Sergio Moro

Guilherme Amado: O silêncio sem inocentes

Todos se calaram diante da festa de despautérios que foi a reunião ministerial de 22 de abril. Talvez porque, para os 40 ali presentes, fosse só mais um dia como outro qualquer no governo

A reunião ministerial do dia 22 de abril, aquela em que Sergio Moro afirmou ter sido ameaçado pelo presidente, caso não entregasse a ele o comando da Superintendência da Polícia Federal no Rio de Janeiro, tem tudo para se tornar um retrato sem retoques do que é o governo Bolsonaro. O que já se sabe do encontro, mesmo antes de seu vídeo se tornar público, é de extrema gravidade. O presidente afirma querer trocar a chefia da Polícia Federal (PF) em seu estado para proteger a família e os amigos.

O ministro da Educação defende a prisão dos ministros do Supremo e a dos Direitos Humanos a dos governadores e prefeitos. O chanceler ataca a China e diz que estamos todos sendo tragados pelo… tchan, tchan, tchan… comunavírus. Poderia parecer um esquete da Escolinha do Professor Raimundo não estivessem todos no terceiro andar do Palácio do Planalto, enquanto do lado de fora o país já contava naquele dia quase 3 mil mortos. Mas o episódio traz ainda outro significado grave. Havia ali pelo menos 40 pessoas — isso é o que mostram os 33 registros que o fotógrafo Marcos Corrêa, da Presidência da República, fez naquele dia.

Ninguém se insurgiu contra essa festa de despautérios. Nem mesmo os ministros tidos como os mais técnicos, a exemplo do titular da Economia, Paulo Guedes; a da Agricultura, Tereza Cristina; o advogado-geral da União e agora na Justiça André Mendonça; ou o controlador-geral da União, Wagner Rosário. Todos se calaram diante de tudo isso. Talvez porque o “tudo isso” seja novo para a sociedade como um todo, mas, para os 40 ali presentes, fosse só mais um dia como outro qualquer no governo.

Um ex-diretor da Polícia Federal se surpreendeu, ao saber do teor do vídeo na semana passada, por Sergio Moro não haver citado nada disso até então. Não há surpresa nisso, entretanto. Moro fez parte desse governo por 16 meses, reuniões como essa aconteciam com certa frequência. Ouvir Abraham Weintraub falar em prender os 11 ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) ou Damares Alves defender o mesmo para os demais chefes de Executivo não deve ter sido o primeiro absurdo que presenciara. Para ele, provavelmente, era mais do mesmo. E se calou.

O fato de ser mais do mesmo não isenta ninguém ali. Os chineses, principais clientes do agro brasileiro, terão razão se questionarem Tereza Cristina por que ela se calou ao ouvir os presentes culparem a China pelo coronavírus. Do chanceler Ernesto Araújo, ninguém espera mesmo coerência. Mas a discreta ministra da Agricultura poderia ter ponderado que, em que pesem os erros da ditadura chinesa, culpar os chineses como povo pelo vírus poderia suscitar xenofobia. Mas se calou.

Outros ministros que deveriam estar envolvidos no combate à corrupção, a exemplo de Wagner Rosário e de André Mendonça, poderiam ter se somado a Moro e defendido que Bolsonaro não deveria intervir na Polícia Federal nem proteger familiares e amigos. Mendonça, que torce para ser indicado por Bolsonaro para o STF, poderia ter interrompido Weintraub ao dizer que só ditaduras (nem todas) prendem juízes arbitrariamente. Mas nada disso foi feito. Eles também se calaram.

A reunião como um todo foi tensa. Bolsonaro criticou, de maneira dura, a inércia do governo em evitar que pessoas sejam detidas por circularem durante a pandemia em locais proibidos pelos decretos municipais e estaduais. A crítica foi feita no dia em que familiares do deputado federal Luiz Lima haviam sido detidos pela polícia do Rio de Janeiro por violar as regras da cidade, que impedem o banho de mar neste período. Pedro Guimarães, presidente da Caixa Econômica, interveio nesse momento e, em tom exaltado, disse que, se tentassem prender algum familiar seu numa situação parecida com a que ocorrera com a família de Lima, não aguentaria e iria às vias de fato para impedir.

Atacando João Doria e integrantes do governo Witzel, Bolsonaro defendeu a liberdade de ir e vir das pessoas e disse que, diante da inércia de ministérios nesse período, teria de “entrar” nas pastas e demitir quem fosse necessário para fazer valer sua visão. Era mais um recado para Moro.

O curioso é que nada disso era oficialmente o tema da reunião, convocada para que fosse feita a apresentação do programa Pró-Brasil, que prega a participação do Estado na retomada econômica. Daí a imagem, ao fundo das fotos, da logomarca do projeto, aquela só com crianças europeias. Desenhado por Rogério Marinho, do Desenvolvimento Regional, e abraçado pelos ministros da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, e das Minas e Energia, Bento Albuquerque, o Pró-Brasil foi alvo da crítica de Paulo Guedes durante a reunião, que já chegara para o encontro irritado. Pouco antes do começo, quando Marinho tentou falar com Guedes privadamente, o chefe da equipe econômica respondeu que não conversaria mais em particular com o colega, só com testemunhas. Tudo já estava tenso antes mesmo de começar.

“A quem interessa esconder tudo isso? Aos ‘patriotas’, segundo o general Augusto Heleno, que foi ao twitter dizer que é um ‘ato impatriótico’ pedir que o vídeo seja tornado público”

“Pleitear que seja divulgado, inteiramente, o vídeo de uma Reunião Ministerial, com assuntos confidenciais e até secretos, para atender a interesses políticos, é um ato impatriótico, quase um atentado à segurança nacional”, escreveu Heleno, na quarta-feira 13.

Na visão torta de patriotismo do ministro, o certo parece ser que os governantes possam, a portas fechadas, ameaçar outras instituições, tramar a privatização da Polícia Federal e, sem compromisso com os fatos, considerar que milhares morrem não por causa de uma doença altamente contagiosa, mas devido a uma terrível orquestração comunista. E que diabo de assunto confidencial é esse, discutido entre 40 pessoas, em meio a assessores de imprensa, fotógrafo, cinegrafista e ajudantes de ordem?

Voltando ao terreno da lógica, o inquérito sob o comando de Celso de Mello já conseguiu concluir que o presidente queria intervir na Polícia Federal no Rio de Janeiro. Há notícia de pelo menos um inquérito em que seu filho, Flávio Bolsonaro, era alvo. Na PF como um todo, havia uma série de interesses outros para fazer o presidente querer ter um amigo como Alexandre Ramagem na direção, alguém que, como ele mesmo disse, dividia com ele seus pães com leite condensado. Os investigadores querem, entretanto, avançar mais na caracterização dos possíveis crimes em que o presidente possa ter incorrido. Não haveria, ainda, certeza para uma denúncia, o que não chega a ser um problema, considerando que há menos de três semanas de inquérito.

Mesmo que do ponto de vista jurídico o encontro do dia 22 ainda não seja a bala de prata para Jair Bolsonaro, politicamente ele foi muito ruim. Coincidentemente ocorrida na data do Descobrimento do Brasil, a reunião escancarou a leniência de seus ministros com o autoritarismo, o descompromisso com a democracia e a falta de respeito à ciência. O silêncio de cada um ali é tudo, menos de inocentes.


O Estado de S. Paulo: FHC teme que Forças Armadas possam tomar ‘gosto pelo poder’

Ex-presidente também disse que Sérgio Moro não deveria ter deixado a magistratura e assumido a pasta da Justiça no governo Bolsonaro

O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso mostra preocupação com a possibilidade de que as Forças Armadas possam se apegar ao poder em um governo com cada vez mais militares e enxerga no país um cenário político com o Legislativo e Judiciário tentando preencher vazios deixados por um Executivo que, de acordo com ele, está “cambaleante” e “sem rumo definido”.

“Há muitos (militares no poder) e cada vez mais. E isso é uma fragilidade política do governo”, afirmou FHC, de 88 anos, em entrevista à Agência Efe por videoconferência em sua residência, em São Paulo. “Não podemos permitir agressões contra a Suprema Corte, contra o Congresso, que vão contra a democracia”, acrescentou.

Na entrevista à Efe, o ex-presidente também opinou que Sergio Moro não deveria ter deixado a magistratura e assumido a pasta da Justiça no governo de Jair Bolsonaro. “Creio que ele se equivocou ao aceitar ser ministro. Não por ser ministro do Bolsonaro, mas porque trocou o âmbito da Justiça, no qual atuou a vida toda, pelo Executivo, e ficou em uma situação delicada, porque não era um homem predisposto a estas funções (políticas)”, comentou.

Leia abaixo a entrevista.

O senhor chegou a pedir nas redes sociais a renúncia de Bolsonaro. Mantém essa posição?

Na política interna, sou duro com ele. Não porque não gosto dele ou porque não é do meu estilo, mas porque ele exagera. Não podemos permitir agressões contra a Suprema Corte, contra o Congresso, que vão contra a democracia. E ter casos em que o presidente participe dessas agressões é grave. Os que têm força política têm que se expressar em defesa da democracia. Neste momento, quando se nota que o Executivo está cambaleante e não tem um rumo definido, o que acontece? Os demais órgãos constitucionais, a Suprema Corte, os Parlamentos, começam a ocupar o vazio de poder, e isso é perigoso.

Bolsonaro está mal assesorado, recebe influência negativa dos filhos? Qual é o problema com o governo?

Não estou lá, nem o conheço. Bolsonaro era deputado, eu era senador, ministro, presidente. Nunca o vi. Ele queria me matar uma vez, (disse que) queria atirar em mim (em referência a uma declaração de Bolsonaro no final dos anos 90), porque me acusou de ser neoliberal. Eu não o conheço, nem conheço seus familiares. Para os presidentes, há sempre o risco de que a família comece a opinar demais. O povo escolheu o presidente, não sua família. Que a família fique em silêncio.
No caso dele (Bolsonaro), é mais complicado, porque os três filhos mais velhos têm mandato político próprio (Flávio é senador, Carlos é vereador no Rio de Janeiro, e Eduardo, deputado federal).

É importante observar o que está acontecendo nos Estados Unidos. Trump incentiva a posição “America First” (“EUA primeiro”), e isso leva a uma atitude isolacionista. Se o Brasil tem uma grande vantagem neste mundo confuso, é por estar longe da China e dos EUA. Podemos exportar para ambos. A China é o cliente número 1, e os EUA são o número 2, e não há por que o Brasil se alinhar a um dos dois polos, se é que são polos.

Sobre a ideologia que é propagada por (o ex-estrategista de campanha de Trump, Steve) Bannon nos EUA, aqui (no Brasil) há um senhor de quem nunca ouvi falar (o filósofo Olavo de Carvalho) e que está sendo muito propagado, e não é importante culturalmente falando, mas politicamente sim, porque inspira ações da família presidencial. Então há um movimento nessa direção, o que eu acho perigoso.

Alguém mencionou que o Brasil se pareceria com a Itália entre guerras de Mussolini. Mas Mussolini era uma pessoa muito culta se comparada ao atual aqui (Bolsonaro). Não tem nada a ver com Mussolini, o que acontece aqui é que não há uma visão ideológica organizada, aqui há um impulso instintivo que considera algumas coisas como mundo ‘globalista’, que há um ‘marxismo globalista’. Não tenho idéia do que seja, e as pessoas entendem como verdade. A situação é verdadeiramente preocupante, mas ele tem legitimidade, porque foi eleito pelo voto popular.

Qual leitura o senhor faz da ala militar do governo?

Os militares aprenderam com o que aconteceu no passado. Eles sabem que devem respeitar a Constituição e, pelo que sei, essa é a posição oficial das Forças Armadas. Agora, todo governo que começa a ser fraco, a não ter força, nomeia militares. Lembro-me de (Salvador) Allende, no Chile, quando começou a nomear militares. Aqui também, quando os governos não são fortes, eles dependem das Forças Armadas, e acho que isso é um risco para as Forças Armadas, porque elas passam a ter gosto pelo poder.

Entretanto, isso ainda não aconteceu aqui, mas pode, porque há muitos (militares no poder) e cada vez mais. E isso é uma fragilidade política do governo, não uma força. Sob a condição de que a força regular permaneça em uma posição pró-Constituição, nada acontece. Mas se as Forças Armadas, independentemente do que possa acontecer, se colocarem na posição de apoiar incondicionalmente o presidente, isso é grave, e a unidade democrática morre. Não acho que estejamos nesse processo e não acho que essa seja a opinião das pessoas ativas nas Forças Armadas.

Meu pai era general, e meu avô, marechal. Tenho um certo conhecimento quase empático dos militares. No passado, eles eram mais políticos, depois se profissionalizaram. Há uma questão que qualquer militar, depois de um certo ponto, não aceita: a desordem. Então eles tentam trazer ordem, e isso é perigoso. Pode acontecer? A pandemia está servindo como uma vacina para demonstrações de rua. Acredito que políticos, profissionais e jornalistas têm a responsabilidade de alertar o país para que não cheguemos a um ponto de desordem, porque depois chegam os militares, e eu não quero isso. É ruim para o país e para eles, que serão responsabilizados pelo que acontecer.

Como o senhor analisa as saídas de Sergio Moro (ex-ministro da Justiça) e Luiz Henrique Mandetta (ex-ministro da Saúde) do governo?

Vi Sergio Moro duas vezes na minha vida. Creio que ele se equivocou ao aceitar ser ministro. Não por ser ministro do Bolsonaro, mas porque trocou o âmbito da Justiça, no qual atuou a vida toda, pelo Executivo, e ficou em uma situação delicada, porque não era um homem predisposto a estas funções (políticas).

E qual foi a consequência imediata de uma saída como a do ministro da Saúde (Mandetta)? Na minha opinião, uma saída doida, irracional. O prestígio do presidente está diminuindo. Muitos o apóiam, mas não são a maioria. (A saída de) Mandetta não teve tanto efeito, mas Moro era um pilar.

E o outro pilar, que é o ministro da Economia (Paulo Guedes), muito bem visto pelos empresários, tem um projeto que não pode mais ser aplicado. Ele tem uma visão que certamente estava certa no passado (ajuste dos gastos públicos), necessária, mas com a pandemia a visão é de gastar mais e aumentar a dívida pública.

Como o senhor avalia o combate à Covid-19 no Brasil, onde o presidente não segue à risca as recomendações da Organização Mundial da Saúde (OMS)?

O pior é que atingiu as áreas mais populares. Para mim, nada muda, mas quando uma pessoa vive na periferia de São Paulo, na miséria, em uma favela, com muitas pessoas em casa, sem conforto… as pessoas têm que ir às ruas (…) Mesmo que haja recomendações da OMS para que fiquem em casa, para as pessoas mais pobres é um castigo, porque é impossível. Além disso, há uma falta de liderança. Às vezes, o presidente (Bolsonaro) está com outras pessoas na rua sem usar máscara, como se nada tivesse acontecido (…) É perceptível que a falta de coordenação é prejudicial, ainda que o Brasil tenha a vantagem de um sistema de saúde gratuito e universal.

Alguns políticos, inclusive juristas, consideram que Bolsonaro pode ser processado na Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) por não seguir as recomendações da OMS. O senhor considera plausível?

Não vejo que tenha muito o que fazer (a CIDH), outras oportunidades foram perdidas quando houve violência, tortura… O atual presidente tem essa visão de amigos e inimigos, o que não ajuda para o que é necessário agora, que há mais coesão para combater um inimigo comum (coronavírus). É um sério fracasso político, mas não acho que será resolvido com impeachment, por enquanto. Dependerá de como o presidente agir. Estou muito preocupado com o que virá depois da pandemia (…) Haverá muita gente desempregada.

Por outro lado, meu sentimento é de que não há pressão militar para a queda do presidente. Os militares, felizmente, há muito tempo respeitam a Constituição. Não podemos nos distanciar do quadro constitucional, pois isso seria muito perigoso para as instituições e para a liberdade. Não há inimigos da liberdade, a imprensa é livre, a Justiça funciona e não existe tal sentimento como vivi em outros tempos (alusão à ditadura).


Merval Pereira: Pistas

Confirmada a hipótese de o vídeo ter sido apagado, ficará claro que há alguma coisa a esconder

O ex-ministro da Justiça e Segurança Pública Sérgio Moro deu uma pista importante em seu depoimento à Policia Federal no inquérito que investiga a possível tentativa de interferência do presidente Bolsonaro na Polícia Federal.

Disse que será possível verificar na Polícia Federal e na Agência Brasileira de Inteligência (Abin) que todas as informações “legais” foram passadas à presidência da República, não se justificando a reclamação do presidente.

Não é uma simples disputa entre chefe e subordinado sobre o cumprimento de funções, mas a pista para se confirmar que Bolsonaro não estava satisfeito com os limites legais que o impediam de ter acesso a outras informações da Polícia Federal, ato que passaria a ser ilegal.

Se é verdade que o procurador-geral da República Augusto Aras tende a arquivar o inquérito porque em seu depoimento o ex-ministro Sergio Moro não acusou Bolsonaro de nenhum crime, será uma decisão absurda que o desmoralizará, pois foi ele próprio quem identificou os diversos crimes que poderiam estar indicados no depoimento de Moro ao pedir demissão do ministério da Justiça.

Cabe ao procurador-geral investigar, e não a Moro acusar. Além dos indícios de provas que serão ou não investigados pelos promotores, há o vídeo citado por Moro da reunião ministerial onde Bolsonaro o teria ameaçado de demissão por não dar informações sobre a PF, e o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) explicado que aquele tipo de informação não poderia ser fornecida.

Neste caso, ficaria caracterizada a tentativa do presidente de interferir indevidamente na PF. Por absurdo, confirmada a hipótese de o vídeo ter sido apagado, ficará claro que há alguma coisa a esconder, o que configuraria obstrução da Justiça, um crime óbvio.

Foi assim que terminou a presidência do então presidente Richard Nixon, no caso Watergate nos Estados Unidos, quando parte de uma gravação de conversa em seu gabinete foi deletada pela secretária do então presidente americano, alegadamente por acidente. Alegação que se tornou ridícula.

O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, é o titular da ação penal, o que significa que é um ato de soberania sua oferecer a denúncia ao final do inquérito, ou arquiva-lo. O ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello, relator do inquérito, não tem autoridade para discordar da decisão em caso de arquivamento. Mas o Supremo pode não aceitar eventualmente uma denúncia.

Repúdio
O presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, manifestou-se em nome da Corte condenando as agressões a jornalistas na manifestação contra o STF e o Congresso em frente ao Palácio do Planalto no domingo passado, com a presença do presidente Jair Bolsonaro.

Aproveitou para se posicionar sobre os ataques ao Supremo: “Na democracia, as divergências são equacionadas pelas vias institucionais adequadas, pré-estabelecidas na Constituição, a qual dita as regras do jogo democrático. As irresignações contra decisões deste Supremo Tribunal Federal se dão por meio dos recursos cabíveis. Jamais por meio de agressões ou ameaças a esta instituição centenária, ou a qualquer um de seus ministros individualmente”.

Toffoli disse que, na ocasião, “foi agredida a democracia”. A coincidência de as agressões terem acontecido no Dia da Liberdade de Imprensa, tornou, para Toffoli, as tornou “lamentáveis e intoleráveis”.

“Sem imprensa livre, não há liberdade de informação e expressão. Sem imprensa livre não há democracia”, afirmou. O presidente Dias Toffoli voltou a apelar a união necessária: “Devemos prestigiar a concórdia, a tolerância e o diálogo, bem como exercitar a solidariedade e o espírito coletivo. É momento de harmonia, de equilíbrio e de ação coordenada entre as instituições e os Poderes da República. As divergências existem, pois elas são naturais na democracia. Na democracia, as divergências são equacionadas pelas vias institucionais adequadas, preestabelecidas na Constituição, a qual dita as regras do jogo democrático”.

Mais uma vez a retórica a favor da democracia e da liberdade de expressão ganha força nesses momentos escuros que estamos vivendo. Breve, será necessário mais do que simples palavras para repudiar a tentativa de implantar no país um governo autoritário.


Míriam Leitão: Presidência obcecada

Depoimento de Moro revela um presidente com obsessão em um cargo quando o país inteiro lutava contra a pandemia que ontem matou 600 brasileiros

A frase síntese dita pelo presidente - “você tem 27 superintendências, eu quero apenas uma” - é reveladora da obsessão de interferência na Polícia Federal, mas não só. Mostra uma Presidência insana. Todos os graves assuntos de Estado para serem enfrentados, mas Jair Bolsonaro tinha uma preocupação. Era março, quando ele disse isso. A pandemia já estava infectando brasileiros. Em abril, quando ela se espalhou como uma grande tragédia humana, Bolsonaro aumentou a intensidade da pressão para nomear, a qualquer custo, o superintendente da PF no Rio de Janeiro.

No relato do ex-ministro Sergio Moro à Polícia Federal, o que impressiona é o conjunto e o contexto. O presidente briga, é capaz de derrubar uma peça-chave de seu governo, para escolher o superintendente da PF no Rio. Enquanto os governadores e prefeitos decidiam pelo isolamento social, construíam hospitais de campanha, ampliavam o número de UTIs, tentavam encontrar respiradores em qualquer lugar do planeta, as empresas doavam, as pessoas se mobilizavam, os profissionais da saúde iam para o campo de batalha, alguns para morrer, o que fazia o presidente do Brasil? Ofendia governadores, fritava o ministro da Saúde, encurralava o ministro da Justiça, participava de manifestações contra a democracia e continuava querendo interferir na Polícia Federal.

As versões do presidente para os fatos não ficam em pé. Ele diz que buscava apenas relatórios de inteligência na Polícia Federal. Ele sabe a esta altura do mandato a diferença de inteligência policial e inteligência estratégica. O presidente tem a Abin que dá informação de inteligência estratégica. Faz parte do SISBIN, Sistema Brasileiro de Informações.

Todos alimentam esse sistema, inclusive a Polícia Federal. Tudo deságua no Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que manda relatórios diários para a Presidência. Neles, se pode saber antecipadamente os riscos de fatos como, por exemplo, uma pandemia, para agir preventivamente. Somente ontem, a propósito, mais 600 brasileiros perderam a vida. Um perito no assunto me explicou que “quando a inteligência policial produz algo de interesse estratégico para o Estado, isso é pinçado pelos analistas da Abin para o relatório ao presidente”. E ele conclui: “Mas o presidente da República não tem nada com a inteligência policial”, ou seja, a parte investigativa, judiciária. Ele não tem que ter acesso a uma investigação da polícia judiciária.

Bolsonaro parecia naquele lamurioso pronunciamento, do dia 24 de abril, ter sido surpreendido pela demissão de Moro apresentada numa coletiva à imprensa. Ofendido com a “traição”. O relato circunstanciado de Moro mostra que o presidente já sabia que a saída dele era fato consumado, inclusive porque ele, Bolsonaro, o jogou para fora do governo.

Enquanto Bolsonaro trava uma guerra contra o seu ex-ministro, na economia, as notícias vão de mal a pior. A produção industrial despencou 9,1% em março, vindo abaixo do esperado, com uma queda de 3,8% em relação ao mesmo mês do ano anterior. Nesse tipo de comparação, foi o quinto recuo consecutivo, o que mostra que o setor já não vinha bem muito antes da chegada do vírus. No início da noite, a Fitch, uma das três maiores agências de rating do mundo, colocou sob viés negativo a nota do governo brasileiro. Disse que houve piora dos quadros econômico e fiscal, e citou a renovação da crise política, “incluindo as tensões entre o executivo e o congresso e as incertezas sobre a duração e a intensidade da pandemia de coronavírus”. O Brasil atualmente é classificado pela agência como BB-, a três degraus do grau de investimento. Agora, está mais próximo de um novo rebaixamento.

Moro não pode se dizer surpreso. Foi para o governo Bolsonaro sabendo que seu ex-chefe jamais fora um combatente anticorrupção, que viveu anos em partidos cujos integrantes ele mesmo condenou. Quando Moro diz que não está acusando o presidente de crime, ele está se protegendo no campo que entende muito bem. Mas que crime o presidente pode ter cometido, isso dependerá da capacidade de investigação da Polícia Federal. Os ministros terão que depor e, ao contrário do presidente, não têm o direito de fazê-lo por escrito. A propósito, me disse ontem um procurador, essa prerrogativa do presidente nem deveria existir.

“Depoimento tem que ser oral.” Hoje, Bolsonaro é um homem acuado. Só resta a ele a grosseria de mandar a imprensa calar a boca. Não será atendido.


Antônio Claudio Mariz e Fábio Tofic: Há crime quando não há ética nem há política

O rancor, a arrogância e a prepotência podem se transformar em fatores criminógenos

O direito penal nunca deixou de ser assunto na vida nacional, mas de uns anos para cá assumiu um protagonismo fora do normal. Restrito antigamente às páginas policiais ou lembrado vez ou outra em algum evento da política, nos últimos anos roubou a cena, de modo que não há dia em que ao menos uma grande manchete do caderno de política não seja sobre crime, acusações, inquéritos, sentenças, etc...

A pandemia de covid-19 parecia que ia pôr um fim ao penal-centrismo, com forte viés punitivo, a que o País vinha assistindo. No entanto, o direito penal no Brasil parece predestinado a ocupar lugar de destaque mesmo em momentos excepcionais como este que vivemos.

Primeiro foi o próprio Executivo federal criando polêmica com a edição de portarias que anunciavam risco de prisão a quem descumprisse regras de isolamento e quarentena, prisões que até chegaram a ser feitas, como noticiado pela mídia.

Foi, porém, o pronunciamento do ex-ministro Sergio Moro, ao anunciar sua saída do governo, o responsável por trazer de volta, e a galope, o direito penal para o centro do debate político nacional.

Moro desfiou um rosário de crimes que podem ter sido cometidos pelo presidente da República, desde falsidade ideológica até corrupção, prevaricação, passando ainda pelo novato crime de obstrução de Justiça. A fala cifrada do ex-ministro põe suspeitas até sobre sua própria conduta, como no caso de ter admitido que solicitou ao presidente a edição de uma lei que, em caso de atentado, pudesse garantir alguma salvaguarda financeira à sua família.

Ambos, presidente e ex-ministro, parecem se achar protegidos pela aura de cidadãos especiais, merecedores de tratamento diferenciado perante a lei. Afinal, que espécie de lei seria essa que já não exista para socorrer as famílias dos milhares de policiais, bombeiros e outros agentes que lidam com o alto risco em suas funções? Ou, se deficiente a lei vigente, por que uma salvaguarda especial para o ministro, e não algo extensivo a todos? Enquanto o presidente parece acreditar que, enquanto chefe do Executivo, pode usar a Polícia Federal como escritório privado de investigação a serviço dos próprios interesses, o ex-ministro se arroga o direito a um estrambólico seguro para um cargo demissível ad nutum.

Muito embora o direito penal possa parecer a panaceia para todos os males que nos afligem, ele não é capaz de nos tirar da crise em que nos encontramos. A crise é política e só a política é capaz de fornecer os antídotos que nos livrarão dela.

A política, entendida como arte e ciência empregadas para o alcance do bem comum, tem como substrato a ética, que constitui um dos pilares de sustentação da sociedade. Para o enfrentamento de questões cruciais de interesse coletivo, política e ética não podem ficar afastadas, sob pena de se instalar o caos e a ruptura sociais.

No entanto, a política e a ética, neste momento da História brasileira, parecem ter sido postas de lado pelos dois protagonistas citados, e por tantos outros homens públicos. Foram substituídas por condutas que claramente violam os princípios e objetivos que regem a política sã e afrontam a ética no seu sentido mais abrangente.

Observe-se que outros princípios que valorizam e emprestam dignidade à vida em sociedade foram postos de lado, e já há algum tempo, abrindo espaço ao destempero, à desarmonia e à belicosidade. Assim, o respeito à divergência e à convivência com os contrários, que é da essência da democracia, o respeito à verdade, o respeito à liberdade e aos direitos alheios e tantas outras qualidades civilizatórias estão dando lugar à intemperança e à intolerância raivosa.

Esse comportamento vem dando mau exemplo e espalhando um ensinamento que poderá levar, se já não está levando, o homem brasileiro a revelar uma face cruel e abjeta, que é o ódio.

Hanna Arendt disse que o mal banalizado rompe todas as barreiras éticas e morais e vai se incorporando ao nosso cotidiano. É exatamente esse o clima que está sendo implantado no seio da nossa sociedade.

Na verdade, o mal da intolerância está permeando todo relacionamento interpessoal. Não há tolerância com o pensar diferente, com o contrário. De fato, essa característica representa a negação do espírito democrático, que deveria reger toda ação política.

A democracia não se exaure com o exercício do voto. Deve constituir um instrumento de paz social, pois conduz à convivência harmoniosa dos contrários. Infelizmente, o quadro hoje posto provoca preocupantes efeitos colaterais. O principal é a intolerância, que se tem tornado um padrão de comportamento.

O rancor, a arrogância e a prepotência, filhos diletos da intolerância e do ódio, podem se transformar em fatores criminógenos. Aliás, os crimes contidos nas falas acima referidas, do presidente e do ex-ministro, são um espelho de uma convivência marcada por antagonismo, incompreensão e não aceitação do contrário.

Em realidade, o comportamento desabrido daqueles que deveriam dar exemplos edificantes tem causado hábitos de intemperança e desrespeito ao próximo. Maculam-se reputações sem nenhum escrúpulo, com assustadora leviandade, por meio das redes sociais, hoje transformadas em instrumento de difusão de mentiras e de agressões.

*Advogados criminais


O Globo: Em depoimento de mais de 8 horas à PF, Moro apresenta novas provas contra Bolsonaro

Em Curitiba, ex-ministro reiterou acusações sobre interferência do presidente na Polícia Federal

CURITIBA - O ex-juiz Sergio Moro prestou neste sábado mais de 8 horas de depoimento sobre as acusações feitas contra o presidente Jair Bolsonaro durante seu discurso de despedida do comando do Ministério da Justiça e Segurança Pública.

Por volta das 13h15, Moro chegou à sede da superintendência da Polícia Federal, em Curitiba, num veículo da polícia, que entrou pelo portão dos fundos do edifício. O depoimento do ex-ministro começou por volta de 14h30 e só terminou às 22h40. Moro só deixou as dependências da PF às 00h20, sem falar com a imprensa.

Em nota, Rodrigo Sanches Rios, adovgado do ex-ministro, informou que "como a investigação está em andamento, nossa manifestação será apenas nos autos".

Ao depor, o ex-ministro reiterou acusações e entregou novas provas contra Jair Bolsonaro sobre sua atuação para intervir diretamente na Polícia Federal, de acordo com a colunista Bela Megale.

Leia: Os recados de Moro em sua despedida

O ex-ministro colocou à disposição seu celular, com acesso a diversas mensagens de aplicativo de interesse dos responsáveis pelo inquérito.

O depoimento de Moro foi determinado pelo ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello, que supervisiona as investigações. O inquérito aberto pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, investiga o teor do discurso de Moro ao se despedir do cargo de ministro da Justiça, no dia 24 de abril, quando acusou Bolsonaro de tentar interferir indevidamente na PF.

O objetivo da investigação é apontar se Bolsonaro cometeu crime ao interferir nas atividades da PF, como disse Moro, e também se o ex-ministro disse a verdade ou acusou o presidente sem fundamentação em seu discurso.

Aras informou ao Supremo que há suspeita de cometimento de sete crimes: falsidade ideológica, coação no curso do processo, advocacia administrativa, prevaricação, obstrução de justiça, corrupção passiva privilegiada e denunciação caluniosa.

A PGR pediu que, no depoimento, Moro apresentasse “manifestação detalhada sobre os termos do pronunciamento, com a exibição de documentação idônea que eventualmente possua acerca dos eventos em questão”. Em entrevista à revista “Veja”, o ex-ministro afirmou que apresentaria provas para embasar suas acusações.

Em nota divulgada na tarde deste sábado, a Polícia Federal informou que o depoimento de Moro aconteceu na superintendência de Curitiba porque o ex-ministro mora na capital paranaense e que todos os procedimentos seguem as determinações do ministro do STF Celso de Mello.

Ânimos exaltados
Apoiadores do ex-ministro e do presidente Bolsonaro se concentraram ao longo do dia em frente ao edifício da superintendência da PF na capital paranaense. No final da tarde, os manifestantes começaram a se dispersar e apenas um pequeno grupo permaneceu próximo à entrada da PF.

Mais cedo, a espera do ex-ministro para depor gerou um clima de tensão. Um cinegrafista da RIC TV, afiliada da Record no Paraná, foi agredido por um suposto militante bolsonarista. O homem se aproximou do jornalista o ameaçando com a haste de uma bandeira do Brasil e tentando empurrar o equipamento no chão.

Rapidez
Ministros militares e também integrantes das Forças Armadas se incomodaram com a rapidez do STF em determinar o depoimento do ex-ministro. Em ligações telefônicas, na manhã deste sábado, a cúpula militar demonstrou irritação com a decisão de Celso de Mello de logo convocar Moro para depor. Nas conversas, lembraram exemplos de processos de políticos conhecidos que tramitam há anos no Supremo à espera de julgamento.

Ex-juiz da 13ª Vara Federal da Curitiba, Moro foi responsável por conduzir os processos da Operação Lava-Jato, incluindo a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por corrupção e lavagem de dinheiro no caso do tríplex do Guarujá.

Ganhou projeção política no cargo e, após o resultado das eleições de 2018, foi convidado por Bolsonaro para comandar o Ministério da Justiça. Moro, então, decidiu deixar o cargo de juiz federal, no qual tinha estabilidade e carreira garantida, para aceitar o convite e integrar o governo federal.

Como ministro, porém, Moro passou a acumular desentendimentos com Bolsonaro, tendo sido desautorizado em diversos atos da gestão. Seu principal projeto na pasta, o pacote anticrime, foi desidratado na Câmara dos Deputados e não recebeu o apoio esperado de Bolsonaro. Moro também atuou contra a decisão do presidente do STF, ministro Dias Toffoli, que paralisou investigações iniciadas com base em relatórios do Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), movimento que irritou Bolsonaro, porque a decisão de Toffoli beneficiava a investigação de seu filho Flávio Bolsonaro por rachadinhas.


Guilherme Amado: O fisiologismo à Bolsonaro

O abraço escancarado no centrão não chega a surpreender: a exemplo da guerra à corrupção, o fim do fisiologismo sempre foi só discurso

O Palácio do Planalto fez uma caçada no domingo 19 ao telefone dos ex-deputados Roberto Jefferson e Cristiane Brasil, pai e filha, expoentes do centrão, mesmo que hoje sem cargo. Jair Bolsonaro queria falar diretamente com Jefferson, curioso para saber o que o pivô do mensalão revelaria mais tarde numa live sobre um suposto plano de Rodrigo Maia para derrubar o presidente da República. Bolsonaro logo soube o que pretendia o ex-companheiro de Câmara e partido. Jefferson está disposto a fazer com Bolsonaro o mesmo que fez com Fernando Collor e com Michel Temer: ao perceber a decadência de um governo e a fragilidade política de um presidente, estender a mão. Atacaria Rodrigo Maia, sem apresentar fato que sustentasse o tal golpe por vir, em troca disso.

Claro que se trata de uma aproximação despretensiosa, baseada nos mais elevados princípios da República. De cristão para cristão. Mas quis o destino que o namoro, para usar a terminologia presidencial, se desse na mesma semana do divórcio litigioso com Sergio Moro. A saída do símbolo da Lava Jato — para o bem e para o mal — e a entrada de Jefferson para a base do governo foram simbólicos de uma ruptura na prática com algo que Bolsonaro só fez no discurso, ao longo da vida parlamentar e também como presidente: o tal do combate à corrupção. Embora sua eleição tenha ocorrido em parte no embalo do papo de enfrentar o crime de colarinho-branco, nunca houve de fato um esforço do presidente para tanto. O abraço escancarado no centrão de Jefferson, Valdemar Costa Neto, Arthur Lira e Gilberto Kassab tem ocorrido sem constrangimento. O que não chega a surpreender: a exemplo da guerra à corrupção, o fim do fisiologismo sempre foi só discurso.

O bolsonarismo só havia tirado da cartola um novo tipo de fisiologismo, desde a formação inicial do governo. Ou não é fisiologismo nomear militares porque são militares e não necessariamente pela qualificação técnica? Evangélicos por serem evangélicos? Um veterinário sanfoneiro para a presidência da Embratur? Uma blogueira para coordenar o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional? Um deputado investigado por criar candidaturas laranjas como ministro? Tentar emplacar o filho — o filho — como embaixador nos Estados Unidos? Bater o recorde de emendas parlamentares liberadas para aprovar a reforma da Previdência? Nada disso difere de aceitar um indicado do centrão.

Mesmo o centrão tem cargos desde o começo. Basta perguntar a qualquer líder dos novos partidos com relação direta com Bolsonaro — PP, PTB, Republicanos, PSD — sobre o que o DEM, esse também do centrão, vale lembrar, tem ou já teve no governo. Foi o único a ter três ministérios, Agricultura, Cidadania e Saúde, até a saída de Luiz Henrique Mandetta. Embora a legenda diga que os ministérios não são indicações da cúpula partidária, é inevitável lembrar que só a sigla com as presidências do Senado e da Câmara teve tantas pastas. O partido nomeou ainda para o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), a Fundação Nacional de Saúde (Funasa), a Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf). No Ministério da Saúde, o ex-deputado José Carlos Aleluia (DEM-BA) ganhou uma assessoria e o também ex-deputado Abelardo Lupion (DEM-PR) uma diretoria.

Roberto Jefferson foi um dos poucos réus políticos do mensalão que admitiu ter pego dinheiro: R$ 4 milhões pagos pelo PT. Ficou um ano em regime fechado e depois cumpriu a pena em casa. Hoje, é réu na Justiça Federal do Distrito Federal, acusado de integrar uma organização criminosa no governo Temer, para a concessão de registros sindicais em troca de propina — acusação que ele refuta. Seu plano, agora, é levar Bolsonaro de volta ao PTB.

Bolsonaro foi do PTB de Jefferson, bem como foi também do PDC, PPR, PP, PFL (hoje DEM), PSC e, ufa, do PSL. O delator do mensalão acha que o partido deve voltar a ser o lar do presidente. “Estou do lado do capitão. Faço a defesa dele de coração, com minha alma, brandindo a espada sagrada que tenho em defesa do legado que recebi de meus antepassados”, disse à coluna, afiado em jeffersonês castiço. Perguntado se quer cargos, é rápido no gatilho: “Sabe qual cargo eu quero do governo Bolsonaro? Quero trazer para o PTB o cargo de presidente da República. Eu quero que Bolsonaro venha para o PTB. Ele já foi do partido e tem tapete vermelho para voltar com o grupo dele. Bolsonaro vai conhecer um partido de verdade, de homens de verdade, que não correm da luta”.

Até outro dia, pouco antes de Bolsonaro bater recorde no número de pedidos de impeachment em tão pouco tempo — já foram 31, em 15 meses de governo — a relação entre centrão e bolsonaristas não era, ao menos publicamente, boa. “Deus nos livre e guarde do centrão”, escreveu a bolsonarista Bia Kicis. “Eu sou contra qualquer acordo com o centrão”, defendeu Alê Silva, também defensora do governo. “Nos foi colocado na mesa pelo centrão duas opções. Uma verdadeira chantagem. Não vamos ceder”, bradou Luiz Lima, outro do PSL pró-Bolsonaro. Mas os três deputados federais foram às redes sociais nesse tom antes da agonia de Bolsonaro fazê-lo rifar Moro para controlar a Polícia Federal e insistir numa conexão com os partidos de centro.

Agora, o que está se tentando formar é uma só base, que vai congregar bolsonaristas e centrão. Sem rubor de nenhuma parte e com o beneplácito de generais com assento no Planalto, a exemplo dos ministros Augusto Heleno, Luiz Eduardo Ramos e Walter Braga Netto.

A militância digital parou da noite para o dia de atacar o centrão nas redes sociais. “Virei rei nas redes sociais de meu estado. Não apanho mais”, contou, pedindo sigilo, um dos líderes partidários que se sentou com Bolsonaro e que está pleiteando um dos cargos que era do DEM.

Agora longe dessa turma, Moro perdeu quase todas as batalhas que travou em seus 15 meses de governo. Saiu menor do que entrou e maculou sua biografia, podendo impactar até o destino jurídico de Luiz Inácio Lula da Silva. Ainda se espera, afinal, do voto de Celso de Mello, que pode desempatar o 2 a 2 do pedido de anulação da sentença de Lula, que tramita na Segunda Turma do STF sob o argumento de que Moro se mostrou publicamente parcial ao integrar o governo do opositor do homem que prendera. Ao deixar o cargo, disse estar à disposição do país, no que alguns políticos viram um sinal de que entrará para a política — o que ele segue negando.

Enquanto Moro estuda seu futuro, as peças do xadrez bolsonarista se movem rápido. Uns sempre mais rápidos do que outros. Disse Roberto Jefferson à coluna, referindo-se à mais poderosa deputada bolsonarista hoje e até outro dia afilhada de Moro: “A Carla Zambelli, por exemplo, é uma moça honrada. Tenho a maior admiração por ela”.


Leandro Colon: Demissão de Valeixo não foi única rasteira de Bolsonaro em Moro via Diário Oficial

Sanção de pacote anticrime no dia de Natal também desagradou o ex-ministro

A demissão surpresa de Maurício Valeixo da direção da Polícia Federal não foi a única rasteira via Diário Oficial de Jair Bolsonaro em Sergio Moro.

O ex-ministro nunca engoliu o gesto do presidente de publicar na virada de 24 para 25 de dezembro, em pleno dia de Natal, a sanção do pacote anticrime, uma bandeira de Moro.

Bolsonaro ignorou a maioria dos pedidos do então ministro e fez mais: manteve a criação do juiz das garantias, algo a que Moro se opunha.

Assim como no caso da exoneração de Valeixo, Moro, que estava no exterior naquele dia, foi surpreendido pela publicação no Diário Oficial.

O Ministério da Justiça havia entregado um parecer ao Planalto recomendando a derrubada de 38 pontos. Bolsonaro levou em conta só quatro.

Esse episódio está nas “pontuais divergências” citadas por Moro no discurso de sexta-feira (24) em que anunciou sua demissão do cargo.

“Mas não vou aqui falar dessas outras divergências. Isso fica para uma outra ocasião”, disse ele.

Moro ainda externou a aliados frustração pelo fato de Bolsonaro não ter respaldado a bandeira a favor da prisão de condenados em segunda instância.

Na visão do entorno do ministro, o Planalto nunca embarcou nas propostas de combate à corrupção.

Na fala de sexta ele deixou claro que no dia do “sim” a Bolsonaro, em 1º de novembro de 2018, obteve o compromisso sobre o tema.

Por fim, nas últimas semanas, não caíram bem na equipe de Moro os movimentos de aproximação dos partidos do chamado centrão com Jair Bolsonaro.

São políticos ambiciosos por verbas e cargos, tendo alguns deles sido alvo da própria Lava Jato.

Na despedida, o ex-juiz citou, por exemplo, a pressão de Bolsonaro para mexer na PF em Pernambuco.

O Planalto tem sido cobrado pelo líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), sobre ações da polícia contra ele e familiares.

Bezerra é investigado por desvio de dinheiro público no Nordeste.


Fernando Gabeira: Alto risco de tragédia

Para viabilizar sua trajetória política, Moro precisará se distinguir de Bolsonaro

Num momento em que todos reprisam, o governo é pródigo em lançar novelas inéditas. Mal acabou a novela Mandetta, entrou no ar a Sergio Moro, e começaram as filmagens da Paulo Guedes. O que está acontecendo na cabeça do presidente Bolsonaro? Ela foi sacudida pelo impacto do coronavírus.

Muitas mudanças estão sendo determinadas, no fundo, pela política escolhida por Bolsonaro para enfrentar este que é o maior acontecimento trágico no mundo moderno. Onde governos conservadores ou progressistas triunfaram, como é o caso da Austrália e da Nova Zelândia, Bolsonaro afundou.

Desde o princípio, tenho apontado a causa. Bolsonaro aderiu à camada de gordura que cerca o vírus e seus fluidos ideológicos e o transformou num tema da guerra cultural. Exatamente o oposto do que fizeram Scott Morrison, na Austrália, e Jacinda Ardern, na Nova Zelândia: despolitizaram o vírus.

Ainda esta semana, o chanceler Ernesto Araújo escreveu um artigo contra o que chama de comunavírus. Ele ficou impressionado com um livro do pensador de esquerda Slavoj Zizek que previa enfim a chegada do comunismo. Depois de sonhar com a classe operária ou mesmo o lúmpen proletariado, alguns teóricos de esquerda concentram suas esperanças no vírus como agente transformador. E os bolsonaristas acreditam.

Desde o princípio, Bolsonaro viu a chegada do vírus como algo que ameaçava seu governo. A única forma de neutralizar sua importância era adotar uma tese que permitisse neutralizar os impactos econômicos. Esta tese foi a de imunização de rebanho: a maioria vai ser contaminada, é melhor que isso aconteça logo para que nos livremos do vírus.

Bolsonaro jamais considerou seriamente o fato de que, se muitos se contaminarem ao mesmo tempo, o sistema de saúde entraria em colapso, muitas pessoas morreriam na porta dos hospitais ou em casa. Um cenário que, de certa forma, se desenhou na Itália e mais tarde, de forma grotesca, em Guayaquil.

Foi por aí que caiu Mandetta. E indiretamente Moro. Bolsonaro sempre pensou em concentrar poderes. Mas a impossibilidade de determinar sozinho uma política contra o coronavírus condensou seu drama. Os governadores e prefeitos tiveram um papel decisivo. O Congresso os apoiou, o STF chancelou essa autonomia local.

A relação com Moro já sofria um desgaste. Mas Bolsonaro, na sua solidão, reclamou da ausência do ministro em sua cruzada contra o isolamento social. Moro, segundo alguns, não só era favorável à política de Mandetta, como pensou em decretar multas para quem rompesse com o isolamento social. O que, aliás, acontece em muitos países da Europa.

Sem o Congresso, STF, ministro da Saúde e da Justiça, Bolsonaro deu um passo decisivo participando de manifestação antidemocrática diante do QG do Exército. Isso resultou num inquérito que acabou se entrelaçando com outro: o das fake news. Os investigados são os mesmos: apoiadores do presidente e, possivelmente, até familiares de Bolsonaro.

Moro teve uma chance de sair depois daquela manifestação. Possivelmente estava incomodado com a posição temerária de Bolsonaro sobre o coronavírus. Mas agora estava diante de uma posição temerária contra a democracia.

Moro não se pronunciou. Num determinado momento de sua trajetória, a mulher de Moro escreveu numa rede social que ele e Bolsonaro eram a mesma coisa.

Ele pode ter sido salvo agora pela maneira como cai. A tentativa de interferir na autonomia da Polícia Federal é algo que não encontra apenas resistência na corporação, mas em muitos setores conscientes da sociedade. É inconstitucional.

Nesse sentido, Moro cai de pé. Mas, para que sua trajetória política tenha viabilidade, será necessário se distinguir de Bolsonaro, algo que não fez quando esteve no governo. O tom de seu discurso de saída é um indício de que compreendeu isto. Pelo menos se distanciou da visão atrasada de submeter o trabalho da PF aos desígnios de um presidente. O que é no fundo um crime de responsabilidade.

Mas Moro indicou claramente que Bolsonaro teme o inquérito no Supremo. Resta agora ao STF assumir seu papel institucional e não amarelar diante da pressão de Bolsonaro.

É um governo que se aproxima de uma situação limite, como foi o caso de Collor e Dilma. Mas num contexto de pandemia que jogou o planeta na maior crise econômica e social da história contemporânea. Alto risco de tragédia.


O Globo: Após acusações de Moro, oposição planeja uma frente ampla anti-Bolsonaro

Impulsionados pela manifestação do ex-presidente Fernando Henrique, partidos de esquerda planejam atrair PSDB, DEM, Novo e Cidadania

SÃO PAULO — Impulsionados pela manifestação do ex-presidente Fernando Henrique em favor da renúncia de Jair Bolsonaro, políticos de esquerda planejam articular a construção de uma frente ampla pelo afastamento do atual presidente da República do cargo. Após as acusações do ex-ministro Sergio Moro, a ideia é atrair, entre outros, o PSDB, o DEM, o Novo e o Cidadania. Mas integrantes dessas legendas ainda são cautelosos.

No final do mês passado, um manifesto pela renúncia de Bolsonaro reuniu nomes como Fernando Haddad (PT), Ciro Gomes (PDT), Guilherme Boulos (PSOL), Flávio Dino (PCdoB) e Alessandro Molon (PSB), mas sem adesão do centro. A articulação inicial foi do ex-governador do Rio Grande do Sul Tarso Genro (PT).

Na sexta-feira, Tarso, que vinha sendo crítico de Fernando Henrique nos últimos tempos, saudou no Twitter a adesão do tucano ao afastamento de Bolsonaro. “Bem-vindo presidente. É hora de construir a unidade dos principais líderes políticos do país na defesa do estado social de direito. Se Bolsonaro não renunciar, construiremos a maioria política para o impeachment. Bolsonaro está matando o Brasil”, escreveu o ex-governador petista.

Para Tarso, o atual presidente não tem mais condições de comandar o país.

— Temos que unir um campo amplo, não demarcado ideologicamente, mas politicamente com quem está disposto a resgatar o funcionamento republicano do país. Esse é o critério agora de unidade. Temos que fazer um pacto republicano, democrático, recolocar o país dentro da trilha constitucional e apostar num processo de normalização política para chegarmos a 2022.

As tentativas de ampliar a articulação, que devem se intensificar após as denúncias de Moro, já vinham ocorrendo. Na última semana, por exemplo, Fernando Haddad conversou por telefone com Fernando Henrique e com o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para discutir a situação da democracia brasileira.

Líder do PSB na Câmara, Alessandro Molon (RJ) é otimista sobre as possibilidades de ampliação da frente pelo afastamento de Bolsonaro. Seu partido, que havia aderido ao manifesto de março, apresentou na sexta-feira um pedido de impeachment do presidente.

— À medida que a situação política do país vai se agravando, a tendência é ampliar o apoio a esse movimento pela renúncia ou pelo afastamento. Não é uma questão ideológica. O atual presidente está conseguindo unir o país contra si. As atitudes dele estão fazendo com que os diferentes acabem abraçando uma mesma tese, que é da impossibilidade da continuidade do mandato — avalia.

Mas fora da esquerda o movimento ainda é visto com ressalvas. O PSDB não pretende se engajar no momento numa frente pelo impeachment. A ideia entre os tucanos é antes ampliar o desgaste do governo Bolsonaro por meio de uma CPMI mista para investigar as acusações feitas pelo ex-ministro da Justiça.

Candidato derrotado a presidente pelo Novo em 2018, João Amoêdo já se manifestou publicamente pelo impeachment, mas acredita que ainda não é hora para a construção da frente porque isso pode ser usado por Bolsonaro para se vitimizar. No seu entendimento, o presidente poderia dizer que a articulação é uma mobilização do “sistema” .

— O papel inicial que eu vejo é de explicar de forma didática para as pessoas os motivos que me fizeram ter essa posição pelo impeachment. Lá na frente isso pode afunilar. Mas vejo que é preciso caminhar de forma independente no primeiro momento.

Presidente do Cidadania, Roberto Freire entende também que ainda não é hora de levar o pedido de impeachment adiante porque não há mobilização da sociedade contra Bolsonaro. Ele defende, porém, uma articulação com todos os setores ideológicos.

— Só terá condições de sucesso se for amplo. Não há impeachment se não tiver uma ampla maioria, com a opinião pública.

Lula pode atrapalhar

Um outro empecilho para a construção da frente se daria caso o ex-presidente Lula, que vem defendendo o “Fora, Bolsonaro!”, decidir ingressar no movimento. Muitos políticos de centro-esquerda só aceitaram assinar o manifesto de março porque o ex-presidente não participou, apesar da adesão de nomes do PT como Tarso, Haddad e Gleisi Hoffmann, presidente da legenda.

— Quando Lula não assinou aquele manifesto, e eu queria que tivesse assinado, compreendi perfeitamente. Ele está se resguardando. É uma pessoa que ainda está sendo processada, sofre persecução judicial de uma maneira muito ilegal mas muito consistente do ponto vista prático. Então, há determinados requisitos para a sua atuação — disse Tarso.


Alon Feuerwerker: Os riscos e a prudência

Tentar decifrar o que vai no pensamento alheio é sempre meio estrambótico. Tipo aquelas especulações “o presidente pensou em nomear fulano, mas acabou nomeando sicrano”. Um exemplo de afirmação indesmentível. Quem poderá mesmo garantir que o sujeito pensou em algo, ou deixou de pensar? E assim segue a vida.

Outra excentricidade é imaginar que todas as ações de governos e governantes são previamente pensadas e planejadas para atingir determinados objetivos, e sempre obedecendo a um bem elaborado e pré-estabelecido cenário. Parte do pressuposto, em geral, de que o governante é um gênio.

Esses dois mecanismos mentais derivam em parte da necessidade compulsiva de que tudo tenha uma explicação lógica, necessidade que é irmã siamesa do desejo de acreditar que as decisões de quem nos lidera têm sempre um fundo racional. O paralelismo mais comum, usado à exaustão, é com piloto de avião e comandante de embarcação.

Pululam as teorias sobre a razão da saída de Sérgio Moro. Todas merecem ser jornalisticamente investigadas. Então eu vou participar também com algum “especulol”. E se Jair Bolsonaro forçou a demissão para evitar que um potencial adversário em 2022 continuasse se criando e ganhando musculatura política de dentro do governo?

Perguntei aqui em janeiro: “E se Moro virar o candidato do ‘centro’?”. Sabe-se que 1) a principal oposição ao presidente desde o início do mandato é a busca de um “bolsonarismo sem Bolsonaro”; e 2) até agora os candidatos a liderar esse bloco potencial não demonstram musculatura suficiente, pelo menos nas pesquisas.

A demissão de Moro abre-lhe a possibilidade de disputar o posto agora sem amarras. Mas depende de ele conseguir provocar a amputação do mandato presidencial. Por meio do Congresso ou da Justiça. E depende de um segundo fator: caso Bolsonaro saia, impedir que o vice se consolide na cadeira rumo a 2022.

É um jogo em que tudo tem de dar muito certo. Nada pode dar errado. Uma jogada de alto risco.

Talvez por raciocínio, talvez por intuição, Bolsonaro leva jeito de ter forçado mesmo a demissão de Moro. Poderia eventualmente ter seguido a dança e não feito publicar logo pela manhã no Diário Oficial a exoneração do chefe da Polícia Federal. Imagino que soubesse: ficar nesta circunstância seria humilhante demais para o ex-juiz da celebrada Lava-Jato.

E já que estamos falando em risco, o de Bolsonaro é o impeachment ou alguma outra modalidade legal de afastamento. Neste momento, são bem minoritárias as forças políticas que desejam isso de coração. Exatamente porque não são elas que comerão o bolo se organizarem a festa. Ou vai ser Moro, ou vai ser (Hamilton) Mourão.

A resistência dos políticos nunca é garantia, mais ainda quando a chamada opinião pública entra em modo de campanha para supostamente salvar o Brasil, algo que se dá de tempos em tempos. Entretanto, pensando bem, é um processo que já vinha sendo ensaiado. Então é possível que Bolsonaro tenha decidido limpar a área, mesmo que à beque de fazenda.

Ainda falando em risco, um adicional para Moro é sua onda ser surfada por quem deseja tirar o presidente e depois o ex-ministro ser simplesmente abandonado em favor de quem estará na cadeira com a caneta na mão e isento de culpa na confusão. Sobre isso, cumpre notar que o retrospecto do destino dos heróis dos recentes impeachments recomenda alguma prudência.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


O Globo: Entenda os recados de Moro no discurso em que anunciou a saída do governo Bolsonaro

Ao anunciar demissão, ministro da Justiça acusou presidente de tentar interferir política na Polícia Federal, de ter 'preocupação' com inquéritos no STF e comparou autonomia com os governos do PT

Bernardo Mello, Juliana Castro, Juliana Dal Piva e Marlen Couto

RIO - Ao pedir demissão do cargo de ministro da Justiça, Sergio Moro elencou uma série de divergências e acusações para sair do governo. Ele afirmou que o presidente Jair Bolsonaro queria interferir na Polícia Federal ao insistir na troca do diretor-geral da instituição, Maurício Valeixo.

Confira os principais recados no discurso de Moro:

1– PT respeitou autonomia da Polícia Federal no auge da Lava-Jato

Durante a coletiva, o ministro reconheceu que houve autonomia da Polícia Federal durante as investigações da Operação Lava-Jato, deflagrada em março de 2014, ocasião em que atuou como juiz da 13ª Vara Federal de Curitiba e foi responsável pelos processos da operação. Na época, o governo Dilma Rousseff estava no centro das investigações do megaesquema de corrupção na Petrobras. Diretores da estatal e ministros importantes da gestão petista foram alvos de fases das investigações.

- Foi garantida a autonomia da Polícia Federal durante esses trabalhos de investigação. É certo que o governo na época tinha inúmeros defeitos, aqueles crimes gigantescos de corrupção. Mas foi fundamental a manutenção da autonomia da PF para que fosse possível realizar esse trabalho - disse Moro.

2– Bolsonaro confirmou que queria ‘interferência política’ na PF

Moro revelou que não houve explicação por parte de Bolsonaro sobre o motivo para a troca no comando da Polícia Federal e que o presidente tinha como objetivo “colher relatórios de inteligência”, ao colocar alguém de sua confiança no cargo.

- Presidente me disse mais de uma vez que ele queria ter uma pessoa do contato pessoal dele [na Polícia Federal], que ele pudesse ligar, colher relatórios de inteligência. Realmente não é o papel da Polícia Federal prestar esse tipo de informação. As investigações têm que ser preservadas - enfatizou o ministro na coletiva.

Moro contou que disse a Bolsonaro que a mudança no comando da PF seria uma “interferência política”. Bolsonaro respondeu que “seria mesmo", revelou o ministro. Moro disse ainda não ter “vocação para carbonário” no momento em que explicava, em sua entrevista coletiva, que tentou orientar Bolsonaro a nomear para a direção-geral da PF um quadro técnico respaldado pela instituição, como forma de evitar uma crise em plena pandemia do coronavírus. Moro deu a entender que, embora tivesse sugerido nomes como o atual diretor-executivo da PF, Disney Rossetti, Bolsonaro queria uma escolha sem ser pautada por critérios técnicos.

- Conversei com o presidente ontem (quinta-feira) e ele confirmou que seria uma interferência política. Eu disse que teria impacto negativo e, para evitar uma crise durante a pandemia, não tenho vocação para carbonário, eu sinalizei a substituição por alguém que demonstrasse uma continuidade. Essas questões não são pessoais e têm que ser resolvidas tecnicamente. Fiz a sinalização, mas não obtive resposta – afirmou Moro.

3– Interesse de Bolsonaro em superintendências da PF

Moro citou ainda que seu desagrado com a postura de Bolsonaro não se limitou à insistência do presidente pela substituição do diretor-geral Maurício Valeixo, mas também de superintendentes regionais da Polícia Federal - especificamente, segundo o ministro, no Rio de Janeiro e em Pernambuco. Moro afirmou, durante a entrevista coletiva, que indicações políticas em superintendências regionais da PF comprometem o combate à corrupção, e frisou que a atribuição das nomeações de superindententes era apenas do diretor-geral.

- O problema é que nas conversas com o presidente, havia intenção de trocar também superintendentes. Não só o diretor-geral. No Rio de Janeiro, em Pernambuco, sem que me fosse apresentado uma razão ou uma causa para essas substituições - disse Moro.

A superintendência da PF em Pernambuco tem atuado, por exemplo, na investigação de candidaturas laranjas do PSL nas eleições de 2018. Já a superintendência do Rio apurou, por exemplo, suspeitas na evolução patrimonial do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), em investigação originada a partir do compartilhamento de dados do Coaf. O caso se relaciona, por sua vez, com o inquérito sobre rachadinha envolvendo o antigo gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio. Este inquérito é conduzido a nível estadual, pelo Ministério Público do Rio. Moro lembrou que Bolsonaro demonstrou insatisfação com a atuação da superintendência do Rio.

- A partir do segundo semestre do ano passado, passou a ter uma insistência do presidente para a troca do comando da PF. Isso, inclusive, foi declarado publicamente pelo presidente. Houve primeiro o desejo de trocar um superintendente da Polícia Federal do Rio de Janeiro - lembrou Moro.

4– Reação da PF a tentativas de interferência

Apesar de reconhecer que governos anteriores respeitaram a autonomia da PF, Moro lembrou que houve uma tentativa de interferência no órgão durante a gestão do ex-presidente Michel Temer. Na ocasião, Fernando Segovia foi nomeado para a diretoria da PF em escolha pessoal de Temer, após indicação de aliados do presidente no MDB investigados pela Lava-Jato.

Ao citar a interferência, Moro lembrou que a própria Polícia Federal reagiu à época, sinalizando que a instituição tem condições de se mobilizar contra ações políticas externas.

- Houve até um episódio em que foi nomeado um diretor no passado com intuito de interferência política e não deu certo. Ficou pouco mais de três meses. A própria instituição rejeitou essa possibilidade – recordou Moro.

Durante os 90 dias em que permaneceu no cargo, Segovia foi alvo de polêmicas e chegou a sugerir um arquivamento da investigação contra o presidente no caso sobre irregularidades na edição de um decreto sobre portos iniciado a partir de delações premiadas de executivos da empresa J&F. Em meio ao desgaste dentro da própria corporação, o então diretor foi demitido.

5– Bolsonaro tinha “preocupação com inquéritos em curso” no STF

Na entrevista coletiva em que anunciou que deixa o governo, Moro declarou que Bolsonaro também acusou “preocupação” com casos em andamento no Supremo Tribunal Federal (STF).

- O presidente também me informou que tinha preocupação com inquéritos em curso no Supremo Tribunal Federal e que a troca também seria oportuna da Polícia Federal. Por esse motivo, também não é uma razão que justifique a substituição. Até é algo que gera uma grande preocupação - afirmou Moro.

Moro não detalhou quais inquéritos seriam alvo da preocupação de Bolsonaro. No último fim de semana, o presidente participou de um ato a favor do AI-5 em Brasília que entrou na mira do STF e da Polícia Federal.

Após um pedido enviado pelo procurador-geral da República, Augusto Aras, o STF autorizou a abertura de inquérito para investigar atos a favor do AI-5. Embora não seja citado no pedido de Aras, Bolsonaro chegou a fazer um discurso para seus apoiadores durante o ato.

6– “Não assinei”, disse Moro sobre ato em Diário Oficial

Embora o ato em Diário Oficial que oficializou a demissão de Maurício Valeixo traga o nome do ministro da Justiça, Moro negou que tenha assinado a exoneração. Moro também afirmou que não foi comunicado previamente pelo Planalto de que a exoneração de Valeixo entraria na edição desta sexta-feira do Diário Oficial.

- A exoneração que foi publicada fiquei sabendo pelo Diário Oficial, não assinei esse decreto - afirmou Moro.

Na manhã desta sexta-feira, antes da coletiva de Moro, a Secretaria de Comunicação da Presidência (Secom) publicou o ato do Diário Oficial com a exoneração de Valeixo, incluindo o nome do ministro da Justiça entre as assinaturas – assim como o nome do presidente Jair Bolsonaro. Na publicação, em suas redes sociais, a Secom afirmou que Valeixo havia se exonerado “a pedido” e classificou como “fake news” qualquer informação distinta. Moro, porém, rebateu a versão da Secom, afirmando que “isto não é verdadeiro”, e interpretou a exoneração de Valeixo sem ser comunicada previamente ao ministro da Justiça como uma sinalização de que Bolsonaro não queria o próprio Moro no cargo.

- Para mim, esse último ato é uma sinalização de que o presidente me quer fora do cargo. Essa precipitação da realização da exoneração, não vejo muitas justificativas – disse Moro

7- Futuro longe da magistratura e ‘à disposição do país’

Na entrevista coletiva, Moro afirmou que descansará após oficializar sua saída do governo Bolsonaro e lembrou que não pode retornar à magistratura, já que precisou abandonar a carreira para assumir o cargo de ministro da Justiça.

- Infelizmente é um caminho sem volta, mas, quando assumi, sabia dos riscos. Vou descansar um pouco. Esses 22 anos (de magistratura) foram de muito trabalho, em especial, em todo esse período da Lava-Jato, praticamente não tive descanso e nem durante o exercício do cargo de ministro da Justiça e Segurança Pública. Vou procurar mais adiante um emprego, não enriqueci no serviço público, nem como magistrado, nem como ministro, e quero dizer que, independentemente de onde esteja, sempre vou estar à disposição do país para ajudar onde quer que seja – disse Moro.

Na coletiva, Moro também voltou a negar que tenha assumido o cargo no governo Bolsonaro com a promessa de que uma posterior indicação para assumir um posto de ministro do STF. Moro não declarou se tem intenção de futuramente assumir uma vaga no Supremo, cuja indicação é prerrogativa do presidente da República. Moro também se colocou à disposição para “ajudar nesse período da pandemia”.

- Se puder ajudar nesse período da pandemia com outras atitudes, enfim, sempre respeitando o mandamento do Ministério da Justiça e Segurança Pública nessa gestão que é fazer a coisa certa sempre - afirmou.

8– ‘Ofensivo’ o método usado na exoneração de Valeixo

Moro também manifestou desconforto com o método usado pelo Planalto para conduzir a demissão de Valeixo. Segundo o agora ex-ministro da Justiça, Valeixo recebeu um telefonema na noite de quinta-feira para ser comunicado, mesmo sem ter apresentado pedido de exoneração, que sua saída seria publicada como “exoneração a pedido” na edição do Diário Oficial desta sexta-feira, o que acabou ocorrendo.

Além de ressaltar que Valeixo não teria pedido demissão de maneira “formal”, Moro criticou ainda o tom do contato feito com o então diretor da PF na noite de quinta, sem especificar quem foi o interlocutor desta ligação.

- Em nenhum momento o diretor da Polícia Federal apresentou pedido de exoneração. Ontem (quinta-feira) à noite ele disse que recebeu uma ligação de que sairia com “exoneração a pedido” e perguntando se concordava. Ele disse: “Vou fazer o quê?” Mas foi isso, o pedido não foi feito de maneira formal. Achei que isso foi ofensivo - declarou Moro.