sete de setembro
'Judiciário busca o contragolpe para conter Bolsonaro'
Para professor de Direito, sistema de contrapesos entre os Poderes deixou de funcionar
As instituições brasileiras se jogaram num labirinto cuja saída inevitável poderá ser, de fato, uma ruptura, analisa, em entrevista à DW Brasil, Diogo Rais, professor de Direito Eleitoral e Direito Digital na Universidade Presbiteriana Mackenzie e cofundador do Instituto Liberdade Digital.
Segundo ele, o sistema de freios e contrapesos idealizado na Constituição de 1988 para os Três Poderes da República não funciona mais no Brasil: nem o presidente da República, nem os presidentes da Câmara e do Senado, e tampouco o procurador-geral da República exercem seus devidos papéis.
"O sistema de contrapesos está totalmente desbalanceado. E isso exige freios. O Judiciário, ao promover esse freio, está num papel ingrato, ocupa o papel de julgador e vítima. O Judiciário vem abrindo mão da sua própria autocontenção e esse processo desequilibra todas as instituições; cada vez mais tem dado um passo além da própria norma quando ele é a própria vítima."
E que cenário nos espera? Se o Legislativo não reagir à altura, afirma Rais, "o caminho inevitável será uma ruptura, em que o Judiciário determinará a saída do presidente da República, e ele não aceitará".
"O Judiciário tem buscado uma espécie de contragolpe. Tem preparado uma atuação mesmo fora de sua própria força para evitar o que tem entendido como um golpe", diz o professor, que vê indícios de crime de responsabilidade nos discursos de Jair Bolsonaro nos atos de 7 de Setembro.
O Supremo Tribunal Federal
DW Brasil: Considerando o conteúdo dos discursos de Jair Bolsonaro no 7 de Setembro, com novos ataques ao STF em que assume que descumprirá decisões judiciais, a contenção a ele é possível só no campo jurídico ou precisa ser também política?
Diogo Rais: Acredito que, pelo teor dos discursos, é possível sim enquadrar crime de responsabilidade do presidente da República. Em especial pelo embaraçamento do livre exercício dos Três Poderes, no caso o Judiciário, e também pelo constrangimento de um juiz, um ministro do Supremo, o ministro Alexandre de Moraes. Se uma decisão judicial for descumprida, e usada a Presidência da República para seu descumprimento, também se caracteriza aí um crime de responsabilidade. Crime de responsabilidade tem processamento jurídico e político. Depende do presidente da Câmara para ser processado. Porém, não se anula a possibilidade de apuração de crime na justiça comum após o mandato. O campo jurídico se alia ao político para a contenção dessa espécie de ação, contra o exercício de um dos Poderes.
Porém, no Brasil hoje, temos portas de entrada comprometidas, como a Procuradoria-Geral da República, no caso de crimes comuns do presidente, e a Câmara dos Deputados, no caso de impeachment. As portas políticas, ao que parece, podem não funcionar. Daí, excepcionalidades podem surgir como, por exemplo, o Judiciário substituir a inação dessas portas políticas. Não é comum, não está previsto na lei, mas já tivemos exemplos, como agora no inquérito [das fake news] quando o Supremo decide prosseguir mesmo sem a PGR fazer esse papel. É possível que haja uma construção jurídica de defesa da Constituição e que haja alguma ponte para esses entraves políticos. Pelo perfil [do presidente] e pelos precedentes que temos, é possível que o Supremo passe por cima dos entraves políticos e crie uma contenção jurídica para dar efetividade ao crime de responsabilidade.
Grupos bolsonaristas que protestaram no 7 de Setembro dizem ser vítimas de censura e alegam que a liberdade de expressão está sendo desrespeitada. Esse tipo de manifestação pode ser encoberta por essa narrativa?
Temos algumas dificuldades no sistema brasileiro de delimitar exatamente o que é liberdade de expressão. Alguns países têm isso muito claro. Os EUA, por exemplo. A maioria dos países não tem essa clareza. O Brasil, no momento em que está, tem menos clareza ainda. A ideia de liberdade de expressão é mais do que um direito: é o direito ao direito de se manifestar. É uma garantia, uma proteção. Manifestação política é permitida, opiniões e ideias devem ser protegidas e garantidas. O discurso em si é legítimo até o momento em que se transforma em potencial de violência, seja física, moral ou discriminatória. Quando alguém faz discurso enérgico contra uma pessoa, uma ideologia, perde a sua proteção quando ameaça, ou convoca grupos a provocarem determinada violência. Esse é o desenho do limite. Perde a proteção da liberdade de expressão aquele que resolve dar um passo a mais, incentivando qualquer tipo de violência.
Há uma linha tênue entre opinião, discurso, e incitação ao golpe, à violência, ao ódio? Como diferenciar isso no campo jurídico?
Por que não se tem uma lei dizendo exatamente o que vai para violência e o que não vai? Porque não é possível definir, em abstrato, um parâmetro. O contexto é um dos fatores mais importantes do que o próprio discurso. Exemplo: um sujeito diz: "Eu quero comprar uma bazuca e explodir a cabeça de outra pessoa". Qual é a chance real de isso acontecer? Dependendo do contexto, seria pior se ele dissesse que vai dar um soco na boca da pessoa. É menos lesivo, mas muito mais provável. Então o contexto é determinante. Quem decide isso? O Judiciário, ciente de um caso concreto.
No momento em que vivemos, a única instituição capaz de decidir isso é justamente a mesma instituição que tem sido vítima desse processo. Temos aí uma mistura de papéis que talvez tenha nos levado a esse momento sem freios das instituições. Talvez isso seja mais sintoma do que a causa. Talvez tenhamos perdido a autocontenção justamente por essa confusão de papéis entre vítima e agente disciplinador, julgador.
A liberdade de expressão está prevista na Constituição. As punições para tentativas de golpe ou incitação à violência também?
A liberdade de expressão está expressa na Constituição, mas também espalhada em diversas legislações infraconstitucionais. Na Constituição temos a proteção à democracia, as cláusulas pétreas, que são conteúdos imutáveis. O que acontece é que o que tem sido utilizado nesses procedimentos é a Lei de Segurança Nacional, que agora foi revogada, mas prevê o ataque contra as instituições. Curiosamente, a LSN foi utilizada de forma bilateral. O Executivo a utiliza para buscar o processamento e punição de pessoas que tenham chamado o presidente de genocida, como no caso do [youtuber] Felipe Neto, e o STF usa a mesma norma para buscar pessoas que falam contra o próprio Supremo ou as urnas eletrônicas, como fez com o [deputado] Daniel Silveira e outros.
Com a atualização da LSN, podemos ter vários questionamentos, inclusive sobre o próprio inquérito vigente [das fake news, no STF]. Quando não há amparo legal preciso, como aquela decisão sobre a desmonetização de canais bolsonaristas pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que segundo a PF disseminavam fake news – o Judiciário constrói isso com base em normas abstratas, como a proteção ao Estado democrático. Isso mostra que, neste processo, a falta de autocontenção dos Poderes tem feito as instituições alargarem seus próprios poderes.
Qual sua opinião sobre o novo texto da LSN aprovado? Há críticas de que alguns artigos são muito amplos e vagos.
Imagina a gente ter que medir se determinado conteúdo pretende abolir o Estado de direito, enfraquecê-lo ou colocá-lo em dúvida? A estratégia foi deixar a norma elástica, e isso pode trazer problemas. Considero perigoso para Estados democráticos porque amplia demais a possibilidade de enquadramento. A lei atual acaba dependendo muito do Judiciário para a sua construção. Quando as instituições estão sadias e funcionam bem, provavelmente esta seria a lei ideal. Agora, com as instituições sob ameaça, ou se contendo demais, ou abrindo mão da sua autocontenção, podemos ter desvios ao ponto desse conteúdo se transformar em perseguição de opinião de fato. É como se a lei fosse incompleta e dependesse do Judiciário, ao analisar casos concretos, a sua completude. Isso é bom ou ruim? Depende. Cria incerteza e insegurança diante de um ponto tão sensível. Concordo com a nova LSN, o novo texto é melhor do que o que tínhamos, mas há pontos vagos.
Quando um presidente ou um parlamentar adota discurso de ódio contra uma instituição ou membros dela, ou quando um militar, que detém o uso da força letal, vai para as ruas armado, é algo distinto da "tia do WhatsApp" que só repassa mensagens. Como o Judiciário interpreta a questão do emissor?
A característica do emissor normalmente é resolvida por normas interna corporis de determinada categoria. No Legislativo, temos o Código de Ética. Algumas infrações podem não ser ilegais, mas ferem o decoro, embora os parlamentares tenham a imunidade parlamentar, ou seja, a possibilidade de não serem perseguidos por sua opinião, desde que no exercício da função. No caso dos militares, o Código Penal Militar prevê a impossibilidade de eles participarem de manifestações políticas. É condição, para ser militar no Brasil, ter a diminuição de direitos políticos. Isso se justifica pelo uso da arma, pela letalidade, e também pelo poder investigativo que os militares têm. O Judiciário tende a olhar isso com muito rigor. Não se pode abrir mão disso. O caso do Pazuello [general Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde e da ativa] feriu a regra militar. Contrariou todas as leis.
Pegando esse exemplo do Pazuello: a corporação militar não o puniu por uma atuação política. No Congresso, parlamentares, incluindo os filhos do presidente, ultrapassam limites e não são alvos do Conselho de Ética. Falta a contenção das instituições?
Essa falta de autocontenção das instituições tem relativizado a sua forma de atuação. Cada vez mais, isso tem colaborado até para uma ruptura institucional. A instituição é sempre a responsável por sua própria ruptura quando ela não se autocontém, é sempre uma implosão, e não explosão. O procurador-geral da República não parece fazer seu papel. O presidente da Câmara também não faz o seu papel de modo pleno. O Judiciário não faz seu papel de modo pleno ou contido, me parece exagerado. E o presidente da República também. Temos um abalo das estruturas por dentro das próprias instituições. Por mais curioso que seja, os ataques internos é que são os verdadeiros problemas.
PROTESTOS CONTRA BOLSONARO NO 7 DE SETEMBRO
Considerando o contexto atual, com instituições no vácuo e o Judiciário tentando responder a Bolsonaro com freios que caberiam a outros Poderes, para que cenário caminhamos? O Judiciário mexeu num vespeiro?
Sinceramente, acho que o Judiciário já entrou nesse vespeiro. Nosso desenho constitucional, quando pensou os Três Poderes, distribuiu freios e contrapesos a todos eles. O Executivo tem um freio do Legislativo, com o poder de impeachment e de agente fiscalizador. O Executivo está sujeito à contenção do Judiciário, que o limita e pode anular seus atos. Ao Legislativo, embora seja um colegiado, cabe a autocontenção, além de também haver o Judiciário para contê-lo. Já o Judiciário tem a autocontenção como seu maior valor, o maior freio e contrapeso. Cabe a ele a última palavra, a "coisa julgada", a possibilidade de encerrar um assunto. O Legislativo tem o poder de conter o Judiciário, com o impeachment de ministros, mas é um poder limitado. Basicamente, o que faz segurar o Executivo? O Judiciário mais o Legislativo. O que faz segurar o Legislativo? Ele próprio e o Judiciário. E o que faz segurar o Judiciário? O próprio Judiciário e o Legislativo. E temos a Procuradoria-Geral da República, que faz esse controle do Judiciário à Presidência da República.
O que acontece hoje? A presidência da Câmara é ocupada por Arthur Lira (PP-AL), que demonstra sintonia forte com Bolsonaro. O presidente da República não é uma pessoa autocontida. A PGR tem se demonstrado favorável ao presidente da República e adversa a seus compromissos constitucionais. O sistema de contrapesos está totalmente desbalanceado. E isso exige freios. O Judiciário, ao promover esse freio, está num papel ingrato, ocupa o papel de julgador e vítima. E é muito difícil você não decidir as coisas com o fígado quando você é a própria vítima. O Judiciário vem abrindo mão da sua própria autocontenção e esse processo desequilibra todas as instituições. Na hora de acionar os freios, é necessário ter legitimidade. O Judiciário cada vez mais tem dado um passo além da própria norma quando ele é a própria vítima. Por outro lado, o presidente da República faz campanha eleitoral antecipada com recursos públicos. Isso dá ao Judiciário uma carta na manga que poderá declará-lo inelegível, por abuso do poder econômico. Bolsonaro, a cada dia, cria mais provas contra si mesmo. E o Judiciário, a cada dia, dá um passo a mais para enfrentar esse jogo perigoso do presidente. Daí a preocupação com a ruptura institucional cresce, porque não temos mais nenhum tipo de equilíbrio. Só o Legislativo teria condições de fazer essa ponte. Senão, o caminho inevitável será uma ruptura, em que o Judiciário determinará a saída do presidente da República, e ele não aceitará.
Mas não temos um Ulysses Guimarães no Congresso hoje.
Não temos lideranças no Congresso, nem nos postos-chave, na PGR, nas presidências da Câmara e do Senado. Enquanto não tiver um movimento que busque a estabilização política, caminhamos, sim, para uma ruptura. Talvez o maior perigo em matéria de militarização esteja nos estados, com polícias militares, e não no âmbito federal, com as Forças Armadas.
Nesse contexto, a atuação do Judiciário é compreensível?
Claro. Às vezes parece que estou contra o Judiciário, mas acredito que ele tem buscado uma espécie de contragolpe. Sabe aquela frase: se for jogar, jogue limpo; mas se for jogar contra alguém que joga sujo, também jogue sujo. Estou achando que as instituições no Brasil entraram nessa. O Judiciário tem preparado uma atuação mesmo fora de sua própria força para evitar o que tem entendido como um golpe. Não é talvez um espaço de culpados. Ninguém foi enganado. Sinceramente, Bolsonaro talvez seja o presidente que menos mudou depois de eleito. O problema é que ele continua em campanha, e tinha que ter se transformado num governante.
Fonte: DW Brasil
https://www.dw.com/pt-br/judici%C3%A1rio-busca-o-contragolpe-para-conter-bolsonaro/a-59116137
Míriam Leitão: No fim do dia, Bolsonaro estava mais isolado
Presidente da República cometeu crimes de responsabilidade em série e avisou de forma estridente que não vai parar seu golpe
Míriam Leitão / O Globo
A alguns interlocutores de sua confiança, o presidente Bolsonaro havia prometido usar dois tons nos discursos. Seria mais forte em Brasília e menos em São Paulo. Fez o oposto. Foi beligerante nos dois, mas muito mais em São Paulo. O radicalismo assustou até aqueles políticos que pensavam ser possível montar uma ponte entre o presidente e os outros poderes. Por isso o MDB falou em impeachment, o PSDB tenta superar suas divisões para defender o impedimento, o PSB, desde a véspera, já não descartava essa hipótese. Nos bastidores da política, PP, PL e Republicanos estão se queixando muito das atitudes do presidente. “E essas queixas são o primeiro passo” — afirmou uma fonte política. Uma fonte militar me disse: “O tom foi muito além do necessário, não se faz uma Nação avançar na anarquia.” No fim do dia, Bolsonaro estava mais isolado.
Uma autoridade definiu os eventos com uma expressão forte, que preciso compartilhar com os leitores. “Ele deu uma despirocada.” Se por um lado houve quem concluísse que “uma pessoa que coloca tanta gente na rua não pode ser menosprezada”, por outro, foi constante a crítica à histeria do presidente, como na parte em que disse que não cumprirá ordem do ministro Alexandre de Moraes. “Isso beira um perigo muito maior.” O delirante anúncio da reunião do Conselho da República provocou deboche. “Foi a reunião Porcina”, ironizou um membro do Conselho.
A área econômica esperava que a manifestação fosse grande, pacífica e permitisse o plano do dia 8: encontrar canais de diálogo para a pauta da economia. Agora tudo ficou emperrado. E na Faria Lima a elite econômica se afastou mais um pouco do presidente.
Bolsonaro pode fazer suas contas de perdas e ganhos, os políticos podem redefinir e os investidores sair das suas posições. O grande dilema é do país. Qual é o risco de o Brasil tolerar o que houve ontem? O que houve foi que o presidente da República cometeu crimes de responsabilidade em série e avisou de forma estridente que não vai parar seu golpe contra as bases da democracia brasileira.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/miriam-leitao/post/no-fim-do-dia-bolsonaro-estava-mais-isolado.html
Malu Gaspar: O xadrez que pode levar ao impeachment de Bolsonaro
Magistrados interpretaram o discurso da Paulista como um ataque não a alguns ministros, mas ao próprio Judiciário
Malu Gaspar / O Globo
O silêncio no zap das autoridades em Brasília depois do discurso de Jair Bolsonaro indicava que o que tinha acabado de acontecer havia mexido com os cálculos políticos de todos eles. Indicava, também, que vai começar uma nova etapa na longa crise vivida pelos poderes. Mas, para saber se ela será capaz de levar ao impeachment, vai ser preciso ver como os líderes do Judiciário e do Congresso, especialmente o presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), vão se entender nos bastidores.
Os magistrados interpretaram o discurso da Paulista como um ataque não a alguns ministros, mas ao próprio Judiciário. "Ou tiramos ele, ou ele implanta a ditadura", me disse um interlocutor dos togados.
Todos sabem, porém, que a saída não se dará por canetada de juiz e sim pela política. Para isso precisam de Lira, que nunca teve interesse em afastar Bolsonaro. Pelo contrário. Cada pedido de impeachment só amplia seu poder. Sua cota bilionária do orçamento secreto é a expressão mais concreta disso.
É verdade que desde 2020, quando Bolsonaro anunciou no QG do Exército que "acabou a patifaria, agora é o povo no poder", sua situação se deteriorou bastante. Naquela época, o empresariado ainda o apoiava, a inflação não era um problema e a pandemia não havia matado mais de 580 mil pessoas.
Mas, políticos experientes que são, Lira e os líderes do Centrão não desprezam o apoio recebido pelo presidente nas ruas. Também não vão abrir mão de Bolsonaro antes da aprovação do Orçamento de 2022 e do fundo eleitoral.
Acontece que um processo de impeachment pode levar meses, e nesse tempo serão decididas questões importantes que dependem da Justiça e podem inviabilizar o governo – como o enrosco dos precatórios, os inquéritos contra o bolsonarismo e ações contra o orçamento secreto.
Tais decisões podem ajudar a convencer Lira e o Centrão de que eles têm mais a perder ficando com o presidente do que jogando-o ao mar. Resta saber se a solução das togas e da oposição será politicamente mais eficaz do que a caneta do presidente da República.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/malu-gaspar/post/o-xadrez-que-pode-levar-ao-impeachment-de-bolsonaro.html
Elio Gaspari: Há três setes na mesa dele
Bolsonaro está sem rumo
Elio Gaspari / O Globo
Se Donald Trump tinha um plano para a insurreição de 6 de janeiro, durou cerca de seis horas. Se Bolsonaro tinha o seu plano para o 7 de Setembro, durou menos de quatro horas. Às 11h43, ele anunciou a convocação do Conselho da República, sabe-se lá para que, e lá pelas 15h o Palácio do Planalto informou que a reunião estava esquecida.
No seu discurso matutino, Bolsonaro mostrou-se desorientado. Referindo-se ao ministro Luiz Fux, ele disse: “Ou o chefe desse Poder enquadra o seu, ou esse Poder pode sofrer aquilo que nós não queremos”. A frase não faz sentido. O presidente do Supremo não tem poder para “enquadrar” a Corte. (A menos que Bolsonaro esteja fazendo fé na faixa preta de jiu-jítsu de Fux.) Também não tem sentido o “sofrer aquilo que não queremos”. Primeiro, porque falta dizer o que “queremos”, depois porque falta explicitar o que significa “sofrer”. À tarde, Bolsonaro fulanizou sua carga contra o ministro Alexandre de Moraes: “Ou ele se enquadra ou pede para sair”. Não disse como, nem por quê. Também não explicou o mecanismo legal que poderá livrá-lo de Moraes.
Hoje, ao chegar ao Planalto, Bolsonaro não terá na agenda a tal reunião com o Conselho da República, mas lá estarão os três setes que assombram o Brasil no seu 199º ano de existência:
O litro da gasolina a R$ 7, com a inflação e os juros arriscando chegar a 7%.
Isso para não falar nos 14 milhões de desempregados num país que rala em pandemia que já matou mais de 580 mil pessoas. Todos esses problemas exigem que o governo trabalhe. É serviço para formigas, não para cigarras.
Se qualquer dos problemas que estão sobre a mesa de Bolsonaro pudesse ser resolvido tirando Moraes ou qualquer outro ministro do Supremo, eles certamente mandariam as togas para o Planalto. Contudo, no seu discurso vespertino, Bolsonaro pronunciou a palavra mágica de suas ansiedades: “inelegibilidade”.
Bolsonaro tem uma só preocupação: continuar na Presidência. Teme perder a eleição, por isso continua satanizando as urnas eletrônicas. Sabe que corre o risco de ser declarado inelegível pelo que fez e deixou fazer em suas campanhas e antecipa-se. Declará-lo inelegível em 2022 por malfeitorias de 2018 dará ao processo legal um cheiro desagradável de tapetão.
Nada melhor que chamar os eleitores, computar os votos e empossar o candidato que tiver mais votos.
Até a hora em que Bolsonaro terminou seu segundo discurso, o 7 de Setembro de 2021 transcorreu em paz. Ficou apenas uma ameaça de Bolsonaro: ele diz que não cumprirá ordens da Justiça que vierem a desagradá-lo. A ver.
Bolsonaro diz que continuará dentro das quatro linhas da Constituição, mas ameaça sair do quadrado, sem dizer como. Falta pouco mais de um ano para a eleição, e novas crises virão.
Os três setes continuarão sobre a mesa do presidente, com suas próprias tensões. As ruas continuarão abrigando gente que acredita em cloroquina, no grafeno, no nióbio e nas fraudes das urnas eletrônicas.
A História oferece um refresco. Os restos mortais de Napoleão chegaram a Paris em 1840, 19 anos depois de sua morte. Naqueles dias, só no manicômio de Bicêtre, havia 14 Napoleões.
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/opiniao/ha-tres-setes-na-mesa-dele-25188247
Vera Magalhães: Falta vacina para conter Bolsonaro
Arthur Lira é cúmplice dos sucessivos crimes de responsabilidade cometidos por Bolsonaro
Vera Magalhães / O Globo
Os remédios da Constituição de 1988 podem ser eficazes para evitar que Jair Bolsonaro dê um golpe de qualquer dimensão ou natureza, mas não são suficientes para removê-lo do posto diante de suas diárias e cada vez mais diretas ameaças à própria existência da democracia. O que nos leva à possibilidade real de termos de conviver por um ano e três meses com esse caos provocado única e exclusivamente pelo presidente da República, caso alguns atores não sejam instados a mudar sua conduta.
Falta ao nosso ordenamento jurídico uma vacina, o tipo de rito que permita conter de forma mais clara e rápida esse tipo de golpismo do século XXI, de que o presidente brasileiro é um expoente cada vez mais peculiar, porque tanto bebe das fontes internacionais quanto passa a ser visto como case a inspirar outros aprendizes de ditadores, pelas dimensões e pela importância estratégica do Brasil.
O impeachment, tratamento clássico para crimes de responsabilidade e para momentos em que governos se mostram disfuncionais, não é uma opção concreta no momento, mesmo diante da exorbitação de todos os limites cometida por Bolsonaro em seus dois discursos neste 7 de Setembro de conformação antidemocrática.
Arthur Lira é cúmplice dos sucessivos crimes de responsabilidade cometidos por Bolsonaro não só contra os demais Poderes, mas também no enfrentamento da pandemia. Só deixará de ser conivente se houver uma pressão tremenda de todos os partidos do Centrão, grupo que coordena à base de dinheiro público na veia. Como ainda não cessou a fonte de recursos, inútil contar com isso.
A saída propugnada pelo ministro Ricardo Lewandowski em artigo recente — enquadrar o presidente da República por crime contra a existência do próprio Estado Democrático — depende da ação do procurador-geral da República, o igualmente cúmplice Augusto Aras. Ainda que ele seja tomado de uma independência súbita, uma eventual denúncia apresentada pelo procurador-geral contra o presidente tem de passar pelo crivo da mesma Câmara comandada por Lira.
O que nos leva à angustiante situação de estarmos num labirinto, presos a Bolsonaro, a seus arbítrios e à rede de condescendência que foi criando em torno de si à base de assaltos diários nunca contidos contra as instituições.
Ele não se moderará. Depois de romper todos os limites do bom senso na Esplanada dos Ministérios e na Avenida Paulista, nada indica que recuará. Pelo contrário: além de ameaçar não cumprir decisões judiciais, reciclou a ameaça de não aceitar o resultado das urnas.
Que não se incorra no erro de subestimar seu poder de persuasão contando cabeças nos protestos deste feriado: foram muitas, o suficiente para manter o Brasil preso a uma agenda distópica daqui até as eleições, para incalculável prejuízo da economia, do tecido social e das mesmas instituições que resistem aos trancos e barrancos a atentados contra sua existência.
Diante da constatação do impasse, ministros do STF reconhecem a inexistência de mecanismos específicos para lidar com o golpismo altamente digital, financiado de forma sub-reptícia, que subverte conceitos como liberdade de expressão e a própria democracia. Daí por que os inquéritos que atualmente estejam sob a responsabilidade do ministro Alexandre de Moraes sejam a barreira possível à expansão desse mecanismo — e, justamente por isso, o alvo da ira bolsonarista.
Que se dependa de instrumentos provisórios e, mesmo eles, de alcance limitado para moderar um presidente incontrolável é a prova cabal de que a Constituição pode não ruir diante das investidas de Bolsonaro contra ela, mas sairá bastante esvaziada e combalida, como de resto todo o país, dos quatro anos de turbação da vida nacional a que os eleitores nos condenaram em 2018.
Fonte: O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/vera-magalhaes/post/falta-vacina-para-conter-bolsonaro.html
Bruno Boghossian: Ameaça de Bolsonaro ao STF já representa manobra autoritária
Ao indicar atropelo a decisões do tribunal, presidente prepara terreno para golpe final em 2022
Bruno Boghossian / Folha de S. Paulo
Jair Bolsonaro conseguiu o que queria. Com a articulação de empresários do agronegócio, líderes religiosos e políticos aliados, o presidente levou uma quantidade razoável de gente para as ruas de Brasília, São Paulo e outras cidades. Não houve tanque na praça dos Três Poderes para fechar o STF, mas o capitão já lançou uma manobra autoritária.
Bolsonaro nunca demonstrou interesse em permanecer no campo da democracia, e o movimento feito pelo presidente no 7 de setembro expôs de maneira aberta o projeto para expandir seus poderes. Nos discursos para os manifestantes, ele disse que ministros do Supremo deveriam mudar de comportamento, "ou esse Poder pode sofrer aquilo que nós não queremos".
A ameaça explícita tem dois objetivos imediatos: intimidar o tribunal e abrir caminho para que Bolsonaro descumpra determinações judiciais. "Ou entram nos eixos, ou serão simplesmente ignoradas da vida pública", disse o presidente, em vídeo divulgado ainda pela manhã.
O movimento é golpista porque um presidente não tem o poder de definir os limites que ele deve ou não respeitar. É autoritário porque vem acompanhado de sinais nada velados de uso da violência, com acenos às Forças Armadas, incentivo ao envolvimento da polícia e incitação de militantes que falam claramente em invadir o Congresso e o STF.
Os primeiros alvos de Bolsonaro são as decisões do Supremo que incomodam sua família e seu grupo político, como a prisão de aliados e as investigações sobre ameaças ao processo eleitoral. Em 2022, essa mesma plataforma tende a ser explorada para ignorar decisões de tribunais superiores durante a campanha e desrespeitar o resultado da urna.
Essas investidas também ajudam Bolsonaro a reaglutinar parcelas de uma base de apoio que esmoreceu ao longo do governo. Até aqui, parece improvável que a expansão desse núcleo seja suficiente para garantir uma vitória no voto, mas pode ser forte o bastante para dar sobrevida a seu plano de melar as eleições.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/bruno-boghossian/2021/09/ameaca-de-bolsonaro-ao-stf-ja-representa-manobra-autoritaria.shtml
Hélio Schwartsman: É preciso agir contra os ataques de Bolsonaro
Num país mais decente, Bolsonaro já teria sofrido impeachment há tempos
Hélio Schwartsman / Folha de S. Paulo
O tão temido 7 de Setembro de Bolsonaro não produziu mais do que discursos delirantes e incidentes isolados, como era mais ou menos esperado. O problema é que a coisa não acabou. O capitão reformado segue à frente do Executivo e continuará a investir contra os outros Poderes. Nesse contexto, o Dia da Pátria foi uma escalada, precipitada pelo desespero de quem vê suas chances de reeleição minguarem, mas ainda assim uma escalada. Devemos esperar mais ataques à democracia.
Num país mais decente, Bolsonaro já teria sofrido impeachment há tempos. Ao nem sequer abrir um processo para avaliar se o presidente comete crimes de responsabilidade, a Câmara dos Deputados normaliza suas atitudes antidemocráticas. Felizmente, a resistência ao golpismo presidencial não está limitada ao Parlamento. A cúpula do Judiciário, alvo dos principais ataques de Bolsonaro, sentiu na pele a pressão e resolveu reagir.
A capacidade de resposta do STF e das cortes superiores, porém, é limitada, porque a Constituição blinda o presidente contra ações penais. Elas só podem ser iniciadas com o aval do procurador-geral da República e de 2/3 dos deputados. Mas é possível tentar frear o presidente por outras vias. O TSE já tem os elementos para considerá-lo inelegível em 2022. Também é possível encarcerar os aliados mais exaltados do capitão reformado e até algum dos filhos. No limite, o STF poderia determinar medidas cautelares contra um presidente que comete crimes inafiançáveis e imprescritíveis descritos na Constituição.
Esses são remédios de emergência que talvez se façam necessários. A resposta correta, contudo, como venho insistindo aqui há mais de um ano, teria sido o impeachment. Um observador benigno pode até achar que a população foi enganada pela campanha mentirosa de Bolsonaro quando o elegeu. Mas não há desculpa para a sociedade que tolera ver ataques constantes à democracia sem tomar uma atitude.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/09/e-preciso-agir-contra-os-ataques-de-bolsonaro.shtml
Ruas foram espuma, projeto de golpe continua, elite ainda é conivente com Bolsonaro
Não houve putsch das falanges bolsonaristas, mas mais um dia de progresso do golpe
Vinicius Torres Freire / Folha de S. Paulo
No 7 de Setembro, Jair Bolsonaro cometeu mais alguns crimes de responsabilidade, motivo de processo de impeachment, entre outros que podem se tornar objeto de inquérito e condenação no STF. Na noite desta terça-feira (7) lúgubre, uns senadores haviam decido ir ao Supremo pedir a investigação por meio de uma “notícia-crime”. Os ministros, por sua vez, por ora ainda discutiam a elaboração de uma “mensagem dura” (hum...), apesar de Bolsonaro ter chamado alguns deles de “canalhas” e de dizer, aliás outra vez, que pode ou não obedecer a decisões do tribunal maior.
Vai ter consequência? Uns governadores, uns gatos pingados do PSDB e um ou outro partido centróide passaram a sussurrar a palavra “impeachment”. Um tucano manco, aliás meio bolsonarista, umas andorinhas depenadas e um monte de galinhas gordas de emendas não fazem um verão neste tenebroso inverno de Bolsonaro. As elites precisam tomar vergonha na cara (...), pois o tirano não vai parar a não ser que seja confrontado objetivamente. Se não o fazem, estão a dizer, na prática, que essa alternativa ou qualquer outra são piores do que Bolsonaro. Em geral, o mundo político se ocupa apenas e mal e mal de eleição, sem que ao menos exista oposição organizada, menos ainda da “terceira via”.
Que mais aconteceu em mais um dia de golpeamento da República e do projeto dos Bolsonaro de fugir da polícia? A espuma das ruas.
Sim, Bolsonaro até que juntou muita gente em São Paulo, cerca de 125 mil pessoas na Paulista, na conta razoável da Polícia Militar (este jornalista esteve lá), o equivalente a 1% da população da cidade. Sim, poderia ter acontecido algo de muito mais grave, mortes, depredação das sedes dos Poderes etc. No essencial, foi o de sempre.
Grosso modo, nas ruas houve a espuma de aglomerações covidárias em São Paulo e uns arreganhos de falangistas mais organizados em Brasília, financiados pelo agro ogro e por outros empresários bolsonaristas. No entanto, o Domingo no Parque autoritário paulista foi uma reunião meio cansada e não muito sensacional de gente convertida, não de batalhões fascistas prontos para a marcha (ainda reclusos em certos quartéis, clubes de tiro e milícias).
Bolsonaro falou para o “público interno” e não tratou de assunto real do país, nem para fazer demagogia: fome, inflação, falta d’água e luz, de emprego. Em Brasília, disse ao público que chamaria o “Conselho da República”, a quem mostraria fotos da sua força nas ruas. Era uma bravata para a galera e uma ameaça avacalhada e inviável de decretar um estado de sítio ou algo assim.
A espuma fez borbulha em mais um dia de trabalho do bolsonarismo: a normalização do golpe e a tentativa de espalhar medo, de intimidação física, um tanto frustrada. O problema está aí: Bolsonaro continua a tocar o seu projeto sem que seja impedido de maneira decisiva, um sucesso relativo. Normalizou a discussão de golpe. Sujeitou o país à tutela militar: gente da política e dos Poderes vai até os quarteis perguntar se vai haver golpe.
Na prática, conseguiu fazer com que a maior parte da elite política e econômica aceitasse seu programa de destruição do “sistema”, elite que apenas se moveu diante da ameaça explícita e reiterada do golpe de Estado. Até agora, a degradação selvagem do país havia sido tolerada: saúde, educação, desumanidade, preconceito, cafajestagem, “rachadinha”, administração comezinha do governo, desprezo internacional, em parte e por alguns justificada pelos 30 dinheiros de meia dúzia de “reformas”, muitas delas porcas.
Fonte: Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/viniciustorres/2021/09/ruas-foram-espuma-projeto-de-golpe-continua-elite-ainda-e-conivente-com-bolsonaro.shtml
Ricardo Noblat: Os dois senhores de Arthur Lira – Bolsonaro e Lula
O presidente da Câmara dos Deputados mantém cada pé num barco. Ele, de fato, é quem parece irremovível
Blog do Noblat / Metrópoles
Rodrigo Pacheco (DEM-MG), presidente do Senado, ficou o 7 de Setembro em Brasília e não perdeu a chance de reforçar sua eventual candidatura à sucessão de Bolsonaro, deitando mais falação a favor da democracia, desta vez por meio das redes sociais.
Arthur Lira (PP-AL), presidente da Câmara dos Deputados, ao que consta, teria se refugiado no seu Estado e recolheu-se ao silêncio. Ele sabe que passará por mais uma temporada de pressões para que abra um processo de impeachment contra Bolsonaro.
Resistirá o quanto puder. Vê ainda vantagen$ a extrair de sua aliança com o presidente da República, e não apenas monetárias. E considera que as condições para a abertura de um processo de impeachment não estão dadas. De resto…
O impeachment não interessa àquele que poderá vir a ser o seu futuro patrão – Lula. Por ora, quer uma situação mais confortável do que a do ex-presidente? Lula em ascensão nas pesquisas de intenção de voto, Bolsonaro em queda e cada vez mais isolado.
O plano de Lira é reeleger-se presidente da Câmara para mais um mandato de dois anos. Isso só poderá acontecer em fevereiro de 2023, com Bolsonaro reeleito ou Lula presidente.
Fonte: Blog do Noblat / Metrópoles
https://www.metropoles.com/blog-do-noblat/ricardo-noblat/os-dois-senhores-de-arthur-lira-bolsonaro-e-lula
Eliane Catanhede: A lei da física e da política - Toda ação gera uma reação
Bolsonaro é bom de gogó, mas não é mágico para mudar a realidade de 580 mil mortos, desemprego, inflação
Eliane Catanhede / O Estado de S. Paulo
O presidente Jair Bolsonaro é capaz de tudo, até de transformar uma vitória em derrota. Ele deu uma demonstração de força e conquistou poderosas fotos de multidões em Brasília, Rio e São Paulo neste 7 de Setembro, mas jogou tudo fora ao irritar as instituições com seu discurso golpista e blefar com a convocação do Conselho da República, sabe-se lá para que fim.
Em desvantagem no Conselho da República, que reúne também os presidentes e líderes da maioria e da minoria na Câmara e no Senado, ele teve de ajustar a proposta no fim do dia. Em vez de Conselho da República, tratava-se do Conselho do Governo, restrito aos seus ministros, que são aliados, amigos e submissos. E para quê? Para nada.
A esquerda cometeu dois erros. O primeiro foi tentar enfrentar as manifestações pró Bolsonaro com protestos contra ele, provocando comparações constrangedoras, já que os atos bolsonaristas foram muito mais concorridos, como esperado. O segundo erro foi tentar reduzir o peso das multidões que foram às ruas, enroladas na bandeira nacional e no nosso verde e amarelo, para endeusar o mito e atacar o Supremo e a democracia.
As fotos e vídeos das manifestações realmente impressionam, porque elas lotaram a Esplanada dos Ministérios, a Praia de Copacabana e a Avenida Paulista. Uma expressiva multidão de fiéis, que acreditam piamente no discurso barato do presidente de que o Supremo é que ameaça a democracia e ele é o salvador da Pátria, o Quixote contra as instituições.
Foi uma manifestação de força política de Bolsonaro, mas isso segue a lei da física e da própria política: toda a ação gera uma reação. Ele venceu a batalha desta terça-feira, 7 de Setembro, mas a guerra continua. Nada como um dia atrás do outro. Depois de terça, vem quarta, quinta, sexta e muita água vai rolar debaixo dessa ponte até outubro de 2022, em condições bastante adversas para a reeleição.
Bolsonaro é bom de gogó, mas não é mágico o suficiente para mudar a realidade: 580 mil mortos de Covid, as negociatas das vacinas reveladas pela CPI, além de desemprego, inflação, cesta básica, gasolina, gás de cozinha, juros e conta de luz subindo. E onde está o presidente? Que reunião ele fez? Que determinações deu? Quando manifestou preocupação para os brasileiros? Nada.
A primeira reação dos partidos é reveladora: quanto mais o presidente radicaliza e põe gente na rua para defender o indefensável, mais aumenta a pressão pró impeachment. E os ministros do Supremo se reuniram ontem para combinar um posicionamento comum hoje, em favor da Justiça, do equilíbrio institucional, da democracia. Ou seja: contra Bolsonaro.
Enquanto os poderes se unem, chocados com o desequilíbrio do presidente da República, vale uma reflexão: que tal o tricampeão Nelson Piquet virando as costas para o pai, cassado pelo AI-5, para defender o golpista, o golpe e manifestações que pedem a volta da ditadura militar? E que tal a multidão badalando o operador das rachadinhas, Fabrício Queiroz, como herói? Já tivemos heróis melhores...
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,a-lei-da-fisica-e-da-politica-toda-a-acao-gera-uma-reacao,70003834043
Rosângela Bittar: Caricatura do ditador
Bolsonaro seguirá neste rumo até a imprevisível cena final. Que não será pacífica
Rosângela Bittar / O Estado de S. Paulo
Formou-se uma multidão surpreendente para dois comícios de atração única. Eventos irregulares da campanha eleitoral permanente de um presidente decidido a manter-se no poder a qualquer custo. Bandeiras e faixas produzidas na mesma fábrica de fantasias e ilegalidades. Encontros sem espontaneidade, que passaram por uma linha de montagem cara, industrial, e de cobertura nacional.
Deu tudo certo. Com seus 58 milhões de votos de 2018 hoje reduzidos, pela rejeição, a menos de 32 milhões, ele não pode se queixar do resultado. Não há certeza, porém, que tenha sido uma renovação de confiança ou voto na reeleição.
Bolsonaro não faria essa mobilização à toa e não se deve, portanto, descartar nenhuma intenção mais ambiciosa a partir de agora.
O presidente atribuiu um protagonismo inédito ao ministro Alexandre de Moraes (STF), tentando jogar contra ele até os que, em meio às multidões, não sabiam de quem se tratava. Foi pensando em Moraes que Bolsonaro disse a frase-chave do seu discurso ao garantir que não será preso. O ministro é o condutor dos inquéritos das notícias falsas e dos atos antidemocráticos, crimes em que estão investigados seus filhos e presos amigos, cúmplices e membros do famigerado gabinete do ódio, além de empresários financiadores do esquema. O mesmo Moraes será presidente do Tribunal Superior Eleitoral quando estiver em votação a inelegibilidade. Uma das duas alternativas de desfecho legal do seu drama. A outra é o impeachment.
Diante das multidões, Bolsonaro nunca pareceu tão isolado do Brasil e do mundo. Em confronto com a maioria dos brasileiros favorável à democracia, às suas instituições e ao próprio estado de direito. Como demonstram os manifestos que estão pipocando País afora.
Os bolsoblocks, que já andavam desaparecidos, não são tantos como se esperava. Deu para perceber que, entre seus eleitores, há cidadãos normais: vacinados, racionais, que acreditam ser a Terra redonda e respeitam a ciência. Não são, como Bolsonaro, caricaturas. Existem, aceitam passagens e hospedagens para uma viagem recreativa no feriado e topam animados o papel de figurantes que representaram.
À distância, parece incapaz de ter a inteligência tática que demonstra. Acredita-se que haja alguém a guiá-lo na concepção e execução das suas insanas ações presidenciais. Será alguma liderança da direita internacional? Isto explicaria o grande número de faixas escritas em inglês para dar satisfações a alguém no exterior.
Seja o que for, Bolsonaro seguirá honrando o método que explora, no seu repertório político, três elementos: a covardia, a boa-fé do povo e a violência.
A covardia é um dos elementos típicos de seu discurso. Ele nunca assume a autoria de nada, diz sempre que age por delegação quando foi ele quem determinou tudo: o que dizer, o que pedir. É dele a voz do comando e da ordem de execução. Assim conduz tanto a milícia digital como a claque matinal diária do cercadinho da porta do Alvorada.
Outro elemento de tal método são as falsas informações que acabam ganhando credibilidade popular. A falsidade é instrumento poderoso de ação política e arma eleitoral deste grupo. Bolsonaro decidiu, inclusive, legalizá-la, por medida provisória inconstitucional, assinada anteontem, tornando-a livre de punição. É esta a liberdade de expressão por ele reclamada nos comícios. Assim, salva a própria pele e a dos propagadores de infâmias e mentiras à sua volta. Muitos brasileiros acreditam que podem virar jacaré, assim como acreditam na fraude eleitoral da urna eletrônica.
O terceiro elemento do método é a violência. Bolsonaro não tem recuo possível, seguirá neste rumo até a imprevisível cena final. Que não será pacífica. Na intenção firme de instalar-se como ditador, fez das manifestações do 7 de Setembro uma evidência do golpe que colocou em andamento.
Fonte: O Estado de S. Paulo
https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,caricatura-do-ditador,70003834038
Luiz Carlos Azedo: As máscaras do fracasso
No Dia da Independência, cujas comemorações sequestrou, Bolsonaro não apresentou um projeto para o país, nem falou dos nossos verdadeiros problemas
O presidente Jair Bolsonaro, ontem, nos atos políticos realizados na Esplanada dos Ministérios, em Brasília, e na Avenida Paulista, em São Paulo, cruzou “as quatro linhas da Constituição de 1988”. Mostrou seu verdadeiro tamanho, mas ele não é maior do que um quarto do campo do eleitorado, conforme as pesquisas de opinião que avaliam o seu desempenho e o do governo. Por isso mesmo, a opção de governar apenas para seus partidários, em vez de fazê-lo para todos os brasileiros, e desafiar a ordem democrática e os demais Poderes da República, principalmente o Supremo Tribunal Federal (STF), pode lhe custar muito mais caro do que imagina.
Além de escolher o caminho da derrota eleitoral em 2022, Bolsonaro pede para ser considerado inelegível pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) e para que seja aberto o seu processo de impeachment pelo presidente da Câmara, com apoio até dos partidos do Centrão. No Dia da Independência, cujas comemorações sequestrou, Bolsonaro não apresentou um projeto para o país, nem falou dos nossos verdadeiros problemas: crise sanitária, recessão, desemprego, inflação, crise fiscal, isolamento internacional. Para mascarar seu fracasso, agravou ainda mais crise com o Supremo, que pode se tornar disruptiva.
De uma só vez, nas manifestações, cometeu vários crimes eleitorais, daqueles que já custaram o mandato e/ou a reeleição de muitos prefeitos e alguns governadores. Fez campanha eleitoral antecipada; usou recursos públicos em benefício próprio; o dinheiro de caixa dois financiou viagens de fanáticos apoiadores. Bolsonaro elevou o patamar de seus desatinos autoritários. Para o mundo político e jurídico, pirou de vez. Fez ataques e ameaças frontais aos demais poderes, pregou a desobediência civil. Anunciou que pretende reunir o Conselho da República ainda hoje, para enquadrar os ministros do STF Alexandre de Moraes e Luís Roberto Barroso. O primeiro é responsável pelo inquérito das fake news e será o presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) durante as eleições, cargo hoje ocupado pelo segundo. Bolsonaro disse com todas as letras que não haverá eleição com urna eletrônica.
“Amanhã, estarei no Conselho da República. Juntamente com os ministros. Para nós, juntamente com o presidente da Câmara, do Senado e do Supremo Tribunal Federal, com esta fotografia de vocês, mostrar para onde nós todos deveremos ir”, disse em Brasília. “Não aceitaremos que qualquer autoridade usando a força do Poder passe por cima da Constituição. Não mais aceitaremos qualquer medida, qualquer ação, qual-quer sentença que ve- nha de fora das quatro linhas da Constituição. Nós também não podemos continuar aceitando que uma pessoa específica da região dos três Poderes continue barbarizando nossa população. Não podemos aceitar mais prisões po- líticas no nosso Brasil”, completou.
Cartazes dos manifestantes pediam o afastamento dos ministros do Supremo e uma intervenção militar. O Dia da Independência foi transformado na antessala de um golpe de Estado. Bolsonaro tentou colocar contra a parede o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Luiz Fux: “Ou o chefe desse Poder enquadra o seu ou esse Poder vai sofrer aquilo que não queremos. Porque nós valorizamos, reconhecemos e sabemos o valor de cada Poder da República. Nós todos aqui na praça dos Três Poderes juramos respeitar a nossa Constituição. Quem era de fora dela ou se enquadra ou pede para sair”, desafiou.
Executivo unitário
Fux, agora, terá que adotar medidas em defesa da instituição que preside e dos demais integrantes da Corte. Bolsonaro vem tomando atitudes na linha da teoria do “Executivo unitário”, tese defendida pela extrema direita norte-americana, adotada pelo presidente George Bush, dos Estados Unidos, logo após os ataques às Torres Gêmeas, em 2001, com a tomada de decisões sem consulta ao Congresso nem à Suprema Corte. O direito constitucional dos Estados Unidos afirma que o presidente da República possui o poder de controlar todo o Poder Executivo federal, com base no Artigo Segundo da Constituição dos Estados Unidos.
A teoria do Executivo unitário é uma resposta ultraconservadora ao porquê a autoridade deve ser respeitada. Para exercer o poder, é preciso fundamentá-lo juridicamente. Bolsonaro quer ampliar seu poder com base em fundamentos jurídicos que distorcem a Constituição de 1988, como sua interpretação do artigo 142, que regula o papel das Forças Armadas.
Na democracia, os pilares da validação do poder estão escorados na concessão pelo povo de autoridade e limites para os governantes, estabelecidos quando aquele (o povo) atribuiu a esses (os governantes) o exercício do poder soberano. Como atribuição, e não cessão (e nem concessão divina), os poderes de um governo só podem ser legitimamente exercidos dentro dos limites legais que lhes foram impostos. Por ter sido eleito pelo voto direto e ser o “comandante supremo” das Forças Armadas, Bolsonaro acredita que o Supremo não pode confrontar suas decisões, o que não é caso. Quem avaliza ou não a legitimidade de seus atos é o Supremo, não o contrário.