Sergio Moro
Hélio Schwartsman: A Lava Jato morreu?
A correção dos excessos da força-tarefa não pode se transformar num movimento pró-impunidade
Nós gostamos de xingar corruptos e amaldiçoar a corrupção, mas ela é a segunda melhor forma de organização da sociedade. É obviamente menos eficiente do que um sistema no qual tudo funcione direitinho, segundo regras impessoais previamente estabelecidas, mas é superior a um regime no qual empreendimentos e a prestação de serviços possam ser bloqueados apenas pelo capricho de autoridades ou, ainda pior, um no qual as “concorrências” e outras disputas se resolvam à bala. É por ser razoavelmente eficaz —e lucrativa para gente influente— que é tão difícil acabar com ela.
A Lava Jato foi uma tentativa de fazer com que o Brasil passasse do estágio da corrupção disseminada, que marca os países menos desenvolvidos, para um em que ela fosse mais contida. É um objetivo importante, que foi em alguma medida cumprido. Bilhões de reais desviados foram restituídos aos cofres públicos e dezenas de políticos e empresários, que já nos acostumáramos a ver como intocáveis, foram julgados e condenados.
Não há, porém, como defender os erros cometidos pela força-tarefa de Curitiba e pelo ex-juiz Sergio Moro, que, em várias ocasiões, desvirtuaram a interpretação da lei para alcançar seus propósitos condenatórios. Penso que há elementos para anular algumas das sentenças do braço curitibano da operação.
É preciso, porém, muito cuidado para que a necessária correção dos excessos da Lava Jato não se transforme num movimento pró-impunidade. A situação de delicado equilíbrio em que vivíamos no último ano, em que um STF dividido arbitrava as questões ora para um lado, ora para outro, pode ter sido rompida agora que a Procuradoria-Geral da República passou a combater mais abertamente a Lava Jato.
O Brasil já desperdiçou tantas oportunidades que é muito possível que não consigamos mais escapar à chamada armadilha da renda média. Espero que o mesmo não ocorra em relação à corrupção.
Bruno Boghossian: Moro terá dificuldades para preservar capital político até 2022
Futuro eleitoral do ex-juiz depende quase exclusivamente do destino da Lava Jato
O palanque de Sergio Moro anda meio bambo. O divórcio com Jair Bolsonaro lançou o ex-juiz na arena eleitoral de maneira precoce, como adversário do presidente que o levou a Brasília. Sem os holofotes da toga e do governo, seu futuro político agora depende quase exclusivamente do destino da Lava Jato.
A revisão dos excessos cometidos em Curitiba e o embate dentro do Ministério Público Federal sobre os rumos da operação definirão os caminhos de Moro até 2022. O ex-juiz pode escolher se apresentar como vítima de um conluio para enfraquecer o combate à corrupção, mas deve ter dificuldades para cantar nessa única nota pelos próximos dois anos.
As críticas feitas por Augusto Aras aos trabalhos da Lava Jato reforçam uma trilha que Moro começou a percorrer no dia em que deixou o governo. Alinhado a Bolsonaro, o procurador-geral que tenta impor limites aos investigadores se torna um atalho para acusar o presidente de tentar desmantelar a operação.
O lance do ex-juiz, nesse caso, seria empurrar Bolsonaro para o córner do establishment político, ao lado dos neoaliados do centrão e de opositores do lavajatismo no Supremo. Moro tentaria roubar do ex-chefe o rótulo antissistema, mas ainda precisaria explicar por que jurou fidelidade a um presidente que jamais se interessou em demonstrar compromisso com o combate à corrupção.
Do outro lado do ringue, há outras incertezas. O debate sobre a atuação de Moro nos processos contra Lula pode levar à anulação de condenações do ex-presidente e torná-lo um potencial candidato na próxima campanha. O ex-juiz seria um inimigo natural do petista, mas precisaria disputar o mesmo eleitorado que Bolsonaro já conquistou em 2018 e poderá cativar de vez com a máquina do governo nas mãos.
Ainda que Moro tenha se tornado um dos personagens mais populares do país, seu capital político acumulado pode se desvalorizar com certa rapidez nos próximos anos. Até hoje, o ex-juiz que usou a Lava Jato como vitrine não aprendeu a ser vidraça.
El País: Ataques à Lava Jato pavimentam caminho ao julgamento decisivo de Sergio Moro no STF
Corte beneficia Lula ao excluir de seu processo delação de Palocci divulgada por ex-juiz em 2018. Coalizão antilavajatista sonha em barrar candidaturas de ex-magistrado e Dallagnol
Afonso Benites e Carla Jiménez, El País
A Lava Jato vive um annus horribilis em 2020, atordoada por decisões na Suprema Corte, e uma campanha ostensiva do procurador-geral Augusto Aras contra os métodos da operação, sob as graças do Planalto. O mau agouro respinga na figura do ex-juiz e ex-ministro Sergio Moro, personagem que mais encarnou a cruzada anticorrupção que sacudiu o Brasil e alguns países da América Latina desde 2014. Hoje, para boa parte do meio jurídico, ele personifica a deterioração da Justiça e dos ritos democráticos. Em um dos lances mais recentes desse revés, na última terça-feira, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal tomou uma decisão a favor do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), condenado duas vezes por Moro por corrupção e lavagem de dinheiro.
Os ministros da Corte entenderam que a delação do ex-ministro Antonio Palocci, divulgada por Moro na semana prévia à eleição em primeiro turno de 2018, não poderia ser incluída nos processos contra o ex-presidente, o que pode anular ao menos um processo contra Lula em Curitiba. Nas palavras do ministro Gilmar Mendes, a divulgação parecia ter “sido cuidadosamente planejada pelo magistrado para gerar verdadeiro fato político na semana que antecedia o primeiro turno das eleições presidenciais de 2018”. Também concederam aos defensores acesso ao acordo de leniência da empreiteira Odebrecht. “O Supremo reconheceu algumas de nossas queixas. Uma delas é a de que essa foi uma condenação política. Outra, de que não tínhamos acesso a tudo o que precisávamos para fazer a defesa”, diz o advogado de Lula, Cristiano Zanin.PUBLICIDADE
Partiu da defesa do ex-presidente petista, no final de 2018, o recurso no Supremo pela suspeição de Moro que anularia as sentenças proferidas contra o ex-presidente Lula. São processos que correram em Curitiba, como o caso do triplex do Guarujá, pelo qual o ex-presidente já cumpriu parte da prisão, o caso do sítio de Atibaia, e um terreno para o Instituto Lula que teria sido aceito, segundo Palocci, em acordo com a Odebrecht. Dentre os argumentos da defesa, estão a parcialidade do ex-juiz, escancarada depois de aceitar o cargo de ministro da Justiça do Governo Bolsonaro. A ação foi encorpada com as revelações do The Intercept Brasil sobre as comunicações estreitas entre Moro e procuradores de acusação do ex-presidente, que reforçam a leitura de parcialidade.
O jogo virou, celebram inimigos da Lava Jato, embora o destino da operação — e das decisões de Moro — esteja longe de ser definida. A decisão de terça-feira virou uma prévia de um julgamento previsto para ocorrer nas próximas semanas no qual será analisada também pela segunda turma a parcialidade de Moro, o ex-juiz que por um ano e quatro meses foi ministro da Justiça de Bolsonaro. Os cinco juízes decidirão se Moro tinha interesses particulares na condenação de Lula. Dois deles já proferiram seus votos contra a tese da defesa do ex-presidente: Edson Fachin e Cármen Lúcia. Outros dois, Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski sinalizaram que acatarão a tese. O voto de minerva deve ser o de Celso de Mello, o decano da Corte.
A pancada do Supremo esta semana sobre o que pareciam intocáveis —Moro e a Lava Jato— vem numa sequência de golpes que passa também pelo descolamento do presidente Bolsonaro da febre lavajatista. Justamente depois de ter sido eleito sob a bandeira anticorrupção da mais longeva operação contra a corrupção no Brasil, que levou para o banco dos réus dezenas de empresários, doleiros e políticos. Moro dividiu com Bolsonaro o seu troféu na Lava Jato, a prisão de Lula, e reforçou a base eleitoral do presidente.
As máscaras, entretanto, caíram em abril quando Moro pediu demissão do cargo de ministro da Justiça, e Bolsonaro passou a hostilizar sua figura e, com apoio de seu aliado na PGR, Augusto Aras, a própria operação que ajudou a elegê-lo. Começou com Bolsonaro limitando os poderes de Sergio Moro no Ministério da Justiça, enfraquecendo os mecanismos de combate à corrupção, tentando interferir na Polícia Federal e acusando seu antigo subordinado de agir mais politicamente do que em defesa do Governo. Moro se demitiu, posou de vítima e atacou o chefe, o que resultou em um inquérito no STF contra ambos. Até 2018, quando aceitou ser ministro, Moro era a principal cara da operação. Idolatrado por parte da população nas ruas e assediado por partidos políticos para uma candidatura. Agora, entre bolsonaristas, é chamado de traidor e vê uma clara tentativa de limitação de sua atuação na seara política.
Enquanto isso, no Congresso, há uma intensa discussão, com apoio do Governo, para se aprovar um projeto de lei que obrigue juízes e membros do Ministério Público a cumprir uma quarentena de oito anos para poderem se candidatar à cargos eletivos. A ideia é tirar Moro e o procurador Deltan Dallagnol, coordenador da força-tarefa do Paraná, do tabuleiro político de 2022. O ex-juiz é um dos presidenciáveis, enquanto que o procurador é apontado como um possível nome ao Senado.
“É lamentável que em meio a uma pandemia nossa preocupação seja com essa quarentena, não com a sanitária”, disse o cientista político Leandro Consentino, professor do Insper. “Não podemos super-empoderar promotores, endeusar juízes. Isso é perverso para o sistema de Justiça”, diz o advogado Marco Aurélio de Carvalho, ferrenho defensor da quarentena aos egressos do MP e da Justiça. Apoiador da Lava Jato, o procurador e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção, Roberto Livianu, diz que a quarentena deveria valer também para outras carreiras, como defensores públicos, policiais e oficiais das Forças Armadas. “A quarentena é uma salvaguarda de profunda relevância, mas não essa. Porque é seletiva”, diz Livianu. Ele ainda questiona o longo prazo. “Um crime de homicídio tem pena de seis anos. Deixar um juiz, um promotor oito anos impossibilitado de disputar uma eleição é mais do que uma punição”.
A mão de Aras
Na semana passada, foi a vez do procurador-geral da República, Augusto Aras, abrir uma série de ataques à Lava Jato, quando insinuou em live com advogados do Grupo Prerrogativas, formado por críticos da operação, que os procuradores de Curitiba, liderados por Deltan Dallagnol, tinham uma “caixa de segredos” com dados de mais de 38.000 pessoas. Em junho ele enviou a subprocuradora-geral da República Lindôra Araújo a Curitiba para que ela obtivesse todos os arquivos que constavam do banco de dados da força-tarefa. Recebeu um não. Recorreu ao Supremo e conseguiu, em julho, uma decisão a seu favor das mãos do presidente da Corte, José Antônio Dias Toffoli. Era o período de recesso judiciário. Mas assim que as férias dos ministros acabaram, o relator da Lava Jato no STF, Edson Fachin, revogou a decisão de seu colega e determinou que os dados ficassem onde estavam.
“É uma afronta. Procuradores e promotores têm independência funcional. Eles não estão subordinados ao PGR”, reclama o procurador Roberto Livianu. Outro movimento de Aras que pode interferir nas apurações da Lava Jato e de outras forças-tarefa é a criação de um órgão central de combate à corrupção. Batizado de Unidade Nacional de Combate à Corrupção e ao Crime Organizado (Unac), seu coordenador seria subordinado ao PGR. “Centralizar essas investigações é pedir para que o combate dê errado. Há um alto risco de interferência política nas apurações”, alerta Livianu.
O argumento da interferência política, porém, é o mesmo que se voltou contra a Lava Jato depois da ida de Moro para o Governo Bolsonaro na sequência da liberação da delação de Palocci às vésperas da eleição, e das revelações do The Intercept Brasil. Aos poucos, firma-se um debate vocalizado recentemente pelo ministro Gilmar Mendes sobre a relação entre a operação comandada em Curitiba e o atual Governo, que já demonstrou inúmeros arroubos golpistas e desprezo pela democracia. “A Lava Jato é a mãe do bolsonarismo”, lançou Gilmar Mendes, numa entrevista em maio deste ano. A pressa em fazer justiça quebrou rituais jurídicos e atropelou acordos internacionais do Brasil, acusam as vozes de defesa dos investigados na operação, que começam a somar algumas vitórias. “A Lava Jato criou uma engrenagem, inventou um mecanismo de opressão judicial, de assassinato de reputações, para trucidar investigados, com concentração de competência”, diz o advogado criminalista Fabio Tofic, que integra o Grupo Prerrogativas. “A competência foi afirmada com ataques ao Direito e a tribunais superiores que ousassem ir contra eles. Nasceu ali o embrião de agressão ao próprio sistema, e o ataque às instituições”, completa.
Tofic é um dos autores do Livro das Suspeições, obra lançada neste final de semana que coloca o ex-juiz como um agente que colabora com o desgaste da democracia e as agressões ao Supremo que tomaram o país. Num momento de ataque às instituições democráticas no mundo inteiro, a Lava Jato fica vulnerável, posta numa trincheira oposta ao que preconizava quando nasceu.
Míriam Leitão: Aras realiza o sonho de Jucá
Decisão de Aras não têm clareza e não são correção de rota, mas sim o desmonte do edifício que investiga a corrupção no país
Quando se divulgou a gravação na qual o então senador Romero Jucá falava em “estancar a sangria”, foi um escândalo. Mas hoje o que o procurador-geral da República faz é o que Jucá tinha em mente. De um lado, Augusto Aras realiza a sua explícita ofensiva contra Curitiba e a Lava-Jato, de outro, enfraquece a Polícia Federal. Aras estimula o temor da existência de um Estado policial montado no MP, quando o perigo real está sendo instalado no Ministério da Justiça com sua lista de monitorados.
Aras aproveita uma preocupação da sociedade brasileira de que a Lava-Jato teria ultrapassado os seus limites. É um sentimento legítimo. Na democracia não se pode admitir a quebra de regras nem para o mais justo dos propósitos. Mas essa supervisão tem que ser feita pelo sistema judiciário, sem se subverter a natureza do Ministério Público. O MP não convive com a centralização que Aras tenta impor, porque ele não é órgão da burocracia que tenha hierarquia explícita. O procurador-geral é chefe do MP, mas não pode tirar a autonomia dos procuradores. Não é o comandante de uma tropa. Mas é o que está tentando ser.
A Lava-Jato ameaçou toda estrutura política, e parte importante do mundo empresarial, com as investigações que mostraram a troca de financiamentos ilegais por favores dos detentores de cargo ou de mandatos públicos. Por isso, com esse movimento ele alivia muita gente. Principalmente o presidente que o escolheu e que pode nomeá-lo ministro do Supremo. O que Aras está fazendo não é correção de rota, mas sim o desmonte do edifício que investigou a corrupção. Ele alega que está agindo em nome da transparência, quando seus atos não têm qualquer clareza.
Enquanto isso, no Ministério da Justiça, como vem revelando em seu blog no Uol o jornalista Rubens Valente, está sendo montada uma estrutura para investigar servidores públicos, policiais e intelectuais que se declaram antifascistas. A Rede pediu ao STF que impeça o governo de continuar com essa estranha investigação. O deputado Eduardo Bolsonaro reagiu postando em seu Twitter uma frase que mostra, em poucos toques, várias distorções deste governo. “Ué querem que o governo tenha em seus quadros pessoas ligadas ao movimento Antifa?” O filho do presidente acha que é errado ser contra o fascismo. O bom seria ser fascista? Está convencido de que a máquina do Estado pertence ao governo Bolsonaro. Portanto, nela não podem trabalhar os servidores que não estejam alinhados com o pensamento dos atuais governantes. De acordo com a primeira das colunas de Valente sobre o assunto, há um dossiê de 579 pessoas, com nomes, fotos e endereços feitos pela Secretaria de Operações Integradas do Ministério da Justiça. O relatório registra que há “policiais formadores de opinião que apresentam número elevado de seguidores em suas redes sociais, os quais disseminam símbolos e ideologias antifascistas”.
O Ministério da Justiça considera suspeito o fato de alguém ser antifascista. O filho do presidente acha que eles não podem estar no governo. Então esses policiais espionados devem ser demitidos por disseminarem tal ideologia? Há momentos em que o país parece ter sido tragado por uma inversão total dos valores. Na ditadura havia em todos os ministérios, órgãos, autarquias e universidades departamentos que vigiavam servidores, alunos, professores. Eram os inúmeros braços do Serviço Nacional de Informações (SNI). Esse é o perigo real.
Aras está preocupado é com a Lava-Jato. De um lado, quer enfraquecer a Polícia Federal e por isso reaviva uma velha disputa de poder que já havia sido arbitrada pelo Supremo. De outro, afirma que a Lava-Jato é uma “caixa de segredos”, que tem dados de milhares de pessoas medidos em terabytes. Conseguiu levar todas as informações para Brasília e diariamente diz algo para quebrar a confiança no trabalho dos procuradores.
O presidente Jair Bolsonaro jamais teve como bandeira a luta contra a corrupção. Usou-a para se eleger, mas sempre quis limitar as investigações, principalmente as que se aproximam de sua família. O gravador do ex-presidente da Transpetro Sérgio Machado captou uma conversa com Romero Jucá em que ele propunha um pacto para estancar a sangria desatada pela Lava-Jato. Isso é o que Aras está conseguindo.
Merval Pereira: Farsa tupiniquim
O procurador-geral da República, Augusto Aras, escancarou nos últimos dias sua intenção de controlar a Lava-Jato
O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, quer que “o natural, bom e antigo” combate à corrupção substitua o que chama de “lavajatismo”, um neologismo muito usado pelos bolsonaristas quando querem menosprezar alguma atividade de que não gostam, como “mundialismo”, em vez de globalização.
Isso não quer dizer que o que Aras está fazendo com a Lava-Jato corresponda a uma ação direta de conluio político com o presidente que o escolheu por fora da disputa interna no Ministério Público. Mas que, tentando desmoralizar a Lava-Jato, está ajudando Bolsonaro a manter o Centrão protegido, isso está.
Defendendo a tese de que a Polícia Federal não pode fazer busca e apreensão em gabinetes de parlamentares, Augusto Aras também faz com que o “antigo” jeito de combater a corrupção no Brasil volte a prevalecer, o que sempre levou a que autoridades, empresários e políticos não caiam nas malhas da Justiça.
Isso não é novidade nos países em que a corrupção avassaladora foi combatida por uma nova geração de juízes e promotores que não se deixaram amarrar por uma burocracia que sempre beneficia os infratores. Na Itália foi assim com a Operação Mãos-Limpas. Com apoio popular grande durante os primeiros anos, a Operação acabou atingida por diversas denúncias que, mesmo não tendo sido comprovadas, corroeram a confiança popular.
Os juízes Di Pietro – que mais tarde entraria na política - e Davigo foram convidados para serem ministros no Governo Berlusconi, resultante do movimento contra a Mãos Limpas, mas recusaram diante da evidência de que o que Berlusconi queria mesmo era desmobilizar a Operação.
Entre nós, algo parecido aconteceu. O então juiz Sérgio Moro, e boa parte do eleitorado, foram seduzidos pela falsa promessa de Bolsonaro de que combateria a corrupção com base na Lava-Jato, e entrou no governo. Bastou que investigações chegassem perto da família presidencial, todos ligados a Fabricio Queiroz, para que Bolsonaro quisesse controlar a Polícia Federal, especialmente a seção do Rio, local de atuação de Queiroz e dos Bolsonaro.
Ao mesmo tempo, a tentativa petista de desmoralizar as condenações do ex-presidente Lula levou a um vazamento de conversas dos procuradores da Lava Jato em Curitiba, entre si e com o então juiz Sérgio Moro. Durante meses o site The Intercept-Brasil publicou essas conversas, geradas pela ação de um grupo de hackers que está na cadeia, e não revelou nenhuma ação que distorcesse a investigação, que forjasse provas inexistentes, que indicasse conluio contra qualquer investigado da Operação Lava Jato, muito menos o ex-presidente Lula, o objetivo evidente da operação de invasão de celulares.
Na Itália, tomou corpo, depois de anos de apoio da opinião pública, uma campanha de difamação contra as principais figuras da Operação Mãos Limpas, em especial o Juiz Di Pietro, e acusações de abuso de poder nas investigações. O mesmo vem acontecendo com o ex-juiz Sérgio Moro, os Procuradores do Ministério Público Federal e membros da Polícia Federal que fazem parte da Força-Tarefa da Operação Lava-Jato.
O Procurador-Geral da República, Augusto Aras, escancarou nos últimos dias sua intenção, latente desde que foi escolhido por Bolsonaro, de controlar a operação. Uma das alegações mais risíveis é a comparação de quantos terabytes (unidade de medida utilizada para armazenamento de dados na informática) de informações a força-tarefa de Curitiba tem em relação ao Ministério Público.
Como são dez vezes mais, isso significa para Aras não indicação de produtividade, mas sinal de que alguma coisa secreta está acontecendo por lá. Em vez de aprovarem reformas que evitariam a corrupção, na Itália houve uma reação do sistema político, dos próprios investigados, pessoas poderosas e influentes, e foram aprovadas leis para garantir a impunidade.
Aqui está acontecendo a mesma coisa, com a mutilação de medidas propostas por Moro para combate à corrupção e decisões judiciais, até mesmo do Supremo Tribunal Federal, que dificultam o combate à corrupção. O fim da prisão em segunda instância e dificuldades para as delações premiadas são apenas exemplos mais recentes. A historia se repete como farsa tupiniquim.
Luiz Carlos Azedo: Palanque para Moro
“Aras foi escolhido procurador-geral pelo presidenteBolsonaro fora da lista tríplice dos procuradores, exatamente para centralizar as decisões sobre as investigações da Lava-Jato”
O procurador-geral da República, Augusto Aras, declarou guerra à Operação Lava-Jato. Em live para o grupo de advogados “Prerrogativas”, sem papas na língua, não poupou críticas aos procuradores que integram a força-tarefa e reiterou a intenção de centralizar e controlar as investigações em curso. Nunca a operação foi tão atacada “de cima” e “de dentro” do Ministério Público. Aras reiterou a acusação de que a força-tarefa de Curitiba opera de forma heterodoxa e levantou a suspeita de que 38 mil pessoas foram investigadas por seus integrantes. “Ninguém sabe como (esses nomes) foram escolhidos, quais foram os critérios”, disse Aras.
As declarações agradaram aos advogados e foram bem recebidas pela maioria dos políticos, mas provocaram a reação dos procuradores e juízes de primeira instância, que têm seus aliados no Congresso. Em resposta, os procuradores de Curitiba classificaram a declaração de Aras como “falsa suposição”, considerando que esse é o número de pessoas físicas e jurídicas mencionadas em relatórios encaminhados pelo Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) ao MPF, em suspeita de crimes de lavagem de dinheiro.
“Ao longo de mais de 70 fases ostensivas e seis anos de investigação foi colhida grande quantidade de mídias de dados — como discos rígidos, smartphones e pendrives — sempre em estrita observância às formalidades legais, vinculada a procedimentos específicos devidamente instaurados”, ressaltou a força-tarefa de Curitiba, em nota oficial. O procurador Roberson Pozzobon, integrante da operação, atacou Aras numa rede social: “A transparência faltou mesmo no processo de escolha do PGR pelo presidente Bolsonaro. O transparente processo de escolha a partir de lista tríplice, votada, precedida de apresentação de propostas e debates dos candidatos, que ficou de lado, fez e faz falta”, publicou no Twitter.
Desde 2014, as forças-tarefas foram responsáveis por 319 ações criminais propostas, 90 ações civis promovidas, 330 acordos de colaboração premiada, 26 acordos de leniência, com estimativa de reversão de recursos ao poder público de, aproximadamente, R$ 30 bilhões, em consequência das operações. Entretanto, Aras pretende centralizar o poder das investigações na Procuradoria-Geral e controlar a “caixa-preta” da Lava-Jato, em poder dos procuradores de Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, centralizando as investigações numa coordenação sob seu comando. Segundo o procurador-geral, existe um “MPF do B”, que operaria nas sombras.
Anarco-sindicalismo
As declarações de Aras ocorrem num momento em que a Lava-Jato dá sinais de retomar a iniciativa, com operações contra políticos importantes, como o senador José Serra (PSDB-SP), que, ontem, virou réu, e o deputado Paulinho da Força (SP), presidente do Solidariedade e líder da Força Sindical. O procurador-geral advertiu aos integrantes da Lava-Jato que cada membro do Ministério Público “pode agir como sua consciência”, mas “não é senhor da instituição”. É uma afirmação polêmica, porque a independência funcional é que assegura a atuação dos procuradores em casos que contrariam o poder econômico e o poder político. Aras disse que o “anarco-sindicalismo” tomou conta da instituição.
Aras foi escolhido para o cargo pelo presidente Jair Bolsonaro fora da lista tríplice eleita pelos procuradores, exatamente para centralizar as decisões sobre as investigações. Essa mudança vai além das apurações sobre crimes de “colarinho-branco”. Indígenas, grupos de extermínio, escravidão contemporânea, racismo, milícia, violência policial, fraude em licitação, violência doméstica, grilagem de terras e desmatamento, todas as agendas que importam para Bolsonaro, ficarão sob controle do procurador-geral.
Tudo indica, também, que já haja uma investigação em curso sobre a atuação da força-tarefa de Curitiba, que reagiu às declarações e negou a existência de uma “caixa-preta” da Lava-Jato. A acusação de Aras já foi objeto de uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou que a força-tarefa de Curitiba compartilhe os dados em seu poder com a Procuradoria-Geral. A crise entre Aras e os procuradores da Lava-Jato está apenas começando, mas já é um palanque para o ex-ministro da Justiça Sergio Moro, grande artífice da operação, que criticou as declarações de Aras.
Moro ainda não assumiu a candidatura a presidente da República, mas aparece em todas as pesquisas como um adversário competitivo do presidente Jair Bolsonaro em 2022. A bandeira da ética foi um grande divisor de águas nas eleições passadas, servindo como estandarte de campanha de Bolsonaro. Essa bandeira, agora, está sendo disputada por Moro, que saiu do governo atirando. O ataque à Lava-Jato resgata o protagonismo de Moro como defensor da ética na política.
G1: Aras diz que é hora de 'corrigir rumos' para que 'lavajatismo não perdure'
Procurador-geral deu declaração em debate virtual promovido por advogados. Segundo Aras, 'correção de rumos não significa redução do empenho no combate à corrupção'.
Por Márcio Falcão e Fernanda Vivas, TV Globo — Brasília
Aras diz que é hora de ‘corrigir rumos’ para que ‘lavajatismo não perdure’
O procurador-geral da República, Augusto Aras, afirmou nesta terça-feira (28) que é hora de "corrigir rumos" para que o "lavajatismo" passe e seja substituído no Ministério Público por outro modelo de enfrentamento à criminalidade.
Aras deu a declaração ao participar de um debate virtual, promovido por um grupo de advogados. Segundo ele, a "correção de rumos não significa redução do empenho no combate à corrupção".
Ainda no debate, Augusto Aras afirmou que a gestão dele visa acabar com o "punitivismo" do Ministério Público e que não pode existir “caixa-preta” no MP.
"Agora é a hora de corrigir os rumos para que o lavajatismo não perdure. Mas a correção de rumos não significa redução do empenho no combate à corrupção. Contrariamente a isso, o que nós temos aqui na casa é o pensamento de buscar fortalecer a investigação científica e, acima de tudo, visando respeitar direitos e garantias fundamentais", afirmou Augusto Aras.
A força-tarefa da Lava Jato do Ministério Público Federal de São Paulo (MPF-SP) informou que "reitera a absoluta correção de sua atuação e que conduz seus trabalhos com base não apenas nas leis, mas também em portaria editada pelo próprio Procurador-Geral da República" - portaria PGR/MPF nº 23, de 20 de janeiro de 2020.
Integrante da força-tarefa de Curitiba, o procurador Roberson Pozzobon criticou em uma rede social a declaração de Aras: “A transparência faltou mesmo no processo de escolha do PGR pelo presidente Bolsonaro. O transparente processo de escolha a partir de lista tríplice, votada, precedida de apresentação de propostas e debates dos candidatos, que ficou de lado, fez e faz falta”.
Consultadas, as direções das forças-tarefa da Operação Lava Jato no Paraná e no Rio de Janeiro não se manifestaram.
O procurador-geral entrou em atrito com as forças-tarefa depois de a chefe da Lava Jato na PGR, Lindôra Araújo, se dirigir a Curitiba com o objetivo de obter acesso a dados de investigações.
A divergência envolveu o repasse de dados sigilosos da força-tarefa local à PGR, que recorreu ao Supremo Tribunal Federal para ter acesso às informações e obteve decisão a favor do compartilhamento de dados. A decisão foi dada pelo presidente do STF, ministro Dias Toffoli (relembre no vídeo abaixo).
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Presidente do STF determinou que as forças-tarefa da Lava Jato entreguem dados à PGR
Investigações 'nos limites' da Constituição
Ainda no encontro virtual desta terça, Aras afirmou que o enfrentamento à criminalidade, especialmente à corrupção, deve continuar a ser feito "do mesmo modo como vinha se fazendo, mas num universo nos limites da Constituição e das leis". Para ele, o "lavajatismo há de passar”.
Augusto Aras disse ainda que atos das forças-tarefas serão apurados. Ele afirmou que a Corregedoria vai investigar o fato de 50 mil processos estarem "invisíveis". O procurador-geral, no entanto, não deu detalhes sobre esses procedimentos.
"Não podemos aceitar processos escondidos da Corregedoria. Temos 50 mil documentos invisíveis. E a corregedoria vai apurar os responsáveis por isso. Na multidão, perderam-se processos, metodologia que atenta contra publicidade", disse.
Investigações sem critérios
O procurador-geral disse também que a força-tarefa do Paraná tem 300 terabytes em informações, além de 38 mil pessoas investigadas e sem critérios.
"Estamos falando da transparência. Todo o MPF, no seu sistema único, tem 40 terabytes. Curitiba tem 350 terabytes e 38 mil pessoas com seus dados depositados. Ninguém sabe como foram escolhidos, quais os critérios, e não se pode imaginar que uma unidade institucional se faça com segredos", declarou.
Aras disse ainda que a força-tarefa da Lava Jato em Curitiba tem "caixa de segredos".
Segundo ele, a meta de sua gestão é “abrir essa instituição para que jamais se possa dizer que essa instituição tenha caixas-pretas. Lista tríplice fraudável nunca mais”.
William Waack: A Lava Jato é o alvo
A força-tarefa terá de compartilhar seu principal ativo: informações sigilosas
A disputa no Ministério Público Federal sobre os dados coletados pela força-tarefa Lava Jato durante os últimos anos já é um clássico da intriga política, da luta pelo poder, do empenho em criar uma narrativa político-eleitoral e, principalmente, uma janela para entender muito do que aconteceu no Brasil nos últimos anos. E está só no começo.
É um clássico de intriga política pois a disputa é, no fundo, sobre quem tem o domínio de imenso arsenal de informações sigilosas obtidas por meio de quebras de sigilo, colaborações premiadas, escutas telefônicas e mais de mil inquéritos. O controle e o vazamento seletivo dessas informações – com a cumplicidade de grandes grupos de comunicação – foram armas relevantes no período em que a Lava Jato foi o instrumento central para apear um grupo corrupto do poder, o que era comandado pelo PT.
É impossível entender a eleição de Jair Bolsonaro sem o fenômeno da Lava Jato e a amplitude do apoio político e popular que recebeu. Mas, uma vez derrotado o PT, a onda disruptiva espraiou-se e estilhaçou em seus vários componentes, nos quais aquele apelidado de “lavajatismo” (ou “vale qualquer coisa para pegar corruptos, danem-se os princípios legais”) perdeu muito de sua força. A aura de que “só Lava Jatos” mudam o País permanece, porém.
Este não é um juízo de valor (desculpem o cinismo), mas não há dúvidas de que o grupo ao redor da força-tarefa da Lava Jato desenvolveu um projeto de poder que, nas origens, nascia da convicção ideológica de que a sociedade brasileira é hipossuficiente – a saber, não consegue se defender sozinha dos abusos cometidos por agentes públicos (classe política) e setores privados (empresários gananciosos). Portanto, precisa de uma proteção “externa”, os integrantes do Ministério Público e da Lava Jato.
É por esse motivo que os expoentes da Lava Jato sempre entenderam sua missão como política em sentido amplo. Hoje, em boa medida também pela saída de Sérgio Moro do governo, consideram-se acuados, tolhidos e controlados por um governo que, intencionalmente ou não, ajudaram a eleger. Talvez não percebam que parte daquilo que qualificam como “interferência” na independência funcional de procuradores não é nada mais do que a reação política e institucional ao fato desses mesmos procuradores terem se organizado como núcleo político na acepção pura da palavra.
A questão não é apenas doutrinária ou teórica. Ela é prática e de enorme impacto, pois o material comprometedor juntado pela Lava Jato é um acervo que vai agora para as mãos de quem? A disputa não é de agora. Desde 2015 a PGR obtinha do então titular da 13.ª Vara de Curitiba, Sérgio Moro, o compartilhamento do material de centenas de inquéritos, alegando sua relevância para julgamentos no STF, entre outros.
Há uma guerra surda de versões nos bastidores, repletas de todo tipo de teoria conspiratória, de lado a lado. Os procuradores que se consideram pisoteados pela direção da PGR alegam que a nomeação de Augusto Aras foi uma “indicação política” de Bolsonaro para proteger o próprio clã familiar. Do outro lado, ouve-se que os procuradores ao redor do grupo de Curitiba estão apenas preocupados em ocultar o que fizeram de pior ao transgredir leis e princípios para perseguir corruptos (ou desafetos), e não passam de “sindicalistas” descontentes com a perda de poder interno (na escolha do PGR, por exemplo).
Neste momento da ácida disputa o que se verifica claramente é uma correção de rumo geral da política frente à Lava Jato, com Bolsonaro mais na posição de espectador (ficar quieto é o que mais lhe convém) do que no comando de decisões. Grande parte do mundo político e jurídico aplaude o empenho da direção da PGR em retomar o controle central de grupos e forças-tarefa como a da Lava Jato.
Diante disso, já é possível dizer que a Lava Jato não será fator tão decisivo nas próximas eleições. O tabuleiro político é bem mais complicado do que xadrez jurídico no qual Sérgio Moro foi hábil jogador.
Eliane Catanhede: ‘Caráter inusitado’
PGR em chamas, MP, PF, Receita e ex-Coaf são peças do quebra-cabeças lançado por Moro
A Procuradoria-Geral da República está em chamas e a força-tarefa da Lava Jato reclama do “caráter inusitado” da ação da subprocuradora geral Lindôra Araújo, braço direito de Augusto Aras e ligada à família Bolsonaro, que desembarcou em Curitiba exigindo arquivos e dados sigilosos das investigações e criando a impressão de uma devassa na Lava Jato que pode atingir até o ex-ministro e ex-juiz Sérgio Moro. Esse, porém, é apenas mais um fato “inusitado” num país com quase 60 mil mortos de covid-19.
A audácia de Lindôra corresponde à sucessão de mentiras ridículas do advogado Frederick Wassef, capaz de inventar até “forças ocultas” que queriam matar Fabrício Queiroz para atingir o presidente Jair Bolsonaro. E lembra o pedido inusual da delegada da PF Denisse Ribeiro para o Supremo suspender as investigações sobre bolsonaristas golpistas e, assim, evitar “risco desnecessário para a estabilidade das instituições”. Tudo muito inusitado.
O mais grave, porém, é que a ida da procuradora a Curitiba ocorre quando o presidente Jair Bolsonaro é investigado pelo Supremo justamente pela acusação, feita por Moro, de intervir politicamente na Polícia Federal. E tudo num contexto maior de controle dos órgãos de investigação do País, não só para proteger filhos e amigos, como admite o presidente, mas também para perseguir adversários, como suspeitam governadores, ministros do STF, cúpula do Congresso e o próprio Moro. Ou seja, os alvos.
Lindôra, aliás, também exigiu os arquivos da Lava Jato em São Paulo e Rio e já tinha requisitado de todos os Estados e DF as investigações contra governadores. Ela alega que é coordenadora da Lava Jato na PGR e isso faz parte do trabalho, mas seus próprios pares desconfiam dessa “justificativa técnica”, convencidos de uma ação política coordenada. Tanto que três procuradores pediram demissão do grupo de trabalho e uma quarta já tinha saído por divergências.
Assim como Bolsonaro é investigado por intervir na PF e Lindôra invade investigações do MP em Curitiba, Rio e São Paulo, vale lembrar que, depois de revelar ao mundo a existência de um tal de Queiroz, o Coaf saiu do Ministério da Justiça, pulou de galho em galho e foi parar no Banco Central com o nome de UIF. E Bolsonaro, segundo o Estadão em 30/4, já pressionou a Receita Federal para perdoar dívidas milionárias de igrejas evangélicas.
Tudo somado, tem-se que Bolsonaro e seus seguidores têm uma visão muito particular e pouco republicana dos órgãos de investigação: PF, MP, Receita e Coaf, agora UIF. Essas peças vão montando o quebra-cabeças lançado por Moro a partir da demissão do competente delegado Maurício Valeixo da PF e das sucessivas mexidas na superintendência do Rio. Foram inusitadas, mas fazem todo o sentido.
Com Bolsonaro acuado e os militares passando a estabelecer (finalmente...) claros limites entre governo e Forças Armadas, veio à tona o personagem “Jairzinho Paz e Amor”, que dialoga com Judiciário e Legislativo, baixa o tom, ameniza a expressão, para de incendiar o País a cada manhã e de atiçar golpismos a cada domingo. Paz e amor, porém, implicam também órgãos de Estado e de governo independentes, apartidários, sem ações de “caráter inusitado” para salvar filhos e amigos e massacrar “inimigos”. Paz é paz, guerra é guerra.
Saúde
Reunido na quinta-feira para definir as promoções, o Alto Comando do Exército manteve em aberto e não indicou ninguém para a vaga de general de Divisão de Eduardo Pazuello, que foi cuidar da logística na Saúde e acabou ministro. Ele avisou que volta à Força em três meses. É a previsão para o fim da pandemia?
El País: 'A popularidade é irrelevante, com o tempo a verdade prevalece', diz Sérgio Moro
Ex-ministro, que teve imagem desgastada pela Vaza Jato e por sair do Governo, encara resistência em manifestos pró-democracia. Para ele, não há risco de ruptura no Brasil
Carla Jimenéz, Naiara Galarrga Cortázar e Afonso Benites, El País
Quando o ex-juiz Sergio Moro (Maringá, 1972) aceitou seguir o ultradireitista Jair Bolsonaro no Governo fez uma aposta arriscada. Entregava o seu capital político como símbolo anticorrupção a um deputado veterano e incendiário, um nostálgico da ditadura. A lua de mel acabou no fim de abril, como um divórcio ruim, não consensual e uma acusação bomba contra o mandatário: ele queria trocar o diretor-geral da Polícia Federal e interferir na corporação por interesses pessoais. O Supremo Tribunal Federal abriu uma investigação contra Bolsonaro e contra o próprio Moro.
Em uma entrevista por videoconferência desde Curitiba, onde está confinado com a família, por conta da pandemia de coronavírus, Moro critica os arroubos autoritários de Bolsonaro mas diz que não vê riscos de uma ruptura democrática. Perguntado se o vídeo podia ser exibido, negou o pedido, embora tenha feito Lives para outros veículos, e para o movimento Vem pra Rua.
Ele, que já teve bonecos infláveis gigantes com seu rosto exibidos em todo o país, diz que não se importa com sua queda de popularidade. Saiu de uma imagem positiva entre 60% dos entrevistados em maio de 2019 para 42% no mês passado, segundo o Atlas Político. A série de reportagens da Vaza Jato, que revelou bastidores da Lava Jato, e sua saída do Governo, contribuíram para essa mudança de percepção. Moro não vê relação entre a sua atuação como juiz da Lava Jato e o Estado de Direito fragilizado atualmente, como apontam seus críticos. “Ao contrário, o combate à corrupção fortalece o Estado de Direito”, defende. Também revela que depois de quase 24 anos como servidor público, sendo 22 na magistratura federal, terá de se reinventar profissionalmente, provavelmente no setor privado. Já começou a assinar uma coluna na revista Crusoé, ferrenha defensora da Lava Jato.
Pergunta. O senhor saiu do governo 16 meses após assumir o ministério com ataques ao presidente. Ele o enganou ou o senhor cometeu um erro de avaliação?
Resposta. Quando entrei no Governo foi uma decisão difícil, largar a magistratura. O que disse publicamente é a pura verdade. As pessoas às vezes tendem a acreditar em conspirações, motivações ocultas. Minha intenção era ir ao Ministério da Justiça para consolidar os avanços [contra a corrupção] dos últimos anos, além de realizar um trabalho de combate ao crime organizado e à criminalidade violenta. Progressivamente, minha percepção foi que essa agenda, principalmente anticorrupção, não estava tendo a prioridade necessária e ao final, por conta dessa interferência na Polícia Federal… Sou um ex-juiz, temos uma formação, para nós, o rule of law, o estado de direito é fundamental. Para mim foi o momento em que entendi que já não fazia mais sentido minha permanência no Governo. Saí não porque queria prejudicar o Governo em meio à pandemia. Entendi que precisava, que tinha o dever de revelar os feitos que envolviam a minha saída, inclusive para proteger a Polícia Federal.
P. Sente-se decepcionado com o presidente com o compromisso dele de lutar contra a corrupção?
R. Eu permaneci fiel aos compromissos que me levaram ao Governo. Se ele permaneceu ou não é uma questão que tem de ser feita a ele.
P. O senhor se arrepende de ter assumido o Ministério da Justiça?
R. Não. Acho que fui fiel aos meus compromissos. Quando entrei a bolsa [de valores] subiu, as pessoas gostaram. Eu recebi muito apoio. Claro que tinham críticas também, mas em geral foi algo muito positivo. Tivemos queda expressiva em 2019 dos principais indicadores criminais, inclusive de assassinatos, que caíram 19%, algo que nesse percentual não tinha esse precedente histórico. Foi implementada uma série de políticas, mas infelizmente não foi possível ir adiante.
P. A questão dos homicídios dolosos depende dos governos estaduais. O enfrentamento é feito por eles diretamente, não pelo governo federal.
R. Ao contrário. O combate ao crime envolve muito a questão do simbolismo. Boa parte dos homicídios no Brasil, nas periferias, estão relacionados ao crime organizado. Não estou dizendo que não tem o mérito dos Estados e mesmo dos municípios. Tenho certeza se tivesse tido um movimento contrário, um incremento do número de assassinatos a responsabilidade iria se recair sobre o governo federal.
P. Na segunda-feira, ativista bolsonarista Sara Winter foi presa por atos antidemocráticos. Há uma escalada nos conflitos contra o Judiciário. Como os avalia?
R. No Brasil e em algumas partes do mundo vemos uma polarização excessiva, que dificulta o bom funcionamento da democracia, o diálogo, e isso gera falta de tolerância e impede que questões de construção de políticas públicas, por exemplo, sejam tratadas de uma maneira racional. Esses radicais, em particular, representam o extremo dessa polarização. Evidentemente há que preservar a liberdade de opinião. Agora essa liberdade de opinião não abrange a prática de crimes incluindo as ameaças explícitas contra instituições ou pessoas. Foi essa a situação que surgiu e infelizmente o Supremo teve de decretar a prisão pelos excessos cometidos.
P. O senhor se viu como alvo desses extremistas?
R. O que eu vi, principalmente depois da minha saída do Governo, são ataques dessa natureza nas redes sociais. Não sei até que ponto espontâneas ou não.
P. O senhor encarnou um desejo pela ética nas relações políticas. Havia quase uma unanimidade, era um apoio pouco visto para alguém da magistratura. Mas o senhor perdeu popul
aridade . Está sendo mal compreendido ou vê que alguns pontos de sua trajetória poderiam ter sido diferentes?
R. Minhas opções foram tomadas sob a perspectiva de fazer a coisa certa. Às vezes, fazer a coisa certa envolve consequências. Nunca foi um objetivo a questão da popularidade. Se houve alguma incompreensão dos motivos de minha saída, principalmente por uma parte dos apoiadores do presidente, eu lamento, mas isso não mudaria nada. A popularidade é irrelevante, não estou em concurso de popularidade. Existe também essa rede de desinformação que muitas vezes prejudica a percepção adequada dos fatos por parte das pessoas. Sinceramente não estou preocupado com essa questão. Com o tempo, a verdade acaba sempre prevalecendo.
P. Existem três manifestos em defesa da democracia. Dois deles colocam barreiras ao seu nome. Como se posiciona diante disso?
R. Parte um pouco da incompreensão do que foi a Lava Jato. Ela foi uma grande operação que revelou casos disseminados de subornos no âmbito do Governo federal durante a gestão dos presidentes eleitos pelo PT. Algumas pessoas têm essa visão de que houve um viés político, mas o fato é que se fizeram investigações e foram condenados agentes políticos da esquerda e da direita. Existe esse rancor que vem de longe. Estamos em um momento difícil com essa pandemia, as dificuldades econômicas, não penso que deveríamos estar discutindo defesa da democracia, embora se compreenda porque esteja se fazendo isso. A democracia se tem como pressuposto, é algo que não precisaríamos estar defendendo em um contexto normal.
P. Mas o senhor reconhece que é necessária essa defesa, não?
R. Sim, absolutamente. Considero necessário, mas é lamentável que tenhamos de estar discutindo isso.
P. Aceitaria estar com o ex-presidente Lula, com o PT, se eles quisessem em uma frente pela democracia?
R. Isso é uma questão desnecessária. Eu tenho definido o governo Bolsonaro como populista com arroubos autoritários. Temos uma democracia e instituições sólidas, não acredito que ela esteja de fato ameaçada, mas esse tipo de arroubo evidentemente é indesejável.
P. O presidente Bolsonaro foi deputado por 28 anos. Em várias ocasiões demonstrou esse flerte com o autoritarismo. Achava que ia ser diferente?
R. A grande maioria não pensava que isso ocorreria. Minha entrada no Governo na época foi vista por muitos que seria um elemento de moderação. Também eu teria esse papel dentro do Governo. Como tenho esse histórico de juiz também me via ali como uma espécie de um garante, em certa medida, de que não haveria esses arroubos autoritários. O mais relevante é que há uma reação forte da sociedade e temos instituições que estão reagindo. Em que pese todos os alarmes, temos um Supremo que está atuando com independência. Temos um Congresso que está funcionando normalmente. A democracia brasileira é consolidada, essas turbulências vão passar.
P. Então, não vê risco de uma ruptura constitucional?
R. Não vejo esse risco, mas isso não justifica os arroubos autoritários. Passaríamos melhor sem eles.
P. No ano passado o jurista espanhol Baltasar Garzón expressou críticas sobre sua atuação na condução do processo do ex-presidente Lula e por ter aceito ir ao Governo Bolsonaro. O que diria a ele?
R. Não quero entrar em um debate com Baltasar Garzón. Acho que existe uma certa incompreensão. No caso do ex-presidente eu o condenei em um processo e a sentença foi confirmada em outras duas instâncias. Logo foi condenado em outro processo. Tem toda uma realidade de uma prática sistemática de suborno no Governo dele. Temos a corrupção envolvendo agentes do Partido dos Trabalhadores, antes revelada no julgamento da ação penal 470 (caso Mensalão). Nunca teve nada a ver questão ideológica ou pessoal. É um álibi que foi tentado se vender no exterior em relação ao ex-presidente que ele seria vítima de uma de perseguição política e aí tenta levar para esse lado pessoal. Simplesmente cumpri meu papel como juiz.
P. The Intercept e outros meios, incluindo o EL PAÍS, cobrimos a Vaza Jato em que apareceram algumas movimentações que podem ser levadas na ação de suspeição que o envolve.
R. Essa é outra ilusão. Nada do que foi decidido nos processos, nas provas, nada é afetado por essas situações específicas. Acho que esse episódio aconteceu no passado, tem os hackers que estão respondendo aos processos. Isso não invalida nada do que foi abordado pela operação Lava Jato.
P. Na Lava Jato o senhor tinha uma comunicação estreita com os procuradores. O senhor acha que cometeu alguma falha ali?
R. Temos um modelo brasileiro em que o juiz que atua mesmo na área de investigação quanto na fase de julgamento. Tem gente que critica isso, mas é o que está previsto na legislação. Numa investigação como a operação Lava Jato, falar com o Ministério Público, com os advogados, com a polícia é algo usual. Sem querer reconhecer a autenticidade daquilo [a Vaza Jato], não existe nada que aponte alguma fraude, alguma coisa imprópria ou indevida. Sinceramente, acho que esse assunto é história antiga.Temos uma democracia e instituições sólidas, não acredito que ela esteja de fato ameaçada, mas esse tipo de arroubo autoritários evidentemente é indesejável
P. Mas a questão é um julgamento do ex-presidente. Há uma corrente na comunidade jurídica que diz que a Lava Jato fragilizou o que o senhor mesmo defende, o Estado de Direito. Essas críticas não lhe...
R. Ao contrário, o combate à corrupção fortalece o Estado de Direito. Tem muita manipulação de discurso. Alguns dizem no Brasil fala que a Lava Jato representou a criminalização da política. Não, o político que comete um crime de corrupção o regular é essa conduta ser punida pelas Cortes de Justiça. Isso não tem nada de criminalização da política.
P. Como ex-juiz, como analisa os indícios, as provas, contra os filhos do presidente? Acredita que há material para levá-los a julgamento?
R. Esse tipo de avaliação entendo que não cabe a mim.
P. O senhor tem mais provas dessa suposta interferência do presidente na PF?
R. Essas questões estão sendo discutidas lá no Supremo.
P. Teme que essa investigação volte contra o senhor, de que se torne o alvo?
R. Não. Eu fiz o que era certo e o que eu disse era absolutamente verdade.
P. O senhor é visto como um nome para a eleição 2022. Onde se encaixa no espectro político?
R. Temos uma pandemia, um problema econômico muito sério com pessoas perdendo o emprego, pessoas sem renda, empresas fechando e acho que é absolutamente inconveniente qualquer debate envolvendo essas questões políticas. Existe uma agenda urgente no país a ser enfrentada e que não permite esse tipo de debate fora de hora. Não tem nenhuma discussão pertinente de esquerda ou direita ou sobre o que vai acontecer em 2022, 2026, 2030 ou eleições futuras. É muito cedo para esse tipo de conversa. Tudo seria especulativo.
P. Quais são os seus planos? Está procurando um trabalho?
R. Como consequência da saída do Governo, tem um período de quarentena jurídica para evitar conflitos de interesses. Nesses seis meses eu preciso me reinventar, provavelmente no âmbito do setor privado. Mas essas questões ainda estão em andamento. Agora, o desejo, de fato, é permanecer contribuindo para o debate público.
P. A ideia é continuar no Brasil?
R. Puxa vida! As coisas ainda estão muito prematuras. Talvez sair. Talvez ficar. Essa pandemia também complica todos os cenários. É uma situação um pouco difícil no momento.
P. Recentemente, o senhor tuitou que o governo Bolsonaro estava criando um ministério da propaganda. Esse é um termo que ficou forte entre nazistas. Crê que a gestão Bolsonaro tenha essa característica?
R. Não. Aí é exagero. Era uma crítica. Houve a transferência da Secretaria da Comunicação e me pareceu que o perfil principal era a área da propaganda. Mas propaganda que, de alguma maneira, todos os governos fazem. Isso não tem nenhum nada a ver com nazismo ou fascismo, necessariamente.
P. O senhor está de acordo com a presença de tantos militares no Governo? Não acha que isso fere um pouco a imagem das Forças Armadas? O tempo todo parece uma gestão de medo. Não vê isso como um elemento que colocou a democracia do Brasil em xeque?
R. A presença de militares no Governo não, necessariamente, é negativa. Eles têm um papel a desempenhar e isso acontece também em outros países sem que se cogite que isso envolva algum risco à democracia. Agora, essas invocações constantes das Forças Armadas e a necessidade de estar reafirmando nossos compromissos democráticos é ruim para o país. Traz instabilidade, afugenta investimento. A minha avaliação é que temos uma democracia consolidada, as instituições estão funcionando, estamos passando por momentos de turbulência.
P. Essa tensão permanente tem aumentado o número de pedidos de impeachment do presidente. O senhor apoiaria um processo de impeachment do Bolsonaro?
R. (Risos, seguidos de negativas com a cabeça). Não me cabe fazer essa avaliação. Veja, eu sou um cidadão comum hoje.
P. Mais ou menos. Uma coisa sou eu, somos nós aqui [entrevistadores] levantarmos uma bandeira. Outra coisa é o senhor. É diferente.
R. Não cabe a mim esse tipo de postura no momento. Essa é uma questão que depende do Congresso, se sim ou se não. O que eu fiz, já me trouxe bastante problemas. Saí do Governo, me expus a uma situação delicada. Perdi, não posso mais voltar para a magistratura.
P. Como o senhor avalia a gestão que Bolsonaro faz da pandemia?
R. Esse foi um dos motivos subjacentes à minha saída do Governo. Não me sentia confortável. Não é a minha área, a saúde, mas causava-me incômodo estar dentro do Governo e o presidente ter essa postura negacionista. Assim como o PT nega a ocorrência dos crimes na Petrobras, o presidente nega a existência de uma pandemia, o que dificulta qualquer política em nível nacional de combate ao vírus. Não se enfrenta a pandemia negando a gravidade dela. Isso faz com que nós tenhamos hoje 43.000 óbitos pelo coronavírus, o que é muito grave. Talvez, parte desses óbitos teria sido evitada com uma política mais racional por parte do Governo federal.Assim como o PT nega a ocorrência dos crimes na Petrobras, o presidente nega a existência de uma pandemia
P. Algo que está claro é que o presidente quer armar a população. O senhor era um desarmamentista no Governo?
R. Parte dos apoiadores do presidente defende uma maior flexibilização sobre o porte de armas. É uma reivindicação, em certa medida legítima, mas ela tem de ter os seus limites. Facilitar a posse de armas em casa, já que era uma promessa eleitoral do presidente, não é nenhum absurdo. Agora, tem sempre que se discutir até que ponto se vai. Em alguns momentos esse limite tem sido ultrapassado. Evidentemente, não é aceitável o discurso de armar a população para se opor às medidas sanitárias. Isso não tem como.
P. O senhor falou com o presidente desde que saiu do Governo?
R. Não.
P. Nem com a deputada bolsonarista Carla Zambelli [afilhada de casamento de Moro]?
R. [Risos constrangidos] Não.
Samuel Mac Dowell e Marco Antônio Rodrigues Barbosa: Adeus às armas
Se obtiver o registro de advogado, Moro poderá entrar no lado claro da cena
Há quem não entenda por que muitos não querem partilhar manifestos pela democracia com Sergio Moro. Propomo-nos a explicar.
Enquanto juiz, o ex-ministro comprometeu parte dos processos da Lava Jato com ilegalidades que os reduziram ao arbítrio e à perseguição política: selecionar alvos, grampear advogados, abusar das prisões temporárias, usá-las para arrancar confissões, articular acusações e provas em conluio com procuradores, acusar e julgar, proferir sentenças sem conectar fundamentos lógicos, manipular a imprensa e a opinião pública e influenciar a eleição presidencial em benefício do grupo ao qual se integrou. É o que mostram os registros dos processos, da imprensa, do site The Intercept e de recursos em andamento no Supremo.
Cabe ao juiz julgar e valer-se do poder coercitivo do Estado para garantir a execução do que decide. Esse poder é exercido pela força física e uso das armas, um monopólio oficial que está na base da organização da sociedade. Por sua gravidade, à coerção se contrapõe ao sistema de garantias constitucionais que configuram o devido processo legal. Ao desrespeitar esse sistema, na sua dimensão política e funcional o juiz corrompe a ordem jurídica; como indivíduo, é um algoz que age com covardia frente a quem não possui as mesmas armas. Um não juiz, que impõe condenações baseadas em fraudes processuais, imputações falsas e atos tão socialmente danosos quanto os crimes que declara combater.
Se atendeu a claras exigências da sociedade, a Lava Jato, como uma “deep web”, mergulhou em um lado escuro onde as deformações do processo, o comércio de delações e as ações ocultas de autoridades criaram um espaço sem controles e conhecimento público. Isso não é outra coisa que não um ataque às bases essenciais da organização social.
A experiência dos advogados com o processo judicial mostra o quanto é necessário para o equilíbrio das instituições e o quanto depende da conduta do juiz. Nos processos em que a União foi condenada por crimes da repressão do regime de 1964, nos casos Herzog e Fiel Filho, juízes federais operaram de modo correto esse sistema frente a um Estado onipotente, com o objetivo de garantir a ordem constitucional. Seria extraordinário que os processos de combate à corrupção correspondessem a esse ideal e não contivessem aquelas máculas —e a Lava Jato não deixasse como legado a ilusão de que, frente à corrupção, só há eficácia no despotismo de juízes e procuradores em processos sem regras.
Em confronto com o governo ao qual se associou, Moro exige respeito a princípios que, como juiz, ocultou no lado escuro do arbítrio e da prepotência. Esse respeito é devido, mas na defesa da democracia não há espaço a compartilhar com quem a devasta. Ainda assim, o ex-juiz, se desejar obter seu registro legal como advogado, será protegido pelas garantias constitucionais que negou a quem antes julgou. Poderá entrar no lado claro da cena, mas deixando na porta e esquecendo no passado as armas que não poderá usar mais.Samuel Mac Dowell de Figueiredo e Marco Antônio Rodrigues Barbosa
* Advogados, são fundadores do escritório Rodrigues Barbosa, Mac Dowell de Figueiredo, Gasparian – Advogados
Sergio Fernando Moro: Contra o populismo
Órgãos policiais não podem ficar sujeitos ao arbítrio do mandatário de ocasião
O imperador romano, na tradição política e jurídica da época, era considerado dominus mundi e legibus solutus. Era o senhor do mundo e estava acima da lei, mais do que isso, era a própria lei.
Na evolução histórica, passamos pelas monarquias absolutistas do “Estado sou eu” dos séculos XVII e XVIII e pelo totalitarismo de direita e de esquerda na primeira metade do século XX, mas avançamos, desde então, com o reconhecimento de direitos fundamentais, separação de poderes e supremacia da Constituição.
Dentro do modelo do estado de direito o governo é de leis, não do arbítrio do governante ou de interesses especiais.
Dessa forma, é essencial separar o Estado da pessoa do governante. As instituições de Estado, ainda que sujeitas a algumas orientações políticas, estão vinculadas à aplicação neutra e apartidária da lei.
Isso é especialmente relevante para as agências de aplicação da lei que também têm um papel de controle das ações dos próprios governantes.
É fundamental, assim, para o modelo do estado de direito, garantir a independência das Cortes de Justiça e do Ministério Público.
Também é preciso garantir a autonomia funcional até mesmo de órgãos vinculados ao Poder Executivo.
Os órgãos policiais, por exemplo, encarregados de apurar crimes, por vezes, dos próprios governantes, não podem ficar sujeitos ao arbítrio do mandatário de ocasião. O mesmo raciocínio é válido para vários outros setores nos quais demanda-se a aplicação neutra da lei por agentes públicos, como em matéria fiscal, sanitária ou ambiental.
Os órgãos do Estado, afinal, têm sua atuação regrada pela lei e por finalidade atender o bem-estar comum e não cumprir os caprichos e arbítrios do governante do momento.
Políticos populistas tendem a ignorar tal distinção.
Não é o caso de falar em totalitarismo ou mesmo em ditadura, no presente momento, mas o populismo, com lampejos autoritários, está escancarado.
Judiciário e Legislativo são inconvenientes quando não se dobram à vontade do Executivo.
Órgãos vinculados ao Executivo devem cumprir acriticamente a pauta do Planalto e estão sujeitos a interferências arbitrárias.
Os exemplos se multiplicam. Radares devem ser retirados das rodovias federais, ainda que isso leve ao incremento dos acidentes e das mortes; agentes de fiscalização ambiental devem ser exonerados se atuarem efetivamente contra o desmatamento ou queimadas; médicos devem ser afastados do Ministério da Saúde pois a pandemia do coronavírus atrapalha a economia, e agentes policiais federais não podem cumprir “ordens absurdas” quando dirigidas contra aliados político-partidários.
O quadro é muito ruim. Mas quero deixar claro: o populismo é negativo por si mesmo, seja de direita, seja de esquerda. Manipular a opinião pública, estimulando ódio e divisão entre a população é péssimo. Temos mais coisas em comum do que divergências. Democracia é tolerância e entendimento.
Há espaço para todos. Não há problema na presença de militares no governo, considerando seus princípios e preparo técnico. Não há espaço, porém, para ameaçar o país invocando falso apoio das Forças Armadas para aventuras.
Combater a corrupção continua sendo um objetivo primário para fortalecer a economia e a democracia, mas não se pode fazer isso enfraquecendo as instituições de controle com ameaças e interferências arbitrárias. Tampouco servem a esse objetivo a celebração de algumas questionáveis alianças políticas e a retomada de velhas práticas.
Precisamos no momento de união. Há uma pandemia com número assustador de vítimas. Há a necessidade de planejar e buscar a recuperação econômica.
Para tanto, políticas públicas racionais e previsíveis são imperativas. Crises diárias, ameaças autoritárias, instabilidade, ódio, divisões, nada disso é positivo.
Diante dos recentes questionamentos contra o governo federal, há algumas opções em aberto. Insistir no populismo, que até agora nada ajudou contra a pandemia ou para recuperar a economia, não parece ser o melhor caminho. É melhor, como outros já disseram, “colocar a bola no chão”, agir com prudência, observar a lei, respeitar as instituições, buscar o consenso necessário para combater a pandemia, assim protegendo as pessoas, bem como para recuperar empregos e a economia.
Não é difícil unir as pessoas em um momento de crise e em prol de um objetivo comum, especificamente salvar vidas e empregos e fazer do Brasil um grande país. Para tanto, é necessário fazer a coisa certa, sempre, sem tentações populistas ou autoritarismo. Há tempo para o governo se recuperar e é o que todos desejam. Mas precisa começar, já que a crise é grave e não permite perder mais tempo do que já foi perdido.
*Sergio Fernando Moro é professor universitário e foi ministro da Justiça e Segurança Pública