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Revista online | 2013: ecos que reverberam até hoje
Henrique Brandão*, especial para a revista Política Democrática online (46ª edição: agosto/2022)
Desde o início de agosto, encontra-se disponível na Globoplay o documentário Ecos de Junho. Dirigido pelo jornalista Paulo Markun e pela socióloga Angela Alonso, pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (CEBRAP), o filme busca mostrar como as gigantescas manifestações de 2013 reverberam, ainda hoje, na vida institucional e política dos brasileiros, quase dez anos depois de terem tomado de assalto as ruas das principais cidades do país.
Na época, as manifestações surgiram em torno do Movimento Passe Livre, que propunha tarifa zero para os ônibus, no momento em que a Prefeitura de São Paulo anunciou o reajuste de R$ 0,20 no preço das passagens.
A passeata inicial foi convocada por fora dos partidos tradicionais da esquerda. À essa convocação se juntaram, de forma difusa, vários outros movimentos, até então sem qualquer representação, que se organizavam por meio das redes sociais. O resultado foi uma manifestação com um perfil diferente do que até então se conhecia: não havia “comando” do ato, as palavras de ordem eram criadas na hora, e as faixas tradicionais foram substituídas por cartazes feitos à mão e trazidos de casa. Surgia, ali, a primeira manifestação de massa convocada pelas redes sociais.
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Se o mote era o reajuste das passagens, os motivos que levaram as pessoas às ruas eram muitos, como ficou evidente nos cartazes improvisados. Os partidos da esquerda socialista foram surpreendidos pelo tamanho da manifestação. Talvez enferrujados pela ausência de reivindicações de rua durante os governos Lula e Dilma, foram tomados pela paralisia decorrente da perplexidade.
O fato é que as manifestações ganharam corpo, não apenas pelo caráter “novidadeiro” da convocação: a atuação desastrada da polícia e sua desmedida repressão, com bombas, farta distribuição de cassetadas e tiros de borracha – uma repórter fotográfica que cobria os atos foi atingida no olho por uma bala de borracha – acrescentaram o fator “solidariedade” às manifestações. A partir daí, os atos ganharam mais força e repercussão nacional, com manifestações se multiplicando por várias cidades do Brasil.
O documentário mostra muito bem os diversos grupos políticos que se uniram em torno das manifestações. Se começou com uma pauta articulada por um grupo de esquerda a favor do passe livre, rapidamente outros de formação diversa aderiram aos protestos. O que havia de comum, e "Ecos de Junho" indica com clareza, era uma insatisfação com o poder público, dirigida aos políticos, em geral, e aos governos do PT, em particular.
Veja, abaixo, galeria de imagens do documentário:
Direita, esquerda, movimento anarquista, grupos identitários, todos foram para as ruas, num movimento variado, onde a reivindicação por passe livre acabou se diluindo em meio à profusão de palavras de ordem. “Não são só 20 centavos”, dizia um cartaz que sintetizou, de maneira emblemática, o espírito dos manifestantes, jovens em sua maioria.
O documentário traz imagens e depoimentos de diversas pessoas envolvidas naqueles acontecimentos. Mostra, por exemplo, como grupos de direita nasceram ou cresceram de algum modo vinculados aos eventos de 2013. São esses grupos que, dois anos depois, deram sustentação, nas ruas, ao impeachment de Dilma Rousseff, apoio político às reformas de Michel Temer e, em 2018, ajudaram a eleger Jair Bolsonaro. Nada disso aconteceria sem a incubadora de 2013.
Independentemente da bandeira política de cada um, o filme tem enorme valor por trazer depoimentos de quem esteve lá no calor da hora e, hoje, uma década depois, pode rever, com certo distanciamento, sua participação nos acontecimentos.
Mas “os ecos de junho” não terminaram. Os choques de posição continuam em jogo. Em entrevista para a Folha de S. Paulo, Angela Alonso, codiretora do filme, afirmou: "Essa disputa, de certa maneira, ainda não acabou. Tem muito de junho de 2013 na atual disputa eleitoral".
Sobre o autor
*Henrique Brandão é jornalista e escritor.
** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de agosto/2022 (46ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
*** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
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Fabiana de Souza: Ele não pode estar de volta se nunca foi embora
No filme, Adolf Hitler “acorda” na Berlim de 2014 e, paulatinamente, se habitua ao cotidiano
Fabiana de Souza / Horizontes Democráticos
O filme Ele está de volta coloca como questão central os limites, cada vez mais tênues, entre ficção e realidade, explorando os significados desta mudança contemporânea para a sustentabilidade da política democrática. Dirigido pelo cineasta alemão David Wnendt e lançado em 2015, o roteiro contou com a participação de Timur Vermes, autor do romance de título homônimo, no qual o filme foi inspirado. No enredo, Adolf Hitler “acorda” na Berlim de 2014 e, paulatinamente, se habitua ao cotidiano. Não são poucas as situações inusitadas em que Hitler se envolve até perceber que não se encontra em 1945. Conhece um produtor autônomo de programas de TV que o insere no centro do poder contemporâneo, as mídias.
Ele está de volta nos obriga a perguntar: mas por onde ele andou? Como voltou? Por que voltou? As circunstâncias esdrúxulas do aparecimento de Adolf Hitler na Berlim de 2014 permitem elaborar um incômodo essencial: não é possível que ele esteja de volta! E não é possível não porque seja um absurdo do ponto de vista biológico, mas porque ele nunca deixou de estar entre nós. O personagem Hitler não entende como voltou, mas, logo, demonstra saber o motivo: aproveitar a chance de repetir uma história, para a qual o final se encontra aberto, no ambiente da ficção. Aos espectadores são apresentados novos cenários e novos personagens, mas a história desfila marcada pela permanência. Essa é a causa do desconforto. Para o Hitler da ficção, enfrentar sobriamente uma senhora judia, em 2014, era o mesmo que suportar, estoicamente, não caçar judeus durante as Olimpíadas em 1936. Ainda não chegara o tempo de eliminá-la, esse tempo viria. O que permite a ele enfrentá-la sobriamente? Estratégia e certeza da profecia. Também para o Hitler da ficção a história é medida por uma concepção de tempo fatalista e teleológica. É esta concepção – a mesma que sustentou a ideologia totalitária – a que o Hitler do filme recorre, quando diz à Bellini, sua musa, uma mistura perfeita de Goebbels e Riefenstahl: “a essência da minha visão de mundo me permite sempre tomar a decisão certa”.
Contudo, importante não é apenas a conclusão de que o Führer está vivo ou de que cada um de nós guarda, em potência, um Hitler, um Stalin, um Mao. Fundamental mesmo é como, por meio de quais recursos, um processo profundo de identificação entre coletivos e lideranças se viabiliza. Ainda melhor: como uma “ideia” se torna tão poderosa ao ponto de acreditarmos ser ela o pilar que sustenta e integra nossa vida psíquica? Evidente que, para tratar dessas questões, o filme dialoga com a história. A frase final de Bellini, dirigida a um repórter, é a seguinte: “Tivemos 70 anos para digerir nossa história. As crianças estão cansadas de aprender sobre o Terceiro Reich. Vamos parar de subestimar as pessoas”.
Há um filme dentro do filme. Uma comédia estava sendo filmada e, nela, o Hitler da ficção é protagonista. Por isso, pouco antes de mencionar o cansaço das crianças alemãs com o Terceiro Reich, Bellini, ao ser perguntada se “comédia com Hitler pode dar certo”, diz: “Há comédia alemã pré-Hitler e pós-Hitler”. A inferência propositada à Educação após Auschwitz[1] desvela que o filme nos coloca na posição de aprendizes. Interessante, então, é nos darmos conta de como a montagem cinematográfica atua para alcançar tal propósito. Duas estratégias chamam a atenção.
A primeira delas, a mistura entre ficção e realidade. O personagem Hitler viaja pela Alemanha e conversa com pessoas comuns, há diversas cenas em que interage com a população. Além desses diálogos, integram o filme entrevistas realizadas no decorrer de 2014. Dessa maneira, a história ficcional convive com elementos próprios ao documentário. O encontro das pessoas com o ator paramentado provoca reações de empatia e asco visibilizadas pela câmera.
A segunda estratégia tem a ver com os tempos da comédia e do drama no filme. Intercalando esses tempos, somos encaminhados à experiência com o sombrio – vigoroso elemento da aprendizagem. Iniciada em tom de comédia, a narrativa fílmica nos diverte, nos faz esquecer da gravidade do tema e da situação. Faz mais: com Hitler, rimos. Para ficar claro: não rimos dele, mas com ele. Sentimos empatia por aquele homem perdido que, ao se colocar em situações cômicas, expressa preocupação, atenção e educação. É fato: um Hitler anacrônico e confuso nos diverte. O filme nos mobiliza profundamente, muito mais do que se fosse um documentário ou um drama, fórmulas testadas à exaustão, especialmente no caso do nazismo. Mobiliza porque choca. E choca porque dialoga com o nosso presente. Somos colocados na posição de quem experimenta rir com Hitler e se inebria com a sua capacidade de comunicação.
Ao criticar as mídias e expor as estratégias contemporâneas de comunicação, o filme obriga o espectador a refletir sobre seu lugar e responsabilidade na cadeia de eventos que corroem a convivência democrática. Afinal, não é o dissenso ou o conservadorismo que colocam em xeque a democracia. As democracias morrem pela intolerância e por nossa alienação da política, compreendida como atividade que conecta pessoas no espaço público, em busca do bem-estar coletivo. A política reduzida ao algoritmo é o que torna central o debate sobre a simbiose entre ficção e realidade, com o objetivo de desalojar o negacionismo e as fake-news. Exatamente por isso, inseridas ao longo do filme, as entrevistas impactam mormente. Por meio delas, descobrimos racistas, nacionalistas e neonazistas acomodados à lógica da violência. Em contraponto, também capturamos o eficaz poder da ficção, que ativa a linguagem dos grupos que não se abstêm de colocar-se às câmeras. A ficção não está fora da vida, antes, é o que nos permite enxergar melhor o real, por isso este filme merece atenção. A propósito de uma trama cinematográfica e tendo à frente um “Hitler de mentira”, as pessoas expõem desejos bem reais, em sua maioria relacionados ao desconforto com a imigração. A inserção das entrevistas funciona porque essas reforçam o jogo entre o real e o ficcional, obrigando-nos a ver a presença do passado como trauma. Não por acaso, um dos entrevistados confessa: “não podemos dizer nada porque somos alemães, há o estigma do passado”.
Resta responder, a propósito do filme, o que une cultura, política e mídias. Catapultado à celebridade, o Hitler do filme encanta as pessoas que o cercam, sem dispensar a linguagem e a estética violentas. Para viabilizar e visibilizar esse personagem, a mídia se movimenta compartimentando o fato e a exploração do fato, tendo conhecimento da cultura política com a qual interage e buscando tornar efêmera a memória coletiva. Assim, o espetáculo midiático unifica o diverso, impõe “uma verdade” e afirma a aparência. Isso não é exatamente novo; a novidade é como as novas tecnologias ampliaram o poder midiático de cultivar versões e pontos de vista, a despeito da verdade. Em um universo assim constituído, a liderança escolhida pode ser um “zé-ninguém”, que não tem o que dizer, embora pareça ter. Assustadoramente, Hitler tinha mais a formular, se comparado à liderança autoritária brasileira, que se sustenta pelo esvaziamento das instituições, pela perversão da política e por uma defesa antissistêmica, cuja máxima é “destruir tudo o que aí está”.
Longe de mim insinuar que nosso país é dirigido por um nazista – a história e a nossa cultura política não permitem tal linearidade. Interessa-me, de fato, apontar o uso certeiro da mídia digital para produzir uma realidade que encerra convertidos sem escrúpulos ao uso da violência. Por esse motivo, retornar à polis se faz urgente. A repetição traumática assim o exige. Ora ou outra, a conta chega. Um coletivo emancipado exige alteridade tanto quanto dissenso. O eu é um outro: é isso que a história nos ensina, do ponto de vista ético-político.
[1]Trata-se de uma palestra de Adorno transmitida na rádio de Hessen, em 18 de abril em 1965, publicada em Frankfurt, no ano de 1967.
Fonte: Blog Horizontes Democráticos
https://horizontesdemocraticos.com.br/ele-nao-pode-estar-de-volta-se-nunca-foi-embora/