais em termos de instituições políticas democráticas, condições sociais e dignidade humana. A elite soviética pós-stalinista sabia disso, assim como a classe média urbana, sempre ávidas por produtos de consumo das economias capitalistas e informação sobre o Ocidente. Por fim, o inacreditável custo humano do empreendimento socialista, a estagnação econômica e a falta de liberdades elementares – civis, políticas, e de expressão artística – acabaram por minar a legitimidade do regime soviético.
Foi nesse contexto de crise e estagnação que ocorreu, com a Perestroika lançada por Mikhail Gorbachev, em 1986, uma significativa mudança da visão da elite dirigente em relação ao Ocidente, que pode ser atestada no apelo do governante soviético à construção de uma “casa comum europeia”. Mais que um modus vivendi pacífico com o Ocidente, a Rússia buscava ser parte integrante da civilização europeia. Mesmo o desmoronamento da União Soviética não alterou esta aspiração, ao contrário, até incentivou-a. Os primeiros anos da Rússia pós-soviética, ainda sob a liderança de Boris Yeltsin, foram marcados por um intenso sentimento pró-ocidental entre as elites urbanas do país. Parecia que, livre das amarras da União Soviética, e de volta ao convívio com as democracias ocidentais, a Rússia poderia ingressar em um período ilimitado de progresso político, econômico e social.
Como se sabe, nada disso aconteceu. Ao invés de construir uma economia de mercado avançada e gerar riqueza social, a Rússia enveredou pelo caminho de um capitalismo selvagem e corrupto, passando a conviver com desigualdades sociais nunca existentes no regime socialista anterior. Para humilhação do país, sua influência internacional diminuiu tanto que foi obrigada a engolir a expansão da OTAN na área de influência da antiga URSS. Os Estados Unidos, por sua vez, foi paulatinamente entregando a enfraquecida Rússia à própria sorte, na medida em que voltava sua atenção para enfrentar o crescente poderio da China.
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Este novo contexto levou a percepção do Ocidente na Rússia passar de simpatia para animosidade aberta. Forças políticas nacionalistas cresceram entre o eleitorado russo. Já em 1993, o partido liberal-democrático de Vladimir Zhirinovsky (ultranacionalista, apesar do nome) saiu o grande vencedor das eleições legislativas. O próprio partido comunista russo, reorganizado por Guennady Ziuganov após o colapso da URSS, renasceu das cinzas, adotando uma plataforma política com marcado tom nacionalista. A elite mais liberal de economistas e políticos, muito influente nos anos de transição da URSS para a Rússia pós-soviética, praticamente desapareceu do mapa político.
No tocante à política externa, a Rússia buscou reaver sua hegemonia na região que denomina de “exterior próximo”, a antiga área de influência da URSS. Em 1991, por iniciativa de Moscou, foi criada a Comunidade de Estados Independentes, composta de 11 ex-repúblicas soviéticas, e, no ano seguinte, a Organização de Segurança Coletiva com Armênia, Belarus, Cazaquistão e outros Estados da antiga Ásia Central soviética. A nova assertividade da Rússia foi demonstrada também quando o governo russo reprimiu militarmente a tentativa de independência da Chechênia, uma república islâmica da federação russa, em um conflito que se arrastou de 1994 a 1996.
É preciso assinalar que os ziguezagues na identidade nacional russa, ora aproximando-se do modelo ocidental, ora rejeitando-o, não obedecem a qualquer lei histórica ou ciclos inevitáveis. Uma variedade múltipla de fatores – econômicos, sociais e políticos – atuam em sinergia para empurrar a Rússia para um lado ou outro. A classe ou o estrato da sociedade de onde a elite governante russa é proveniente, seu grau de cosmopolitismo e o nível cultural que detém, também exercem influência na formação da sua visão sobre o que a Rússia deveria ser.
Além disso, o contexto internacional oferece seus próprios incentivos, diferentes em cada época, para a liderança russa se aproximar ou se afastar do mundo ocidental. Toda essa gama de fatores não impede o historiador, em retrospectiva, de reconstituir a trajetória que levou a uma ou outra opção, mas torna mais difícil ao analista político prever as tendências do futuro. Não se pode esperar, igualmente, que uma mudança em favor ou contra o que se percebe como “perspectiva ocidental” traga consequências imediatas para o rumo da política do país, devido aos múltiplos constrangimentos internos e externos que limitam os governantes russos.
Em linhas muito gerais, o que se pode afirmar é que, sempre que a Rússia se inclina para o Ocidente, se aproxima de ideais de liberdade, justiça e modernidade; e, por outro lado, toda a vez que o país vai buscar sua identidade no que entende como sendo suas fontes autóctones tradicionais, a tendência à autocracia se fortalece, até porque, em sua história, a Rússia desconheceu o iluminismo e não teve experiências significativas com a democracia.
Quando Putin então assume o poder em 1999, a Rússia já havia abandonado a perspectiva de seguir o modelo de sociedade dos países desenvolvidos do Ocidente, e buscava, através de um crescente sentimento nacionalista, reerguer-se enquanto nação. Putin reorganizou a economia do país, obtendo grande crescimento econômico em seu primeiro governo (1999-2008), em larga medida graças à alta de preços de petróleo e gás, além de fortalecer as forças armadas e elevar o nível de vida da população. Com isso, manteve altos índices de popularidade durante todo o seu mandato.
Quem ouve as constantes diatribes proferidas atualmente pelo governante russo contra os Estados Unidos e a União Europeia, pode ter a impressão de que Putin representa a fina flor da tradição antiocidental eslavófila do país. Mas na verdade, como grande parte da elite russa do século XIX até os tempos atuais, ele foi durante algum tempo ambivalente a respeito do que a Rússia deveria ser em termos identitários. A formação em direito pela Universidade de Leningrado, uma das melhores do país, e a carreira como agente de inteligência da URSS com anos de trabalho na Alemanha Oriental (DDR), ampliaram seus horizontes intelectuais e com isso seu espírito crítico.
Quando ocorreu a tentativa de golpe contra Gorbachev, em agosto de 1991, Putin renunciou ao cargo de tenente-coronel na KGB, declarando naquela ocasião: “Assim que o golpe começou, eu imediatamente decidi de que lado estava”. Atitude surpreendente, haja vista o apoio que a KGB havia dado aos golpistas. Já sobre o regime soviético, quando foi eleito presidente em 2000 ele declarou em seu “Manifesto do Milênio”:
“O comunismo e o poder dos soviéticos não fizeram da Rússia um país próspero, com uma sociedade em desenvolvimento dinâmico e um povo livre. O comunismo demonstrou vividamente a sua inaptidão para um autodesenvolvimento sólido, condenando o nosso país a um atraso constante em relação aos países economicamente avançados. Foi um caminho para um beco sem saída, que está longe da corrente dominante da civilização”.
Ou seja, fica claro aqui o rechaço de Putin à experiência soviética porque esta afastou a Rússia da “corrente dominante da civilização” – a civilização dos países desenvolvidos do Ocidente que, àquela época, estava na sua mente como modelo a ser seguido.
Não menos intrigante é a conversa que teve lugar em 2015, entre o cineasta norte-americano Oliver Stone e Putin, em que este revelou que “décadas atrás”, em uma das visitas de Bill Clinton a Moscou, teria dito “meio a sério, meio como piada” que “provavelmente a Rússia deveria pensar em se juntar à OTAN”. Piada ou não, o fato é que já havia sido assinado, em 1997, o “Ato Fundador OTAN-Rússia”, acordo com o intuito de aproximar a Rússia e o bloco militar em assuntos envolvendo segurança mútua. E em 2002, já com Putin ocupando o Kremlin, formou-se um “Conselho OTAN-Rússia” no qual o país chegou até a ganhar um assento permanente na sede do Bloco, em Bruxelas.
Mas na medida em que consolidava seu poder, Putin foi percebendo os ventos nacionalistas que sopravam na Rússia, e incentivou-os ainda mais, esquecendo sua antiga consideração com a civilização ocidental. Para essa empreitada, recorreu à Igreja ortodoxa russa, que se tornou a maior propagadora dos “valores tradicionais russos”. É da boca do Patriarca de Moscou, Kiril I, seu fiel aliado, que saem os mais veementes ataques à cultura e ao modo de vida ocidentais. O influente filósofo e nacionalista russo Aleksandr Dugin, considerado por muitos como o “guru de Putin”, também contribuiu para a disseminação de ideais antiocidentais, pregando a fundação de um “império euroasiático” com Rússia e China, para se opor à hegemonia do mundo ocidental.
Como era de se esperar, a defesa dos “valores tradicionais” da Rússia por Putin veio pari passu com o aumento de sua disposição autocrática. Ele modificou a constituição do país para se perpetuar no poder, alternando os cargos de presidente e primeiro-ministro, controlou os governadores e a mídia, e reprimiu a oposição liberal, prendendo, exilando ou envenenando seus desafetos e opositores. Por outro lado, a frustração de boa parte da sociedade com o que era percebido como tentativas dos EUA e seus aliados europeus de diminuir e humilhar a Rússia fez Putin endurecer ainda mais sua política externa. Uma série de acontecimentos deteriorou a relação entre a Rússia e o Ocidente, especialmente na área de segurança. A já mencionada expansão da OTAN foi um deles. Dos anos 90 em diante, a OTAN foi aceitando novos membros, sendo quatorze deles, em um total de trinta, ex-repúblicas soviéticas e países na órbita de influência da antiga URSS.
É preciso considerar, entretanto, que aqueles países não entraram na OTAN à força, mas procuraram o bloco militar justamente pela percepção de que a Rússia poderia ameaçar sua segurança. Contribuíram para isso a guerra que o governo russo moveu contra a Chechênia e seu apoio a favor de separatistas pró-Rússia na Geórgia. Por outro lado, o bombardeio da Sérvia – tradicional aliado da Rússia – pela OTAN em 1999, durante a guerra civil na ex-Iugoslávia, assim como a invasão do Iraque pelos EUA e Reino Unido, em 2003, acirraram a desconfiança no Ocidente por parte da Rússia.
Nenhum fator, contudo, perturbou mais a Rússia do que a situação na Ucrânia. Tornando-se um Estado independente após o colapso da URSS, a Ucrânia procurou inicialmente resolver suas pendências com Moscou. A desnuclearização do país foi uma dessas controvérsias, já que Kiev herdou grandes estoques de armas atômicas da URSS, mas um acordo com a Rússia, em 1992, possibilitou a devolução das ogivas nucleares aos militares russos. Outra disputa surgiu em torno das bases da Frota russa do Mar Negro, mas esse problema também foi superado, pelo menos temporariamente, com as negociações que levaram, em 1997, ao Tratado de Partição, que permitiu à Rússia arrendar as bases navais em Sebastopol, ao mesmo tempo em que era reconhecida pelos dois lados a inviolabilidade das fronteiras existentes. Outros tratados resolveram disputas relacionadas com o fornecimento de energia por oleodutos e gasodutos através do território ucraniano, dívidas de Kiev com Moscou, e outros problemas menores. A entrada da Ucrânia na Comunidade de Estados Independentes, nos anos 1990, possibilitou parcerias comerciais entre os dois países e as relações entre a Ucrânia e a Rússia melhoraram.
Na medida, contudo, em que o sentimento antiocidental foi crescendo na Rússia, o governo de Putin passou a exercer pressão, inclusive militar, sobre qualquer orientação pró-ocidental na área de seu “exterior próximo”, como o mencionado apoio militar da Rússia aos separatistas de certas regiões da Geórgia, em 2008, como castigo pela inclinação pró-europeia do governo daquele país. Os ucranianos passaram a se perguntar se o mesmo não poderia ocorrer com a Ucrânia, se a Rússia resolvesse apoiar o movimento separatista de russos étnicos na região ucraniana do Donbass. A Ucrânia, que já havia pedido entrada na OTAN, em janeiro daquele ano, passou a mostrar uma gradual inclinação ao ocidente, apesar de o presidente à época, Victor Yushchenko (2005-2010), ter assegurado a Putin que o pedido de entrada de seu país no bloco militar ocidental não era uma atitude contra a Rússia. Os russos desconfiavam de Yushchenko, a quem consideravam muito pró-ocidental, mas, de qualquer forma, França e Alemanha se opuseram à entrada da Ucrânia no bloco, porque isso seria cruzar uma linha vermelha com a Rússia, e o fato é que, desde 2008, a Ucrânia está esperando sua admissão, a qual até nossos dias nunca entrou na pauta da OTAN, mesmo após a invasão do país pelas forças russas.
Apesar dos altos e baixos que marcaram as relações entre Rússia e Ucrânia desde o fim da URSS, os problemas foram contornados até 2014, quando uma revolta popular derrubou Viktor Yanukovitch (2010-2014), que havia sido eleito em 2010 e era considerado o presidente mais pró-russo que a Ucrânia teve desde sua independência. Com as promessas de não-adesão do país à OTAN e a adoção do russo como um dos idiomas oficiais da Ucrânia, Yanukovitch granjeou simpatias no Kremlin, o que teve como consequência uma significativa melhora nas relações entre os dois países. Mas o presidente ucraniano, pragmático, não deixava de enxergar as vantagens econômicas que uma aproximação com a União Europeia poderia trazer, e passou a elaborar planos para um tratado de livre comércio com o bloco europeu, o que irritou o governo russo. Moscou passou a ameaçar adotar sanções econômicas contra a Ucrânia, e a pressão russa acabou por fazer Yanukovitch desistir do acordo com a União Europeia. O cancelamento do tratado, porém, levou a uma revolta popular que fez o presidente renunciar e se exilar em Moscou.
A Rússia retaliou anexando a Crimeia, em fevereiro de 2014, e passou a apoiar militarmente os separatistas de etnia russa da região do Donbass, que formaram as autodeclaradas repúblicas de Donetsk e Luhansk, dando início a um conflito com o exército ucraniano que perdura até hoje. No dia 1º de março daquele mesmo ano, o parlamento russo autorizou Putin a usar força militar na Ucrânia. As negociações entre Rússia, Ucrânia e as repúblicas autônomas, que tiveram lugar em Minsk, em 2014 e 2015, não lograram um cessar-fogo nem um desenho institucional que mantivesse as repúblicas separatistas, com certa autonomia, dentro da Ucrânia.
A invasão da Ucrânia pela Rússia, em fevereiro de 2022, seguida em setembro do mesmo ano pela anexação de Donetsk, Luhansk, Zaporozhye e Kherson, regiões do leste do país povoadas por russos étnicos, deteriorou de vez a relação com o Ocidente. É possível que uma causa mais imediata da agressão russa tenha sido o declínio da economia do país, nos últimos anos, que vinha abalando a popularidade de Putin. É muito comum líderes políticos insuflarem aventuras externas para desviar a atenção de problemas internos e recuperar apoio popular. Ainda assim, é difícil imaginar uma ação dessa magnitude sem um forte sentimento antiocidental na Rússia.
É preciso destacar, entretanto, certas características específicas do nacionalismo russo atual que podem ter acirrado o conflito. Ao contrário do que alguns analistas apressados têm argumentado, Putin não está almejando reconstruir o império soviético, apesar de ter classificado o colapso da URSS como “a maior catástrofe do século XX”. O nacionalismo que ele incentiva, e a restauração da Rússia que almeja, possuem na verdade mais em comum com o antigo império czarista do que com os tempos soviéticos. Na antiga URSS, o Ocidente era percebido como sinônimo de capitalismo, e as divergências entre ambos se baseavam fundamentalmente em sistemas econômicos diferentes. Atualmente, Ocidente significa aos olhos russos uma civilização com valores antagônicos à própria identidade e tradição russas. Além disso, o nacionalismo russo camuflado da época socialista não possuía o caráter étnico e grão-russo chauvinista da época atual, que era característico do império czarista, denominado por Lenin de “prisão dos povos”.
Em artigo divulgado sete meses antes da agressão à Ucrânia, Putin revela esse nacionalismo étnico grão-russo. Ele relembra a origem comum dos povos da Ucrânia, Rússia e Belarus, que se remonta à Rússia de Kiev (Rus de Kiev) do século IX, para argumentar que as tribos eslavas eram unidas pela mesma língua, tradições culturais, laços econômicos e fé ortodoxa. A seguir, descreve como, a partir de 1654, o território ucraniano passou a fazer parte da Coroa russa em troca de proteção aos seus habitantes. Putin, entretanto, esconde outras influências que partes substantivas da Ucrânia sofreram, e que deixaram suas marcas na identidade ucraniana moderna.
A história da Ucrânia mostra que até 1648 a grande maioria dos ucranianos vivia sob jurisdição da Comunidade Polonesa-Lituana, e que a influência social e cultural da nobreza polonesa perdurou no país até à Revolução de 1917. A região da Transcarpátia ucraniana foi parte da Hungria, da Idade Média até 1919, e a Crimeia, conquistada dos turcos otomanos pelo império russo, na época de Catarina II, possui forte tradição islâmica e comunidades tártaras até à época atual. Ignorando o desenvolvimento da identidade ucraniana, Putin alega que a Ucrânia moderna foi produto da era soviética, uma espécie de entidade artificial, fruto da “generosidade” dos bolcheviques, esquecendo-se que a questão nacional era tratada por Lenin segundo os princípios da autodeterminação dos povos, e não por razões de bondade. Putin acusa ainda a Ucrânia de querer reescrever sua história desvinculando-a da Rússia, e isso devido a pressões dos Estados Unidos e da União Europeia. E arremata que “a verdadeira soberania do Estado ucraniano só é possível em parceria com a Rússia”. Putin, dessa forma, trata a Ucrânia como se o país ainda fosse a “pequena Rússia” da periferia do antigo império czarista.
O que Moscou realmente reativou da era soviética foi a escola stalinista de falsificação. Para justificar uma invasão tão transparente, o Kremlin lembrou a relação da Ucrânia com a OTAN, como se aquele país estivesse prestes a ser aceito no bloco; exagerou a importância de grupos ucranianos de extrema-direita, afirmando que a invasão militar tinha também como propósito “desnazificar” um país que é governado por um presidente de ascendência judaica; e muito na lógica usada por Hitler para ocupar em 1938 a região germanizada dos Sudetos, pertencente à antiga Tchecoslováquia, Moscou alegou que a intervenção era necessária igualmente para defender os russos étnicos da região do Donbass, que estariam sofrendo uma política de extermínio por parte do governo do atual presidente Volodymyr Zelensky.
Como um jogador compulsivo de pôquer, Putin apostou todas as fichas em um perigoso jogo geopolítico que pode voltar-se contra ele. O plano inicial de tomar Kiev e derrubar o governo ucraniano falhou, e a Rússia viu-se isolada política e diplomaticamente do mundo desenvolvido, além de sofrer severas sanções econômicas. Sua aproximação com a China, para contrabalançar o isolamento internacional, tem certa limitação, pois o governo chinês, embora tenha criticado as sanções ocidentais, não endossou a invasão da Ucrânia, preferindo abster-se nas votações sobre a guerra na ONU. Pior ainda, se a intenção era evitar a expansão da OTAN, o tiro saiu pela culatra, pois Suécia e Finlândia, países com tradição de neutralidade, solicitaram admissão no bloco militar.
Confira, a seguir, galeria:
A atual estratégia de Moscou parece se limitar a salvar as aparências e declarar que o objetivo da “ação militar especial”, como o alto comando militar russo denomina a invasão da Ucrânia, foi alcançado com a anexação das regiões do Donbass. Mas a julgar pela contraofensiva ucraniana em curso, a guerra vai continuar por tempo indeterminado, solapando os recursos da Rússia e obrigando Moscou a convocar centenas de militares de reservistas, o que pode minar a popularidade de Putin. Sem encontrar saída para o problema que criou, o governo russo faz constantes ameaças de usar o armamento nuclear do país, aumentando desta forma a escalada do conflito com o Ocidente.
O isolamento do país deve acentuar ainda mais o nacionalismo antiocidental na sociedade russa, assim como a guerra afasta a Ucrânia de sua tradicional ligação com a Rússia, empurrando os ucranianos para uma identidade cada vez maior com a Europa ocidental. Se fizermos um paralelo histórico com a situação do Japão e da Alemanha, podemos constatar que, após o fracasso desses países em expandir seu poder através de guerras e ocupações territoriais, ambos se reinventaram e se tornaram nações prósperas, respeitadas e influentes no mundo. A Rússia, ao contrário, continua a agonizar sobre a perda do status imperial e os rumos de sua identidade nacional. Catarina II, ao afirmar que seu império só seria mantido através da expansão, parece ter lançado uma maldição que continua assombrando o país.
Sobre os autores
Paulo César Nascimento é cientista político, formado pela Universidade de Brasília (UnB).
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de outubro de 2022 (48ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
*Leone Campos de Sousa é socióloga, graduada pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
** O artigo foi produzido para publicação na revista Política Democrática online de outubro de 2022 (48ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Astrojildo Pereira e Luiz Carlos Prestes: admiração e respeito mútuos
*Anita Leocadia Prestes, Blog da Boi Tempo
A nova edição de toda a obra de Astrojildo Pereira, revista e ampliada, e a reedição da sua biografia, escrita por Martin Cezar Feijó, pela editora Boitempo em comemoração aos 100 anos do PCB,1 constituem um ensejo propício ao resgate de alguns momentos do relacionamento estabelecido entre este fundador do partido, reconhecido intelectual brasileiro, e Luiz Carlos Prestes, conhecido como o “Cavaleiro da Esperança” e secretário-geral do Partido Comunista por cerca de 40 anos.
O primeiro contato entre Astrojildo e Prestes aconteceu na cidade boliviana de Puerto Suarez, na segunda quinzena de dezembro de 1927. Desde fevereiro desse ano, Prestes encontrava-se na Bolívia trabalhando numa empresa inglesa de terraplenagem junto com os combatentes da Marcha da Coluna, que haviam se exilado nesse país. Astrojildo, secretário-geral do PCB, viajara com a tarefa de tentar uma aproximação política com o líder dos “tenentes” – vistos pelos comunistas como a representação da “pequena burguesia revolucionária” – e, ao mesmo tempo, levava uma certa quantidade de livros de autores marxistas para lhe oferecer. Nas palavras do próprio Astrojildo:
Entreguei-os a Prestes dizendo-lhe que era nosso desejo que ele estudasse por si mesmo a teoria e a prática da política pelas quais buscávamos orientar o Partido Comunista, inteirando-se assim, não só dos princípios e fins da nossa atividade prática, mas também das soluções que a ciência marxista apresentava para os problemas sociais do nosso tempo. Devo hoje acrescentar que, ao dizer-lhe estas coisas, eu guardava a esperança de que Prestes, ao tomar conhecimento direto das ideias marxistas, não demoraria em compreender que elas exprimiam a verdade do presente e do futuro. Sua inteligência, sua honradez, sua experiência pessoal no contato com a gente e as coisas brasileiras fariam o resto. Os fatos demonstraram que eu não me enganava.2
Palavras estas que foram escritas 35 anos depois do encontro com Prestes; reveladoras, portanto, da permanência da admiração e do respeito de Astrojildo pelo seu interlocutor de então. No início de 1928, de volta ao Rio de Janeiro, o dirigente comunista publicou longa entrevista com Prestes, em três números consecutivos do jornal tenentista A Esquerda, dirigido por Pedro Mota Lima.
Consequência da virada na política da Internacional Comunista com a realização em 1928 do seu VI Congresso e da sua repercussão no PCB, Astrojildo Pereira foi expulso das fileiras comunistas em 1930.3 Afastado do partido, ao qual até então dedicara todos seus esforços, nunca o criticou de público, mantendo-se fiel às ideias marxistas e aos ideais revolucionários que abraçara ainda na juventude; dedicou-se especialmente à atividade literária e à manutenção de sua própria sobrevivência.
Ao final do período do Estado Novo, nos anos 1944/45, Astrojildo se uniria às forças democráticas que se mobilizavam na luta contra o nazifascismo e pela democratização do país. Foi um participante ativo e destacado do I Congresso Nacional de Escritores realizado no início de 1945, que desempenhou papel importante nesse processo.
Sob a influência do ambiente reinante nos meios intelectuais daquele momento, empolgados com o lançamento da candidatura do brigadeiro Eduardo Gomes à presidência da República, considerado herói dos “18 do Forte” de Copacabana e das revoltas tenentistas dos anos 1920, Astrojildo – nas palavras de Nelson Werneck Sodré – “acompanhou, de início, esta candidatura. E não foi ele, somente, mas muitos democratas sinceros e até pessoas de formação política de esquerda.”4
Astrojildo foi dos primeiros a visitar Prestes na prisão, quando isso lhe foi permitido, em março de 1945. Nessa ocasião comunicou a Prestes que acabara de assinar manifesto de apoio à candidatura do Brigadeiro. Advertido por Prestes ser esse o candidato do imperialismo e dos setores de direita empenhados na preparação de um golpe para deter o avanço das medidas de democratização do país que estavam sendo realizadas com a permanência de Getúlio Vargas no poder, Astrojildo imediatamente retirou sua assinatura do manifesto, revelando respeito e admiração pelo líder comunista, que se mostrara atencioso e compreensivo com ele.5
Com a legalização do PCB no final de 1945, Astrojildo solicitou sua reintegração no partido, cujo secretário-geral, eleito em 1943 na Conferência da Mantiqueira, era Luiz Carlos Prestes, dirigente comunista que nutria consideração e admiração pelo fundador do PCB. O velho militante dispôs-se a realizar uma autocrítica de suas atividades políticas, de acordo com a prática então em vigor entre os comunistas. Voltou a militar nas fileiras partidárias, concentrando seus esforços principais no trabalho intelectual na redação de revistas ligadas ao PCB, passando a dirigir, por exemplo, a revista Literatura, cujo conselho de redação revelava o caráter amplo que lhe foi atribuído, contando com a participação de intelectuais como Álvaro Moreyra, Aníbal Machado, Artur Ramos, Graciliano Ramos, Orígenes Lessa e Manuel Bandeira.6
Poucos meses depois, em julho de 1946, por ocasião da Terceira Conferência Nacional do PCB, foi eleito um Comitê Central, renovado e ampliado, sendo Astrojildo incluído entre seus novos suplentes,7 o que confirmava sua aceitação por parte de Prestes e do novo núcleo dirigente do partido.
No IV Congresso do PCB, realizado na clandestinidade em novembro de 1954, Astrojildo foi escolhido para fazer o discurso de abertura do conclave, honraria especial prestada ao fundador do partido.8 Posteriormente, no V Congresso, em 1960, Astrojildo foi eleito membro efetivo do Comitê Central,9 posição em que seria mantido após o golpe civil-militar de 1964, segundo dados apresentados por Ronald H. Chilcote, tendo por base fontes aparentemente confiáveis.10
Na condição de membro da direção do PCB, Astrojildo dirigiu várias revistas do PCB ou próximas ao partido. Foi diretor e redator-chefe de Problemas da Paz e do Socialismo, revista dedicada aos temas do movimento comunista internacional. Em 1958, fundou e dirigiu Estudos Sociais, revista teórica vinculada ao PCB, que circulou até 1964. Colaborou nos jornais do PCB, Imprensa Popular (1948-1958) e Novos Rumos (1958-1964).
Em 1962, a editora Vitória, pertencente ao PCB publicou o livro Formação do PCB (1922/1928): notas e documentos de autoria de Astrojildo Pereira.11 Seu lançamento oficial, durante as comemorações do 40° aniversário da fundação do PCB, teve caráter festivo com a presença de Luiz Carlos Prestes e de vários dirigentes do partido. Nesses anos, de 1958 a 1964, durante os quais, embora o PCB não tivesse a legalidade reconhecida, sua atuação na prática era quase legal, Prestes, então seu secretário-geral, procurou prestigiar a figura do fundador do partido. Apoiou a publicação do seu livro sobre a história da formação do PCB e, sempre que possível, comparecia às homenagens que lhe eram prestadas.
Nas fotos abaixo estão registrados momentos do banquete oferecido a Astrojildo por um número expressivo de representantes da intelectualidade carioca, em 12 de maio de 1962, por ocasião dos 50 anos de sua atividade jornalística. Em lugar de honra, à sua esquerda, encontro-me eu, filha de Luiz Carlos Prestes, que me pedira para representá-lo, uma vez que, devido às suas atividades partidárias, estava fora do Rio; Novos Rumos, o jornal legal do PCB, publicou uma página inteira dedicada à efeméride,12 revelando a admiração e o respeito que Prestes e a direção do PCB tinham pela personalidade de Astrojildo Pereira.13
No início de 1965, com a saúde seriamente abalada, Astrojildo, por força de um habeas corpus, saiu da prisão, em que estivera detido pelos militares que governavam o Brasil naquele período de ditadura militar. A pedido de Prestes, forçado a viver clandestino devido à intensa repressão policial, eu e minha tia Lygia Prestes visitamos Astrojildo em sua modesta residência situada na Rua do Bispo, na cidade do Rio de Janeiro. Muito debilitado devido a problemas cardíacos, agravados durante os meses de prisão, Astrojildo faleceu aos 75 anos em 20 de novembro daquele ano. Novamente, a pedido do meu pai, eu e a tia Lygia o representamos no enterro, realizado em cemitério de Niterói, no Rio de Janeiro.
Ao destacar a atitude de admiração e respeito de Luiz Carlos Prestes por Astrojildo Pereira, vale a pena lembrar o empenho do então secretário-geral do PCB, durante seu exílio na União Soviética nos anos 1970, pela preservação do arquivo do fundador do partido, que corria o risco de ser apreendido pela polícia no Brasil. José Luiz Del Roio, escritor e então militante do PCB, ex-senador na Itália, conta em vídeo-entrevista que Prestes, preocupado, se dirigiu a ele, em busca de uma instituição na Europa para onde a documentação reunida por Astrojildo – uma coletânea valiosa de documentos e jornais do movimento operário brasileiro – pudesse ser transferida e abrigada com segurança.14 Segundo Del Roio, Prestes não desejava que o referido arquivo fosse encaminhado para um país socialista, pois dizia que, uma vez entregue, não sairia mais desse local. Del Roio conseguiu a guarda dessa documentação pela Fundação Feltrinelli, situada em Milão (Itália), de onde mais tarde foi transferida para a Universidade Estadual Paulista (Unesp), na cidade de São Paulo.
Em outro depoimento, José Luiz Del Roio afirma:
Apesar da repressão tinha gente muito interessada em estudar o movimento operário, todo mundo falava deste misterioso e fundamental arquivo. Isso tudo passou por uma discussão e eu perguntei ao Luiz Carlos Prestes se ele sabia onde estava, como estava e se era possível retirá-lo do Brasil. Ele pessoalmente apoiou a ideia e nos incentivou muito, nos deu muito apoio.15
Ao concluir estas notas despretensiosas sobre Astrojildo Pereira, na ocasião da reedição de todos os seus livros pela Editora Boitempo, no ano do centenário do PCB, tentei revelar aspectos até hoje pouco conhecidos ou inéditos das relações que efetivamente existiram entre Luiz Carlos Prestes e o fundador do PCB, relações por vezes ignoradas, subestimadas ou deturpadas por diversos intérpretes da história do movimento operário e dos comunistas brasileiros.
*Texto publicado originalmente em Blog da Boi Tempo
Revista online | O caminho da América Latina é a democracia
Alberto Aggio*, especial para a revista Política Democrática online (43ª edição: maio/2022)
A América Latina nasceu com o advento da modernidade e sempre esteve vinculada à sua dinâmica histórica, suas crises e destino. É a experiência do “moderno” como um paradigma que nos faz pensar sobre nossas identidades e nossas relações com o mundo. Diversas formulações fizeram-nos cultivar a utopia de uma unidade latino-americana construída pelo antagonismo a um inimigo externo. Essa visão empobrecida e envelhecida não contempla as diversas experiências históricas do continente bem como o conjunto de problemas comuns determinados quer pelo desenvolvimento da formação econômica mundial, que dá sentido unitário a uma época, quer pelas diferenciações internas e conexões que se estabelecem em diversas dimensões da vida.
Esse debate intelectual é permanente, embora tenha estado mais vivo no momento da transição do autoritarismo para a democracia que abarcou a maioria dos países latino-americanos a partir da década de 1980. Hoje, imersos na complexidade da vida democrática, temos boas razões para retomá-lo. Isso coincidiu com o fim da URSS bem como da Guerra Fria. Buscar um caminho exclusivo tendo como perspectiva o “sul do mundo”, como foi praticado pelo chavismo e outras correntes similares, mostrou-se uma tentativa limitada e, por fim, pouco exitosa. É preciso continuar a pensar em termos globais.
Em comparação com aquele período, o cenário atual não é de otimismo, e há fortes reminiscências. Condenada à “tradutibilidade” do que não lhe é original, a América Latina sempre foi pensada a partir de alguns modelos. O primeiro deles foi o europeu, visto como algo a ser atingido e, paradoxalmente, como responsável pelos históricos problemas que assolam a região. A partir do século XX, essa referência ganhou a companhia e a concorrência do paradigma norte-americano, que passou a cumprir até com maior rigor a sina de adesão calorosa e repugnante rechaço. Recentemente, o modelo oriental alcançou um inaudito prestígio. Com o deslocamento do eixo econômico para o Pacífico, a China passou a ser o novo Graal, sendo cotidianamente mobilizada como modelo diante dos dilemas de inserção competitiva enfrentados pelas economias latino-americanas.
Haveria também formulações alternativas, autoproclamadas antagônicas ou de resistência. No coração delas assenta-se a ideia de uma “segunda independência” para o continente. Com maior ou menor profundidade, isso fez emergir um mosaico de nacionalismos, em geral, débeis e breves. A Revolução Cubana de 1959 avançou por esse sendero, e seu regime tornou-se, na América Latina, o epicentro de um nebuloso projeto de ruptura com a modernidade.
Tal fabulação alimentou a reiteração de estratégias terceiro-mundistas de resultados cada vez menos auspiciosos e hoje francamente obsoletos diante de uma realidade marcada pela mundialização e por uma mudança tecnológica acelerada. O fracasso das guerrilhas inspiradas em Cuba, os pífios resultados econômicos, além de um autoritarismo cada vez mais abjeto, acabaram por ensejar a abertura de uma reflexão crítica sobre o regime cubano, até então identificado como o paradigma consagrado dessas perspectivas alternativas. Nesse novo cenário, o imaginário da revolução perdeu energia e vitalidade, mesmo na roupagem do bolivarianismo ou do “socialismo del buen vivir”.
Galvanizando enormes esperanças, o recente processo político chileno que se inicia em 2019 produziu a vitória da esquerda, com Gabriel Boric, e o estabelecimento de uma Convenção Constituinte, autônoma e paritária, que em breve apresentará ao país um novo texto constitucional para ir a plebiscito, em setembro. As notícias não são animadoras em relação à aprovação do novo texto. De qualquer forma, o Chile mostra-se, no conjunto da América Latina, como um ponto avançado, mas também limite, no processo de democratização latino-americano. Há muita expectativa, muita esperança, mas também muita crítica e até frustração frente ao percurso e aos resultados parciais já definidos pela Constituinte chilena.
De qualquer forma, a conquista da democracia, das liberdades e do pluralismo facultou as condições para que os latino-americanos pudessem pensar em construir coletivamente o seu futuro. Na quadra em que estamos, trata-se de retomar o debate em novos termos, compreendendo a identidade latino-americana como uma construção em aberto, sustentada em diferenciações específicas e em cinco séculos de diálogo com o mundo. A recente experiência democrática torna-se assim o principal ativo da América Latina para que postule um lugar neste mundo que se transforma aceleradamente. Ela não pode perder esse ativo e não pode se deixar perder por visões anacrônicas, próprias ou externas, que não respondem mais à contemporaneidade e ao futuro.
Sobre o autor
*Alberto Aggio é mestre e doutor em História pela Universidade de São Paulo (USP). Professor titular em História da América pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), com pós-doutorado nas universidades de Valência (Espanha) e Roma3 (Itália). Dedica-se à história política da América Latina Contemporânea, em especial à história política do Chile. É o diretor do Blog Horizontes Democráticos. É autor de Democracia e socialismo: a experiência chilena (São Paulo: Unesp, 1993; Annablume, 2002, Appris, 2021 – no prelo); Frente Popular, Radicalismo e Revolução Passiva no Chile (São Paulo: Annablume/Fapesp, 1999); Uma nova cultura política (Brasília: Fap, 2008); Um lugar no mundo – estudos de história política latino-americana (Brasília/ Rio de Janeiro: Fap/Contraponto, 2015) e Itinerários para uma esquerda democrática (Brasília: Fap, 2018). É autor e organizador de Gramsci: a vitalidade de um pensamento (São Paulo: Unesp, 1998), e coorganizador de Pensar o Século XX – problemas políticos e história nacional na América Latina (São Paulo: Editora Unesp, 2003) e Gramsci no seu tempo (Brasília/Rio de Janeiro: Fap/Contraponto, 2010).
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática online de maio de 2022 (43ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Revista online | Com Claude Lévi-Strauss: a arte plumária dos índios
Ivan Alves Filho*
“Prezado Senhor, concordo com nosso encontro. Peço apenas que o senhor entre em contato novamente comigo dentro de dois meses. Estou particularmente sobrecarregado de trabalho no Collège de France, devido à retomada de meus cursos. Receba as minhas melhores saudações”. Foi esse o teor da carta que o maior mestre da antropologia do século 20, Claude Lévi-Strauss, me enviara, há mais de quarenta anos, em reposta a uma consulta minha. Meu objetivo era entrevistá-lo para a revista de cultura Módulo, dirigida por Oscar Niemeyer. Para viabilizar isso, vali-me da amizade existente entre o antropólogo e a escritora siberiana radicada na França Lydia Lainé, sua antiga colega de turma na Sorbonne, no curso de filosofia.
Esperei acontecer os dois meses e fui conversar com o velho sábio. O encontro se realizou em seu gabinete de trabalho, no Collège de France, a principal instituição universitária da Europa. Silenciosa, apinhada de livros e revistas de cultura, a sala de Lévi-Strauss mais parecia um santuário. O velho sábio leu durante alguns minutos as questões que eu levara por escrito e começou imediatamente a respondê-las. “As questões são excelentes. O senhor está de parabéns”, disse ele, gentilmente. Eu tinha apenas 27 anos de idade e não pude disfarçar meu contentamento com seu comentário. Mas ele só aumentava a minha responsabilidade.
Lévi-Strauss discorreu sobre tudo – ou quase tudo. Falou da prática artística dos povos ditos primitivos, dos seus mitos. Revelou-se um admirador das sociedades sem classes, ele, um velho defensor do socialismo, formado ainda nos embates ideológicos do final da década de 20. Emocionou-se, ainda, ao descrever sua vida no Brasil, sua convivência com os índios do Mato Grosso. Ao relembrar os nambiquara, sua voz ficou embargada e seus olhos se encheram de lágrimas. Aquilo me comoveu muito: Lévi-Strauss pertence àquela raça de sábios que se envolve emocionalmente com o objeto de seus estudos.
Porém, o que mais me surpreendeu foi sua firme defesa dos postulados materialistas. Confessou ter dois livros de cabeceira. O primeiro deles, A contribuição à crítica da economia política, de Karl Marx. O outro, Viagem ao Brasil, de Jean de Léry, um relato que praticamente inaugura a antropologia moderna, em meados do século XVI. Aprendi com Claude Lévi-Strauss que os fenômenos da superestrutura – tais como a arte e os mitos – refletem sempre o que se passa na infraestrutura de uma sociedade determinada. Vale dizer, eles têm sempre uma raiz concreta, não se podendo separar o imaterial do material. Para alguém que sofreu a acusação de desenvolver seu sistema de pensamento – o estruturalismo – fora da realidade histórica, isso não é pouco.
Claude Lévi-Strauss morreu quando completou um século de vida. Quase já não escrevia mais. Guardo com carinho as duas cartas que me escreveu, uma delas manuscrita, devidamente emoldurada por mim. Ao pensar no velho sábio, me vem à mente um belo poema de Worsworth:
“Assim como uma imensa pedra que às vezes vemos encolhida no topo nu de uma montanha...semelhante a uma coisa dotada de sensibilidade, qual um animal marinho...aquecido ao sol; assim parecia este homem, nem completamente vivo nem completamente morto ou de todo adormecido, em sua extrema velhice".
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*Ivan Alves Filho é historiador e documentarista
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática online de abril de 2022 (42ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores. Por isso, não reflete, necessariamente, as opiniões da publicação.
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Sérgio Gonzaga de Oliveira: A retomada do Desenvolvimento Econômico (I)
Democracia não deve ser um regime político baseado em práticas puramente eleitorais, desvinculada das condições objetivas da sociedade. Na verdade, a democracia pressupõe a existência de determinados direitos e liberdades básicas para que possa ser exercida com integridade. Dentre esses, os direitos sociais são fundamentais. Salário digno, previdência social, saúde, educação, habitação e tantos outros não podem ser relegados a um segundo plano. É muito difícil o exercício da cidadania quando os indivíduos vivem no limite da sobrevivência. Embora o Bolsa Família seja um programa importante para retirar da miséria absoluta milhões de brasileiros não é possível imaginar que um valor básico de R$ 85,00 e máximo de R$ 195,00 por mês irá transformar essas pessoas em cidadãos perfeitamente integrados à democracia. E direitos sociais não surgem do nada. Pelo contrário, exigem que a economia tenha atingido um patamar mínimo de produção e distribuição de renda.
Adicionalmente, o conceito atual de desenvolvimento econômico inclui obrigatoriamente a preservação do meio ambiente. Devemos lembrar que o ambiente natural é a fonte onde os humanos vão buscar alimentos, matérias primas e energia que lhes são tão necessários. A destruição do meio ambiente atinge mortalmente a economia. Os exemplos são cada vez mais alarmantes.
Cansamos de ler e ouvir que o Brasil é um país “emergente” ou “em desenvolvimento”. Até o início dos anos 80 do século passado, pelo menos em termos de crescimento econômico, era verdade. Entretanto, a partir daí, até nossos dias, o cenário mudou muito e para pior. Registra o economista José Luis Oreiro, em artigo recente, que entre 1930 e 1980 crescemos em média 6,32%aa e entre 1981 e 2013, apenas 2,55%aa. Se computarmos os cinco últimos anos de crise e baixo crescimento, o número cai ainda mais. Considerando o aumento populacional no período, esse número é lamentável. Alguns surtos de crescimento foram observados nos anos 90 e na primeira década do novo século, mas não foram suficientes para alterar a média geral muito baixa. São praticamente quatro décadas perdidas. Enquanto ficamos patinando, países como a Coréia do Sul, China, Austrália, Nova Zelândia e vários outros cresceram muito e estão a caminho de se tornarem desenvolvidos.
A questão do desenvolvimento não é trivial. Deveria ser uma preocupação constante de todos aqueles que lutam contra a injustiça social. Na verdade os que mais sofrem com a falta de produção, emprego e renda são os 50% da população de renda mais baixa que vivem nas regiões mais pobres e nas periferias das grandes cidades. Para esses, falta tudo: salário, alimentação, vestuário, saneamento básico, saúde, habitação e muito mais. É uma vida miserável e sem perspectiva. Do ponto de vista da cidadania, essa situação é uma tragédia.
A experiência mostra que quando se pretende estabelecer um projeto de desenvolvimento, é relativamente fácil reunir meia dúzia de economistas, advogados, engenheiros, sociólogos e outros acadêmicos para listar as principais medidas a serem tomadas para levar o projeto adiante. Alias é o que têm feito os partidos políticos de quatro em quatro anos, sem grandes resultados. Essa prática burocrática e eleitoral é a principal razão pela qual os projetos de desenvolvimento nos últimos quarenta anos no Brasil não vão adiante. Um projeto de desenvolvimento, principalmente em um ambiente democrático, precisa, antes de tudo, ser um projeto político. Deve ser construído, item a item, simultaneamente à formação de uma frente política capaz de levá-lo adiante. Sem essa configuração, perde-se tempo.
Ao pretendermos que o desenvolvimento seja inclusivo, distribuindo renda e respeitando o meio ambiente, estamos definindo que essa frente política, além de democrática, deve ser progressista. Por outro lado, para que possa ser efetivado com sucesso, deve ser majoritária. Uma frente política majoritária, democrática e progressista, construída em torno de um projeto de desenvolvimento, deveria ser hoje uma aspiração de todos os brasileiros. Não se deve limitar a participação das forças políticas nesse projeto, indicando a priori quem pode ou não pode tomar parte. Certamente as forças mais retrógradas, internas ou externas, que apostam no atraso social, de onde tiram suas eventuais maiorias eleitorais ou vantagens econômicas, não sentarão a mesa para negociar. Ao contrário, farão uma forte oposição. E o acordo político passa por negociações às vezes muito duras e difíceis. Soluções burocráticas foram tentadas nas últimas décadas, como o Programa Avança Brasil, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) e “Uma Ponte para o Futuro”. Os resultados, como eram de se esperar, têm sido irrelevantes.
A experiência internacional tem indicado que um acordo político dessa natureza resulta em um conjunto coerente de ações estratégicas, planejamento estatal e participação do capital privado. Os recursos financeiros necessários são extremamente elevados para que o desenvolvimento possa ser alcançado, em um prazo razoável, sem a participação do setor privado. Os escassos recursos do Estado devem ser reservados para as áreas onde a alternativa privada não é viável, para setores estratégicos ao próprio desenvolvimento e para a segurança nacional. Muitos dos investimentos necessários só podem ser efetivados pelo Estado, já que não têm retorno financeiro suficiente para atrair o capital privado. É o caso, por exemplo, da educação e saúde de populações de baixa renda ou investimentos em tecnologias básicas e adequadas aos recursos produtivos brasileiros. Talvez a maior contribuição do Estado ao desenvolvimento seja o planejamento e a coordenação dos planos e projetos estratégicos acordados.
No Brasil, a atual fragmentação das forças políticas e sociais e a falta de um projeto de desenvolvimento comum leva a uma virtual paralização do Estado. Pior do que isso, os grupos privados e corporativos mais organizados “canibalizam” a máquina estatal, destroem sua capacidade operacional e fragilizam as finanças públicas. A desorganização do Estado se reflete em toda a economia. Os consumidores se retraem e adiam as compras. Os fabricantes diminuem a produção. O setor privado reduz os investimentos em novas unidades produtivas ou aplica somente quando consegue taxas de lucro muito altas para compensar as incertezas. O desenvolvimento econômico cessa ou avança em ritmo muito lento, imobilizando o país. Estamos nessa situação há quase quatro décadas. É angustiante.
Em resumo, os problemas podem ser econômicos, mas a saída é necessariamente política. A solução para esse impasse é um movimento político que mude as expectativas negativas que os agentes econômicos e a população em geral têm em relação ao futuro do país. Sabemos que a construção desse projeto não é uma tarefa simples, mas certamente é necessária. Dificilmente uma força política sozinha, por mais bem intencionada que seja, conseguirá levá-lo adiante. De qualquer forma, a compreensão da importância e da natureza do problema é um primeiro passo para sua superação.
Para provocar o debate pretendo, num próximo artigo, tentar esboçar um diagnóstico da situação atual, tomando por referência as variáveis básicas dos modelos que buscam entender a dinâmica da economia capitalista no longo prazo.
_________________________
(*) Sérgio Gonzaga de Oliveira é engenheiro pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e economista pela Universidade do Sul de Santa Catarina (UNISUL)
Cristovam Buarque: As curvas da história
A história da humanidade e de cada país segue rumo, com avanços e retrocessos, em direção à eficiência e à justiça. O papel dos políticos conservadores é dificultar essa marcha, como fizeram adiando a Abolição da Escravatura. O papel dos políticos progressistas é apressar a marcha em direção ao futuro. Mas a história faz curvas, independentemente da vontade dos políticos. Nos últimos anos, o avanço técnico forçou uma curva com o surgimento do computador, da inteligência artificial, da robótica e das comunicações instantâneas. Outros movimentos fizeram o mundo ficar global na economia e a sociedade ficar corporativizada na defesa de interesses individuais; o cidadão virou consumidor; o crescimento econômico ficou limitado pela ecologia. Mas, apesar da clareza dessas mudanças na realidade, muitos ainda não percebem a curva feita pela história; continuam prisioneiros de ideias anteriores, querem o avanço em uma linha reta que já não existe.
Não entendem, por exemplo, que o Estado gigante defendido pela esquerda soviética e social-democrata ficou ineficiente na gestão e insensível às necessidades do povo, criou uma classe privilegiada entre seus dirigentes; e tem custo que rouba recursos da sociedade obrigada a pagar impostos elevados; e, ainda, incentiva a corrupção. A curva da história fez o Estado gigante ser um dinossauro político, apesar disso, muitos dos que se dizem progressistas continuam presos à ideia do Estado burocrático, caro e divorciado do povo.
Tampouco entendem que a justiça social e o bem-estar só podem ser construídos sobre economia eficiente. Até recentemente, a justiça se fazia dentro da economia, na repartição entre salário e lucro. Hoje a maior parte da população está fora da chance de ser incluída na economia formal, porque a curva da história eliminou empregos e exige formação profissional dos empregados. O desafio dos que buscam justiça social é desfazer a apartação, que separa de um lado os incluídos e, de outro, os excluídos. O caminho para isto está na educação de qualidade igual para todos, o filho do pobre na mesma escola do filho do rico. Mas os que não perceberam a curva da história esquecem os analfabetos e os que não terminam o ensino médio com qualidade, defendem a ilusão de universidade para todos, sem lutar pela erradicação do analfabetismo, pela educação de base de qualidade igual para todos e por uma reforma na universidade para que seus formandos estejam preparados para o dinâmico mundo do conhecimento em marcha.
A curva na história, que reduziu drasticamente a taxa de natalidade e aumentou a esperança de vida, exige reforma no sistema previdenciário; a velocidade do avanço técnico exige reforma nas regras das relações entre o capital e o trabalho. Mas os progressistas amarrados nostalgicamente às ideias do passado, no lugar de propostas progressistas que construam sustentabilidade para as próximas gerações, que eliminem privilégios de alguns grupos e colaborem para dinamizar a economia, preferem ficar contra as reformas que a curva da história exige. Estes progressistas não entendem ainda a verdade dos limites ecológicos que impedem a promessa de igualdade com alto consumo para todos.
O socialismo soviético acabou porque o Partido Comunista não entendeu a curva na história, ficou prisioneiro de ideias que se divorciaram da realidade na segunda metade do século XX. O mesmo acontece com a velha e tradicional esquerda brasileira, que não percebeu ainda a nova revolução tecnológica e social do mundo global e informatizado, com o agravante de se comportarem assim pelo reacionarismo de ideias superadas, mas também pela forte atração oportunista pelos votos dos eleitores seduzidos com falsas promessas. Neste ponto, esquerda e direita se unem, caindo na tentação populista, por oportunismo eleitoral ou por falta de conhecimento e de percepção da história e suas curvas. Foram muitos os erros que levaram os democratas-progressistas brasileiros a sofrerem a derrota na última eleição, mas o maior foi não perceber a curva da história nas últimas décadas no mundo.
O discurso de uma nova esquerda deve aceitar a desigualdade dentro de limites que ofereçam o mínimo para uma vida digna a todos, impeça o consumo que destrói o meio ambiente; aceite os limites do Estado e da Natureza, entenda a realidade da globalização e do potencial do avanço técnico; e adote o compromisso com a educação de máxima qualidade e igual para todos. (Correio Braziliense – 12/02/2019)
Cristovam Buarque, professor emérito da UnB (Universidade de Brasília) e ex-senador
http://www.pps.org.br/2019/02/12/cristovam-buarque-as-curvas-da-historia/
Cacá Diegues: A honra de viver
De que socialismo nosso novo presidente prometeu nos libertar, em seu discurso de posse no parlatório do Planalto?
Na minha juventude, éramos todos socialistas, queríamos que os homens fossem mais iguais e ninguém passasse fome. Podia até ser uma utopia, mas era um projeto sincero e generoso para a humanidade. Quem fosse inteligente e tivesse coração não podia deixar de ter ideias socialistas, se opondo à irracionalidade desumana do capitalismo. De acordo com nossa formação e crenças pessoais, o ideário podia vir recheado de princípios cristãos ou marxistas, conforme cada momento e a fé de cada um. Foi o socialismo real em alguns países, com sua violência e seu autoritarismo, que começou a nos afastar desse sonho.
Muitos saíram então em busca de uma alternativa à selvageria capitalista nos regimes de welfare state, o bem-estar social e democrático que bastaria às nossas pretensões humanistas. O exemplo estava na Escandinávia e eventualmente em outros países europeus, como a Inglaterra. Até que o vitorioso furacão individualista de Margaret Thatcher conquistasse o país e mais da metade do mundo. Inclusive os Estados Unidos de Ronald Reagan, recém empossado como presidente. Me lembro sempre da célebre e cruel declaração da primeira-ministra britânica, no início de seu mandato: “O socialismo dura até acabar o dinheiro dos outros”. Para Thatcher, o que era chamado de dinheiro público não existia; o que existia era apenas “o dinheiro de quem paga impostos”.
Com o fim da ditadura no Brasil e o início de nossa redemocratização, procuramos, por aqui mesmo, nossa remissão das dores do capitalismo e da pobreza subdesenvolvida. O Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB) parecia uma modernização do socialismo democrático para os trópicos. E o Partido dos Trabalhadores (PT) deixava de ser uma agremiação sindical de resistência para se tornar um partido popular. Eles se alternaram no poder, durante décadas de nossa democracia adolescente, sem nunca atender ao que eles próprios anunciavam. Nós bem que tentamos acreditar neles e em seus líderes mais expressivos.
Agora vem o novo presidente, eleito em proclamada oposição a tudo que esses partidos representaram no poder, dizer que vai libertar o Brasil do socialismo. Que Brasil? Que socialismo?
A desigualdade em nosso país é cada vez mais brutal e vergonhosa. Ela não ficou estacionada em números escandalosos, anteriores ao PSDB, ao PT e ao MDB, mas se agravou nesses últimos anos, mesmo que certos aparentes sucessos governamentais tenham dado outra impressão ao país. Segundo relatório da Oxfam Brasil, revelado pelo presidente de seu Conselho Deliberativo, o 1% mais rico de nossa população detém cerca de 25% da renda nacional. Os 5% mais ricos, por sua vez, ganham o mesmo que a soma de todos os outros 95%. E 165 milhões de brasileiros, mais de 75% de nossa população, vivem com menos de dois salários mínimos mensais. Tem mais: 0,1% da população concentra 48% de toda a riqueza nacional e os 10% mais ricos ficam com 74% dela. Em outro cálculo estatístico sobre a nossa desigualdade, a Oxfam demonstra que os mais pobres morrem, em geral, com idade inferior a 60 anos; enquanto os mais ricos sobrevivem, em média, até os 80 anos. E por aí vai.
Não me rio da ministra que viu Jesus Cristo trepando na goiabeira, embora ache ridícula essa história de que meninas só vestem rosa e meninos, azul. Assim como não vejo por que rir do cavalo que faz baixar seu santo no terreiro. Ou subestimar a capacidade de fazer milagres de João de Deus, o estuprador. Acredito em toda crença ou em toda fantasia humana que não faça mal a ninguém. Tudo isso só nos traz mais esperança no que pode acontecer conosco e no mundo. Mas esses números são a prova de nossos descuido, despreparo e incompetência. Sobretudo de nossa indiferença e desinteresse pelos outros.
Ninguém precisa libertar o Brasil do socialismo, porque no Brasil nunca houve socialismo nenhum, apenas a demagogia sempre vencida pela desigualdade real e crescente. É essa que precisa ser extirpada, a qualquer preço, por qualquer que seja o partido no poder, por qualquer que seja seu programa de governo. É preciso viver a existência do outro, justificar o mote generoso de nosso grande jurista Dario de Almeida Magalhães: “Viver é uma honra”.
Ivan Alves Filho: Um século russo
O século XX – um século breve, conforme a definição do historiador marxista britânico Eric Hobsbawm – começou e acabou na Rússia. Teve início em 1917, quando os revolucionários bolcheviques liderados por Vladimir Illitch Lênin tomaram de assalto o Palácio de Inverno, num sete de novembro, em São Petersburgo. E terminou com o fim da experiência soviética – iniciada em 1921 -, com a queda de Mikhail Gorbachev, o último secretário geral do Partido Comunista, em 1991.
Muito já se escreveu a propósito do desmoronamento do socialismo realmente existente. O sistema teria sido minado por seus próprios desvios burocráticos. Ou sucumbido à poderosa propaganda ideológica do inimigo capitalista. Ou, ainda, desdenhado a questão da democracia política. Para outros, a corrida armamentista deslanchada pelo campo ocidental, sobretudo pelos norte-americanos, enfraqueceria de maneira irreversível as economias socialistas, (historicamente debilitadas, se comparadas com o desenvolvimento das potências capitalistas, com o ponto de partida delas). Tudo isso é verdade. Mas existe um outro aspecto nunca lembrado nessa questão do desmoronamento da União Soviética: o país não soube – ou não pôde – se dotar de uma base material que possibilitasse sustentar no topo relações de produção de novo tipo, livres de qualquer exploração do homem pelo homem, conforme estabelecia o ideário marxista. E sem uma base material nova, não existe modo de produção historicamente novo. É o que a marcha da História nos ensina.
O fato é que a antiga URSS fez uma revolução política mas herdou a base material por excelência do sistema capitalista – a unidade fabril. E não criou nada no lugar dela. E o mais dramático ainda estaria por vir: a base material da sociedade sem classes – representada pela revolução técnico-científica em curso no mundo há pelo menos três décadas, com base na automação – surgiria primeiro no Ocidente capitalista. A base técnica dessa sociedade, bem entendido – e não a sua base social e política. É como se a Revolução Russa de 1917 tivesse colocado a política na frente da economia (ou das forças produtivas, mais concretamente) e o Ocidente tivesse feito justamente o contrário disso.
Seja como for, a União Soviética não somente deixaria de modificar essa base material (o capitalismo, diga-se de passagem, mudou a base do feudalismo, o que possibilitou explodir de fato com as relações servis de produção, reforçando assim o próprio capitalismo) como também manteria as relações assalariadas de produção já presentes no capitalismo. E o que é ainda mais sintomático, o capital permaneceria intocado também no interior do socialismo real. A pergunta parecia ser: o que fazer com ele?
O que o socialismo real modificaria estruturalmente, então? Na verdade, apenas o estatuto formal dos meios de produção, doravante sob o controle do Estado, não necessariamente socializado. É preciso reconhecer isso. Não é demérito. É que não havia condições de se caminhar mais longe do que isso, dada as condições da sua implantação. No fundo, os bolcheviques contavam com o pipocar da revolução na Alemanha, área mais avançada, para viabilizar de fato a Revolução Russa. Tanto que o idioma oficial da III Internacional, criada em 1919, era o alemão.
Problemas fundamentais que têm que ver com o caráter da gestão, tão ou mais importantes até do que o próprio estatuto da propriedade, foram praticamente postos de lado. Afinal, se apropriar dos meios de produção é inseparável de se apropriar dos meios de gestão – ou deveria ser. Pior ainda: a ideia de socialismo se restringia à esfera econômica, mais concretamente às nacionalizações operadas no âmbito da indústria. Vale destacar ainda que o próprio Karl Marx evitava se referir ao termo socialismo: para o filósofo e ativista alemão o que havia, na realidade, eram duas fases do comunismo, uma inferior e outra superior. Está na Crítica do Programa de Gotha.
E a relação com a propriedade assim como a relação de exploração do trabalho não eram as únicas apontadas por ele como responsáveis pela alienação do homem. Ou seja, a coisificação crescente do ser humano e a opressão exercida pelo Estado sobre ele foram ignoradas pelo socialismo realmente existente. Vale dizer, são muitas as áreas da experiência humana que mereceram a atenção de Marx, e não apenas a opressão econômica. Contudo, acabou prevalecendo a redução da “etapa inferior” do comunismo à simples organização de um sistema econômico com base nas empresas estatais. Deu no que deu.
Na seara política, prevaleceria um absolutismo próximo daquele vigente na Europa do Oeste durante o século XIX. Absolutismo esse que deitava raízes no velho czarismo, é bem verdade – mas que o fechamento da Assembleia Constituinte pelos bolcheviques só agravaria. Na realidade, os líderes políticos russos viraram as costas a algumas das mais caras práticas democráticas presentes desde o final do século XIX no movimento socialista e operário europeu, como os direitos de greve, de reunião e de voto. Ora, se essas conquistas foram obtidas sob o capitalismo, mais uma razão para que fossem mantidas por aqueles revolucionários. Questão complexa esta da democracia.
O fato é que a Revolução Russa teve dificuldades em assimilar o que a civilização humana havia produzido de melhor, até então. E a democracia é justamente isso: um conjunto de valores civilizatórios, em que despontam conquistas como o habeas corpus, que data do Império Romano. A tradição autoritária russa – uma área de frágil presença da sociedade civil, frequentemente engolida pelo Estado, em prática nitidamente “oriental” – acabou falando mais alto.
A extraordinária contribuição da União Soviética à luta contra o nazismo não seria, infelizmente, assimilada internamente no sentido de uma abertura política. Mesmo assim, os comunistas ajudaram a consolidar a democracia no Ocidente, participando de governos de União Nacional, como na França e na Itália, e estimulando políticas de frentes populares. Propuseram a importantíssima política de coexistência pacífica entre regimes sociais diferentes. E o papel dos comunistas nas lutas pela descolonização também foi digno de nota, com destaque para seu apoio inabalável ao povo do Vietnam. Os comunistas da III Internacional – é preciso dizer – também fizeram sua parte na luta contra a barbárie. Lamentavelmente, por momentos também mergulharam nela, como no período stalinista.
No fundo, a grande diferença entre a proposta comunista e a capitalista é de natureza antropológica. Ou seja, reside na batalha pela desalienação do homem em todos os planos da sua existência, do econômico ao modo de vida. Uma batalha pela superação daquilo que Marx denominava por “pré-história” do homem. Não basta mudar a sociedade; é preciso também mudar a própria civilização. A rigor, a Revolução Russa ficará para a História como uma espécie de ala esquerda da sociedade industrial.
A História ensina que, com todas as limitações de uma primeira experiência revolucionária, a luta pela preservação da Revolução e a montagem de um Capitalismo de Estado – a definição é do próprio Lênin, em seus escritos sobre o caráter da Rússia pós-1917, mais exatamente em seus artigos econômicos – liberaria uma energia extraordinária, como que represada por longos anos na velha Rússia dos czares. É que havia a esperança de uma mudança radical no modo de vida. E, em vários setores do conhecimento e da prática humanas, essa esperança se concretizou. E isso também é inegável, é preciso que se reconheça. Da servidão à industrialização: a Rússia, em pouquíssimas décadas, passou de um país de servos a um país onde os proletários almejavam, pela primeira vez na História, chegar ao poder. Tudo isso não é pouco mesmo.
Os artistas e a arte russa e soviética materializariam esse início de mudança – para melhor, imagino – das fontes da vida no chamado socialismo real. É o que a própria realidade objetiva nos diz. Vejamos a coisa de perto. O cinema documental, com Dziga Vertov à frente, nasceu durante o processo revolucionário russo. Seu belíssimo “Três cânticos para Lênin” até hoje emociona as plateias do mundo inteiro, pela força de suas imagens, até por uma certa aspereza que delas emana. Fascinante, realmente. Serguei Eisenstein, pelo lado do cinema ficcional, dirigiu e montou verdadeiras obras-primas, como “Outubro”, “Ivan, o Terrível” e “Que viva México!” (este último inacabado. Os soviéticos chegaram então a sondar Glauber Rocha para terminar o filme.). Como esquecer um criador como Eisenstein, se ele já pertence ao patrimônio cultural da humanidade?
Se caminharmos para o lado das artes plásticas, impossível deixar de mencionar os nomes dos criadores russos Marc Chagall (que chegou a ser comissário do povo ou ministro no novo governo da Revolução), Malevitch e Kandinsky, verdadeiros ícones da modernidade, compreendendo aí os experimentos com as linguagens abstratas na pintura.
E a história se repete na poesia, na dramaturgia e na novelística, onde despontam nomes como Maiacovski, Essenin, Bloch, Meierhold e Máximo Gorki, todos de primeiríssima linha. A influência desses artistas e escritores extrapolou a própria cultura russa, encantando o conjunto da cultura ocidental.
O que dizer ainda? No terreno das práticas educacionais, não podemos esquecer tampouco o nome de Makarenko. O pensamento revolucionário russo não ficaria atrás: teóricos como Lênin, Bukharin, Lunacharski e Trotsky enriqueceriam a compreensão dos fatos políticos no século XX. E é preciso reconhecer que o próprio Josef Stalin, em que pese seus erros e crimes brutais, foi autor de um estudo dos mais rigorosos sobre a questão da nacionalidade. Difícil encontrar um país como a Rússia, decididamente.
Revolução, pelo visto, também é cultura. Esta, talvez, uma das heranças mais memoráveis de 1917 – talvez até a principal delas. E essa memória aquece os nossos corações, irremediavelmente esperançosos, apesar das vicissitudes da História recente.
Na velha Rússia, e também fora dela.
* Ivan Alves Filho é jornalista, historiador, autor de mais de uma dezena de importantes livros, o último dos quais é O Homem e o Tapeceiro, editado pela Fundação Astrojildo Pereira
Daniel Aarão Reis: O desvio autoritário de uma ideia
Durante o século XIX, socialismo e democracia eram conceitos intercambiáveis. O socialismo era visto como um aprofundamento da democracia e só seria possível quando esta fosse aperfeiçoada. Eram ideias poderosas, que se sedimentaram principalmente após as revoluções francesas de 1848 e de 1871 (a Comuna de Paris), quando vários partidos socialistas se formaram pelo mundo. Em 1889, fundou-se a II Internacional Socialista, rapidamente dominada por aqueles que se intitulavam herdeiros de Karl Marx. Para todos eles, os valores democráticos eram referências comuns. Lutava-se pelo sufrágio universal, direto e secreto. Pela liberdade de organização sindical e partidária, pela liberdade de imprensa e pelos direitos sociais. Mesmo nos países da Europa Oriental, onde ainda eram ignoradas as liberdades democráticas, os partidos socialistas eram identificados com a democracia e nada é mais eloquente a este respeito do que o fato de que eles, na Rússia, se autodenominassem e fossem conhecidos como “a democracia”.
No mundo atual, contudo, esses dois conceitos parecem estar separados como água e óleo. Na América Latina, no começo dos anos 1980, o Partido dos Trabalhadores (PT), por meio de várias de suas tendências, cultivou a ambição de construir um caminho socialista e democrático. Mais tarde, porém, derivas pragmáticas e “gestionárias”, ocupadas quase que exclusivamente em “administrar os negócios”, e garantir a “governabilidade”, fizeram com que o PT perdesse esse rumo. Casos em que socialismo e democracia aparecem juntos são raros, mas existem. No Uruguai, propostas de construção de um socialismo democrático estão vivas no interior da Frente Ampla, destacando-se aí a figura de José Mujica. Na Europa, têm aparecido igualmente tendências socialistas democráticas, ecológicas e favoráveis à auto-organização das gentes, com destaque para Espanha, França, Islândia, Itália e Grécia. Todos esses movimentos, porém, têm dificuldade em se apresentar como democráticos.
A principal razão para essa crise de confiança no socialismo originou-se nos desdobramentos da Revolução Russa. O comunismo russo dissociou democracia e socialismo, principalmente após a revolução que ocorreu durante as Guerras Civis, entre 1918 e 1921. Os anarquistas passaram a ver o socialismo soviético como uma espécie de capitalismo de Estado. Para os social-democratas, tratava-se de um “socialismo de quartel”. Um pouco mais tarde, Trotski lançou a ideia de um “socialismo degenerado”. Todos esses críticos não perceberam que estava surgindo um socialismo de novo tipo: autoritário, centralista, estatista. Foi ele que hegemonizaria a história do socialismo no século XX.
Convém recordar, antes de mais nada, que, na Rússia, na virada do século XIX para o século XX, inexistiam tradições democráticas. Uma autocracia totalizante imaginava o Imperador como gosudar, ou seja, o “amo” de um “domínio”, estabelecendo-se entre ele e seus vassalos uma dominação absoluta, sem mediações institucionais. O czar (do latim, César) regia seus territórios e gentes com mão de ferro, só prestando contas a Deus. Os governos eram de sua livre nomeação. A burocracia civil, hierárquica e vertical, “seus olhos e ouvidos”. A Igreja Ortodoxa, decisiva na formação de um povo extremamente religioso, também era controlada pelo autocrata. Na defesa do regime, uma das melhores polícias políticas do mundo destacava-se pela eficiência, enquanto os cossacos, tropas especiais, reprimiam com brutalidade os movimentos sociais. Num outro plano, as forças armadas formavam um dispositivo temível interna e externamente.
Entre 1905 e 1921, a Rússia conheceu um ciclo de cinco revoluções. Em 1905, movimentos sociais, defendendo reivindicações democráticas, agitaram a sociedade de janeiro a dezembro, quando foram esmagados. Durante o ano de 1905, a revolução na Rússia surpreendeu a todos. Ela foi derrotada, mas fixou experiências que permaneceram nas memórias. Quatro grandes movimentos sociais se destacaram: operários, soldados e marinheiros, camponeses e nações não-russas. A eles se associaram as classes médias e mesmo setores das elites sociais. Em comum: a luta contra a autocracia e por uma assembleia constituinte que democratizasse o poder no sentido de uma monarquia constitucional ou de uma república democrática, como os mais ousados já propunham.
Em 1917, no contexto da I Guerra, de proporções totais e de caráter industrial, a Rússia, aliada à Inglaterra e à França, suportou mal a pressão dos exércitos alemães. Em consequência, exasperaram-se as contradições políticas e sociais. O resultado foi que, em fevereiro daquele ano, em Petrogrado, capital do Império, cinco dias de grandes manifestações, sucessivas e surpreendentes, de operários e soldados, derrubaram a autocracia. Emergiu, então, uma sociedade livre de repressão e de quaisquer tipos de constrangimento. Como disse um observador: “Todos queriam mandar e ninguém pensava em obedecer.”
Encimando a máquina administrativa tradicional, constituiu-se um governo cuja capacidade de comando, porém, sempre foi muito reduzida. Em contraste, e por toda a parte, multiplicaram-se os poderes de fato: conselhos (sovietes) de soldados e operários, comitês agrários, assembleias, milícias armadas, associações de jovens e de mulheres, sindicatos, etc. Eram redes horizontais que só respeitavam diretivas ou ordens que correspondessem a suas vontades e interesses. Ressurgiu a reivindicação comum, formulada em 1905: eleger uma assembleia constituinte, eleita na base no sufrágio universal. Por ela um novo governo seria legitimado e teria autoridade — era o que se esperava — para governar as gentes. Era preciso marcar o quanto antes a data de sua convocação. E acabar com a guerra, cujo peso ninguém aguentava mais. Entretanto, os governos que se sucederam não foram capazes de responder a esses desafios.
Num contexto de imensa cacofonia, desencadearam-se movimentos sociais cada vez mais poderosos, sem freios e autônomos: os operários exigiam melhores condições de vida e de trabalho; os camponeses queriam a terra, toda a terra, sem nenhum tipo de indenização aos proprietários; os soldados e os marinheiros exigiam a paz imediata, a qualquer custo; as nações não-russas, nas brechas, queriam a independência nacional, ameaçando a integridade do país. No turbilhão social, fortaleceu-se, cada vez mais, a proposta de derrubar o governo e entregar “todo o poder” aos sovietes e às organizações populares. Um congresso pan-russo dos sovietes, convocado para 25 de outubro, decidiria esta e muitas outras questões.
Foi nessa situação caótica em que “ninguém obedecia ninguém” que aconteceu uma terceira revolução, a de outubro. Ela teve uma face autoritária notória: o partido bolchevique, que então passara a controlar, entre muitos outros, o Soviete de Petrogrado, organizou uma insurreição na capital e tomou o poder central. As guerras civis que viriam em seguida decidiriam o destino daquele processo histórico. Elas foram, de fato, uma revolução na revolução. Houve uma guerra entre o novo governo revolucionário e as anteriores classes dominantes (vermelhos vs. brancos). Foi a principal polarização, mas não a única. Ocorreram ainda duas outras guerras, a que opôs os bolcheviques e as demais forças socialistas, contrárias ao rumo ditatorial que os bolcheviques imprimiam ao poder revolucionário (vermelhos vs. vermelhos). E a que opôs os russos e os não-russos, pois o direito à secessão, reconhecido na teoria, foi desrespeitado na prática. As guerras civis se estenderam até 1921. Elas arrasaram o país e liquidaram com a autonomia e a democracia que as organizações populares haviam conquistado ao longo de 1917.
Na tentativa de reverter este processo, em março de 1921 ocorreu uma quinta e última revolução, realizada pelos marinheiros da base naval de Kronstadt. Eles queriam um retorno à democracia socialista e às liberdades soviéticas de 1917. Os marinheiros, com muitos ucranianos e lituanos entre eles, foram esmagados a ferro e fogo pelos bolcheviques. Consolidou-se, assim, um regime ditatorial que permaneceu intocado até a desagregação da União Soviética, em 1991.
Dessa forma, o comunismo russo deu início a uma nova vertente do movimento socialista mundial. Criou até mesmo a Internacional Comunista ou III Internacional, que perdurou até 1943. Mesmo após esta data, contudo, as conexões do comunismo russo com o mundo continuaram fortes. Embora a revolução chinesa de 1949 e a cubana, de 1959, tenham ocorrido com pouca ou nenhuma ajuda soviética, os governos que se formaram adotaram, pelo menos nas primeiras fases, os padrões do socialismo soviético: ditadura política, planificação centralizada, estatização radical da economia, mobilização ideológica da sociedade, reformas sociais profundas. Ao lado da Revolução Russa, elas configuraram um padrão, o da revolução catastrófica, que se associa necessariamente a ditaduras políticas. Uma tragédia para a teoria, a proposta — e a esperança —, que associava socialismo e democracia. Em comum, as revoluções em Cuba e na China também ocorreram em sociedades agrárias, como a russa.
De modo geral, e curiosamente, as tendências soviéticas sempre negaram seu caráter ditatorial. Em suas polêmicas com os social-democratas europeus, Lenin argumentaria que a “democracia soviética” era “mil vezes mais democrática” que a melhor democracia europeia. Ele se referia ao processo soviético de 1917, que não mais existia na Rússia revolucionária. Em outras linhas de argumentação, os socialismos autoritários reivindicaram-se como “verdadeiras democracias” por terem sido capazes de alcançar a soberania nacional e de realizar efetivas reformas sociais (nacionalização da terra, serviços públicos gratuitos e de qualidade na educação e saúde), reduzindo drasticamente as desigualdades sociais. Ao mesmo tempo, buscaram legitimar-se criticando as insuficiências gritantes dos regimes democráticos liberais — corrupção dos processos eleitorais, nível baixo de participação efetiva das gentes nas decisões políticas, permanência de desigualdades sociais, etc.
Em todos esses argumentos há importantes grãos de verdade, o que contribuiu para que esses regimes adquirissem uma certa legitimidade, interna e externa. Por outro lado, na medida em que as classes trabalhadoras europeias e seus partidos foram conquistando importantes reformas sociais e políticas, tenderam a se afastar de uma perspectiva socialista revolucionária. Em consequência, quase todos os partidos social-democratas mudaram seus programas originais, comprometidos com a superação do capitalismo, adotando-se fórmulas afeitas ao capitalismo “regulado”, também chamado de “estado de bem-estar social”.
Assim, a bipolarização entre “comunismo” ditatorial e “social-democracia” gestionária, marcou profundamente a história do socialismo do século XX.
Entretanto, a partir dos grandes movimentos sociais de 1968, a crítica ao paradigma da “revolução catastrófica” se fortaleceu, gerando diversas correntes que, no interior da social-democracia, criticavam suas tendências à “gestão progressista” do capitalismo.
A desagregação da União Soviética, em 1991; as opções da China no sentido de um desenvolvimento capitalista sob controle do Estado, mantida a ditadura política; e a transformação da Revolução Cubana numa ditadura conservadora e familiar geraram situações favoráveis ao repensar de um socialismo democrático, com raízes nos movimentos socialistas do século XIX, cujas experiências mais fortes encontravam-se na Europa e nos Estados Unidos. Este é o desafio que se coloca para uma eventual reinvenção do socialismo no século XXI — voltar a associar socialismo e democracia. Só assim terá condições de prosperar como alternativa.
* Daniel Aarão Reis é professor de História Contemporânea da Universidade Federal Fluminense/UFF
Hubert Alquéres: Todo poder a Stalin
“Paz, Pão e Terra”, prometiam os bolcheviques que fizeram a revolução de 1917 sob o lema “todo poder aos sovietes” e contrariaram os cânones do marxismo, para quem o socialismo pressupunha uma base material desenvolvida, o que não existia na Rússia czarista. A “heresia” de Vladimir Ilyich Lenin consistiu em pular a etapa da revolução burguesa e fazer a revolução socialista em um país agrário, no qual a classe operária era extremamente minoritária.
A rigor mesmo, o poder dos sovietes nunca foi constituído. A vida desses conselhos operários foi efêmera. Cedo eles se transformaram em peça decorativa. E a chamada “democracia proletária”, dos quais os sovietes seriam sua expressão máxima, em uma falácia.
Os hagiográficos da revolução socialista justificam o “Comunismo de Guerra” e o “Terror Vermelho” dos primeiros anos da Revolução em virtude da sangrenta guerra civil que se seguiu à tomada de poder. Essa mesma visão determinista e conjunturalista também é usada para justificar os crimes de Josef Stalin. E tendem a livrar a cara de Lenin, ao considerar Stalin como uma distorção do leninismo.
Uma meia verdade, ou melhor, uma falsificação histórica.
Após a tomada do poder, ainda em 1917, Lenin cumpre a promessa de convocar a Assembleia Constituinte. Mas manda fechá-la logo em seguida porque os socialistas revolucionários de esquerda e os mencheviques liderados por Julius Martov tinham elegido a maioria. Nascia ali a ditadura do partido único, que depois se transformaria na ditadura de uma corrente – a do stalinismo – e, em seguida, na ditadura unipessoal de Stalin.
Lenin e seus seguidores cumpriram a premonição de Rosa de Luxemburgo, por meio de uma carta escrita em uma prisão alemã, em 1918:
-Sem eleições gerais, sem liberdade de imprensa e de reunião, sem um livre debate de opiniões, a vida em todas as instituições públicas fenece, torna-se uma mera rotina e só a burocracia permanece viva (...) Na essência é o governo da camarilha e sem dúvida sua ditadura não é uma ditadura do proletariado, mas a ditadura de um punhado de políticos (...) Socialismo sem liberdade política não é socialismo(...) Liberdade ativa para partidários não é liberdade”.
Em 1º de março de 1921 os marinheiros da fortaleza de Kronstadt se sublevaram, exigindo eleição livres nos sovietes, inclusão de todos os partidos socialistas nos sovietes, fim do monopólio no poder dos bolcheviques, dissolução de órgãos burocráticos, liberdade econômica para operários e camponeses, além de restauração dos direitos civis.
A agenda democrática e a Revolta de Kronstadt tem como reposta o massacre de seus marinheiros por tropas do Exército Vermelho comandadas por Mikhail Tukhachevsky. A repressão à Fortaleza, símbolo da Revolução de Bolchevique, uniu dois inimigos figadais: Stalin e Trotsky. Os bolcheviques foram os jacobinos da Revolução Russa, elevados a enésima potência. No livro O Fim do Homem Soviético, Svetlana Aleksievitch, prêmio Nobel de Literatura 2015, reproduz sentenças de três bolcheviques, que ilustram o desapreço pelo ser humano:
- Precisamos atrair para nós noventa ou cem milhões que povoam a Rússia Soviética. Com o restante não devemos falar – é preciso exterminá-los. (Zinoviev 1918)
- Enforcar (sem falta, enforcar para que o povo veja) não menos de mil kulaks (camponeses ricos) presos, que enriquecem... tirar-lhe todos os cereais, designar reféns... De tal modo que que a cem quilômetros em redor o povo veja e trema”. (Lenin, 1918)
- “Moscou está literalmente a morrer de fome” (professor Kuznetsov para Trotsky) Isso não é fome. Quando Tito ocupou Jerusalém, as mães judias comiam seus filhos. Quando eu forçar as vossas mães a comerem os seus filhos, então podem vir ter comigo e dizer “Temos fome”. (Trotsky, 1918)
A frase de Trotsky virou quase uma premonição. Quinze anos depois o canibalismo pintou com força na Ucrânia, no período grande fome decorrente da coletivização forçada da agricultura promovida por Stalin.
Svetlana narra um desses casos: “Na aldeia deles uma mãe matou o próprio filho com um machado para cozer e dar aos outros. O seu próprio filho... Receavam (os pais de família) deixar as crianças saírem de casa. Apanhavam as crianças como os gatos e cães”.
O quadro dantesco da grande fome de 1932/1933 foi produto direto de como se deu a acumulação primitiva do socialismo diante de uma sociedade agrária e de base material atrasada.
A eliminação dos kulaks e a apropriação de grãos para a exportação financiaram a industrialização acelerada. Em apenas dois planos quinquenais, a URSS tornou-se uma potência econômica.
Mas às custas de encharcar de sangue a imensa mãe Rússia. Da Ucrânia aos Urais, do Báltico ao Mar Negro, do Cáucaso a Sibéria.
O caminho da acumulação socialista escolhido por Stalin seria inviável sem o Grande Terror dos anos 30. Com Lenin, a URSS era uma ditadura para toda a sociedade e a democracia existia apenas no interior do partido bolchevique, embora o direito de facção tenha sido suprimido no 10º Congresso do PCUS em 1921. Os anos pós Lenin transformaram a ditadura do partido único na ditadura de uma única corrente do partido (a leninista-stalinista) e, em seguida, na ditadura unipessoal de Stalin.
Em vez de “todo poder aos soviets”, todo Poder a Stalin. Tudo o que a história provou ser o sinônimo da insensatez e da barbárie.
* Hubert Alquéres é professor e membro do Conselho Estadual de Educação (SP). Lecionou na Escola Politécnica da USP e no Colégio Bandeirantes e foi secretário-adjunto de Educação do Governo do Estado de São Paulo
José Antonio Segatto: Revolução Russa – da esperança à tragédia
O fim trágico do socialismo real acabou por legitimar o capitalismo
Há um século, em outubro de 1917, o processo revolucionário desencadeado na Rússia em fevereiro – com o colapso do império czarista – sofreu drástica inflexão e ganhou um curso imprevisto sob a direção do partido bolchevique.
Ainda no calor da hora, um jovem militante socialista italiano, Antonio Gramsci, escreveu um pequeno e instigante artigo intitulado “A revolução contra O Capital”. Segundo o autor, a conquista do Estado pelos bolcheviques contrariava as diversas tendências do movimento socialista europeu e também russo (mencheviques e socialistas revolucionários). A leitura que faziam do livro de Karl Marx (que, aliás, completava 50 anos da publicação de seu primeiro volume, em 1867) presumia que a revolução democrático-burguesa e o consecutivo desenvolvimento do capitalismo seriam pressuposto básico e necessário para o socialismo – para ele, as agruras da guerra teriam criado condições (vontade coletiva), de maneira célere e inusitada, para a tomada do poder pelos bolcheviques num país atrasado, de capitalismo incipiente, como a Rússia.
Sem dúvida, a guerra potencializou a crise estrutural que já era latente em todo o imenso Império Russo, abarcando inúmeros problemas acumulados secularmente: dominância tirânica da autocracia czarista, subjugação de nacionalidades não russas, brutal opressão do campesinato, bloqueios à organização da sociedade civil, inexistência de direitos mínimos (tanto civis como políticos), etc. Em 1917 a crise irrompe com tal força que desintegra o todo-poderoso império czarista, criando uma situação caótica, que se agrava com a constituição de um governo provisório privado de credibilidade dirigente e impotente para enfrentar as graves circunstâncias. Estavam criadas as condições – vazio de poder, revolta e fúria popular, anomia, desorganização econômica, etc. – para que um pequeno partido de vanguarda, resoluto e com propostas que atendiam aos anseios imediatos das classes subalternas (pão, paz e terra) se apoderasse dos aparatos do Estado, sem resistência, em nome dos sovietes (conselhos).
Conquistado o Estado – onde ele era tudo e a sociedade civil, nada –, os bolcheviques logo trataram de recompor o poder, em meio a uma devastadora guerra civil, consolidando-se como “ditadura do proletariado” e com a edificação de um Estado demiurgo sob a direção do partido único. No decorrer da década de 1920 – envolto em disputas e concepções variadas – foi-se corporificando um protótipo de socialismo que seria fixado nas décadas seguintes e cujas características gerais podem ser sintetizadas, topicamente, como segue: 1) Estatização dos meios de produção e circulação, planejamento ultracentralizado da economia, industrialização extensiva, coletivização da agricultura, abolição da economia de mercado, métodos de gestão burocráticos e coercitivos; 2) estatização dos sovietes, sindicatos, imprensa e outros órgãos; 3) inexistência de normas democráticas – as facções e as dissensões foram criminalizadas com o banimento (gulags), ou mesmo com a eliminação física, e o Estado-partido chegou, em alguns momentos, a ganhar caráter terrorista; 4) os problemas das nacionalidades, étnicos e religiosos tratados com a coerção, anexações, remoções e russificação; 5) o marxismo-leninismo tornado ideologia ou doutrina oficial, como um sistema de dogmas que tudo explicava e justificava; 6) conformação de estratos sociais privilegiados, os donos do poder: dirigentes partidários, alta burocracia estatal, oficialidade militar e outros.
Desde o primeiro momento, houve a tentativa de universalizar o modelo bolchevique de socialismo. Em 1919 foi criada a III Internacional Comunista (IC), para impulsionar o processo revolucionário na Europa (em especial na Alemanha). O insucesso desse intento levou a IC a investir em sua eclosão nos países coloniais ou dependentes ( Ásia, América Latina e África), com caráter anti-imperialista e de libertação nacional. Esse modelo teve seu momento áureo no pós-guerra, com sua expansão no Leste Europeu e no Oriente.
Entretanto, já nesse período começou a dar sinais de exaustão, pelo acúmulo de problemas e de contradições irresolvidas. Um grupo dirigente do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) procurou ainda, sob o comando de Mikhail Gorbachev, renovar o socialismo real, para preservá-lo, por meio de reformas econômicas e da democratização do Estado (perestroika e glasnost). Mas, ao fazer isso, despertou forças e energias, interesses e ideologias, que estavam latentes, porém adormecidas ou contidas – estas ganharam uma dimensão e uma dinâmica incontroláveis, que levaram à sua derrocada.
No terceiro quartel do século 20, o socialismo real entrou numa crise irreversível, que acarretou sua ruína na União Soviética, no Leste Europeu e em outras partes do mundo, de forma fulminante e até inesperada, expondo o seu caráter autoritário-burocrático em toda a sua crueza.
Se no limiar do século 20 e nas décadas seguintes a História parecia indicar que o capitalismo estava condenado e o futuro seria do socialismo – que prometia o paraíso terreno e/ou a emancipação dos pobres e oprimidos –, em seu término a situação se inverteu totalmente. Ele passou a ser identificado com autoritarismo e opressão.
O fim trágico do socialismo real revelou para a esquerda em geral (comunistas, socialistas ou social-democratas, trabalhistas, cristãos, etc.) uma situação dramática e trouxe em seu bojo problemas e elementos capazes de abalar não só a práxis do movimento, mas os próprios ideais do socialismo, além de legitimar, por tempo imprevisto, o capitalismo. Gramsci, se vivo estivesse – no ensejo do sesquicentenário da obra capital de Marx –, provavelmente advertiria que estaríamos carecendo de uma revolução não contra, mas a favor de O Capital.
- O Estado de S. Paulo
* José Antonio Segatto é professor titular de sociologia da Unesp
Alberto Aggio: Uma esquerda da inventare
A do petismo e aliados está velha, ultrapassada, sem conexão com o que sustenta a democracia
Conexa às diatribes de Lula, parte da esquerda brasileira, em especial a que ainda lhe empresta apoio, parece viver como nefelibata, justificando e reagindo a qualquer denúncia, por menor que seja. Se antes defendia, sem pejo, “os seus”, qualificando-os indevidamente como “heróis do povo brasileiro”, hoje busca um álibi ao culpabilizar indiscriminadamente o Poder Judiciário pela crise que envolve a República. Mais grave ainda: decidiu afrontar a chamada “república de Curitiba”, acusando-a de destruir os “campeões nacionais” da era petista.
Cega como está, essa parcela da esquerda dificilmente encontrará os termos de reconciliação com a realidade. A cada passo perde credibilidade como ator político, o que é negativo sob todos os aspectos. Certamente um país com o grau de desigualdade e de atraso como o Brasil necessita de uma esquerda vigorosa e moderna que seja um componente essencial das relações de força no enfrentamento de questões que perenizaram entre nós um “mau Estado e um mau mercado”. Mas nos referíamos aqui a uma “outra” esquerda, democrática e republicana, de perfil majoritário, e não testemunhal, capaz de superar a deplorável identificação que o PT se encarregou de estabelecer entre esquerda e corrupção.
Uma esquerda da inventare, como dizem os italianos, portadora de um vivo propósito de rever seus conceitos, suas representações, sua prática e suas linguagens, superar anacronismos e passadismos, e assimilar definitivamente que o caminho, assim como o destino da sua política, se estabelece no interior e por meio das instituições democráticas. Dirigentes petistas, quando estavam no governo, falavam e agora, na oposição, continuam falando que fazem política dentro das instituições “deles”, o que configura um equívoco de fundo pelo qual se pode definir o petismo e seus aliados como uma esquerda velha e ultrapassada, sem conexão com o que sustenta a democracia brasileira.
No plano das ideias, há historicamente uma identificação insofismável entre esquerda e socialismo, embora se deva reconhecer que nem toda esquerda postulou o socialismo. Isso porque esquerda é um conceito situacional e dependente das relações de força que envolvem a direita e o centro. Essas três porções da geografia política assumiram na História um sem-número de configurações, redesenhando sua identidade.
O socialismo foi um programa de mudança social e um movimento político que mobilizou milhões de pessoas no decorrer dos séculos 19 e 20. Nasceu com o capitalismo industrial e teve suas origens nos estratos mais profundos da sociedade europeia. O socialismo combinou uma concepção de liberdade nascida do Iluminismo com as demandas por igualdade nascidas do mundo do trabalhador pobre do século 19. Dividiu-se entre o comunismo de matriz soviética e a social-democracia do Ocidente europeu. O primeiro feneceu e o segundo segue vivo, a despeito da crise atual.
As três últimas décadas do século 20 produziram mudanças na estrutura do mundo que fizeram ruir as bases de referência do socialismo. Como resultado dessas mudanças tecnológicas e comunicacionais, a estrutura produtiva foi alterada de maneira drástica, reduzindo a necessidade de mão de obra. A classe operária começou a minguar e perder os atributos de sujeito universal e emancipador que lhe atribuíam os teóricos do socialismo. Num cenário pós-fordista, diminui a autoorganização coletiva, a vida associativa, bem como as diversas dimensões que davam sustentação ética à cultura política do socialismo. No final do século 20 e início do século 21 a esquerda perdeu o seu referencial mais potente.
No final do século 20, a revolução também agonizou como o lugar simbólico e o eixo estratégico da esquerda. Já na década de 1930 se suspeitava que a contraposição entre revolucionários e reformistas não passava de um equívoco. Imaginar que o socialismo deveria superar o capitalismo por meio da intensificação de um processo de enfrentamento de classes foi um erro histórico que causou impotência e derrota. Setenta anos depois, esse entendimento se esgotou e hoje não é mais do que uma retórica inercial.
Ultrapassado o mito da revolução, uma esquerda integrada aos sistemas democráticos parece ser a única representação positiva que fica dessa trajetória secular. Apenas como parte desses sistemas, e em luta para renová-los, é que a esquerda se pode apresentar como uma força política transformadora fundada na extensão da igualdade de oportunidades, na valorização das responsabilidades coletivas e numa concepção solidária e fraterna da vida. Uma esquerda que, como enfatizou Walter Veltroni em discurso recente, possa abrir-se à contaminação, à curiosidade, ao espírito crítico e à disponibilidade de falar a língua do outro. Em suma, uma esquerda reformista que tenha uma concepção não imóvel da sua identidade e sustente seus valores na justiça social, na defesa do valor do trabalho, na renúncia às concepções totalitárias da História e da vida, na defesa dos mais débeis, bem como na refutação do mito do sucesso individual, passando a pensar o individual e o social de maneira integrada, e não antagônica.
Não se trata de relançar a ideia de utopia, uma noção mais condizente com o arsenal linguístico do pensamento revolucionário. Aliás, não é verdade que a social-democracia esteja em crise porque se afastou da utopia. Suas perdas eleitorais resultam da incapacidade de prover o que antes provinha. Agregar um adjetivo à noção de utopia não vai resolver o problema.
Se a esquerda do século 21 quiser ter potencialidade, não poderá ser mais a esquerda que protagonizou o século 20. Haverá de ser uma “outra esquerda”, à qual importa menos uma perspectiva finalística e mais o enfrentamento das questões concretas da vida da população, tornando-as seus objetivos permanentes.
*Alberto Aggio é historiador e professor titular da Unesp
Fonte: http://opiniao.estadao.com.br/noticias/geral,uma-esquerda-da-inventare,70001736863?from=whatsapp