sergio ricardo

‘País parece dominado pela boçalidade’, afirma Martin Cezar Feijó

Em artigo publicado na revista Política Democrática Online de agosto, historiador homenageia multiartista Sérgio Ricardo

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

Pianista, compositor, poeta, escritor, cantor, cineasta, ator (rádio, televisão e cinema), produtor musical, artista plástico, Sérgio Ricardo viveu intensamente seu tempo histórico e fez muito pela cultura brasileira. O multiartista é lembrado em artigo do historiador Martin Cezar Feijó, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de agosto e no qual também critica a situação do Brasil. “País parece dominado pela boçalidade”, diz.

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A revista é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília. Todas as edições podem ser acessadas, gratuitamente, no site da instituição. Em seu artigo, Feijó conta que João Mansur Lutfi, nome de registro de Sérgio Ricardo, nasceu no dia 18 de junho de 1933, na cidade de Marília, interior do Estado de São Paulo. “E morreu aos 88 anos de idade no dia 23 de julho de 2020, na cidade do Rio Janeiro, depois de um longo período internado, inicialmente por Covid-19, da qual se curou, mas faleceu por problemas cardíacos”, lamenta o autor.

Sérgio Ricardo adotou o nome artístico ainda moço, por sugestão de um diretor de televisão que tinha o mesmo nome. “Um artista que fez muito pela cultura brasileira a partir da década de 1950, principalmente nos anos 60”, destaca Feijó. “Um período fértil e criativo, em que o Brasil se revelava muito inteligente na pertinente definição de Roberto Schwarz, diferente da atualidade, em que o país parece dominado pela boçalidade”, critica.

O multiartista era filho de um sírio emigrado, Abdalla Lufti, que chegou no Brasil em 1926, e de uma brasileira filha de árabes, Maria Mansur, que nasceu em 1912. Era uma família musical, cantavam em casa músicas populares árabes, e Abdalla tocava alaúde. Todos os irmãos estudaram música ou se dedicaram às artes, como o caso de Dib Lutfi, um dos maiores diretores de fotografia da história do cinema brasileiro.

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Como as trilhas mudaram a percepção sobre filmes? Lilian Lustosa explica

Em artigo publicado na revista Política Democrática Online de agosto, crítica de cinema cita parcerias bem-sucedidas e duradouras

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

As trilhas mudaram a nossa percepção dos filmes e foram incorporadas de vez à arte cinematográfica, com parcerias bem-sucedidas e duradouras como as de Alfred Hitchcock e Bernard Herrmann, Steven Spielberg e John Williams, Sergio Leone e Ennio Morricone, além de Sérgio Ricardo e Glauber Rocha. A análise é da crítica de cinema Lilia Lustosa, em artigo que publicou na revista Política Democrática Online de agosto, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), sediada em Brasília.

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Todos os conteúdos da revista podem ser acessados, gratuitamente, no site da FAP. Em seu artigo, Lilia diz que, bem antes de o som invadir as telas do cinema com “O Cantor de Jazz” (1927), de Alan Crosland, a música já funcionava como o melhor complemento para essa nova arte que conquistava pouco a pouco sua legitimação.

“Não tardou nada para que as imagens em movimento inauguradas pelos irmãos Lumière ganhassem logo acompanhamentos de piano, órgão e até de orquestras inteiras. Alguns músicos, vislumbrando o potencial da arte que surgia, começaram a compor diretamente para as tais ‘vistas’ que tanto encantavam os olhos das plateias naquele começo de século 20”, afirma Lilia, em seu artigo na revista Política Democrática Online.

Segundo a crítica de cinema, o alemão Gottfried Huppertz foi um deles, compondo para alguns dos filmes mais importantes de Fritz Lang – “Dr. Mabuse” (1922), “Os Nibelungos – A Morte de Siegfried” (1924) e “Metropolis” (1927) –, estabelecendo com o diretor uma parceria de sucesso, acabando por tornar-se o compositor mais requisitado do Expressionismo alemão.

A partir daí, conforme escreve Lilian, as “trilhas sonoras” foram incorporadas de vez à arte cinematográfica, vendo surgir de quando em quando outras parcerias bem-sucedidas e duradouras, como as de Alfred Hitchcock e Bernard Herrmann, Steven Spielberg e John Williams, ou ainda a de Sergio Leone e Ennio Morricone, compositor italiano que nos deixou em julho último, aos 91 anos de idade.

Morricone foi o grande parceiro do diretor Sergio Leone, seu colega de escola e figura emblemática do western spaghetti, gênero que nasceu na Itália e conquistou o mundo, lançando até mesmo um certo Clint Eastwood para o estrelato. “O compositor, que ganhou um Oscar Honorário pelo conjunto de sua obra em 2007, revolucionou a maneira de compor para o cinema, misturando música erudita (tradição hollywoodiana) com música pop, associando-lhes ainda elementos de música concreta”, diz Lilian.

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RPD | Lilia Lustosa: Sinfonia no céu

As trilhas mudaram a nossa percepção dos filmes e foram incorporadas de vez à arte cinematográfica, com parcerias bem-sucedidas e duradouras como as de Alfred Hitchcock e Bernard Herrmann, Steven Spielberg e John Williams, Sergio Leone e Ennio Morricone, além de Sérgio Ricardo e Glauber Rocha, avalia Lilia Lustosa

Bem antes de o som invadir as telas do cinema com “O Cantor de Jazz” (1927), de Alan Crosland, a música já funcionava como o melhor complemento para essa nova arte que conquistava pouco a pouco sua legitimação. Não tardou nada para que as imagens em movimento inauguradas pelos irmãos Lumière ganhassem logo acompanhamentos de piano, órgão e até de orquestras inteiras. Alguns músicos, vislumbrando o potencial da arte que surgia, começaram a compor diretamente para as tais “vistas” que tanto encantavam os olhos das plateias naquele começo de século 20. O alemão Gottfried Huppertz foi um deles, compondo para alguns dos filmes mais importantes de Fritz Lang – “Dr. Mabuse” (1922), “Os Nibelungos - A Morte de Siegfried” (1924) e “Metropolis” (1927) –, estabelecendo com o diretor uma parceria de sucesso, acabando por tornar-se o compositor mais requisitado do Expressionismo alemão.

A partir daí, as “trilhas sonoras” foram incorporadas de vez à arte cinematográfica, vendo surgir de quando em quando outras parcerias bem-sucedidas e duradouras, como as de Alfred Hitchcock e Bernard Herrmann, Steven Spielberg e John Williams, ou ainda a de Sergio Leone e Ennio Morricone, compositor italiano que nos deixou em julho último, aos 91 anos de idade.

Morricone foi o grande parceiro do diretor Sergio Leone, seu colega de escola e figura emblemática do western spaghetti, gênero que nasceu na Itália e conquistou o mundo, lançando até mesmo um certo Clint Eastwood para o estrelato. O compositor, que ganhou um Oscar Honorário pelo conjunto de sua obra em 2007, revolucionou a maneira de compor para o cinema, misturando música erudita (tradição hollywoodiana) com música pop, associando-lhes ainda elementos de música concreta.

“Três Homens em Conflito” (1966), cuja trilha foi baseada no som dos coiotes do “velho oeste”, é um bom exemplo dessa mescla. Uma ousadia que se impôs e fez escola, com discípulos espalhados no mundo inteiro, além de espectadores-fãs transformados em cineastas, como Quentin Tarantino, que, depois de muito insistir, conseguiu que Morricone concordasse em compor a trilha de seu “Os Oito Odiados” (2015). Uma experiência que lhe rendeu um Oscar de melhor trilha sonora original, além do título de pessoa mais velha a receber a estatueta, aos 87 anos de idade.

"Morricone foi o grande parceiro do diretor Sergio Leone. O compositor, que ganhou um Oscar Honorário pelo conjunto de sua obra em 2007, revolucionou a maneira de compor para o cinema, misturando música erudita (tradição hollywoodiana) com música pop, associando-lhes ainda elementos de música concreta"

Não se sabe ao certo quantas músicas Morricone compôs para o cinema – algo em torno de 500, segundo especialistas –, mas onde não pairam dúvidas é quanto à diversidade de gêneros em que atuava. Aliás, ele ficava incomodado com o fato de ser sempre associado ao western, quando, na verdade, transitou por tantos outros gêneros, vide “Era uma Vez na América” (1984), “Cinema Paradiso” (1988), “A Missão” (1986) e “Os Intocáveis” (1987). Para cada um, soube encontrar a melodia certa, fazendo da partitura não só um complemento, mas também um elemento intrínseco à mise-en-scène, tal como a iluminação, os movimentos de câmaras, a cenografia etc.

Do lado de cá do Atlântico, também tivemos grandes compositores que atuaram no cinema, como Heitor Villa-Lobos, que compôs uma série de suítes para o filme “Descobrimento do Brasil” (1937), de Humberto Mauro, e acabou virando o compositor-símbolo do Cinema Novo. Movimento cinematográfico que ainda revelou Sérgio Ricardo, grande parceiro de Glauber Rocha em seus filmes mais importantes – “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964), “Terra em Transe” (1967) e “O Dragão da Maldade Contra o Santo Guerreiro” (1969) –, bem como diretor de “Menino da Calça Branca” (1962) e de “Esse Mundo é Meu” (1964), para os quais compôs ainda as trilhas.

Assim como Morricone, Sérgio Ricardo revolucionou a música cinematográfica, deixando de lado as músicas orquestrais e os números musicais em voga no cinema do Brasil de então, partindo para uma experiência mais antropofágica. No caso de “Deus e o Diabo”, musicou as letras escritas pelo próprio Glauber em forma de cordel, cantou-as acompanhadas por um violão tocado por ele mesmo e misturou-as às Bachianas já antropofagizadas de Villa-Lobos. Em “Terra em Transe”, ampliou ainda mais a mistura, alternando o mesmo Villa Lobos com Giuseppe Verdi, Carlos Gomes, jazz, bossa nova, cantos de candomblé, marchinhas de Carnaval e ainda tiros de metralhadora e sirenes de polícia. Uma verdadeira inspiração para o Tropicalismo que emergia em nosso país daquele fim de anos 60.

Foto: Ana Resende

Sérgio Ricardo, que se chamava João Lutfi de nascimento, partiu também neste julho, aos 88 anos de idade, apenas alguns dias depois do mestre Morricone, deixando emudecido o cinema brasileiro. Grande silêncio sentido na terra, festa sinfônica no céu.

*Lilia Lustosa é crítica de cinema


RPD | Henrique Brandão: Humberto Mauro - “Cinema é cachoeira”

Pioneiro do cinema, Humberto Mauro é considerado o mais nacionalista de todos os cineastas brasileiros. Primeiro a registrar o Brasil profundo de maneira sincera, ele realizou 11 longas-metragens e 357 curtas e médias

As novas gerações interessadas em cinema talvez não tenham ouvido falar de Humberto Mauro. Não sei se suas obras são estudadas nas faculdades. Se o são, ótimo, pois o cineasta tem lugar de destaque na história do cinema brasileiro, não só pelo legado, mas também, principalmente, pela sua maneira original de filmar.

Humberto Mauro (1897-1983) é um dos pioneiros do cinema brasileiro. Tem vasta obra. São 11 longas-metragens e 357 curtas e médias, estes últimos realizados a partir de 1936, quando foi trabalhar no Instituto Nacional do Cinema Educativo (INCE), órgão subordinado ao MEC, a convite do antropólogo Edgard Roquette-Pinto. Infelizmente, parte desse imenso acervo se perdeu por problemas de conservação, mas é possível ter acesso a 80 deles, que estão espalhados entre o acervo da Cinemateca Brasileira e o CTAV – Centro Técnico Audiovisual da Funarte.

Na minha geração, não era fácil ter acesso aos filmes de Humberto Mauro. Meu primeiro contato com seus filmes foi com o curta “A Velha a Fiar” (1967), pequena obra-prima de realização, cheia de humor e brasilidade. Dos longas, só conheço fragmentos, dos quais destaco trechos de “O Descobrimento do Brasil” (1937), com trilha sonora de Villa-Lobos.

Nos dias atuais, continua difícil ver os filmes de Humberto Mauro. Portanto, foi com curiosidade e interesse que, como parte da comemoração dos 65 anos da Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM), assisti na plataforma Vimeo (programação completa em www.vimeo.com/mamrio) ao documentário “Humberto Mauro”.

"Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1977), crítico e fundador da Cinemateca Brasileira, ensaísta de sólida reputação, analisou as primeiras obras de Humberto Mauro em sua tese de doutorado, mais tarde publicada em livro: “Humberto Mauro, Cataguazes e Cinearte” (1974, Editora Perspectiva), hoje um clássico da historiografia do cinema brasileiro"

O longa-metragem é dirigido por seu sobrinho-neto, André di Mauro. O fio condutor do filme são algumas entrevistas dadas pelo cineasta durante a vida. Nelas, Humberto Mauro fala de assuntos importantes relacionados à sua obra. Sobre a natureza: “A gente tem que surpreender a natureza. Eu não filmo uma cachoeira assim de cara, não. Me escondo atrás de uma bananeira para ela não saber que está sendo filmada. Senão, a água começa a cair diferente”.

Quando o assunto é a visão estética: “A roda d’água, por exemplo, é de uma fotogenia extraordinária. Aquele rodar lento, os musgos, a água batendo contra o sol. Agora, troca por um motor a turbina e vê a porcaria que fica. O progresso é antifotogênico”.

Surpreendente também era a sua visão sobre a realização dos filmes: “Eu nunca estudei cinema. O Michelangelo dizia que a escultura já estava pronta dentro do bloco de pedra, era só você ir com o martelo. Eu costumo dizer que o filme já está dentro da máquina, é só focalizar e apertar o botão que ele sai.”

Quem assiste ao documentário percebe a construção de um olhar próprio, com uma noção de país muito peculiar. Humberto Mauro foi o primeiro cineasta a registrar o Brasil profundo de maneira sincera. É generoso com o país de sua época, predominantemente rural. O olhar é de quem está integrado à paisagem. A câmera parece um elemento natural, os enquadramentos não interferem na natureza. Fosse hoje, os ecologistas construiriam um monumento em sua homenagem.

A importância de Humberto Mauro foi reconhecida posteriormente. Paulo Emílio Salles Gomes (1916-1977), crítico e fundador da Cinemateca Brasileira, ensaísta de sólida reputação com papel decisivo na formação dos cineastas que participaram do Cinema Novo, analisou as primeiras obras de Humberto Mauro em sua tese de doutorado, mais tarde publicada em livro: “Humberto Mauro, Cataguazes e Cinearte” (1974, Editora Perspectiva), hoje um clássico da historiografia do cinema brasileiro.

"Além de talentoso cineasta, Humberto Mauro também era estudioso do tupi-guarani. Já aposentado das câmeras, colaborou com alguns cineastas do Cinema Novo. Foi o autor dos diálogos em tupi-guarani de “Como era Gostoso o meu Francês”, de Nelson Pereira dos Santos (1971) e de “Anchieta, José do Brasil”, de Paulo César Sarraceni (1978)"

Além de talentoso cineasta, Humberto Mauro também era estudioso do tupi-guarani. Já aposentado das câmeras, colaborou com alguns cineastas do Cinema Novo. Foi o autor dos diálogos em tupi-guarani de “Como era Gostoso o meu Francês”, de Nelson Pereira dos Santos (1971) e de “Anchieta, José do Brasil”, de Paulo César Sarraceni (1978).

O crítico e cineasta Alex Viany, que contou com a parceria de Humberto Mauro no argumento e roteiro de “A Noiva da Cidade” (1979), em entrevista no documentário deixa claro a admiração pelo velho pioneiro: “Você é o homem que plantou as raízes do cinema brasileiro. Seu cinema é uma coisa muito viva”.

Talvez o que melhor defina o jeito de filmar e a visão de mundo de Humberto Mauro seja a frase-síntese que deixou para a posteridade: “Cinema é cachoeira”.

*Henrique Brandão é jornalista e fundador do bloco “Simpatia é Quase Amor”.


RPD | Martin Cezar Feijó: O Multiartista de calças brancas

Pianista, compositor, poeta, escritor, cantor, cineasta, ator (rádio, televisão e cinema), produtor musical, artista plástico, Sérgio Ricardo viveu intensamente seu tempo histórico e fez muito pela cultura brasileira

João Mansur Lutfi nasceu no dia 18 de junho de 1933, na cidade de Marília, interior do Estado de São Paulo. E morreu aos 88 anos de idade no dia 23 de julho de 2020, na cidade do Rio Janeiro, depois de um longo período internado, inicialmente por Covid-19, da qual se curou, mas faleceu por problemas cardíacos, conforme noticiou a imprensa.

Foi pianista, compositor, poeta, escritor, cantor, cineasta, ator (rádio, televisão e cinema), produtor musical, artista plástico. Como dizia, só não aprendeu balé. E foi conhecido pelo nome artístico que adotou ainda moço, por sugestão de um diretor de televisão: Sérgio Ricardo. Um artista que fez muito pela cultura brasileira a partir da década de 1950, principalmente nos anos 60. Um período fértil e criativo, em que o Brasil se revelava muito inteligente na pertinente definição de Roberto Schwarz, diferente da atualidade, em que o país parece dominado pela boçalidade.

Filho de um sírio emigrado, Abdalla Lufti, que chegou no Brasil em 1926, e de uma brasileira filha de árabes, Maria Mansur, que nasceu em 1912. Era uma família musical, cantavam em casa músicas populares árabes, e Abdalla tocava alaúde. Todos os irmãos estudaram música ou se dedicaram às artes, como o caso de Dib Lutfi, um dos maiores diretores de fotografia da história do cinema brasileiro.

Aos 8 anos de idade, João Lufti foi matriculado no Conservatório Cecília, em Marília, para aprender piano, o que foi decisivo em toda sua vida. Com 17 anos, foi morar com um tio, que era proprietário de uma rádio, na cidade de São Vicente (ZYH-3, Rádio Cultura São Vicente), onde não só aprendeu tudo sobre rádio, mas também adquiriu conhecimento de música popular brasileira, que foi fundamental em sua trajetória.

Após uma temporada na Baixada Santista, mudou-se para o Rio de Janeiro, para morar com outro tio e preparar terreno para toda a família se mudar. No Rio, trabalhou na rádio Vera Cruz como locutor, depois na TV Tupi como ator.

Nesta época, foi-lhe sugerido adotar um nome artístico. Optou por Sérgio Ricardo, com o qual entrou para história da cultura brasileira. Na TV Rio, apresentou programas musicais e teve contatos com Ronaldo Bôscoli e Roberto Menescal, o que lhe abriu as portas para um movimento musical nascente, a Bossa Nova. Como pianista, substituiu Tom Jobim na noite carioca. Tocando piano e cantando na noite, ficou conhecido no meio musical.

Em 1957, gravou seu primeiro disco (78 RPM), com as canções “Vai, Jangada”, de Newton Castro e Geraldo Serafim, e “Sou Igual a Você”, de Nazareno de Brito e Alcyr Pires.

Mas foi com “Bossa Romântica de Sérgio Ricardo”, em 1959, que demonstrou afinidades musicais com o novo estilo. O período era de grande efervescência cultural e o inquieto artista aspirava também o cinema.

A melhor maneira de seguir uma carreira coerente e multifacetada é acompanhar o próprio roteiro realizado por Sérgio Ricardo ao comemorar seus 85 anos de vida, em 2018. Foi um show com apoio do Canal Brasil, gravado em Niterói, no teatro da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFF). Deste magnífico show – Cinema na música de Sérgio Ricardo – resultou um produto dirigido por Paulo Henrique Fontenelle 2019), hoje disponível na plataforma Now e nos formatos CD e DVD, lançados pela Biscoito Fino.

O show foi o último trabalho apresentado pelo artista, com a participação de seus filhos Marina Lutfi, idealizadora do projeto, Adriana Lutfi e João Gurgel. Com um time formado por maestros na percussão (Diego Zangado) e baixo (Giordano Gasperin). Contou ainda com as participações de Dori Caymmi, João Bosco, Alceu Valença e Geraldo Azevedo.

As músicas acompanham cenas dos filmes em que Sérgio Ricardo teve importante participação, como diretor – “O menino de calças brancas” (1961), “Esse mundo é meu” (1964), “Juliana do Amor Perdido” (1969)) e “A noite do espantalho” (1972) –, ou compositor – “Deus e o Diabo na Terra do Sol” (1964) e “Terra em Transe” (1967), os dois de Glauber Rocha.

Em depoimento a publicação em fascículos da Editora Abril, lançada nas bancas em vinil na década de 70 do século passado, volume 37, dedicado à obra de Sérgio Ricardo, o amigo de longa data, Ziraldo, assim o definiu: “Sérgio não estourou em termos de massa. Certamente jamais irá estourar. Não que sua música seja elaborada demais, sofisticada ou impenetrável; o mistério é outro. Sua honestidade consigo mesmo chega a exageros que o definem como dos seres humanos mais puros e de melhor caráter que eu já conheci em minha vida. Seu pavor à mentira, à mistificação, ao engano e à hipocrisia criaram em sua volta uma certa impenetrabilidade que é a sua forma de se defender do mundo.”

Sérgio Ricardo, um artista que viveu intensamente seu tempo histórico. Coerente em busca de uma dignidade, como o menino de calças brancas, que buscava superar os limites da pobreza sonhando e realizando. Enfrentando vaias com coragem e solidário a todos que buscaram uma cultura brasileira inteligente, diversificada e bela, mesmo que nem sempre tendo o reconhecimento que merecia, mas que a História o fará.

Referências

CONTIER, Arnaldo Daraya. “Sérgio Ricardo - Modernidade e engajamento político na canção”, in: Comunistas brasileiros: cultura política e produção cultural. Marcos Napolitano, Rodrigo Czajka, Rodrigo Patto Sá Motta (organizadores). Belo Horizonte: UFMG, 2013, pp. 339-358.

HAGMEYER, Rafael, SARAIVA, Daniel Lopes (organizadores). “Esse mundo é meu: as artes de Sérgio Ricardo”. Curitiba: Appris, 2018.

NAPOLITANO, Marcos. Coração Civil. “A vida cultural brasileira sob o regime militar (1964-1985). Ensaio histórico”. São Paulo: Intermeios: USP – Programa de Pós-graduação em História Social, 2017.

Martin Cezar Feijó é historiador e professor titular-doutor na Facom da Faap (Fundação Armando Álvares Penteado).