Sergio Moro

O Globo: Projeto de Moro obriga prisão após condenação em segunda instância

Sugestão deve ser incluída no Código de Processo Penal

Por Jailton de Carvalho e André de Souza, de O Globo

BRASÍLIA — Pacote de reforma penal apresentado nesta segunda-feira pelo ministro da Justiça, Sergio Moro, aos governadores prevê o cumprimento de pena de prisão imediatamente após condenação em segunda instância.

Pelas regras em vigor, a Justiça pode autorizar a prisão do condenado. Pela proposta de Moro, a prisão se torna obrigatória. “Ao proferir acórdão condenatório, o tribunal determinará a execução provisória das penas privativas de liberdade, restritivas de direitos ou pecuniárias, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos", diz um dos artigos da proposta do ministro. A sugestão deve ser incluída no Código de Processo Penal.

O texto de Moro deixa, no entanto, uma brecha para o não cumprimento imediato da condenação. "O tribunal poderá, excepcionalmente, deixar de autorizar a execução provisória das penas se houver uma questão constitucional ou legal relevante, cuja resolução por Tribunal Superior possa plausivelmente levar à revisão da condenação", diz outro trecho da mesma proposta.

Num outro trecho, a proposta do juiz prevê redução de pena de policiais acusados de cometer excessos numa determinada ação. O projeto não elimina a possibilidade de punição a um policial, a chamada exclusão de ilicitude, conforme defendia o presidente Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral. Mas prevê que "o juiz poderá reduzir a pena até a metade ou deixar de aplicá-la se o excesso decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção".

Condenados por corrupção
A proposta também estabelece que os condenados por crimes de corrupção passiva, corrupção ativa e peculato devem cumprir a pena inicialmente no regime fechado. Atualmente, a definição do regime fechado depende mais do tempo de condenação, sendo aplicado em geral quando a pena é de pelo menos oito anos.

A proposta aumenta o tempo para progressão de pena no caso de alguns crimes hediondos. Hoje, um condenado precisa cumprir dois quintos da pena para ter direito, ou três quintos no caso de reincidência. Pelo projeto de Moro, o tempo passará para três quintos quando o crime resulta em morte da vítima.

Além disso, o projeto estabelece que "a progressão de regime ficará também subordinada ao mérito do condenado e à constatação de condições pessoais que façam presumir que ele não voltará a delinquir".

Crimes hediondos
O projeto também proíbe, durante o cumprimento da pena em regime fechado, as saídas temporárias de condenados por crimes hediondos.

O pacote do ministro também prevê aumentar a pena de prisão de integrantes de organizações criminosas. A mesma sobrecarga deverá ser aplicada a pessoas que, mesmo com condenação anterior definitiva ou com condenação imposta por órgão colegiado, voltem cometam crimes violentos.

Pela proposta de alteração da lei 10.826/2003 "a pena é aumentada da metade se: I - forem praticados por integrante dos órgãos e empresas referidas nos arts. 6º, 7º e 8º desta Lei; ou II - o agente possuir registros criminais pretéritos, com condenação transitada em julgado ou proferida por órgão colegiado", diz texto divulgado pelo ministro.

Pela sugestão do ministro, juízes poderão autorizar que agentes de segurança usem bens apreendidos em investigações criminais. Hoje policiais já costumam usar sobretudo carros apreendidos em casos relacionados a tráfico de drogas. Mas sem previsão legal explícita, essa prática tem provocado controvérsias. Em alguns casos, até resultam em desvios de conduta.

"O juiz poderá autorizar, constatado o interesse público, a utilização de bem sequestrado, apreendido ou sujeito a qualquer medida assecuratória pelos órgãos de segurança pública previstos no art. 144 da Constituição Federal para uso exclusivo em atividades de prevenção e repressão a infrações penais", diz um dos tópicos da proposta.

Acordo entre Ministério Público e acusados
O projeto também altera o Código de Processo Penal para incluir o "plea bargain", um modelo de justiça criminal comum nos Estados Unidos com possibilidade de acordo entre Ministério Público e acusados, em que estes se declaram culpados e conseguem alguns benefícios sem a necessidade de julgamento.

As penas poderão ser reduzidas até a metade e aplicadas de imediato. Também poderá haver a substituição do regime de cumprimento da pena por outro mais brando ou até mesmo por medidas alternativas, dependendo da gravidade do crime. O acordo terá que passar pelo crivo de um juiz que analisará sua legalidade e voluntariedade.

O governador de São Paulo, João Doria, indicou que ele e os demais chefes dos executivos estaduais vão atuar pela aprovação do pacote, mobilizando os parlamentares.

— A proposta do ministro é que esse projeto de lei seja apresentado no Congresso e que tenha o apoio dos governadores através de suas bancadas. Terá o apoio. As propostas como um todo estão bem formatadas, bem apresentadas, com pequenas nuances, pequenas sugestões para seu aprimoramento — disse Doria.

Envio ao Congresso
As propostas devem ser enviadas até quarta-feira ao Congresso Nacional. Uma cópia do pacote de medidas já foi entregue por Moro ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) nesta segunda-feira, antes da reunião do ministro com os governadores. Durante o encontro, Moro apresentou as linhas gerais a reforma penal a 12 governadores e representantes de mais 13 estados.

Num vídeo divulgado no domingo, Moro afirma que as medidas são necessárias para reforçar o combate ao crime organizado, à corrupção e também para conter o crescimento do número de homicídios no país. Num dos trechos da proposta, destinado a mudar parte da lei 12.850/2013, o ministro redefine o conceito de organização criminosa.

"Considera-se organização criminosa a associação de 4 (quatro) ou mais pessoas estruturalmente ordenada e caracterizada pela divisão de tarefas, ainda que informalmente, e que: I - tenham objetivo de obter, direta ou indiretamente, vantagem de qualquer natureza, mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a 4 (quatro) ano", diz o documento.

Será tida ainda como organização criminosa associação de quatro ou mais pessoas em âmbito "transnacional" e que se " se valham da violência ou da força de intimidação do vínculo associativo para adquirir, de modo direto ou indireto, o controle sobre a atividade criminal ou sobre a atividade econômica, como o Primeiro Comando da Capital, Comando Vermelho, Família do Norte, Terceiro Comando Puro, Amigo dos Amigos, Milícias, ou outras associações como localmente denominadas."


José Padilha: Sergio Bolsomoro

Ministro corre risco se abdicar de convicções éticas

O governo Bolsonaro já começou carimbado por suspeitas gravíssimas de corrupção. Flávio Bolsonaro, senador eleito pelo Rio de Janeiro, está para lá de enrolado com as movimentações atípicas nas contas de seu ex-assessor e na sua própria conta.

Não precisamos de Sherlock Holmes, ou de Capitão Nascimento, ou mesmo do deputado Fraga para concluir o óbvio: ninguém movimenta recursos de maneira tão anormal quanto Flávio Bolsonaro e seu ex-assessor. Depósitos em dinheiro, feitos um seguidinho do outro, dia após dia... Se o cara não tem algo sério a esconder, no caso a famosa prática de receber parte do salário de funcionários da Alerj, podemos dizer que se esforçou muito para parecer culpado.

Aliás, o senador continua se esforçando para parecer culpado nas entrevistas que concede para tentar explicar o que parece ser inexplicável, e faz o mesmo em sua atuação no âmbito jurídico.

Seu pai, o presidente eleito para salvar os brasileiros da corrupção (real) de PT/PMDB, já o jogou do convés do barco: "Se errou, vai ter que pagar". Presidente, ao que tudo indica, vai ter que pagar. Muito provavelmente por corrupção e desvio de verbas públicas, além de possível associação com milicianos. E não se esqueça: teve um capilé que foi parar na conta da primeira-dama...

O que me leva ao título deste artigo: Sergio Moro, o novo e poderoso ministro da Justiça, ungido pela eficiente luta contra a corrupção empreendida no âmbito da Operação Lava Jato, vai ficar assistindo a tudo isso sem fazer ou falar nada?

Queira ou não queira, ao aceitar o convite de Jair Bolsonaro para trabalhar no Ministério da Justiça, Sergio Moro avalizou implicitamente o governo Bolsonaro. Deu a este governo um carimbo de ética e de luta contra a corrupção. E, ao fazê-lo, colocou a sua biografia em jogo.

Lembro a Sergio Moro a famosa história do grande economista liberal Eugênio Gudin (1886-1986), que, apesar de ter controlado a crise econômica resultante da instabilidade política durante a transição do governo Vargas para o de Juscelino Kubitschek, pediu o boné assim que percebeu que o governo de Juscelino não seria orientado por visão liberal do controle dos gastos públicos.

Ou seja, não flexibilizou as suas convicções pessoais sobre a economia para se ater ao poder. (Espero o mesmo de meu amigo Paulo Guedes!) Pois bem: Sergio Moro vai flexibilizar as suas posições éticas para ficar em um governo que já nasce maculado?

Posto o problema está. Restam ao ministro três formas de lidar com ele: primeiro, pode calar e consentir. Segundo, pode pedir o boné. E, por fim, pode atuar decisivamente em favor de suas convicções éticas, colocando todo o aparato policial e jurídico que tem a sua disposição para investigar o senador Flávio Bolsonaro, dando um sinal claro para a sociedade de que, enquanto ministro, vai trabalhar pela justiça, doa a quem doer.

Em seu primeiro artigo como jornalista, Eugênio Gudin escreveu criticamente sobre a política de investimentos, conhecida como "50 anos em 5", do então presidente JK. Consta que Gudin dizia o seguinte acerca das gastanças de Juscelino em Brasília: "O Juscelino era um bom rapaz, bem intencionado, mas muito playboy. Ele criou uma capital que não produz nada". Sergio Moro criou um capital moral, e os brasileiros apostaram nele. Resta ver se este capital vai produzir algo de concreto.

Se não produzir nada, não chamarei o ministro Sergio de playboy, que isso ele não é. Mas, se o ministro Moro capitular em suas convicções éticas quando essas se aproximam dos Bolsonaros, corre o risco de ficar conhecido pela alcunha de Sergio Bolsomoro.

*José Padilha, Cineasta, diretor dos filmes "Tropa de Elite" (2007), "Tropa de Elite 2" (2010) e "RoboCop" (2014)


Bruno Boghossian: Moro leva 'bola nas costas' com jogadas do novo governo

Proposta do Banco Central enfraquece discurso do ministro contra lavagem de dinheiro

Quando abandonou o cargo de juiz, Sergio Moro disse que entraria no governo porque estava “cansado de levar bola nas costas”. Em dezembro, ele afirmou que a toga era poderosa, mas que só uma atuação dentro da política poderia evitar retrocessos no combate à corrupção.

Moro trocou de time, mas continua sendo atingido por trás. Enquanto Jair Bolsonaro fazia propaganda do ministro para os ricaços reunidos na Suíça, o Banco Central tentava afrouxar as regras de controle da lavagem de dinheiro no país.

Na largada de um governo que prometia ser implacável com crimes financeiros, a instituição propôs retirar parentes de políticos de uma lista de monitoramento. Também quis derrubar a exigência de que os bancos toquem um alarme quando fizerem transações de mais de R$ 10 mil.

Há três dias, Bolsonaro fez questão de dizer em Davos que Moro “tem todos os meios para seguir o dinheiro no combate à corrupção”. Alguém está interessado em esvaziar a caixa de ferramentas do ministro.

O novo governo parece estar preocupado em proteger e esconder. Nesta quinta (24), um decreto estendeu a funcionários de segundo escalão o poder para classificar um documento oficial como ultrassecreto, restringindo seu acesso por 25 anos.

Bolsonaro fez festa para si mesmo ao anunciar que abriria a caixa-preta do BNDES. Publicou apenas uma lista de financiamentos que já era pública e, agora, abre caminho para que muita coisa fique em segredo.

A democracia se esfarela quando a intimidação e a violência substituem a disputa política. Jean Wyllys foi reeleito nas urnas, mas se viu forçado a abandonar seu mandato por ter recebido diversas ameaças de morte.

Bolsonaro foi vítima de um atentado e já recebeu exilados da Venezuela e de Cuba, mas continua demonstrando um desrespeito infantil por seus adversários. Moro, que conhece os métodos da máfia italiana contra seus rivais, também perdeu a chance de condenar o episódio.


Elio Gaspari: Bem-vindo a Brasília, doutor Moro

Em Curitiba o juiz podia ir ao supermercado e sua caneta era uma lâmina, agora puseram-no num outro mundo

No sábado o ministro Sergio Moro foi chamado ao Palácio da Alvorada para uma reunião com o presidente Jair Bolsonaro e três colegas para decidir o que fariam com Cesare Battisti.

Ele fora preso na Bolívia e a Polícia Federal havia mandado um avião para trazê-lo de volta. Dias antes, Moro havia oficiado à Casa Civil para que exonerasse a diretora de Proteção Territorial da Funai, Azelene Inácio. O ministro vivia suas primeiras experiências no mundo da fantasia do poder.

A cena do sábado era pura ilusão do poder. O governo boliviano já decidira mandar Battisti para a Itália e um avião já saíra de Roma para buscá-lo.

O cumprimento da determinação para que Azelene fosse demitida era de outro tipo, pois deveria tramitar na burocracia do Executivo. Em Curitiba, Moro mandava prender e preso o cidadão seria. Caso o detento quisesse recorrer, a petição seguiria de acordo com o lento ritual do Judiciário.

Em Brasília, as coisas são, mas podem não ser. Na segunda-feira, Azelene, como o Alex da Apex, informou que continuava dando expediente e acrescentou que se sentia perseguida, como se estivesse “dentro do governo do PT”. A diretora continuou trabalhando porque a ministra Damares Alves, em cujo latifúndio jogaram a Funai, disse-lhe que reverteria a determinação de Moro.

O ministro da Justiça determinou à Casa Civil que exonerasse a diretora porque o Ministério Público apontou para um conflito de interesse na sua permanência. Passou-se uma semana e nada. Lula entregou-se à Polícia Federal em menos de 48 horas.

Em Curitiba, o Ministério Público denunciava, o juiz condenava e fim de caso, mas no Paraná Moro podia ir em paz a um supermercado. Em Brasília, ele teve a má experiência de ser interpelado por um cidadãoque também fazia suas compras. (Registre-se que Moro reagiu com a fleuma que faltou ao ministro Ricardo Lewandowski ao ser ofendido num avião.)

Brasília reserva outras surpresas a Moro. A maior delas certamente virá da imprensa. Na vara federal ele tinha um razoável controle da sua exposição.

Tendo feito boa liga com o Ministério Público, os procuradores ajudavam-no a operar a opinião pública. Moro era a imagem do poder nacional, encarnando algo bem-vindo e novo. Suas decisões eram festejadas, mesmo quando absolvia.

Podia dizer a um criminalista que advogados “atrapalham” e a conversa morria por lá. Se repetir coisas assim, está frito. Escapou-lhe também o controle da agenda.

O carro da deputada Martha Rocha leva tiros de fuzil e o problema cai sobre sua mesa. Fabrício Queiroz cala e dança e ele não pode fazer suas compras em paz. Isso para não se mencionar o conflito que está em curso no Ceará. Como ministro da Justiça e da Segurança Pública, Moro ganhou uma agenda velha e empoeirada.

Com a ida ao Alvorada para tratar de um assunto que podia ser resolvido por telefone ou pelo WhatsApp, ele entrou nos elencos teatrais da capital.

A cidade lhe reserva outros teatros, mais demorados e muitas vezes penosos. Ele descobrirá isso quando tiver que segurar uma conversa em jantar de embaixada. Habituado ao secular e poderoso simbolismo da toga, estará obrigado a conviver em ocasiões solenes com sexagenários que se enfeitam com faixas acetinadas e circulam pelo evento com o paletó aberto.

Quando Moro aceitou o convite de Bolsonaro para o ministério, disse que estava “cansado de tomar bola nas costas”. Essas boladas podiam vir do Superior Tribunal de Justiça ou do Supremo Tribunal Federal, onde os jogadores são só 44. Pois agora levará caneladas e elas virão de todos os lados.

 


Fernando Gabeira: Um novo ato em fevereiro

Moro vai comer o pão que o diabo amassou para aprovar a sua agenda no Congresso

A relação de Bolsonaro com o Congresso é um enigma dentro do enigma. Ele promete romper com o velho esquema de governo de coalizão.

Esse já é um dos grandes desafios. Toda vez que se tentou, a percepção era de que formar um governo técnico seria possível, porém discriminar os políticos o levaria à ruína, uma vez que entre os políticos existe gente capacitada e ainda sem grandes problemas. A própria expressão discriminar é impensável num governo amplo.

Bolsonaro decidiu substituir os partidos pelas bancadas temáticas. Nada garante que elas não tenham os mesmos vícios, ou que possam oferecer fidelidade em temas que escapam ao seu campo de ação.

Houve renovação no Congresso. E foi superior às nossas previsões pessimistas, baseadas no fato de que os velhos caciques concentraram a grana para financiar a campanha.

Mas não foi possível, por falta de articulação ou mesmo perspectiva, unificar os novos com os mais experientes, aqueles que sobraram do desastre e poderiam pôr seu conhecimento a serviço de uma transformação.

Sozinhos, os novos não elegem a Mesa. E se elegessem estariam em dificuldades. Costumo dizer que 512 deputados estreantes e bem-intencionados seriam facilmente enrolados por uma só raposa regimental como Eduardo Cunha.

A saída que parece possível no momento é manter a velha direção; no caso da Câmara, Rodrigo Maia. Ele não sobrevive apenas por falta de alternativa. Sabe conciliar-se com as diferentes tendências políticas, enfim, traz um aprendizado que os novos não têm e os sobreviventes que por acaso o tenham não conseguiram capitalizar.

Dizem que Renan Calheiros é o favorito no Senado. Seria mais uma referência do passado, mostrando a limitação das mudanças. Não surgiu ainda no Senado, apesar da grande renovação, uma alternativa viável. O trunfo para evitar a vitória de Renan seria a conquista do voto aberto.

Sou favorável ao voto aberto e, dentro dos limites, lutei para que fosse ampliado o seu alcance na pauta de decisões. Mas o voto aberto numa eleição é sempre problemático.

A minoria pode se sentir constrangida em abrir um flanco para a vingança dos vencedores. Não falo de todos. Alguns são claros adversários de Renan e vão antagonizá-lo independentemente de voto aberto. E Renan saberá que votarão contra ele, mesmo na votação fechada.

O que os antigos dirigentes do Congresso podem oferecer a Bolsonaro, e parece que já indicaram isso, é rapidez e boa vontade nas reformas econômicas. Renan chegou a falar num processo rápido de votação, um fast track à moda do Congresso americano.

Se a aliança nas teses econômicas é fácil, em outro campo eles vão fazer corpo mole: as medidas contra a corrupção. Renan é a esperança que resta a alguns adversários da Lava Jato. Em vários momentos já demonstrou sua oposição a Sergio Moro.

Aí está o problema para Bolsonaro. Se, de um lado, será mais rápido aprovar medidas econômicas que não são assim tão populares, de outro, Moro vai comer o pão que o diabo amassou para aprovar sua agenda, que é muito mais popular.

É sempre tentador aprovar as reformas econômicas, com o apoio da imprensa e dos investidores. Talvez surja no governo a hipótese de investir nisso e deixar a agenda política para depois. Pode não funcionar.

Adiar a pauta de Moro não tem o mesmo efeito de adiar a pauta de costumes, que serve mais para animar a discussão nas redes sociais do que, realmente, mudar o País. Imagino a ministra de Direitos Humanos diante de três secretárias, alguns carros usados no pátio, batendo na mesa: “De agora por diante, menino veste azul e menina, rosa”. Dava o início de uma boa série da Netflix.

O combate ao crime organizado e à corrupção é tema urgente. Estou em Fortaleza, cobrindo a onda de ataques no Ceará. Mas nem precisava. Já estive antes, para mostrar como as facções criminosas dominaram as cadeias do Estado e se matavam pelo controle das ruas. Agora fizeram um pacto, uniram-se para a onda de terror.

No caso do crime organizado, não acredito tanto numa nova estrutura legal. É preciso inteligência e ação. Creio que a primeira faltou no Ceará quando anunciaram uma série de medidas repressivas sem estar preparados para ela. O golpe se dá de uma só vez, o bem é que se faz aos pouquinhos.

Na hipótese de aprovar as reformas econômicas, Bolsonaro pode se sentir forte. Mas as velhas lideranças também. Será muito difícil desatar o nó e abrir o caminho para a agenda de Moro. O ideal seria pensar todos esses temas no conjunto.

Mas no Brasil a campanha presidencial predomina. Em torno de um nome popular, as bancadas eleitas são uma espécie de arrastão. De fato, eles são novos, mas estão preparados para o longo combate? Os próprios presidentes, ocupados em garantir sua popularidade, esgrimindo frases de efeito, pavimentam sua vitória e deixam para depois a articulação dos grandes problemas.

Se é tudo tão nebuloso, por que escrever um artigo? Porque, apesar das confusões, existem algumas passíveis de ser previstas. Uma delas, inequívoca, é a de que a vitória de Renan e a relativa indiferença de Maia na defesa da Lava Jato podem levar, entre dezenas de pequenas barganhas, à grande e decisiva batalha em torno da corrupção.

Até que ponto isso foi apenas um tema de campanha? Até que ponto a corrupção é algo condenável apenas nos partidos de esquerda, ou é algo muito mais amplo e envolvente na História moderna do Brasil?
Essas previsões só serão mais bem desenvolvidas quando se fizer uma análise mais completa do novo Congresso. Por enquanto, temos nomes, biografias, mas só vamos conhecê-los mesmo diante dos grandes embates.

No meio do século passado as coisas eram mais previsíveis com as grandes bancadas da UDN e do PTB. Hoje é preciso esperar o começo e preparar-se para quatro anos de surpresas.


Vera Magalhães: De um lado, diagnóstico e prioridades; de outro, retórica ideológica

No primeiro time se destacaram Sérgio Moro e Paulo Guedes, cujas falas iniciais, densas, técnicas e bem centradas, confirmam a análise de que serão os pilares e os esteios do governo

Os discursos dos ministros de Jair Bolsonaro nas cerimônias de transmissão de cargos ontem em Brasília evidenciaram a existência de dois grupos na Esplanada. De um lado aqueles dotados de superestruturas, equipes afiadas, metas ousadas e prioridades para alcançá-las. De outro, o grupo escolhido por afinidade ideológica com a agenda conservadora com toques de religião, cujas falas primaram pela retórica sem conteúdo prático.

No primeiro time se destacaram Sérgio Moro e Paulo Guedes, cujas falas iniciais, densas, técnicas e bem centradas, confirmam a análise de que serão os pilares e os esteios de um governo que tem na economia seu maior desafio e na segurança e combate à corrupção suas mais poderosas bandeiras.

Moro começou explicando por que trocou a estável carreira de juiz por uma aposta na política (sim, a missão é em última instância política, por menos que ele goste). Avaliou que poderá avançar em sua agenda primordial, a do combate à corrupção, com a estrutura que terá em mãos.

E demonstrou ter consciência de que deve priorizar também o combate ao crime organizado – o que inclui enfrentar o caos nos presídios e o estrangulamento financeiro das facções – e a segurança pública, tão presente nos discursos de Bolsonaro. Tem cacife, inclusive, para mediar os excessos dos bolsonaristas nesta última seara.

Guedes deu uma aula de liberalismo no longo e nem por isso maçante discurso que proferiu ao assumir a tentacular pasta da Economia. De forma didática e desassombrada demonstrou por que a reforma da Previdência é condição sine qua non para o sucesso do governo e o crescimento sustentável da economia.

Não fez a demonização rasa da agenda anterior, ao reconhecer que a alternância de ciclos econômicos é normal e em alguma medida desejável. E, muito importante, demonstrou ter amadurecido no período da transição ao admitir reconhecer que a tarefa pode desencorajar quem, como ele, não conhece os meandros de Brasília e enaltecer a importância da articulação política e da imprensa para o convencimento da sociedade quanto à agenda liberal.

A precisão de diagnóstico e estratégia da dupla destacou ainda mais a inconsistência do outro grupo, no qual a cereja do bolo foi o discurso confuso, cheio de citações que se pretendiam eruditas, mas eram apenas deslocadas e sem relação umas com as outras, do chanceler Ernesto Araújo. Quando a retórica ideologizada toma o lugar das propostas, o resultado é sempre constrangedor. Seja na esquerda dilmista ou na neodireita bolsonaro-olaviana.


Os 22 ministros de Bolsonaro: ala ultraliberal, militares e só 2 mulheres

Paulo Guedes, Sergio Moro e Onyx Lorenzoni encabeçam o time do primeiro escalão formado pelo novo chefe do Executivo

Técnicos, políticos de carreira, militares e até um astronauta. O Ministério de Jair Bolsonaro conta com perfis diversos, porém comprometidos com as determinações do presidente para uma guinada liberal na economia e conservadora nos costumes, nas relações internacionais e nas políticas de segurança. Por enquanto, a única missão estipulada pelo comandante a seus subordinados é elaborar, nos primeiros dez dias de governo, um relatório sobre suas respectivas pastas – além de sugestões de medidas imediatas, incluindo a revogação de atos dos últimos meses da gestão Temer. Conheça os 22 ministros nomeados por Bolsonaro.

1) Economia – Paulo Guedes
Economista formado pela Universidade de Chicago, Paulo Guedes é chamado por Bolsonaro de seu “posto Ipiranga”, o local onde ele poderia resolver qualquer pendência ou dúvida econômica. É um técnico com poucos laços políticos e o nome mais poderoso da Esplanada depois do presidente. Tem montado uma equipe de economistas liberais, como ele, muitos com passagem pela ortodoxa Chicago. É ferrenho defensor da privatização de todas as empresas estatais. Sua pasta é um dos superministérios de Bolsonaro, pois será a fusão dos ministérios da Fazenda, do Planejamento e de Indústria e Comércio Exterior.

2) Casa Civil – Onyx Lorenzoni
Deputado federal há seis legislaturas, Onyx Lorenzoni se aproximou de Bolsonaro nos últimos quatro anos. Ele encampou a candidatura presidencial do capitão reformado e passou a fazer jantares em sua casa, em Brasília, para discutir as estratégias. Na primeira reunião, havia menos de dez comensais. Na última, quase uma centena. Filiado ao DEM, Lorenzoni será o elo de Bolsonaro com o Congresso Nacional. É quase tão explosivo como seu chefe. Admitiu ter recebido caixa dois da JBS na campanha eleitoral de 2014, mas a investigação foi arquivada.

3) Justiça e Segurança Pública – Sérgio Moro
Juiz estrela da Operação Lava Jato, Sérgio Moro abandonou 22 anos de magistratura para fazer parte de um Governo. Ele foi o responsável por condenar centenas de políticos, empreiteiros, lobistas e doleiros que desviaram recursos públicos, principalmente da Petrobras. Foi por conta de uma decisão dele, que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi preso e, após condenação em segunda instância, foi retirado da disputa eleitoral de 2018. No ministério, tem se cercado de antigos companheiros de Lava Jato, principalmente policiais federais.

4) Gabinete de Segurança Institucional – Augusto Heleno
Ex-comandante da missão de paz no Haiti, o general Augusto Heleno é considerado o principal estrategista de Jair Bolsonaro. Foi ele quem coordenou uma equipe de 50 profissionais que elaboraram o plano de Governo do então candidato. Chegou a ser anunciado como ministro da Defesa, mas o presidente eleito decidiu que o queria mais próximo de seu gabinete e o “promoveu” ao GSI. Será o responsável por todas as atividades de inteligência da gestão federal.

5) Defesa – Fernando Azevedo e Silva
Considerado o mais político dos generais, Fernando Azevedo e Silva já ocupou cargos nos três poderes. Foi assessor legislativo do Exército, autoridade pública olímpica na gestão Dilma Rousseff (PT), ajudantes de ordem do presidente Fernando Collor (PTC) e, antes de aceitar o convite de Bolsonaro, era assessor especial do presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli. Seu primeiro ato no cargo foi valorizar a hierarquia militar e nomear como futuros comandantes das forças os oficiais mais antigos de cada corporação, Exército, Aeronáutica e Marinha.

6) Secretaria-Geral da Presidência – Gustavo Bebianno
Quando Bolsonaro decidiu se filiar ao PSL, precisava de alguma segurança para tocar sua campanha eleitoral. Sugeriu que o então presidente da legenda, Luciano Bivar, cedesse a direção para alguém em que o presidenciável confiasse. Foi aí que o advogado Gustavo Bebianno se destacou no cenário nacional. Profissional com passagem pelo departamento administrativo do Jornal do Brasil, Bebianno se aproximou do político no Rio de Janeiro. Sem nenhuma experiência em grandes campanhas, coordenou os trabalhos de Bolsonaro e controlou com mão de ferro boa parte dos diretórios regionais. Será o responsável pela espécie de prefeitura do Palácio do Planalto.

7) Relações Exteriores – Ernesto Araújo
Trumpista e antiglobalista, o embaixador Ernesto Araújo chegou ao topo da carreira diplomática sem nunca ter ocupado uma função de relevância no exterior. Até ser indicado para o ministério, ele ocupava um cargo de terceiro escalão no organograma do Itamaraty. Adquiriu a confiança de Bolsonaro por ter um blog em que se posiciona de maneira similar ao do presidente eleito. E por ter feito campanha para ele. Também foi indicado pelo escritor Olavo de Carvalho. Seu desafio será o de reduzir o impacto de falas polêmicas de Bolsonaro como a que a China compra o Brasil e não do Brasil. Caberá a ele também orientar o presidente na decisão de trocar a embaixada brasileira em Israel de Tel Aviv para Jerusalém.

8) Saúde – Luiz Henrique Mandetta
Médico ortopedista, Luiz Henrique Mandetta (DEM) cumpre seu segundo mandato como deputado federal. Não concorreu à reeleição por discordar dos rumos de seu partido no seu Estado, Mato Grosso do Sul. Auxiliou Bolsonaro na pré-campanha dando sugestões de projetos de saúde. Responde a uma investigação por fraude no período em que foi secretário municipal de Saúde em Campo Grande (MS).

9) Secretaria de Governo – Carlos Alberto dos Santos Cruz
General que chefiou missões de paz no Haiti e no Congo, Santos Cruz será o interlocutor de Bolsonaro para os assuntos relacionados à segurança pública. O ministério que ocupará costuma ser ocupado por um articulador político. É a primeira vez que um militar estará neste posto. Santos Cruz chegou a ser cotado para a Secretaria Nacional de Segurança.

10) Ciência e Tecnologia – Marcos Pontes
Tenente-coronel da Aeronáutica e primeiro astronauta brasileiro, Marcos Pontesé mais um da cota militar de Jair Bolsonaro. Desde a pré-campanha já era apontado como futuro ministro. Lançou a ideia de que o ensino superior passasse a ser administrado por sua pasta, mas depois das reações da academia, recuou na proposta.

11) Agricultura – Tereza Cristina
A única mulher a ocupar um cargo na esplanada até o momento, a deputada federal e produtora rural Tereza Cristina (DEM) foi indicada ao cargo pela bancada ruralista. Presidente da Frente Parlamentar Agropecuária, ela declarou apoio à candidatura de Bolsonaro na reta final da campanha. A futura ministra é investigada por conceder benefícios fiscais à JBS no período em que foi secretária estadual em Mato Grosso do Sul.

12) Controladoria Geral da União – Wagner Rosário
Técnico de carreira, Wagner Rosário é o atual ministro da Transparência do Governo Michel Temer. Por um ano ocupou o cargo de maneira interina. Formado em ciências militares pela Academia Militar dos Agulhas Negras (AMAN), a mesma de Bolsonaro, ele abandonou a atividade no Exército para se tornar auditor federal. Foi o primeiro funcionário de carreira a ocupar o ministério.

13) Educação – Ricardo Vélez Rodríguez
Um liberal crítico ao PT, o filósofo Ricardo Vélez é colombiano, naturalizado brasileiro. Não era o favorito para assumir o ministério da Educação. Seu nome surgiu depois que a bancada evangélica refutou o nome de Mozart Neves Ramos, diretor do Instituto Ayrton Senna e ex-secretário de Educação de Pernambuco que foi apontado erroneamente como um professor de esquerda. Vélez é a favor do projeto Escola Sem Partido. Foi um dos dois indicados pelo escritor Olavo de Carvalho, um dos ideólogos do bolsonarismo.

14) Infraestrutura – Tarcísio Gomes de Freitas
O futuro ministro da Infraestrutura, pasta responsável pelos setores de transporte aéreo, terrestre e aquaviário, é consultor legislativo na Câmara. É formado em Engenharia Civil pelo Instituto Militar de Engenharia (IME) e iniciou a carreira no Exército. Atuou como chefe da seção técnica da Companhia de Engenharia do Brasil na Missão de Paz da ONU, como coordenador-geral de Auditoria da Área de Transportes da Controladoria-Geral da União (CGU) e foi diretor executivo do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT), cargo para o qual foi nomeado ainda no Governo Dilma Rousseff, em 2011.

15) Cidadania e Ação Social – Osmar Terra
Osmar Terra, ex-ministro do Desenvolvimento Social do Governo Michel Temer foi escolhido por Bolsonaro para ocupar o Ministério da Cidadania, ainda a ser criado pelo presidente eleito. Deputado federal pelo MDB do Rio Grande do Sul, o médico comandará a pasta que deve concentrar atribuições antes administradas pelos ministérios da Cultura, do Esporte e do Desenvolvimento Social.

16) Turismo – Marcelo Álvaro Antonio
O Ministério do Turismo será comandado pelo deputado federal e integrante da Frente Parlamentar Evangélica da Câmara, Marcelo Álvaro Antônio, do PSL-MG, partido da base aliada de Bolsonaro na Câmara. Ex-filiado de PRP, PMB e PR, ele chegou a estudar engenharia civil em Belo Horizonte, mas não concluiu o curso.

17) Minas e Energia – Bento Costa Lima Leite
O presidente Jair Bolsonaro anunciou via Twitter a escolha de Bento Costa Lima Leite de Albuquerque Junior para chefiar o ministério de Minas e Energia. Ele é Diretor Geral de Desenvolvimento Nuclear e Tecnológico da Marinha e Almirante de Esquadra. Chefiou os programas Nuclear da Marinha (PNM) e o de Desenvolvimento de Submarinos (Prosub).

18) Desenvolvimento Regional – Gustavo Canuto
A nova pasta do Governo, que vai incorporar as atribuições dos ministérios da Integração Nacional e das Cidades, será comandada por Gustavo Henrique Rigodanzo Canuto. Servidor de carreira no Ministério do Planejamento, ele é especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental. Foi chefe de gabinete do Ministério da Integração Nacional e da Secretaria de Aviação Civil.

19) Mulher, Família e Direitos Humanos – Damares Alves
Damares Alves era uma desconhecida quase completa até ser anunciada como indicada ao novo ministério, que abrigará também a Fundação Nacional do Índio (Funai). Pastora da Igreja do Evangelho Quadrangular, a advogada era desde 2015 assessora parlamentar do senador Magno Malta (PR), uma das principais figuras da bancada evangélica e, até então, o principal cotado para a pasta.

20) Meio Ambiente – Ricardo Salles
Presidente do Movimento Endireita Brasil, o advogado Ricardo de Aquino Salles comandará o Ministério do Meio Ambiente. Filiado ao Partido NOVO, ele já foi secretário particular do ex-presidenciável Geraldo Alckmin e ocupou também a pasta de Meio Ambiente de São Paulo durante o Governo do tucano. Salles é alvo de ação de improbidade administrativa, acusado de manipular mapas de manejo ambiental do rio Tietê, e, durante a campanha eleitoral deste ano, chegou a sugerir o uso de munição de fuzil contra a esquerda e o MST.

21) AGU – André Luiz de Almeida Mendonça
Conhecido como Mendonção, o novo chefe da Advogacia-Geral da União é formado em direito pela Faculdade de Direito de Bauru e estudou sobre corrupção na Universidade de Salamanca, na Espanha. Com longa trajetória na AGU, já foi Corregedor-Geral, Adjunto do Procurador-Geral da União e Diretor do Departamento de Patrimônio e Probidade. Seu último cargo foi como assessor especial da Controladoria Geral da União (CGU).

22) Banco Central – Roberto Campos Neto
Diretor do banco Santander e especialista em finanças pela Universidade da Califórnia, Roberto Campos Neto tem seu currículo marcado por experiências na iniciativa privada. Ele é neto de Roberto Campos, economista liberal que foi ministro do Planejamento durante a ditadura militar, no governo de Castelo Branco.


Vera Magalhães: Muita espuma ideológica

Sobra retórica e faltam prioridades concretas às vésperas da posse

Desconvite a ditadores de Cuba e Venezuela para a posse, bravatas sobre a revisão das demarcações de terras indígenas, bate-boca com Nicolás Maduro, tititi nos bastidores do Itamaraty, gritaria em torno da tal Escola sem Partido, brigas de hooligans em cerimônias de diplomação em vários Estados.

Algumas das querelas que ocuparam futuros ministros, o próximo presidente da República, diplomatas e os novos (sic) congressistas nas últimas semanas parecem refletir a disputa entre alas de direita e de esquerda em algum grêmio estudantil, e não discussões de um grupo que se prepara para subir a rampa do Palácio do Planalto daqui a menos de dez dias.

Enquanto as alas mais ideologizadas do futuro governo promovem uma versão tosca de reality show com direito a lives nas redes sociais, os dois pilares até aqui sólidos da próxima administração montam times igualmente consistentes para as ambiciosas tarefas que terão pela frente. Mas fica a dúvida: terão Paulo Guedes e Sérgio Moro respaldo do restante do governo e, principalmente, de Jair Bolsonaro, para encaminhar sua pauta com foco, articulação política, prioridade e estratégia diante de tanta espuma que seus colegas e os aliados no Legislativo já deram mostra de que são capazes de produzir?

O segundo escalão do Ministério da Economia é primoroso. Eu, que já questionei a falta de experiência anterior de Paulo Guedes no setor público e sua falta de traquejo verbal para a negociação política, neste caso não tenho reparos: trata-se de uma das equipes mais bem compostas da área econômica nos últimos tempos, aproveitando nomes experimentados e montando uma estrutura que parece altamente capaz de enfrentar, ao mesmo tempo, o ajuste fiscal necessário e o desejado e tão adiado destravamento do crescimento.

Mas os temas econômicos estão tendo menos atenção de Bolsonaro e seu entorno da articulação política, nas manifestações públicas que fazem, que o besteirol ideológico.

Tome-se a tal cúpula conservadora realizada em Foz do Iguaçu há algumas semanas. Ali se gastou mais saliva discutindo ideologia de gênero, o fantasma da volta do comunismo e outras quimeras do que a necessidade de um ajuste liberal de fato na economia. Mesmo no painel dedicado ao tema, um economista da equipe de transição lacrou ao ensinar como berrar na cara de um esquerdista, e não ao aproveitar o evento para deixar claro à plateia conservadora que ou se faz a reforma da Previdência ou já era.

No Itamaraty, o clima de caça às bruxas às antigas gerações e a pregação de um trumpismo cristão se sobrepõem à montagem de uma estratégia moderna, inteligente e sem maniqueísmo que permita ao Brasil se posicionar num mundo que não deixará de ser multipolar e cuja complexidade geopolítica vai muito, mas muito além do que as tuitadas recheadas de mistificação do futuro chanceler sugerem.

Bolsonaro foi eleito prometendo banir o viés ideológico de esquerda da máquina federal, depois de 13 anos de domínio petista. Eis um bom propósito: o aparelhamento, visível desde os primórdios de Lula, com a ascensão novo-rica de uma casta sindical às delícias do poder, foi a gênese da roubalheira que se viu ao longo dos anos.

Mas substituir a ideologização de esquerda por outra igualmente atrasada, jeca e talvez até interessada em aparelhar tudo que houver pela frente não é, decididamente, o caminho para um País que o mesmo PT quase levou à falência.

Que os lacradores deixem Guedes e Moro trabalhar e que Bolsonaro perceba que é no sucesso desses dois, e não nos likes da turba direitista hidrófoba, que mora suas chances de sucesso a partir de 1.º de janeiro.

A campanha já acabou faz tempo.


Demétrio Magnoli: Moro, a lei e a desordem

‘Irremediável perda da imparcialidade” —a acusação do PT contra Sergio Moro, base do pedido de anulação da sentença condenatória no caso do tríplex, obedece às lógicas da defesa legal do ex-presidente e da campanha política de “Lula livre”. Mas desvia o foco do debate relevante. O salto da cadeira de juiz em Curitiba à de ministro em Brasília nada tem de escandaloso. O problema está em outro lugar: aparentemente, Moro não reconhece a fronteira entre uma função e a outra.

A sentença de prisão de Lula não é de autoria de Moro, mas dos juízes do TRF-4, encarregados da revisão judicial das decisões de primeira instância. O fundamento da impugnação da candidatura de Lula pelo TSE encontra-se na aplicação da Lei da Ficha Limpa, que também deriva da sentença do TRF-4. A acusação petista opera no campo da verossimilhança, não noda verdade. Moro pode assumir o ministério de cabeça erguida—desde que reconheça a natureza política da nova função.

Na entrevista concedida logo após sua indicação ao ministério, o ainda juiz disse que não se convertia em político pois não assumia cargo eletivo. Falácia óbvia: ministros são políticos por definição, porque cumprem as diretrizes do presidente. Daí decorre que, na democracia, o ministro da Justiça não tem o direito de desempenhar funções próprias ao sistema judicial. Tudo indica, porém, que a pretensão de Moro é, precisamente, esta.

Moro parece ignorara diferença entre Estado e governo. “Eu estou indo consolidar os avanços da Lava-Jato em Brasília”, declarou na mesma entrevista, como se a distância entre seu passado de juiz e seu presente de ministro pudesse ser medida pela régua da geografia. O juiz, funcionário de Estado, paira acima da política. O concurso público, a carreira e a estabilidade amparam sua independência, enquanto a revisão recursal protege a sociedade de seus vieses pessoais na interpretação da lei. Já o ministro, funcionário do governo, subordina-se ao presidente, desempenhando funções de executivo político. Da declaração de Moro infere-se o projeto de transformara Lava-Jato em programa de governo, o que implicaria politizá-la.

Não são só declarações. Moro pretende estreitara integração entre a Polícia Federal (PF ), o Ministério Público( MP) e o Conselho de Atividades Financeiras( Coaf)parainvest igara origem dos recursos depositados no exterior e repatria dosem programas de incentivos dos governos Temere Dilma. O futuro ministro esboça um desenho no qual sua pasta supervisionaria investigações criminais, indicando prioridades à PF, ao MP e ao Coaf. Desse monstro, só pode nascer um Estado policial: a lei a serviço da desordem.

O Ministério da Justiça existe, exclusivamente, para assegurar o cumprimento das leis e decisões judiciais. A investigação criminal é missão de uma PF autônoma e do MP, que não está subordinado a nenhum Poder. A violação da regra da separação estrita de funções abriria caminho para a perseguição política dos adversários políticos por meios policiais e judiciais. O Moro que se reinventa como ministro não mais representa a Justiça. Goste ou não, ele representa apenas o governo.

Na democracia, as palavras certas são separação e desintegração — ou seja, rígida distinção entre governo e sistema judicial, além de descoordenação entre policiais, procuradores e juízes. Moro, contudo, quer destruir o muro que isola o sistema judicial da influência do governo e centralizar as ações dos diversos componentes do sistema judicial. No fim, o Ministério da Justiça selecionaria os alvos de investigação, dirigindo o oferecimento de denúncias criminais.

Não há novidade nessa história. Os governos populistas promovem a transição regressiva, da democracia ao autoritarismo, por meio do controle que conseguem exercer sobre o sistema judicial. Putin, na Rússia, Erdogan, na Turquia, e Maduro, na Venezuela, aplicam em larga escala, contra opositores, dissidentes e empresários, a receita da perseguição judicial. A Lava-Jato do ministro Moro torna-se a maior ameaça à Lava-Jato do juiz Moro.


José Eduardo Faria: Debate raso

Que passa ao largo dos problemas gerados pelo fosso entre as leis e as tensões políticas

A transferência para o âmago do Poder Executivo do juiz criminal de primeira instância responsável pelos casos da Lava Jato em Curitiba foi muito além de repor na ordem do dia os temas da judicialização da política e da politização da Justiça. Também deu mais visibilidade ao antagonismo entre magistrados garantistas, que valorizam o habeas corpus como símbolo da liberdade individual, e magistrados consequencialistas, para os quais esse recurso não pode ser desfigurado por seu uso eleitoral, sob o risco de corroer a legitimidade das instituições de Direito.

Os magistrados garantistas alegam que, ao relevar o texto da lei para dar prioridade aos efeitos punitivistas das decisões judiciais, os consequencialistas recorrem a interpretações extensivas, desprezando com isso as garantias individuais. Já os magistrados consequencialistas justificam interpretações abrangentes em nome de métodos realistas para articular investigação, celeridade e eficiência, o que propiciaria uma espécie de legitimação pelo resultado – no caso, a moralização da vida pública.

Essa distinção suscita duas questões. Por um lado, a questão da influência da opinião pública sobre a Justiça. Por outro, a questão da interpretação de uma ordem jurídica composta por 180 mil leis e uma Constituição com grande número de normas programáticas que, por exprimirem valores morais, não são autoaplicáveis. No primeiro caso, até que ponto um juiz, independentemente de seu grau, deve decidir conforme o clamor público, valendo-se de interpretações criativas do Direito? Até que ponto também pode atuar de modo contramajoritário, interpretando regras com o objetivo de proteger minorias? No segundo caso, o problema do controle sobre a produção dos efeitos das decisões judiciais envolve um risco: quando uma Constituição contém muitos princípios, ela tende a tornar inviável o Direito como técnica, ameaçando a identidade do sistema legal.

Essas indagações apontam, assim, dois modos conflitantes de aplicação das leis. O primeiro entende que as normas são a premissa maior, dentro da qual o caso concreto seria premissa menor, possibilitando uma decisão judicial lógica e objetiva. O segundo modo parte da premissa de que as normas são parâmetros para o intérprete – e quando são principiológicas tendem a servir de justificativa posterior para uma escolha feita diante do caso e produzida por vias distintas. A discussão, contudo, vai além da oposição entre aplicação subjetiva e objetiva do Direito. Na verdade, o sentido da norma jamais está objetivamente fixado no texto legal, uma vez que sempre depende do resultado de uma interpretação.

A concretização da norma passa pela interpretação de seu texto e inclui elementos que compõem o âmbito da norma, como doutrinas e teorias, informando e influenciando a decisão de um litígio. Texto e processo histórico estão em interação, o que faz com que a solução dada a ele não resulte do livre-arbítrio do intérprete, mas de uma racionalidade condicionada pela experiência dos tribunais, permitindo aos juízes equilibrar valores, princípios e obrigações. A necessidade desse equilíbrio decorre da dificuldade de conjugar em termos lógico-formais uma ordem concreta, na qual os cidadãos se encontram imersos em várias redes de relações sociais, com as categorias normativas abstratas e atemporais do Direito positivo. No julgamento dos litígios pelos tribunais prevalece não uma aplicação dedutiva das normas, mas uma mescla entre legislação e adjudicação, entre Direito e doutrina – mescla essa para a qual não há receita ideal e que, por vezes, leva juízes acomodados ou temerosos a optar pelo axioma de Felix Frankfurter, da Corte Suprema dos EUA, no sentido de que é melhor ter sucesso sem ousar do que fracassar tentando fazer algo inovador.

À luz dessas considerações se compreende por que o STF por vezes exorbita em matéria de hermenêutica. Isso pode ser atribuído a métodos discutíveis de interpretação. Ou, então, ao desconhecimento de teoria do Direito por alguns ministros e ao ativismo de outros. Como disse a jornalista Rosângela Bittar, se no passado o STF foi integrado por catedráticos, parlamentares experientes e advogados e desembargadores respeitados, que emprestaram sua biografia à Corte, hoje se tem o inverso – pessoas que foram para lá para melhorar a biografia. Também sob essa luz o debate fica mais claro. Por valorizar normas com conceitos determinados e interpretações restritivas, os garantistassubestimam a complexidade social. Prendem-se a uma racionalidade lógico-formal insuficiente para tornar viável uma engenharia jurídica baseada em regras gerais.

Esquecem-se de que as palavras das leis “não são cristais transparentes e imutáveis, mas a pele que encobre um pensamento vivo e que varia de conteúdo conforme a circunstância e o tempo em que é usada”, como dizia Wendell Holmes. Por apego a normas programáticas, assumindo a moralidade pública como bandeira, os consequencialistas esquecem-se de que os princípios jurídicos exigem sistematização, teimando em analisar os litígios como se as partes representassem o bem e o mal. Agindo como guardiões da moral, confundem hermenêutica jurídica com escolhas voluntaristas.

Para escapar desses equívocos a saída é compreender o Direito como algo não acabado no momento de sua positivação. Ele é uma construção com base na experiência, e não na lógica. Retomando Holmes, “as necessidades sentidas em todas as épocas, as teorias morais e políticas prevalecentes, as intuições políticas e os preconceitos com os quais os juízes julgam têm importância maior do que silogismos na determinação das regras”. Garantismo x consequencialismo é, assim, um debate raso, que passa ao largo dos problemas gerados pelo fosso entre as leis e as tensões políticas. Debate esse cujo grau de maniqueísmo e imprecisão técnica crescerá ainda mais com a decisão do juiz consequencialista de Curitiba de mudar de Poder.

* José Eduardo Faria é professor titular da Faculdade de Direito da USP e professor da Fundação Getúlio Vargas


Hélio Schwartsman: Um xerife no ministério

Sergio Moro pode agir como uma força moderadora sobre Jair Bolsonaro

A decisão de Sergio Moro de trocar a toga de juiz pela caneta de ministro não fez muito bem à sua imagem pessoal nem à do Judiciário, mas estamos falando mais de um arranhão do que de uma ferida mortal. Sem prejuízo de outros questionamentos, não penso que se possa argumentar seriamente que Moro condenou Lula, em julho de 2017, quando quase ninguém considerava a candidatura Bolsonaro viável, com o objetivo de obter um cargo no que viria a ser seu governo.

E, agora que o ex-magistrado está na equipe de Bolsonaro, creio que ele pode agir como uma força moderadora sobre o presidente eleito. Ainda que Moro possa ser descrito como linha dura em matéria penal, é bom que o núcleo do governo conte com alguém familiarizado com conceitos como direitos e garantias fundamentais, devido processo legal, impessoalidade da administração.

Se dava para defender que o candidato Bolsonaro, detentor de um discurso intolerante e antidemocrático, não deveria ser normalizado, agora que ele é presidente eleito precisa não só ser normalizado como institucionalizado (perdoe-se o duplo sentido). Moro pode ajudar nisso.

Em relação à pauta do Ministério da Justiça propriamente dita, o ex-juiz também pode contribuir. Ele tem a expertise e a vontade para desenvolver novos mecanismos de combate à corrupção. O fato de o passivo do governo Bolsonaro nessa seara ser pequeno torna verossímil que observemos avanços concretos.

Onde eu penso que Moro terá problemas é em relação aos crimes comuns praticados por bandidos ordinários, que são justamente aqueles que causam a sensação de insegurança. O governo federal nem sequer dispõe de um corpo policial adequado para enfrentar esse tipo de delinquência. Não dá para colocar a Polícia Federal para perseguir qualquer assaltante ou punguista. Não obstante, como Moro acabou cultivando a imagem de xerife que tudo resolve, é pela sensação de insegurança que ele será cobrado.


William Waack: A escolinha de Brasília

Um choque da política como ela é aguarda os recém-eleitos

Alguns deputados federais recém-eleitos vão para o banco de uma escolinha de política antes de assumirem as cadeiras em Brasília. Conversei informalmente nesta semana numa reunião com quatro desses jovens representantes do povo, que tiveram boa votação por partidos diferentes como PSB, PDT e Novo em Pernambuco, Rio, Minas e São Paulo. Esses quatro novatos na Câmara (João Campos, Tabata Amaral, Paulo Gamine e Tiago Mitraud) pareciam desenvoltos, seguros, articulados e bem falantes – e com claras diferenças políticas entre si.

Em comum, dizem que vão votar pela própria consciência. “Sem caciques?”, veio a pergunta. “Sem caciques”, responderam. “Política como era”, adiantou um deles, “não vai mais ter”. É exatamente o que Jair Bolsonaro disse na terça-feira, no primeiro encontro do presidente eleito com uma bancada partidária, a do MDB. Na saída, o líder do MDB na Câmara, Baleia Rossi (SP), disse que seu partido (a expressão consumada da velha política) não vai pedir cargos no novo governo. Todo mundo fingiu que acreditou.

Está decretado o fim do toma lá, dá cá, do presidencialismo de coalizão? Um presidente popular, cavalgando uma onda fortíssima de transformação política, vai conseguir governar sem ter de distribuir cargos, favores, ministérios “porta fechada” a políticos em troca de votos no Congresso? Acho dificílimo beirando o improvável. Por mais que se reconheça o impacto do voto de outubro, o sistema de governo está montado assim.

A renovação da Câmara para 2019 está um pouco acima dos padrões habituais, mas o que interessa sobretudo é a qualidade da renovação – e aqui há tanto boas surpresas quanto muito a desejar. Caciques apanharam, legendas tradicionais foram surradas, mas, paradoxalmente, o novo governo vai sentir falta de operadores capazes de fazer as coisas funcionarem. Afinal, não estamos falando de um ajuntamento de políticos reunidos como se fossem participantes de uma assembleia que só vota sim ou não. O Legislativo é uma instituição não só com muitos poderes, mas também com um acentuado espírito de corpo. Não é à toa que mesmo os recém-eleitos já falam da escolha de um presidente da Casa que não seja “pau-mandado do governo”.

O “fator Lava Jato” (leia-se Sérgio Moro) funcionará como sinal amarelo/vermelho para balizar o comportamento de parlamentares, mas o decisivo será entender que o Congresso continuará funcionando nas comissões técnicas e nas mesas diretoras através de partidos. As tais bancadas suprapartidárias são um ponto de partida, mas não têm a mesma consistência, organização e comando para dar segurança a quem precisa contar com um grande número de votos em matérias complexas. E nesse ponto é que se aguarda, respiração em suspenso, quais lideranças parlamentares surgirão, e como o governo vai lidar com elas.

Os quatro recém-eleitos acima descrevem felizes o fato de não terem dependido de cabos políticos tradicionais, como prefeitos e vereadores – portanto, estão “livres” para votar como quiserem. Mas não é assim com a imensa maioria de Vossas Excelências, que precisam da famosa emenda parlamentar para sustentar a base eleitoral.

Em parte, o governo é refém da promessa de acabar de um golpe só com o fisiologismo. Na ausência de uma profunda e ampla reforma política é temerário acreditar que isso aconteça por súbita “conversão” dos parlamentares (ou pela pressão articulada através de redes sociais). A política tal como ela é, com seus compromissos, negociações, troca de favores e influências – nada disso precisa ser imoral ou ilícito –, é a verdadeira escolinha que aguarda os recém-eleitos.