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Sergio Fausto: Sobre a admiração dos Bolsonaros por Pinochet
O regime do general chileno foi não apenas uma ditadura, mas das mais brutais da região
Os presidentes da Câmara e do Senado chilenos, Ivan Flores e Jaime Quintana, recusaram convite para comparecer a jantar com Jair Bolsonaro organizado pelo presidente Sebastián Piñera. Incivilidade? De modo algum. Bolsonaro jamais poupou elogios ao ditador Augusto Pinochet. Razão de sobra para não comparecerem ao encontro.
Em sua recente visita a Santiago, o presidente brasileiro mostrou-se mais cauteloso, disse que não estava ali para discutir Pinochet, mas não perdeu a ocasião de uma vez mais pôr em dúvida que no Cone Sul (Argentina, Brasil, Bolívia, Chile, Uruguai e Paraguai) tenha havido uma série de regimes ditatoriais liderados por militares nas décadas de 1960 a 1980. Falsificação histórica comparável à de chamar democrática a Venezuela chavista.
O regime de Pinochet foi não apenas uma ditadura, mas uma das mais brutais da região. Por quase duas décadas manteve fechado o Congresso, banidos todos os partidos políticos, proscritos todos os sindicatos de oposição, controlado o Poder Judiciário e a imprensa. Pinochet presidiu o Chile sem jamais ser submetido ao teste das urnas. Quando teve de enfrentá-lo, no plebiscito de 1988, o povo chileno disse-lhe não e a ditadura viu-se obrigada a reconhecer que havia chegado ao fim.
Depois do retorno do Chile à democracia, duas comissões – uma presidida por um respeitado jurista e político de centro, Raúl Retting, e outra pelo então bispo auxiliar emérito da Arquidiocese de Santiago, Sergio Valech – deram números tão precisos quanto possível à sistemática violação de direitos humanos durante a ditadura pinochetista: cerca de 30 mil pessoas presas e submetidas a sevícias de toda sorte e 3 mil mortas ou desaparecidas em centenas de centros clandestinos de detenção e tortura.
A matança começou logo após o golpe de 11 de setembro de 1973, com a decretação do “estado de guerra” e a organização das chamadas caravanas de la muerte. Sob o comando do general Sergio Stark, destacamentos militares puseram em marcha a execução sumária de uma centena de líderes políticos e sindicais ligados ao governo deposto de Salvador Allende. Depoimentos feitos anos mais tardes por alguns dos participantes relatam fuzilamentos seguidos de esquartejamento, com requintes de crueldade, e desaparição dos corpos.
Milhares de pessoas foram feitas prisioneiras já nos primeiros dias. À falta de infraestrutura, improvisaram-se instalações como o Estádio Nacional. Ali mataram em 16 de setembro de 1973 Victor Jara, cantor popular, com 44 tiros, não sem antes lhe terem quebrado os dedos das mãos a coronhadas. Em 2008 a Suprema Corte de Justiça condenou o general Stark a seis anos de prisão. Já os responsáveis pela morte de Victor Jara receberam pena de 15 anos, em sentença da Corte de Apelações de Santiago, em 2018.
À selvageria inicial seguiu-se a organização de um aparato dedicado à supressão de toda e qualquer oposição à ditadura de Pinochet. Em 1974 criou-se a Dirección de Inteligencia Nacional (Dina), a polícia política do regime, contra o voto de um único integrante da Junta Militar. Chefe dos Carabineiros, a polícia nacional chilena, o general Germán Campos se opôs à institucionalização do terrorismo de Estado, o que lhe custou o cargo.
O longo braço da Dina ultrapassou as fronteiras do Chile. Em setembro de 1974 seus agentes fizeram explodir em Buenos Aires o carro dirigido pelo antecessor de Pinochet no comando do Exército, o general Carlos Pras. Em 21 de setembro de 1976, em plena capital dos EUA, agentes da polícia política mandaram pelos ares o veículo de Orlando Letelier, ex-embaixador chileno em Washington. Ao matá-los a Dina cumpria o desígnio de Pinochet de eliminar fisicamente figuras respeitadas no exterior que denunciavam a sistemática e brutal violação dos direitos humanos no Chile. Pelo assassinato de Pras e Letelier, além de outros inúmeros crimes, o general Manuel Contreras, chefe da Dina, recebeu sentenças de tribunais chilenos que, somadas, o condenaram a pena de reclusão superior a 500 anos.
Para o deputado Eduardo Bolsonaro, filho do presidente, as violações de direitos humanos perpetradas pela ditadura de Pinochet foram o preço a pagar para livrar o Chile do risco de virar Cuba. A seu ver, valeram a pena. A afirmação revela não só uma assustadora insensibilidade ao sofrimento humano, mas também um raciocínio falacioso. Se a violência do regime Pinochet se justificasse por esse suposto risco, por que teria perdurado quando todos os partidos e grupos de esquerda já estavam desarticulados, quando não destruídos? Por que teriam agentes da Dina, então renomeada Central Nacional de Informaciones, envenenado o ex-presidente Eduardo Frei Montalva, líder democrata-cristão que se opusera a Allende, em assassinato cometido em 1982, quase dez anos depois do golpe de 11 de setembro? Por que vários centros clandestinos de detenção e tortura só foram desativados quando o país retornou à democracia?
A verdade é que o terror estatal posto em funcionamento pela ditadura Pinochet visava a extirpar da memória e remover do horizonte da sociedade chilena quaisquer forças que pudessem pôr em xeque o modelo de país forjado a ferro e fogo pela ditadura, assegurando impunidade pelos crimes cometidos em seu nome. Não se travava só de implantar uma economia de mercado com direitos sociais mínimos, mas também uma ordem política autoritária com as Forçar Armadas à testa e a negação ou severa limitação dos direitos civis e políticos, além de uma cultura domesticada por um catolicismo ultraconservador e repressivo.
Ao se recusarem a comparecer ao jantar com Bolsonaro, os presidentes do Senado e da Câmara honraram as melhores tradições democráticas do Chile, um país que se libertou da ditadura pinochetista e elucidou a verdade de seus crimes, sem revanchismo, mas com coragem.
*Superintendente Executivo da Fundação FHC. Colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, é membro do Gacint-USP
Sergio Fausto: O ponto a que chegamos
Da Constituição de 1988 à eleição de Jair Bolsonaro. Paulo Guedes embrulha os governos de FHC e do PT no mesmo pacote. Sua visão leva água para o moinho doido da extrema direita, para a qual todos do centro até a esquerda são comunistas
Em meados de 2015, a Folha de S.Paulo me convidou para publicar um artigo na Ilustríssima sobre o futuro do PSDB. Escrevi um texto dizendo que a crise do PT, já na época enredado na Lava Jato (tucanos vieram a enredar-se depois), abria espaço para o PSDB retomar a sua original posição de centro-esquerda no espectro político. Mais do que uma análise, expressava um desejo pessoal. Celso Rocha de Barros, em artigo publicado em seguida, rebateu afirmando que para o PSDB não havia mais volta possível às origens. O partido se tornara uma força de contenção da direita propriamente dita. Gostei do argumento do Celso. Realista, pensei: se assim for, o partido continuará a cumprir um papel importante.
Menos de quatro anos depois, difícil não concluir que ambos estávamos enganados. O PSDB nem se estendeu para a centro-esquerda nem serviu de dique eficiente para conter a maré conservadora, com fortes correntes reacionárias, que carregou Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto em outubro de 2018.
Que uma onda à direita vinha crescendo desde 2013/2014, já se sabia. Mas a força e a extensão com que rebentou na praia surpreenderam a todos: o mais desabrido dos deputados direitistas do baixo clero se elegeu presidente; candidatos desconhecidos de direita venceram as eleições para governador nos estados do Rio de Janeiro, de Minas Gerais e de Santa Catarina, além de Rondônia, contra todas as expectativas; um major da Polícia Militar de São Paulo derrotou Eduardo Suplicy na disputa pelo Senado; o PSL, partido até então inexpressivo, elegeu a segunda maior bancada da Câmara, 52 deputados, boa parte deles desconhecida na política – e por aí vai.
Demorei a me dar conta de que a maré conservadora poderia chegar lá. Fui mais sensível aos riscos de um projeto hegemônico do PT, que engendrou uma poderosa máquina de sucção de recursos do Estado para financiar o partido e seus aliados, cooptar a sociedade civil, apoiar governos e partidos amigos na redondeza, com ramificações na África. O mecanismo operava por meio de um conjunto de empresas escolhidas para receber o quinhão maior dos benefícios do governo e, em contrapartida, reinjetar o produto de contratos superfaturados num sistema que corrompeu as instituições do Estado e o sistema partidário como nunca antes na história desse país. Diga-se o que se disser sobre os excessos e abusos da força-tarefa da Lava Jato e do juiz Sérgio Moro – e se deve dizer sem hesitação –, foram eles os principais responsáveis por impedir que a corrupção sistêmica das instituições republicanas continuasse a avançar, dando ao Brasil a chance de limitar o alcance de práticas nas quais todos os partidos, sem exceção, se lambuzaram em maior ou menor grau.
Nas manifestações a favor do impeachment de Dilma Rousseff, passaram-me quase despercebidos sinais claros de que grupos abertamente de direita ganhavam protagonismo. Lembro-me daquele 13 de março de 2016, quando uma multidão se espremeu em vários quarteirões da avenida Paulista (1,4 milhão segundo a PM; 500 mil de acordo com o Datafolha), na maior manifestação de rua desde o movimento das Diretas Já.
Entrei na Paulista pela alameda Campinas e, na esquina, me deparei com um caminhão de som sobre o qual vociferava para uma turma de entusiastas um deputado federal que na época eu mal conhecia: Eduardo Bolsonaro. Sabia dele apenas o suficiente para decidir dar meia-volta e acessar a Paulista por outra rua transversal. Não poderia imaginar que dois anos depois ele seria reeleito deputado federal com a maior votação do país e seu pai se elegeria presidente da República.
Olhando hoje as pesquisas de opinião da época vê-se que teria sido possível perceber que os ventos sopravam à direita. O Datafolha, por exemplo, registrou uma clara predominância de pessoas que se declaravam de centro-direita ou de direita nas pesquisas sobre a opinião dos que participaram das manifestações pelo impeachment. As classes média e alta saíam à rua pela primeira vez: a vasta maioria dos participantes jamais havia participado de um ato público. Monopólio do PT até 2013, a praça pública se tornava definitivamente hostil ao partido de Lula. O mesmo acontecia no meio digital, até então território onde os blogueiros petistas, boa parte organizada e remunerada com recursos oficiais, se moviam com grande vantagem.
Ali, em meio a vastas emoções e pensamentos imperfeitos, eu tinha três certezas: Dilma produzira um desastre econômico, perdera as condições políticas para governar e havia base legal para o impeachment. Seu governo passara da “contabilidade criativa” ao cometimento de infrações graves e reiteradas contra as leis orçamentárias, com inegáveis propósitos eleitorais. Violara a Lei de Responsabilidade Fiscal, usando os bancos federais para financiar despesas do Tesouro, e desrespeitara a Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2014, que a obrigava a cortar gastos, aumentar receitas ou ajustar a meta de superávit primário se a execução orçamentária revelasse ser impossível atingi-la. A impossibilidade se tornou evidente a partir do primeiro trimestre, mas o governo acelerou os gastos e adiou a redefinição da meta para depois da eleição, quando admitiu oficialmente que ela seria apenas uma minúscula fração da que havia sido prevista na LDO.
Quem melhor contou essa história foram os jornalistas Claudia Safatle, João Borges e Ribamar de Oliveira em Anatomia de um Desastre. Além de dissecar o cadáver econômico do governo Dilma, o livro desmonta o argumento de que a ex-presidente perdeu o cargo por práticas corriqueiras e triviais.
No entanto, até hoje tenho sentimentos ambivalentes em relação ao impeachment. De um lado, penso que ele evitou que continuássemos a cavar o buraco da crise em caminho de retorno aos anos 80, marcados por desordem fiscal, isolamento do mundo e inflação alta, crônica e crescente. De outro, não tenho dúvida de que contribuiu para a polarização entre a direita bolsonarista e a esquerda petista, ambas agarradas a mitos regressivos, embora não equivalentes.
Politicamente, o impeachment foi um alto negócio para o PT. O partido livrou-se do ônus da crise produzida por seu governo e ganhou terreno na guerra das narrativas com a tese do golpe parlamentar orquestrado pelas elites e da vitimização de Lula.
Como chegamos a esse ponto? É tentador responder com um breve exercício contrafatual. E se o PT não tivesse elegido o PSDB como seu principal adversário, depois de uma transição de poder civilizada e construtiva? E se Lula não tivesse tomado partido a favor de Dilma na disputa com os ministros e economistas ortodoxos que o aconselharam em 2005 a adotar um programa de ajuste fiscal de longo prazo que, à época, importaria em poucos sacrifícios de curto prazo e enormes benefícios a médio prazo? E se os então donos do poder tivessem aprendido a lição do mensalão, em lugar de dobrar a aposta que os levou ao petrolão? E se o PSDB não tivesse, nos estados, se associado às mesmas empresas beneficiadas pelo esquema federal de corrupção? E se tivesse punido exemplarmente Aécio Neves? E se este não tivesse ingressado com ações de anulação de mandato eletivo contra Dilma Rousseff logo após a reeleição dela à Presidência? E se ela não houvesse feito “o diabo” para vencer aquela eleição? E se a elite política do país tivesse compreendido o recado das manifestações de 2013 e promovido uma reforma política que ajudasse na recuperação do prestígio da representação, em vez de se atirar, no ano seguinte, à disputa da mais cara e corrupta campanha eleitoral da história brasileira?
Esse breve exercício contrafatual serve para deixar claro que chegamos ao ponto a que chegamos não por determinação dos deuses da história e sim por uma sequência de escolhas dos principais atores políticos dos últimos trinta anos. Poderia acrescentar ainda outro “e se”, para chamar atenção para a importância do acaso: o atentado contra a vida de Bolsonaro numa etapa crítica da campanha não estava escrito nas estrelas e impulsionou a vantagem que o ex-capitão tinha sobre os demais candidatos do campo antipetista. A facada cristalizou a polarização eleitoral Bolsonaro versus Haddad, logo em seguida oficializado como o candidato de Lula e do PT.
Seguirei daqui em diante, porém, outra linha de argumento, explorando correntes mais profundas que, a meu ver, levaram Bolsonaro ao Palácio do Planalto e a direita ao poder. Elas dizem respeito ao esgotamento dos acordos explícitos e implícitos, predominantes a partir de 1988, sobre a organização e gestão do Estado, da economia e da política.
Acordos não devem ser entendidos como conchavos espúrios. Utilizo o termo para me referir a certos consensos mínimos entre as elites, no plural e em sentido amplo, sobre a organização e gestão do Estado, da economia e da política, considerados suficientemente eficientes e legítimos pela maioria da sociedade.
No Brasil dos últimos trinta anos, esses acordos se construíram dentro dos moldes da Constituição de 1988 e se refizeram à medida que a integração do Brasil ao mundo, a consolidação da estabilidade econômica e a democratização da sociedade brasileira avançavam. A aprovação de diversas emendas à Constituição e de leis complementares expressa a capacidade que o país teve de adaptar o marco legal a esses processos de mudança, não raro contraditórios em suas exigências, sem se desviar do rumo democrático e do compromisso de ampliar o acesso a direitos universais, notadamente na área social.
A democratização, a globalização e a prescrição constitucional em favor da ampliação da cidadania desencadearam uma dinâmica social de expectativas crescentes, em particular depois de virada a página da hiperinflação. Entre o Plano Real e o término do primeiro governo Lula, houve uma evolução satisfatória da capacidade de resposta a essas expectativas, devido a uma sequência não linear, mas contínua, de reformas que construíram melhores instituições nas áreas fiscal, monetária, regulatória e, não menos importante, social.
As condições no momento da largada, na virada dos anos 80 para os anos 90, não prenunciavam sucesso nessa empreitada: hiperinflação, dívida externa “impagável”, isolamento econômico e financeiro em relação ao mundo, governos impopulares e o impeachment do primeiro presidente eleito depois do retorno à democracia.
Se as condições na largada pressagiavam fracasso, as ambições, por sua vez, não eram pequenas: tratava-se de “resgatar a dívida social” e de desconcentrar o poder: de Brasília para estados e municípios, do Executivo para o Congresso, do Estado para a sociedade, criando mecanismos de controle desta sobre aquele. Tudo isso num país historicamente marcado por elevados níveis de pobreza e desigualdade, além de práticas autoritárias e patrimonialistas. Como se fosse pouco, teríamos de cumprir essas ambições contando com um sistema de governo – o chamado presidencialismo de coalização, em ambiente multipartidário – sobre o qual pesava não apenas a opinião negativa então predominante na ciência política, mas também a experiência de crises vividas no período democrático anterior (1945-64).
Contra a opinião conservadora, para a qual a Constituição de 1988 tornava o país ingovernável, e depois de um início trôpego, o Brasil ingressou a partir de 1994 e da vitória sobre a hiperinflação numa trajetória positiva de enraizamento da democracia, forte redução da pobreza, alguma diminuição da desigualdade e melhoria da governabilidade.
Ocorre que, a partir de certo momento, o fosso entre as expectativas da sociedade e a capacidade de resposta dos governos se tornou muito grande, menos por problemas externos ao país e mais pela interrupção, quando não pela reversão, da sequência de reformas iniciada com o Plano Real.
A vala das três crises simultâneas (econômica, política e moral) que acometeram o país a partir de 2014 começou a ser cavada, sem que a maioria se desse conta, na esteira do ufanismo despertado pela descoberta das reservas do pré-sal. O incrementalismo reformista voltado à criação de instituições favoráveis ao desenvolvimento econômico e social sustentado foi substituído por um voluntarismo falsamente desenvolvimentista, apressado e míope, além de condicionado por um projeto de poder em que se articulavam o capitalismo de compadrio, a politização dos programas de transferência de renda e a hegemonia de um partido.
Passamos da euforia do pré-sal à depressão provocada pelo tombo da economia a partir de 2014, a mais profunda e prolongada recessão já registrada nas estatísticas oficiais do país. A frustração de expectativas que ela provocou foi proporcional à ascensão social que conheceram amplas camadas de menor renda no período anterior. A mobilidade social estava assentada em bases não muito sólidas, porque excessivamente dependentes do endividamento das famílias, estimulado pelo governo.
A “nova classe média” que emergira nos anos Lula teve seus sonhos subitamente interrompidos, sem aviso prévio. Menos atingidos pela crise foram os que continuaram pobres, com a renda dependendo em grande medida das transferências governamentais feitas, entre outros programas, pelo Bolsa Família, produto da junção e expansão de programas criados no governo Fernando Henrique Cardoso.
Mesmo antes de a economia despencar, já era possível observar a acumulação de frustrações com a oferta de serviços públicos. O caso da saúde é interessante. Dados de pesquisas Ibope-CNI mostram que a aprovação ao Sistema Único de Saúde, o SUS, começa a declinar sistemática e significativamente a partir de 2011, passando da faixa entre 40% e 50% para a faixa entre 10% e 20%. Minha hipótese é que a piora na avaliação popular do SUS se deveu a um duplo processo. De um lado, a um fenômeno bem conhecido dos cientistas sociais: uma vez atendidas expectativas básicas de uma população antes sem acesso a determinados bens e serviços, surgem no momento seguinte novas e mais exigentes expectativas dessa mesma população sobre a quantidade e qualidade do que lhe foi ofertado inicialmente. De outro, ao fato de que o SUS não produziu respostas satisfatórias aos problemas de governança e gestão do sistema à medida que ele foi se ampliando e tornando mais complexo.
Creio que essa hipótese ajuda a explicar a frustração de expectativas geradas com a expansão da oferta de outros serviços públicos essenciais, como a educação. Tampouco nesse caso houve a passagem da quantidade à qualidade, por assim dizer, ao menos não na velocidade e escala esperadas.
A frustração é ainda maior entre as camadas da população que melhoraram a sua renda e, em vista de uma educação pública insatisfatória, se veem impelidas a matricular seus filhos e filhas em escolas privadas, com forte impacto sobre o orçamento familiar. Processo análogo se dá na área da saúde: a demora no acesso a médicos especialistas e tratamentos de maior complexidade na rede pública leva famílias “remediadas” a fazer um enorme sacrifício financeiro para comprar planos privados.
Estamos falando de um contingente crescente de indivíduos que, pouco a pouco, a partir de 1994, à medida que o país encontrou um rumo positivo, ganhou a consciência de que são cidadãos portadores de direitos e, ao mesmo tempo, contribuintes. Sabedores do esforço tributário que o Estado lhes exige, se veem, no entanto, compelidos a comprar no mercado privado serviços que o Estado estaria constitucionalmente obrigado a lhes oferecer. O mal-estar com essa “contradição” veio à tona nas manifestações de 2013, num contexto em que a corrupção passava a ser percebida como um dos problemas públicos prioritários. Cresceu o sentimento de que “eles” (o Estado, a classe política, o governo) prometem, me cobram, eu pago (embora não receba), e eles ainda me roubam. Senti isso na pele algumas vezes, ao tentar explicar para motoristas de táxi e outros representantes da classe média que a “coisa não é tão simples assim”. Acabei por me calar.
Na esteira de sucessivos escândalos, avolumou-se o desprestígio das instituições políticas, em particular dos partidos e do Congresso – e dos personagens que neles habitam, os políticos profissionais. O desprestígio se transformou em rechaço depois do petrolão.
Se de um lado a sucessão de escândalos demonstrou o aprimoramento da capacidade do Estado de identificar e combater a corrupção, de outro pôs a nu o que os observadores mais atentos já sabiam: à medida que as campanhas eleitorais ficaram mais caras e competitivas, mais incestuosas se tornaram as relações entre partidos, políticos e empresas doadoras. Como o papel aceita tudo e a capacidade de fiscalização da Justiça Eleitoral é limitada, as prestações de contas eleitorais viraram um faz de conta.
A corrupção deixou de ser prática frequente para se tornar parte intrínseca da representação política. Não é que todos os políticos viraram corruptos, e sim que as chances eleitorais e o poder dentro dos partidos e junto aos governos passaram a depender cada vez mais do toma lá dá cá entre representantes políticos – e seus indicados para cargos públicos – e empresas interessadas no superfaturamento de contratos com o setor público. Em contraste, afrouxou-se o laço entre os partidos e os candidatos e os eleitores, em especial na representação parlamentar. A proliferação de siglas, a dificuldade de se informar sobre quem é quem nas listas de candidatos, as distorções criadas pelas coligações nas eleições para os legislativos (voto no meu partido preferido e sem saber elejo um candidato do partido coligado) – são muitos os fatores que contribuem para a má qualidade da relação entre eleitor e eleito. Nesse ecossistema floresceram espécimes como Eduardo Cunha, que se adaptam melhor à transformação da política em negócio financiado com recursos do contribuinte.
Se no caso da educação e da saúde se pode falar em frustração de expectativas, no da segurança pública o que existe é o medo da escalada da violência. Sim, há uma indústria que se alimenta do pânico em matéria de segurança pública. Mas os dados não mentem. A taxa de homicídios quase triplicou desde que começou a ser medida, em 1979. Era de 11 mortes por 100 mil habitantes em 1980; superou os 30 casos por 100 mil habitantes em 2017. Nessa área, o país regrediu inequivocamente, embora alguns estados tenham sido capazes de reduzir a taxa de homicídio.
A deterioração da segurança pública é filha da expansão do narcotráfico e de uma série de negócios ilícitos comandados por organizações criminosas e milícias igualmente criminosas, ambas com a conivência da banda podre da polícia.
Os governos do PSDB e do PT tardaram a se dar conta de que o problema exigia uma resposta coordenada e estratégica. O primeiro Plano Nacional de Segurança Pública surgiu em 2000, quando a taxa de homicídio já atingia 25 para um grupo de 100 mil habitantes (seu maior salto se deu nos anos 80). Até então o governo federal havia optado por se omitir e não meter a mão numa cumbuca que presumia ser de responsabilidade exclusiva dos estados. De lá para cá, houve melhoras pontuais, mas a tendência de deterioração da segurança pública seguiu seu curso.
Os defensores dos direitos humanos, entre os quais me incluo, demoramos a nos dar conta de que a criminalidade havia mudado de escala e de patamar, em termos organizacionais e financeiros, afetando em particular as periferias das grandes cidades. Os moradores dessas áreas se tornaram reféns das organizações criminosas – ora brutais, ora benfeitoras, mas sempre exigindo em troca a submissão absoluta – e vítimas preferenciais dos ineficazes e não raro truculentos enfrentamentos da polícia com aquelas organizações.
Nas periferias das grandes cidades (e nos morros cariocas) impera a lei do cão. No tiroteio pesado da guerra pelo controle do negócio das drogas e contra as drogas, morrem quase sempre jovens, negros e pobres. O drama é mais visível nas cidades mais populosas, mas se espalhou pelo país, em especial com a disseminação do crack. Contra esse pano de fundo, se entende por que as forças abertamente de direita voltaram ao poder, com protagonismo militar.
Se no passado a direita encontrava base importante entre os católicos, hoje ela volta ao poder com o apoio maciço dos evangélicos. Com recursos, acesso a canais de tevê e rádio e número crescente de adeptos, as igrejas neopentecostais foram aonde o povo está. Existe manipulação da fé e abuso de poder econômico, mas compreender o sucesso dessas igrejas implica reconhecer o papel que desempenham na formação de redes de solidariedade que, além de estabelecerem laços comunitários, oferecem melhores oportunidades de obtenção de emprego e de renda aos fiéis. Em muitas periferias onde a presença do Estado é precária, a única alternativa ao crime organizado é a igreja evangélica. É nesse terreno que a moral conservadora conquistou corações e mentes.
A despeito da grande presença de militares no governo Jair Bolsonaro e da aliança conservadora que em torno dele se formou, não estamos de volta a 1964 nem na iminência de regressar a um regime autoritário.
Isso não significa que não devamos estar alertas contra retrocessos – em algumas áreas já visíveis –, acarretados pelas pulsões autoritárias e retrógradas de setores do novo governo que não raro encontram apoio no gabinete presidencial.
Tão importante quanto isso, no entanto, é construir um acordo entre as forças de oposição sobre uma nova agenda de mudança, que responda ao esgotamento do ciclo aberto pela Constituição de 1988. Isso em nada enfraquece a disposição para defender o núcleo do que há de mais precioso na Constituição: os dispositivos que consagram e asseguram uma ordem política livre e democrática e oferecem instrumentos de defesa dos interesses difusos. Tampouco significa largar no meio da estrada as conquistas obtidas com a construção de sistemas públicos de educação e saúde, complementados por sistemas privados.
Não creio no pecado original, mas penso que os constituintes cometeram equívocos no desenho dos regimes fiscal, tributário e federativo, além de amarrar a administração pública à camisa de força de um modelo de estado burocrático.
O país não se tornou “ingovernável”, como profetizou o então presidente José Sarney. Nem estavam “de porre” os constituintes, como à época ironizou Mario Henrique Simonsen. O tempo, porém, se encarregou de mostrar que tais críticas, indicativas de certa antipatia pela dinâmica social e política de uma sociedade que se democratizava, não estavam destituídas de algum fundamento.
É preciso incorporar essas críticas não para retroceder à oferta centralizada, restrita e seletiva de serviços públicos de antes de 1988, mas, pelo contrário, para assegurar que a expansão desses serviços se dê de forma financeiramente sustentável. Não sendo mais possível ampliar a carga tributária para financiá-los, nada é tão importante de agora em diante quanto torná-los mais eficientes e menos vulneráveis à captura por interesses corporativos e por demandas de camadas de renda mais alta (como é frequente no caso do SUS, sobretudo por meio de decisões liminares do Judiciário).
Além de mais eficiente, a oferta desses serviços precisa se tornar mais eficaz na redução dos desequilíbrios sociais e regionais do país. Isso requer maior coordenação federativa, o que parecem não perceber os que acreditam que mais e mais descentralização seja a cura para todos os males do país.
Não há uma separação rígida entre os problemas econômicos e os sociais do Brasil. Em geral, o mundo intelectual e político se divide entre os que olham para um lado dessa equação e não olham para o outro. Sem promover a convergência desses dois olhares, o país terá dificuldade para retomar o rumo do desenvolvimento sustentado e da construção de uma sociedade mais justa.
Peço alguns parágrafos de paciência ao leitor para explicar esse ponto.
O regime fiscal e tributário desenhado pela Constituição de 1988 gerou desequilíbrios estruturais nas contas públicas, ao transferir receitas para estados e municípios, mas manter, sob a responsabilidade da União, despesas que só fariam crescer nos anos seguintes, em particular com a Previdência. A ponto de os benefícios previdenciários consumirem no presente, a despeito de reformas pontuais feitas ao longo dos anos, cerca de 50% do orçamento do governo federal.
Em proporção do PIB, o Brasil gasta com benefícios previdenciários o mesmo que o Japão, país que tem uma porcentagem pelo menos duas vezes maior de idosos. A distribuição desses benefícios, em grande medida financiada com recursos de todos os contribuintes, tem viés regressivo no Brasil, ou seja, favorece os indivíduos de maior renda que se aposentam (precocemente) pelo INSS e, em especial, os servidores públicos, membros de carreiras ligadas ao Judiciário e ao Ministério Público e ao Legislativo, que se retiram para a inatividade com aposentadoria integral com pouco mais de 50 anos, em média. Cidadã na afirmação dos direitos sociais, civis e políticos, a Constituição de 88 também consagrou, contraditoriamente, privilégios de corporações do setor público.
Por causa das crescentes obrigações de gastos, a União passou a recorrer a aumentos sucessivos de tributos não compartilhados com estados e municípios, as chamadas contribuições sociais. Com isso, a carga tributária total aumentou de 25% para 32% do pib entre 1993 e 2003, na era FHC, permanecendo ao redor desse patamar nos anos subsequentes, o que coloca o Brasil na liderança dos países que mais tributam na América Latina e além da média dos países mais desenvolvidos (acima, por exemplo, de Suíça, Coreia do Sul e Canadá). Ao rápido crescimento da carga de impostos correspondeu uma piora na qualidade do sistema tributário, com o aumento da participação dos tributos em cascata. Ao mesmo tempo, com os gastos correntes (incluindo pessoal, da ativa e aposentados) consumindo partes cada vez maiores do orçamento, os recursos para o investimento público minguaram, criando mais um freio ao aumento da produtividade e ao crescimento da economia.
Já os estados, também premidos por gastos crescentes, se lançaram a explorar as novas bases do ICM, transformado em ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços), depois de 1988. Impuseram tributação pesada sobre telecomunicações, energia, combustíveis e transportes, onerando insumos cujos custos afetam o conjunto da economia. Simultaneamente, engajaram-se na chamada “guerra fiscal”, um leilão de incentivos fiscais que no agregado solapou as bases tributárias do ICMS e distorceu as decisões de investimento, com prejuízo para a produtividade e o crescimento.
A prevalência da competição sobre a cooperação no federalismo construído a partir de 1988 limitou a capacidade do Estado de traduzir o aumento da carga tributária em serviços de melhor qualidade para a população, apesar da ampliação do acesso e da cobertura nas áreas de saúde e educação.
A falta de coordenação entre as três esferas de governo se agravou em razão do estímulo à criação de novos municípios, sem critérios e restrições adequadas – falha só corrigida com emenda constitucional aprovada em 1996. Houve uma explosão do número de governos locais nos primeiros oito anos de vida da Constituição. Aproximadamente 25% dos municípios hoje existentes surgiram depois de 1988, cerca de 90% deles com menos de 20 mil habitantes, a quase totalidade sem receita própria sequer para cobrir os gastos com a máquina pública. Ou seja, parte importante das transferências de recursos federais via Fundo de Participação dos Municípios serviu antes para financiar a criação de governos locais do que para melhorar a qualidade de vida dos habitantes daquelas cidades.
Os problemas decorrentes da dificuldade de coordenação federativa aparecem com clareza nas principais regiões metropolitanas do país, onde há grande concentração populacional, contiguidade dos territórios e infraestruturas, mas não uma autoridade pública capaz de articular as políticas de mobilidade urbana, habitação, saneamento, saúde etc. Essa situação cria mal-estar social e o que os economistas chamam, no seu jargão (que me perdoe o leitor), de “externalidades negativas”, que afetam o investimento e a produtividade.
Submetida a uma carga elevada de tributos e a um sistema complexo de tributação, a estrutura produtiva tendeu a se polarizar entre um conjunto de empresas dominantes em seus mercados, posição reforçada por barreiras de proteção que sobreviveram à abertura econômica iniciada nos anos 90, e milhares de micro e pequenas empresas que sobrevivem em condições desfavoráveis ao seu crescimento. Isso, a despeito da adoção de regimes especiais de tributação, como o Simples. Sem remover os obstáculos tributários e de acesso ao crédito para que startups possam crescer e se desenvolver, a inovação no Brasil permanecerá estruturalmente prejudicada.
Entre as forças democráticas, o primeiro a se dar conta da necessidade de reformar a Constituição foi o governo de Fernando Henrique Cardoso. O sucesso do Plano Real, ao cortar drasticamente a corrosão inflacionária das despesas públicas previstas no orçamento, pôs a nu os desequilíbrios fiscais que os críticos conservadores da Constituição anteviam. A visão sobre os problemas fundamentais para a retomada do crescimento sustentado não se limitava ao diagnóstico sobre o desequilíbrio fiscal. Incorporava igualmente a reflexão crítica sobre o modelo de industrialização por substituição de importações, cujo dinamismo se esgotara havia muito tempo. Dar um fim à era Vargas, como enunciou FHC ao início de seu mandato, significava abrir a economia e reduzir drasticamente a presença do Estado na esfera da produção de bens e serviços.
Transformado em união aduaneira, o Mercosul se constituiu em prioridade da política externa do Brasil, não por afinidade ideológica com os governos de turno nos países-membros, mas pela compreensão de que ele serviria de base para voos mais amplos na integração competitiva das empresas brasileiras na economia global, além de favorecer a consolidação de um espaço democrático no Cone Sul, depois de um ciclo de regimes autoritários na região nos trinta anos anteriores.
Igualmente importante foi o fortalecimento das políticas sociais de caráter universal, especialmente educação e saúde, de acordo com comandos inscritos na Constituição de 1988 e com o ideário social-democrata então sustentado pelo presidente e seu partido.
O ideário produziu resultados. O Sistema Único de Saúde saiu do papel. O gasto em saúde cresceu quase duas vezes acima do pib entre 1995 e 2002, resultando em forte ampliação da atenção básica, sobretudo por meio do Programa de Saúde da Família, levando à queda drástica da mortalidade materna e infantil. Na educação fundamental, a cobertura se generalizou, e os maiores avanços se verificaram nos estados e municípios mais pobres, onde cerca de 30% das crianças de 7 a 14 anos ainda se encontravam na escola.
Institucionalizaram-se também as políticas assistenciais. Foi extinta a Legião Brasileira de Assistência, símbolo de uma concepção paternalista da relação entre o Estado (personalizado na figura da primeira-dama) e a “população carente”. Implementou-se a Lei Orgânica da Assistência Social e criou-se uma rede de proteção social articulada por programas de transferência de renda pautados por critérios objetivos e, na maioria dos casos, condicionados a compromissos dos beneficiários com determinadas contrapartidas, como a matrícula de filhos na escola.
Não menos importante na redefinição do modo de relação entre o Estado e a sociedade na área social foi o programa Comunidade Solidária, ideia de uma primeira-dama que tinha horror a essa designação, a antropóloga Ruth Cardoso.
O conjunto da obra do governo FHC na área social valeu ao Brasil o prêmio Mahbub ul Haq, em homenagem a um economista paquistanês, criador do Índice de Desenvolvimento Humano. Entre 1992 e 2002, fomos um dos países que mais galgaram posições no ranking do IDH.
Digo tudo isso não para enaltecer retrospectivamente um governo do qual me orgulho de ter feito parte e que, a meu ver, deixou um legado positivo ao país, sobretudo quando avaliado à luz das dificuldades enfrentadas à época.
Digo isso porque é oportuno fazê-lo num momento em que, de um lado, o PT se agarra ao nacional-estatismo na economia e não se liberta dos seus laivos “chavo-castristas” e, de outro, com Bolsonaro na Presidência, o liberalismo econômico volta à agenda pública, mas desacompanhado da social-democracia e de mãos dadas com uma ideologia conservadora marcadamente iliberal, além de conflitante com o caráter laico do Estado e o conhecimento científico. Na sua denúncia contra o “alarmismo climático”, o populismo anticientífico não é um pormenor. Somado aos interesses dos setores atrasados do agronegócio e a uma visão ultrapassada do interesse nacional, compõe uma mistura tóxica que ameaça as chances de desenvolvimento do Brasil. Sobre essas e outras ameaças, o liberalismo instalado no governo Bolsonaro permanece silente.
O ministro Paulo Guedes gosta de embrulhar os governos de FHC e do PT no mesmo pacote para designá-los social-democratas e atacá-los como se fossem uma só e mesma coisa.
A periodização que faz da história política recente serve ao propósito de fazer de sua gestão uma espécie de marco zero do liberalismo econômico no Brasil em período democrático. Faz tábula rasa do passado, como o PT fez ao chegar ao poder. Para Lula e seu partido, nada se havia feito pelo “social” (se não desde Cabral, pelo menos desde Getúlio Vargas). Para Guedes, a modernidade do Estado e da economia terá agora seu momento inaugural. Paradoxalmente, a manobra retórica do ministro da Economia alivia a carga sobre o PT, ao deixar na penumbra o tamanho da regressão antirreformista que pouco a pouco se tornou dominante no governo petista. Leva assim, inadvertidamente, água ao moinho doido de uma extrema direita para a qual todos aqueles do centro até a esquerda do espectro político são comunistas, designação que desencadeia um discurso de ódio inaceitável numa democracia.
Se a intenção for fazer o bom debate com a direita liberal, não há por que não reconhecer que o esforço reformista do governo FHC na modernização do Estado e da economia se mostrou insuficiente e gerou efeitos colaterais negativos sobre o peso e a qualidade do sistema tributário, como já apontei. Insuficiente porque não logrou produzir um regime fiscal adaptado às tendências demográficas de longo prazo (a reforma da Previdência ficou aquém do necessário, embora a introdução do fator previdenciário tenha evitado uma deterioração mais rápida do INSS) nem mudanças mais profundas no modelo burocrático do Estado (por batalhas perdidas no Congresso ou no Judiciário em torno de emendas constitucionais que visavam a flexibilização do regime jurídico único e da estabilidade no serviço público).
Por outro lado, não foram poucas nem pequenas as reformas institucionais do aparelho do Estado, na sua relação com o setor privado e a sociedade: com o fim de monopólios estatais e o nascimento de agências setoriais independentes (sem interferência política enquanto durou o governo FHC), criaram-se capacidades públicas adequadas à regulação de serviços essenciais em uma economia de mercado; com a instituição das Organizações Sociais abriu-se o terreno para a incorporação de entidades de direito privado na gestão de equipamentos na área da saúde, da educação e da cultura, sem prejuízo do acesso livre e gratuito aos serviços prestados.
Na direção oposta, ou seja, do bom debate com a social-democracia de esquerda, tampouco se deve deixar de reconhecer a insuficiência dos avanços na ampliação da cobertura e da qualidade dos sistemas públicos de educação, saúde e assistência e de medidas para corrigir a regressividade do sistema tributário.
A pergunta cabível, para um lado e para o outro, é se teria sido possível, naquelas circunstâncias históricas, uma combinação mais virtuosa, embora não isenta de tensões e contradições, entre liberalismo e social-democracia, as duas almas que animaram as ações de governo nos mandatos de FHC. Seja qual for a resposta de cada um, não pode haver dúvida de que foram anos de disseminação e fortalecimento de uma cultura política democrática (da qual a transição para o governo Lula deu mostras inequívocas) e de respeito a valores universais, a começar pela democracia e pelos direitos humanos. Fosse só por isso, o legado dos governos de FHC já seria uma referência essencial para orientar o país na atual quadra histórica.
Considerado isoladamente, o liberalismo encarnado por Guedes e sua equipe apresenta um diagnóstico dos problemas fundamentais da economia brasileira do qual me parece difícil discordar. O ministro está correto ao apontar o desarranjo fiscal – expresso no crescimento ininterrupto da dívida pública na proporção do PIB – como o desafio imediato a ser enfrentado, bem como em assinalar que a chave do crescimento sustentado está no aumento da produtividade, que permaneceu virtualmente estagnada nos últimos trinta anos, a despeito de variações cíclicas e setoriais.
Não resta dúvida de que o estímulo à produtividade implica reduzir a intervenção discricionária e o peso do Estado sobre o setor privado. A tarefa é urgente porque o potencial de crescimento da economia brasileira dependerá cada vez mais de incrementos da produtividade, uma vez que de agora em diante já não contaremos mais com o chamado bônus demográfico e ingressaremos, com o rápido envelhecimento populacional, em fase de redução da parcela de indivíduos economicamente ativos na população total.
Nesse quadro, compreende-se ainda melhor por que a reforma da Previdência é tão importante. Não menos importante será, uma vez contido o crescimento das despesas, reduzir proporcionalmente a carga tributária. É quase inimaginável a ampliação da base de empresas capazes de se integrar competitivamente na economia global, condição necessária para a ampliação da oferta de empregos de melhor qualidade para os trabalhadores, se o Brasil se mantiver como o país de renda média com mais elevada carga tributária do planeta.
A existência desses pontos de coincidência não deve, porém, obscurecer os problemas do liberalismo de Guedes, agravados pelo conservadorismo do governo do qual faz parte.
A importância atribuída ao ajustamento do tamanho do Estado para fins de liberação do potencial de investimento do setor privado não encontra correspondência em preocupação equivalente com a construção das condições para que os benefícios de uma nova e desejável fase do desenvolvimento do Brasil sejam abrangentes e sua distribuição se dê de forma mais equitativa possível.
É forte a inclinação do novo governo a ver na regulação pública antes um desestímulo à iniciativa privada do que uma necessária proteção ao interesse da sociedade. À luz do que aconteceu em Mariana e novamente em Brumadinho, nem é necessário insistir muito nos riscos dessa preferência ideológica.
Tampouco se pode fazer vista grossa para o desafio de incorporar amplas camadas de trabalhadores a uma economia que, para crescer, terá de absorver doses bem maiores de tecnologia.
Num país em que ainda predominam trabalhadores de baixa qualificação profissional e com insuficientes anos de escolarização, salta aos olhos, na agenda de políticas do novo governo, a ausência da educação em geral – e da educação profissional em particular. O Ministério da Educação foi entregue à ala olavista, para a qual o grande desafio da educação brasileira é “combater com denodo o marxismo cultural”. Quanto à educação profissional, longe de mim defender os privilégios do Sistema S, mas ele não pode ser visto apenas ou sobretudo como fonte de custo sobre a folha de salários, como deixam entrever as declarações de Guedes a esse respeito.
Chama atenção, também, a preocupação unilateral do novo governo com a flexibilização da legislação trabalhista. Ao ampliar o espaço do negociado sobre o legislado, a reforma das relações de trabalho aprovada no governo Michel Temer representou uma atualização indispensável do marco legal vigente nessa área. Falta porém a reforma sindical, questão que não está no horizonte do novo governo, mas que deveria estar na agenda de quem acredita que a representação coletiva dos trabalhadores é parte integrante de qualquer projeto ou modelo de capitalismo democrático civilizado. Em termos práticos, é indispensável a construção de uma nova base de financiamento dos sindicatos (que não seja compulsória, mas não desestimule a contribuição voluntária) e o rompimento das amarras setoriais e territoriais que limitam a liberdade de organização sindical.
A ausência de referências à questão da equidade no dicionário do atual governo é notável porque ela nada tem de “socialista”. Ao contrário, filia-se à ideia de que, na vida coletiva, a liberdade só se realiza plenamente se houver uma busca incessante pelo nivelamento das oportunidades de desenvolvimento dos indivíduos. Isso uma economia de mercado não é capaz de atender por si mesma. Tal objetivo requer políticas públicas que, sendo financeiramente sustentáveis e periodicamente avaliadas, promovam a cooperação entre o Estado e a sociedade civil.
Em lugar da preocupação com a equidade fiscal e a melhoria da eficiência da prestação de serviços públicos essenciais à população, em particular a de menor renda, o que se vê é uma obsessão por guerras culturais e pela “despetização” da administração pública federal. Tem-se a impressão de que, à falta de uma agenda de trabalho para lidar com os problemas reais, o governo atual optou deliberadamente por fazer agitação político-ideológica em áreas em que um mínimo de espírito republicano, se não de realismo, impõe a continuidade e o aperfeiçoamento de políticas de Estado.
A educação é uma dessas áreas. Nela, desde os oito anos da gestão de Paulo Renato Souza, o mais duradouro ministro da Educação em períodos democráticos, estabeleceram-se políticas nacionais de financiamento do ensino básico, seleção e distribuição dos livros didáticos e avaliação do desempenho das escolas públicas e privadas, em moldes adequados à descentralização de receitas e competências para governos estaduais e municipais. No período mais recente, o processo de estruturação de políticas de Estado para a área de educação se desdobrou na criação da Base Nacional Comum Curricular para a educação infantil e o ensino fundamental e no projeto de reforma do ensino médio, etapa da formação escolar na qual tem sido mais tímidos os avanços em termos quantitativos e qualitativos.
Junto com o processo de estruturação de políticas de Estado, fortaleceram-se organizações e movimentos da sociedade civil comprometidos com o objetivo de superar mais rapidamente os grandes desafios da educação brasileira (cobertura, qualidade e equidade na oferta do ensino básico, a começar da primeira infância) e fazer da escola um ambiente de efetiva redução das desigualdades de oportunidade determinadas pelo local de nascimento e pela família de cada indivíduo.
Ignorar ou, pior ainda, repelir as organizações e os movimentos da sociedade civil brasileira que incidem sobre a concepção, avaliação e implementação de políticas públicas é um grave equívoco se o objetivo for atender às necessidades reais dos cidadãos brasileiros, em especial os mais pobres, independentemente de suas crenças religiosas, orientação sexual ou preferência política.
O fato de que parte da sociedade civil se tenha deixado cooptar pelos governos petistas não diminui a importância da interlocução e cooperação entre o Estado brasileiro e os movimentos e organizações não governamentais dedicados a políticas públicas. Nem os imperativos inquestionáveis da moralidade pública na transferência de recursos do governo a ONGs justificam a decisão de submeter todas elas, recebam ou não dinheiro público, à supervisão do Palácio do Planalto.
O desenvolvimento diz respeito também a padrões de convivência civilizada que não derivam automaticamente do nível de renda per capita de uma sociedade. Dependem fundamentalmente da segurança com a qual o conjunto dos cidadãos pode exercer os seus direitos políticos e civis, sem o que a maior independência econômica dos indivíduos não se traduz em maior liberdade.
Para o liberalismo representado por Guedes essas preocupações são de segunda ordem. Saindo do plano conceitual para entrar na história, não creio ser ofensivo lembrar que, no Chile, convictos liberais econômicos egressos da Universidade de Chicago se aliaram a católicos ultraconservadores e militares autoritários para, sob o porrete ditatorial do general Augusto Pinochet, fazer do país uma economia de mercado, mandando às favas quaisquer escrúpulos de consciência em relação à sistemática violação de direitos humanos. Mas, de fato, o Chile se desenvolveu sob os governos de centro-esquerda da Concertación. Sem voltar ao modelo de desenvolvimento autárquico, muito menos à irresponsabilidade fiscal e monetária do governo Allende, eles consolidaram a democracia e promoveram a mais acentuada redução do nível de pobreza entre todos os países latino-americanos.
O tempo passou e todos aprendemos (tomara) o valor universal da democracia. Não pode passar despercebida, porém, a desenvoltura com a qual os Chicago oldies aderiram à candidatura e depois ao governo de um político que se projetou fazendo elogios a ditadores e ditaduras que violaram os direitos humanos, além de declarações racistas e homofóbicas.
É cedo para predizer os rumos do governo Bolsonaro. Prevalecerão as forças do liberalismo econômico e da racionalidade burocrático-militar sobre o conservadorismo militante e não raro insensato? Em que extensão o governo testará os limites constitucionais da proteção a direitos civis e políticos? Como reagirá o Supremo Tribunal Federal nesses casos? Qual papel terá o ministro Sérgio Moro, que ao aceitar a nomeação assumiu compromisso público com a proteção das minorias?
Não temos respostas para todas essas perguntas, mas uma coisa é certa. É hora de definir com mais clareza a identidade de valores e visões que poderá organizar uma alternativa política à direita liderada por Bolsonaro e à esquerda ainda hegemonizada pelo PT. É um desafio que ultrapassa as fronteiras do PSDB e pode vir a redefinir o mapa partidário.
*Sergio Fausto é cientista político e superintendente da Fundação FHC
Sergio Fausto: Que caminho tomará o próximo governo?
Se no ajuste fiscal o risco é o gradualismo, na segurança pública a ameaça é o açodamento
Se o Brasil quiser ter chance de um lugar ao sol para si e sua gente num ambiente nacional e internacional de desafios cada vez mais complexos e governança cada vez mais difícil, terá de avançar nos próximos quatro anos no enfrentamento de três questões cruciais.
Primeira, um conjunto de reformas que ajuste não apenas as contas públicas, mas também o modo de atuação e organização do Estado, para que o setor público seja financeiramente sustentável e capaz de oferecer serviços de melhor qualidade com maior eficiência. Segunda, a redução dos níveis alarmantes de violência vividos pelo País (mais de 500 mil mortos entre 2006 e 2016, segundo o Atlas da Violência, edição 2018), período em que o número de homicídios se elevou em quase 15%, na esteira do controle crescente do crime organizado sobre territórios, atividades econômicas e populações. Terceira, o restabelecimento de um mínimo de confiança nas instituições da democracia representativa, em particular os partidos e o Legislativo. A propósito, o protagonismo político assumido pelas Forças Armadas pode ser positivo nas circunstâncias atuais, mas não o é no médio e longo prazos, nem para o País nem para elas próprias.
As questões acima estão interligadas. Se a União e os governos estaduais, estes em situação ainda mais dramática, naufragarem sob o peso de despesas com pessoal ativo e inativo e dívidas impagáveis, a batalha contra a violência e o crime organizado estará perdida e a presença do narcotráfico se alastrará, contaminando de modo fatal as próprias instituições do Estado. Nesse ambiente, é difícil imaginar qualquer recuperação da credibilidade das instituições da democracia representativa, pois será crescente o risco à integridade física de quem se dispuser a participar de peito aberto e mãos limpas da vida política. A saudável renovação dos quadros políticos do País depende, entre outros fatores, de que o poder de intimidação e corrupção do crime organizado se reduza ao longo dos próximos anos. Não podemos trocar a “velha política” por coisa pior ainda.
Se não enveredar pela guerra ideológica e pela desconstrução dos muitos avanços que fizemos nos últimos 30 anos em matéria de direitos civis, políticos e sociais, será possível ao Brasil progredir no enfrentamento dessas três questões cruciais no próximo período de quatro anos.
Isso depende do predomínio de uma direita racional no governo e de uma oposição que seja firme na defesa dos avanços dos últimos 30 anos, ao mesmo tempo que comprometida com a correção de problemas acumulados ou não resolvidos ao longo desse período. A sobreposição de baixo crescimento, crise fiscal e deterioração das condições de segurança representa uma ameaça existencial ao Estado, à sociabilidade civilizada e à democracia.
A reforma da Previdência é dramaticamente urgente. Não sabemos se será aprovada uma reforma que mude a perspectiva de evolução das contas públicas, torne crível a manutenção do teto de despesas e, assim, dê sustentação ao ajuste fiscal estrutural, que depende ainda de medidas complementares. Sabemos, porém, que os benefícios de aprovar uma boa reforma da Previdência são enormes.
Se tomar o rumo certo na bifurcação em que se encontra, o País estará em via de completar a normalização macroeconômica iniciada há mais de 20 anos com o Plano Real, da qual nos desviamos a partir de meados da década passada e que hoje temos condições de retomar graças ao esforço da equipe econômica do governo Temer. Com a inflação e o juro básico nos seus níveis mais baixos em muitas décadas, o regime de metas de inflação e câmbio flutuante plenamente recuperado, uma boa reforma da Previdência é passo decisivo para consolidar condições macroeconômicas (no âmbito doméstico, o único que está ao nosso alcance) em favor do crescimento sustentável.
Dado esse passo, maiores avanços também poderão ocorrer na agenda microeconômica. As privatizações e concessões se veriam livres das pressões para cobrir necessidades de financiamento corrente e poderiam voltar-se para os objetivos de longo prazo de aumentar a eficiência e a produtividade da economia. Além disso, reduzida a incerteza sobre a evolução da despesa pública, o caminho estaria pavimentado para a(s) reforma(s) mais ambiciosa(s) do sistema tributário.
Se no ajuste fiscal o risco é o gradualismo, na segurança pública a ameaça é o açodamento. Debelar a ameaça existencial que o crime organizado hoje coloca ao Estado Democrático tomará anos, exigirá coordenação entre Forças Armadas, Polícia Federal e polícias estaduais, entre os três Poderes, entre o Estado e a sociedade civil, entre o Brasil e outros países. Países que articularam uma estratégia de longo prazo, sem confundir combate ao crime organizado com repressão indiscriminada ao consumo de drogas, como a Colômbia, colheram resultados depois de vários anos. Países que partiram para a militarização impensada da segurança pública, como o México, produziram um banho de sangue sem recuo do crime organizado.
Avanços significativos na reforma fiscal e no combate ao crime organizado exigirão do novo governo superar dois déficits iniciais importantes: capacidade de articulação política e interlocução com a sociedade. Em ambos os casos, os métodos empregados com sucesso na campanha eleitoral de Bolsonaro não são os melhores para que seu governo obtenha êxito. Estigmatizar os partidos e os políticos, por mais enfraquecidos que estejam, não levará a bons resultados no Congresso. Persistir na guerra ideológica contra os “vermelhos” e a imprensa tornará inviável o mínimo consenso necessário para o combate eficaz ao crime organizado e à redução da violência na sociedade brasileira. Ameaçar com “facadas” sistemas há muito consolidados não contribuirá para aprimorá-los
A poucos dias de sua posse, ainda não é claro o caminho que seguirá o novo governo.
*Sérgio Fausto é superintendente executivo da Fundação FHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, Sergio Fausto é membro do Gacint-USP
Valor: Se 'centro radical' for recauchutagem para 2022 não faz sentido, diz Sérgio Fausto
Por Malu Delgado, do Valor Econômico
SÃO PAULO - O Brasil chegou ao fim de um ciclo político e econômico iniciado com a redemocratização, o que foi evidenciado pela eleição de Jair Bolsonaro (PSL) à Presidência, observa o cientista político Sergio Fausto, superintendente-executivo da Fundação FHC.
Com base neste diagnóstico, e definindo-se como observador, e não como formulador, Fausto antecipou ao Valor em que consiste o movimento que corre a todo vapor nos bastidores para formação de um "centro radical".
O nome foi autoria do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso e o radical do termo é exatamente "para fazer o contraponto de algo que se define por uma geometria que não é uma coisa nem outra". Esse centro, que ainda não tem cara e nem se sabe se poderá de fato vir a ser um partido, já tem ao menos agenda clara: se aglutina em torno da defesa de solvência do Estado brasileiro com inclusão social. É um centro, explica o cientista político, que rejeita o descaso da agenda ultra-liberal com os indivíduos. "O que me vem à cabeça é o I care about you", explica.
Nas entrelinhas, ele praticamente admite a saída de FHC do PSDB, mas explica que é preciso haver roteiro bem definido para tal desfecho. A ideia é que o novo comando do PSDB, certamente encabeçado por João Doria, governador eleito de São Paulo, deixe claro a envergadura à direita, abrindo o caminho para que os tucanos históricos digam abertamente por que não mais se sentem à vontade naquele ninho.
Sobre a presença de Ciro Gomes (PDT) no centro radical, Fausto acha uma costura complexa, pelo personalismo do personagem. Se Fernando Haddad (PT) caberia no centro, o dilema é muito mais pessoal, mas o perfil do petista é bem assimilado. A única certeza, por ora, é que este movimento não pode antecipar uma candidatura para 2022.
A seguir, os principais trechos da entrevista:
Valor: Essa eleição simbolizou a ruptura do processo da redemocratização, nos últimos 30 anos?
Sergio Fausto: Acho exagerados os temores e a percepção de risco de ruptura da ordem constitucional. Mas, de fato, é o fim de um ciclo. A rigor, o sistema partidário que se organizou durante a redemocratização, que teve vigência plena entre 1994 e 2002 - um grupo de cinco a sete partidos de fato relevantes, sendo os maiores deles PT e PSDB, e, dentro do Congresso, PMDB e PFL - isso se esfarelou. E acabou o ciclo de expansão do gasto público. Nesses 30 anos, o gasto público sobe sistematicamente acima do crescimento do PIB. Foi possível financiar isso com aumento da carga tributária, do endividamento público e, durante um período, com a situação internacional favorável. Essa forma de financiar o Estado acabou; uma situação fiscal limite.
Valor: Crê no fim deste ciclo?
Sergio Fausto: Sem dúvida. É preciso reconhecer que o País cresceu pouco neste período e que isso tem a ver com a forma de financiamento do Estado. Repetir essa forma é inviável e se forçarmos a mão, ou vamos para a volta da inflação ou para o calote da dívida pública. Outra coisa que mudou brutalmente é a forma como se dá a vida política e a competição política. Isso vai obrigar a reinvenção dos partidos políticos.
Valor: Apesar de todo o desgaste do PT, o candidato oficializado no dia 11 de setembro terminou o segundo turno com 47 milhões de votos. O que explica o poder do PT?
Sergio Fausto: A figura do ex-presidente Lula é enraizada na sociedade, polariza. Ele é mais do que uma referência política racional, há forte sentimento de adesão a Lula. Ao mesmo tempo em que isso permitiu ao Haddad ir ao segundo turno, foi obstáculo para que ele pudesse alargar a votação e vencer. A figura de Lula, ao mesmo tempo em que funciona como alavanca, pesa como âncora. Haddad ficou num dilema absolutamente insuperável, uma espécie de tragédia grega. Francamente, o PT não parece preparado para o pós-Lula. Tem dificuldade imensa de se reciclar porque não consegue digerir o seu passado.
Valor: Digerir num sentido crítico, de autoavaliação?
Sergio Fausto: É quase psicanalítico, a velha história freudiana que para você crescer, simbolicamente precisa matar o pai. Não é perder o amor, o apreço e o reconhecimento da importância do pai, mas é ganhar distância dele e dizer: eu sou outra coisa. E o PT me parece inteiramente preso ao passado e a esse totem, que é o Lula, hoje imobilizado. O problema é que esse totem é o polo de unidade, o denominador comum político-afetivo.
Valor: Então nem com muito divã Haddad mataria o pai?
Sergio Fausto: Acredito eu que ele fez o possível para ampliar o raio de manobra, para ser mais Fernando e menos advogado do Lula. Ele recebeu uma procuração de poderes muito limitados.
Valor: Com esse divisor de águas do sistema político, o que é o centro radical proposto pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso?
Sergio Fausto: Há mudanças e há elementos de continuidade. O próprio presidente eleito reconhece que sem uma coalizão no Congresso, que se construa em torno de partidos, terá muita dificuldade de governar. Portanto, o presidencialismo de coalizão no Brasil está em xeque, está em crise, mas é o único software que permite o sistema funcionar. Há maneiras distintas de operar esse software, há espaços para cada governo imprimir a sua característica. Agora, dentro de certos limites. Não dá para se governar com base no apoio de bancadas que se organizam em torno de temas específicos. Questões como previdência são gerais. Ninguém organiza maioria com base em bancadas setoriais.
Valor: A eleição também deixou muito evidente a falta de identidade da centro-direita, sobretudo com a crise do PSDB. Vai haver cisão?
Sergio Fausto: Uma das vantagens da vitória do Bolsonaro é que ficará claro que dizer que o PSDB é um partido de direita era um artifício retórico do PT.
Valor: Mas com João Doria, o PSDB não penderá à direita?
Sergio Fausto: Essa discussão era mais importante no passado do que é agora. É possível o PSDB ser uma parte importante deste centro radical, para usar a expressão do presidente Fernando Henrique. Sejamos realistas: na política, manda quem tem voto. As forças que ganharam dentro do PSDB naturalmente farão o partido caminhar mais à direita. E aí o jogo é basicamente no campo da direita, com uma alternativa ao bolsonarismo, na hipótese de o governo Bolsonaro não se sair bem. Passa a ser um jogo, creio eu, de um partido que vai estreitar relações ou afastá-las em função de um cálculo político que tem a ver com as chances eleitorais de Bolsonaro em 2022. O PSDB se deslocou para o campo da direita. Dizer que é caudatário do bolsonarismo não é verdade, mas não me parece que o PSDB possa ter protagonismo na formação de um centro radical por conta do que deveria caracterizar o centro radical.
Valor: E o que deve caracterizar esse "centro radical"?
Sergio Fausto: A orientação política mais geral: não tenho a menor dúvida de que temos que fazer ajuste fiscal. A situação fiscal é dramática, o efeito distributivo disso é muito ruim. Em português claro: os pobres pagarão uma conta enorme pela não realização do ajuste. É demagogia dizer que o país possa fazer ajuste deste tamanho sem perdas. Todos perderão. A questão é quem perde mais e menos. O centro radical tem que associar ajuste fiscal com justiça distributiva.
Valor: Esta seria a ideia central desta aglutinação de centro?
Sergio Fausto: Isso é muito incipiente e agora não é o momento de ficar discutindo qual é o formato partidário, se conjunto de partidos... É hora de pensar em torno do que faz sentido se unir. E não pode ser uma discussão abstrata. Não é clube para tertúlias literofilosóficas. É dizer o que pensa dos desafios do país. É ajuste fiscal com critério de justiça distributiva, para valer. Significa que é estrutural, que vai ter que mudar a composição do gasto público. Vai ter que fazer privatizações para valer, para abater dívidas e estancar a sangria de estatais dependentes do Tesouro. A agenda de centro radical é favorável à privatização da Eletrobrás, é favorável a de fato romper o monopólio da Petrobrás na área de refino, é inteiramente contrária a qualquer possibilidade de retorno de uma política industrial à la Dilma. É uma agenda para enterrar de vez o nacional desenvolvimentismo, sem dó nem piedade. Não gastemos vela com mau defunto. Os interesses da maioria não estão na preservação de privilégios das corporações estatais. Esse foi um dos grandes erros do PT.
Valor: E isso não poderá ressuscitar a pecha do neoliberalismo, que por questão ideológica interdita debates políticos no Brasil?
Sergio Fausto: Na economia a agenda é liberal sim. Sem receio. Tome-se o caso de monopólios estatais: é para virar essa página da história que começou a ser virada no governo FHC e o PT representou imenso retrocesso. O PT esvaziou as agências e as politizou, engatou marcha à ré com a reemergência das estatais como atores fundamentais.
Valor: O caminho para se diferenciar da direita seria então a noção de justiça distributiva?
Sergio Fausto: Esse é o conceito central. Política de identidade é tema importante, mas, com toda franqueza, o centro da discussão política no Brasil é o que vamos fazer com o Estado brasileiro para preservar a sua solvência e colocá-lo em favor das maiorias. Vamos entrar num momento de imenso progresso tecnológico. O Brasil não pode perder essa onda. Agora, engatar no trem da modernização tecnológica pode criar amplos setores marginalizados do processo produtivo e não dá para simplesmente dizer: dane-se, isso é o custo da modernização. Não é ter essa visão ultra-liberal do processo. A palavra que me vem é "Eu me importo com você", "I care about you". Tenho solidaridade por você, porque a sociedade não é simplesmente um ajuntamento de indivíduos guiados por interesses econômicos. Ela é uma comunidade, que tem ligações entre si. Isso depende de políticas públicas, e preservar isso é fundamental para o bem-estar social. O centro radical tem que ter a preocupação de incluir.
Valor: FHC falou em ampliar a aglutinação de forças do centro para além de partidos, unindo-o a movimentos inovadores. Seria por aí?
Sergio Fausto: Vejo que sim. É um processo natural de aprendizado democrático muito interessante, o reconhecimento de atores novos. A sociedade civil no período da redemocratização era organizada, institucionalizada, tinha CEP, CNJP, era a OAB, a ABI, a Igreja Católica. Hoje em dia estes atores são caracterizados por uma certa dispersão e desorganização, e há formas novas de aglutinação. Exemplos concretos: RenovaBR, RAPS (Rede de Ação Política pela Sustentabilidade). É uma nova forma de atuação da elite brasileira, inclusive empresarial, na política, muito melhor e saudável. Isso fomenta não apenas alianças transpartidárias, mas permite a emergência de novos líderes cívicos que vão entrando na política.
Valor: Mas se são movimentos encabeçados pela elite, o centro radical, a médio prazo, caso vire novo partido, não corre o risco de perder penetração social, como o PSDB?
Sergio Fausto: A política tem sempre uma tensão, entre o horizontal e o vertical. Esse é o risco do personalismo. Agora, quão mais horizontal for, melhor. É o momento de discussão de ideias e formas de atuação, sem que haja o protagonismo de um, dois ou três. E menos ainda pré-figurações de candidatos para 2022.
Valor: Mas não é provável que o debate sobre 2022 surja?
Sergio Fausto: Uma das vantagens de perder é que você tem algum tempo de se reposicionar. É gastar uma energia importante na reconstrução de um centro novo. Novo do ponto de vista de agenda, sem inventar a roda.
Valor: Se essa aglutinação de centro envolver a old school da política e novos nomes, como do RenovaBR, não vão despontar nomes para 2022, como Luciano Huck?
Sergio Fausto: Só me cabe esperar sabedoria e capacidade de autorrestrição dos vários personagens envolvidos para entender que, se for simplesmente uma espécie de recauchutagem [para 2022], não faz o menor sentido. Aí de fato é melhor cada um ficar na sua casinha partidária. Se é para se desacomodar de onde está para ir em busca de um lugar que ainda não está construído, é para, de fato, construir alguma coisa que seja inspiradora. Isso não significa desprezar o aprendizado e a experiência de figuras que fizeram história na política brasileira.
Valor: Sabe-se que estas conversas já estão ocorrendo. Como isso pode, de fato, ser viabilizado?
Sergio Fausto: Sou observador, até como expressão de desejo. Isso vai implicar algo que não é simples, que é ao mesmo tempo fazer o diálogo interno aos partidos de origem de cada qual e um diálogo no meio de campo, entre este eventual espaço de interseção dos partidos. No caso do PSDB, esse processo de mudança natural, na executiva, será uma oportunidade para discutir.
Valor: Para ficar claro quem quer sair da sua casinha partidária?
Sergio Fausto: Sim [risos]. Precisa explicar ao distinto público por que está saindo, se é que é o caso de sair. Pode-se chegar à conclusão que não é o caso de sair. O problema é explicar para as pessoas por que você está saindo e por que você está ficando. Isso vai acontecer de maneira central no PSDB. Não será simplesmente troca de guardas.
Valor: Até porque se FHC deixar o PSDB isso será um fato histórico.
Sergio Fausto: Não passará despercebido [risos]. Acho, de fato, que este processo vai acontecer. É natural, é salutar. A qualidade do processo que é importante assegurar. Que seja menos uma disputa de cotas de poder, mas de visões. Se ficar é porque tem convergência, se sair é porque tem divergência. Isso acontecerá também na Rede e no PPS, talvez no MDB, com Paulo Hartung se desligando da sigla. Duas questões estruturais: alguém saberá fazer a gestão disso, mas a primeira coisa é dizer onde erramos. Por que deu ruim? E, depois, para onde vamos e como vamos? De que modo vamos fazer essa caminhada? Aí lá na frente você vai ter mais clareza deste conjunto de forças.
Valor: E com quais pessoas?
Sergio Fausto: Pessoas é algo mais para a frente. Tem um conjunto de forças? Que formato vai ganhar? Quantos partidos? Novos partidos, velhos, fusões? Isso vai ter que esperar. E, muito mais lá para a frente, coisa para começar a pensar daqui dois anos, pensar em torno de que pessoas a proposta pode encarnar.
Valor: Pensar em 2022 em 2020.
Sergio Fausto: Inverter isso é o risco que a oposição em torno do Ciro corre. Ciro é uma figura política maior, personalista. Tem certa visão do Estado e ele é o condutor desta política. A maneira pela qual ele procura cativar o eleitorado é dizer: eu não me submeto a esses arranjos, eu sei, eu tenho experiência. É na primeira pessoa do singular. É talentoso, mais na cena aberta que no bastidor.
Valor: Ciro cabe neste centro?
Sergio Fausto: Na vida democrática você tem que dar o benefício da dúvida e deixar o espaço aberto para conversar. Ciro, há 20 anos, quando o PSDB se aproximou do PFL e começaram as negociações e havia críticas, soltou uma frase: "O que pega é catapora". Não tem nenhum problema testar a hipótese de haver convergência. Agora, o personalismo do Ciro, pelos defeitos e pelas virtudes, pode vir a se revelar um obstáculo. Precisamos evitar essa ideia de que será possível no Brasil a criação de um bloco hegemônico que dá as cartas.
Valor: E Fernando Haddad?
Sergio Fausto: Haddad terá tão mais liberdade política quão mais afastado estiver do PT. Será um dilema individual. Acho que este governo Bolsonaro não será um desastre, não devemos apostar nisso. Não significa alinhar. O que é criticável no movimento que o Doria tem feito é que antes que o governo apresente suas propostas, ele dá sinais claros de alinhamento estreito. É um equívoco. O PSDB ou os partidos que perderam têm que estar na oposição. Não pode ser a oposição tal como o PT a exerceu desde a sua criação.
Valor: Crê numa frente de centro-esquerda, com Ciro e Marina?
Sergio Fausto: Marina não sei. A vejo mais próxima do centro radical, até porque acho que ele tem que incorporar a temática ambiental. Temos que reconhecer que esse centro, do ponto de vista organizacional, parte muito débil. Perdeu a eleição, está de escanteio nos seus partidos, ou os partidos são pequenos. O fato é o seguinte: se o centro se estrutura e ganha uma cara, isso obriga o Ciro a se deslocar à esquerda. A força política tem a ver com a definição do terreno da disputa. Se isso aqui ficar amorfo, o Ciro balança da esquerda para o centro e ali constrói sua força. Do ponto de vista do centro, é estreitar esse espaço de manobra do Ciro. Não é hostilizá-lo. É dizer: aqui tem uma risca de giz. Nisso aqui você não consegue entrar. Então você tem que ficar mais pra lá mesmo.
Sérgio Fausto: Ainda dá para virar o jogo
Ao contrário da Copa, há muito a ser jogado pelo Brasil no campo eleitoral
Para o Brasil a Copa acabou antes do que gostaríamos. Com ela se foi o que tem sido raro nos últimos tempos: a alegria compartilhada de se sentir brasileiro(a). Partimos para a campanha eleitoral com o País ainda em crise e sem clareza sobre se saberemos superá-la no próximo mandato presidencial.
Teremos de juntar os cacos. Se, de um lado, não faz sentido repor a estrutura de poder que se desmontou, tampouco têm cabimento as fantasias de quem aposta que a única solução é fazer tábula rasa do passado e renovar “tudo isso que está aí”. É a típica resposta simples para problemas complexos e, como de hábito, está errada. Repetida por ignorância ou má-fé, só serve para levar água ao moinho de pseudossoluções salvacionistas e autoritárias.
Os últimos 30 anos, o mais longo período da História brasileira vivido sob um regime plenamente democrático, não justificam a opinião pejorativa sobre a política em geral e sobre todos os políticos que hoje prevalece na sociedade. Sob a letra e o espírito da Constituição de 1988, o Brasil pôs fim a décadas de inflação alta, crônica e crescente, ampliou muito o acesso aos serviços públicos de educação e saúde, reduziu a pobreza, começou a diminuir a desigualdade, reforçou os mecanismos de controle do Estado pela sociedade e de combate à corrupção nos setores público e privado, consolidou um regime de liberdades como nunca antes na História deste país.
Esses avanços não se deram por decreto. Fizeram-se pela arte e pelo ofício da política democrática. São produto de um socialmente amplo e pluripartidário conjunto de atores cujas ações, nem sempre coordenadas em torno de uma clara e nítida agenda de reformas, jamais isentas de disputas da alta e da pequena política, permitiram respostas ao objetivo posto ao final do regime autoritário: como enraizar a democracia e completar o desenvolvimento da cidadania no Brasil. Objetivo que a Constituição de 1988 soube expressar, embora nem sempre oferecendo os meios mais eficazes para alcançá-lo. Daí terem sido necessárias tantas emendas constitucionais e leis complementares, feitas sem ruptura da legalidade, fato raro na História brasileira.
Afirmar que o balanço dos últimos 30 anos é positivo não é igual a fazer o elogio “de tudo isso que está aí”. A verdade é que a manutenção do status quo tornará o Brasil fiscalmente insolvente e politicamente ingovernável no médio prazo. As condições políticas e fiscais da governabilidade democrática estão muito próximas do seu ponto de exaustão. Deterioraram-se à medida que o presidencialismo de coalizão dava lugar ao de cooptação e a responsabilidade fiscal passou a sofrer ataques constantes de quem por ela mais deveria zelar, o governo nacional, então sob o comando do PT. Deterioração que seria aguda em qualquer hipótese e se tornou dramática com as revelações decorrentes da Lava Jato e congêneres.
Chegou a hora de refazer o molde em que foi confeccionado o pacto constitucional de 1988. Devem ser eliminados todos os privilégios corporativos assegurados na Constituição, transferida para legislação infraconstitucional a maioria - se não todos - dos dispositivos referentes à tributação e aos gastos públicos, bem como aos sistemas eleitoral e partidário. Mantidos, porém, as garantias das liberdades fundamentais, os mecanismos de defesa dos interesses difusos da sociedade e os direitos sociais básicos.
A desconstitucionalização de regras fiscais, tributárias e eleitoral-partidárias as tornará sujeitas a mudanças por iniciativas infraconstitucionais, que requerem maiorias menores do que o voto de três quintos dos deputados e senadores. Enfrentará resistências conservadoras menos óbvias, mas não menos importantes do que a eliminação de privilégios.
Mudança desse tamanho não é tarefa política trivial. Também não é simples o desafio de construir maiorias políticas capazes de produzir bons resultados uma vez desconstitucionalizadas as regras acima referidas. Por bons resultados entendo mudanças que permitam maiores e mais sustentáveis avanços na realização do objetivo de dotar o Brasil de uma democracia mais representativa, um Estado mais eficaz e responsável, uma economia capaz de crescer mais, em bases ambientalmente sustentáveis, e uma sociedade mais justa.
Belas palavras, mas como chegar lá? Ou melhor, como caminhar nessa direção? Precisaremos de novo de um socialmente amplo e pluripartidário conjunto de forças que se junte em torno de um acordo mínimo, mas substantivo, em favor de mudanças indispensáveis para que o País retome as rédeas do seu destino. De imediato não é necessária concordância em torno de um amplo programa de governo. Basta convergência no essencial: reforma da Previdência e lipoaspiração cirúrgica da Constituição.
O essencial divide-se em duas etapas: na primeira, evitar que as forças de centro reformistas fiquem sem uma opção razoável no segundo turno; na seguinte, compor uma maioria política capaz de transformar a agenda mínima num programa de governo ou, na hipótese de derrota, organizar uma oposição eficaz e programática ao presidente eleito tornando viável um polo alternativo de poder e uma referência clara para a sociedade.
Estamos diante de condições adversas: dispersão político-eleitoral das forças do centro reformista, escassez de lideranças incontestes, estigmatização da política democrática dos últimos 30 anos, impulsos renovadores positivos, mas não raro ingênuos e/ou sectários, sem falar nas tentações populistas e autoritárias.
Contudo, ao contrário da Copa, a eleição para o Brasil ainda não acabou. Há ainda muito jogo a ser jogado. Pesquisa recente da XP Investimentos mostra que 49% dos eleitores decidiram seu voto em 2014 depois de iniciada a campanha eleitoral. Os adversários do centro reformista abriram vantagem nas preliminares da partida principal. Mas inda há tempo de virar o jogo.
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Sérgio Fausto é Superintendente Executivo da Fundação FHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, é membro do Gacint-USP
Sergio Fausto: Contra a aventura autoritária
O espectro da desordem deixou-se entrever nas últimas semanas
O espectro da desordem deixou-se entrever nas últimas semanas. Com a greve dos caminhoneiros cresceu o medo de eventual colapso da ordem pública, sentimento instrumentalizado pelos que clamam por “intervenção militar já”.
Historicamente a direita preferiu a ordem à liberdade, quando julgou aquela ameaçada. Foi assim em 1964. O movimento que pôs fim ao período democrático iniciado em 1945 não foi uma revolução, como querem seus adeptos. Tampouco uma quartelada. Contou com apoio civil relativamente amplo e se assentou num projeto de poder voltado para a modernização conservadora do País.
Hoje parte da direita aposta na candidatura de Jair Bolsonaro. Corre o sério risco, se vitoriosa, de perder a liberdade sem obter a ordem. O ex-capitão é antes parte do problema que da solução para um país que clama pelo restabelecimento da autoridade pública. Representa o autoritarismo em estado primitivo, ao estilo “tiro, porrada e bomba”. É uma criatura pré-política, incapaz de compreender os requisitos mínimos para a estabilidade da ordem pública numa sociedade complexa e desigual como a brasileira.
O Brasil e o mundo de hoje não são os mesmos do início da década de 1960. O poder difundiu-se, descentralizou-se, democratizou-se. Reconcentrá-lo em moldes autoritários, supondo que assim se restabeleceria uma ordem política e moral estável e conservadora, é pesadelo de uma noite de verão. Subir nessa canoa é embarcar numa aventura.
Bolsonaro não é Humberto de Alencar Castelo Branco. A diferença de patente na hierarquia militar não é a única que marca a imensa distância entre o ex-capitão e o falecido marechal.
Castelo Branco era membro da elite miliar que emergiu no pós-guerra. Tinha trânsito e prestígio no establishment americano, na alta oficialidade das Forças Armadas brasileiras e conexões com a elite empresarial e burocrática do País. Bolsonaro é um deputado apagado, com produção legislativa pífia, mais conhecido por sua indisciplina quando militar da ativa e pelo raciocínio raso quando solicitado a falar sobre políticas e propostas de governo. No exterior é visto como uma figura folclórica, na melhor das hipóteses.
Preocupado em inibir o surgimento de caudilhos militares, fonte de instabilidade política na América hispânica, Castelo Branco acabou com a posição de marechal e marechal do ar na hierarquia militar e fixou tempo máximo de 12 anos para permanência no generalato. Bolsonaro quer restabelecer a ordem social entregando armas, até fuzis, à população... Deve ter-se inspirado em Chávez, caudilho militar venezuelano que armou os que, a seu ver, eram os homens e mulheres de bem da Venezuela.
Castelo Branco entronizou uma equipe econômica de alta qualificação técnica: Otávio de Bulhões, Roberto Campos, Mario Henrique Simonsen. Liberais todos, os dois primeiros com larga trajetória prévia no alto escalão do Estado. Bolsonaro arrumou um economista ultraliberal, craque em formulações abstratas, sem nenhuma experiência de governo. A dupla Campos-Bulhões era parte orgânica do grupo castelista. Paulo Guedes é um enfeite útil à candidatura de Bolsonaro.
O Programa de Ação Econômica do Governo Castelo Branco (Paeg) resultou de longo amadurecimento dentro do núcleo econômico do grupo castelista. Reformas econômicas foram feitas sob o tacão da ditadura.
Bolsonaro já declarou “não entender porra nenhuma de economia”. Quando se pronunciava sobre a matéria, defendeu fuzilar o então presidente Fernando Henrique por privatizar a Vale do Rio Doce. Guedes vê Bolsonaro como instrumento a proporcionar-lhe a realização do sonho juvenil de ser o czar da economia para “privatizar tudo”. Essa bizarra aliança, se bem-sucedida, estouraria como bolha de sabão ao primeiro choque com a realidade política brasileira. Ninguém fará reformas liberais no Brasil “na marra”, felizmente. Ditadura nunca mais.
O restabelecimento da autoridade política no Brasil é fundamental. O Estado democrático depende em última instância de a sociedade aceitar como legítimos os termos de troca entre o que entrega em tributos e o que recebe em serviços, bem como entre o que entrega em obediência às leis e o que recebe em segurança de que seus direitos serão garantidos pelo poder estatal.
É crescente a percepção de que há uma desproporção nesses termos de troca, agravada pela má distribuição social da carga tributária e do gasto público e pelo desequilíbrio na imposição de lei ao cidadão comum e aos “poderosos”. A Lava Jato vem corrigindo esse desequilíbrio, mas com um efeito colateral negativo: a disseminação de visões radicalmente depreciativas sobre o Brasil e sobre a política.
Mexer nos termos da equação de que depende a legitimidade da autoridade pública democrática exigirá muito engenho e arte, pois as condições não são favoráveis. A sociedade odeia a política quando mais dela precisa. Embala quem quer rasgar de vez o desgastado pacto social da redemocratização, que presidiu os últimos 30 anos da vida brasileira, quando mais necessário é quem saiba renová-lo reconhecendo os novos padrões de legitimidade exigidos pelas transformações econômicas, políticas e sociais desse período, no Brasil e no mundo.
É tarefa para várias mãos e várias vozes, mas que requer liderança política. Democrática, nos métodos, nas palavras, nas atitudes, na condução de um processo de reforma cujo âmago diz respeito à equidade do pacto fiscal-tributário, à aplicação igualitária da lei, à eficiência na prestação dos serviços públicos, à honestidade pessoal e à transparência republicana na gestão da coisa pública.
Não é hora de lamentar a falta de “grandes políticos” ou de aderir ao exercício estéril de “falar mal do Brasil”. Não temos outro país para chamar de nosso. Chegou o momento de construir um pacto pela ordem democrática para conter o risco da aventura autoritária.
*Sérgio Fausto é superintendente executivo da Fundação FHC, colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University, é membro do Gacint-USP
Sérgio Fausto: Presos ao passado, ficaremos sem futuro
A expansão do universo digital não muda apenas as formas de comunicação, o que já não seria pouco. Muda também as formas de produzir e trabalhar. A automação vem de longe, mas entra agora em novo território: máquinas inteligentes conectadas em redes que desconhecem fronteiras físicas. Fábricas altamente produtivas onde não se vê viva alma, veículos sem motoristas e uma crescente gama de serviços desempenhados por softwares que “pensam” e falam não são mais figuras de um mundo futuro. Estão aí, em número crescente. Atividades que se mantiveram ao abrigo da automação tornam-se vulneráveis à substituição do trabalho humano, muitas delas “profissões liberais”, frequentes entre classes médias assentadas.
Os pesquisadores ainda tateiam o terreno. As estimativas a respeito da proporção de ocupações vulneráveis à automação variam. Carl Benedickt Frey e Michael Osborne, em The Future of Employment: How susceptible jobs are to computarisation, publicado em 2013, dizem que 47% dos empregos nos Estados Unidos têm alto risco de ser suprimidos pela automação. Recente trabalho publicado pela OCDE (The Future of Work) afirma que 14% dos empregos nos países-membro são altamente suscetíveis à substituição por máquinas e 32%, à significativa alteração. Também há divergência sobre o quanto a nova onda de “destruição criativa” produzirá de destruição ou criação líquida de oportunidades de trabalho. Tampouco há concordância sobre os ganhos de produtividade resultantes da introdução das novas tecnologias. Sinais claros de que estamos em território que apenas começa a ser conhecido. Num ponto, pelo menos, há convergência: as novas tecnologias favorecem os trabalhadores com mais alto nível de instrução.
Na mais recente edição do World Economic Outlook, abril de 2018, o FMI calcula que a vulnerabilidade à automação de um trabalhador com diploma universitário nos países avançados é duas vezes menor do que a dos que não o têm. A mesma publicação mostra que a automação já é um fator importante da queda da taxa de participação dos homens na força de trabalho nos países desenvolvidos (alguma surpresa que Trump tenha recebido significativamente mais votos dos homens que das mulheres?).
Em suma, a nova onda de progresso técnico empurra as sociedades na direção de maior desigualdade e exclusão. Se isso é um problema para os países desenvolvidos, o que dizer para o Brasil, um dos países mais desiguais do planeta, onde 43% da população economicamente ativa ainda não têm o ensino médio completo e 27% sequer o ensino fundamental completo? Isso a despeito de a escolarização média da população ter aumentado de 3,8 anos para 7,4 anos nos últimos trinta anos.
A redução da desigualdade e da exclusão social nos países desenvolvidos ao longo do século XX foi produto da ação política e sindical, de duas guerras mundiais devastadoras e do fantasma da “revolução comunista”, corporificado, depois de 1917, na União Soviética e sua influência sobre partidos comunistas no Ocidente. Ao contrário do que Marx havia previsto ao final do século XIX, o desenvolvimento do capitalismo não resultou na pauperização da grande massa dos trabalhadores e na concentração da propriedade e da renda em poucas mãos burguesas. Ao invés da revolução, os partidos socialdemocratas europeus abraçaram programas de reformas do capitalismo legitimados pelo voto. A solidariedade social forjada na guerra e o medo da convulsão social espontânea ou dirigida pelos comunistas moveu os “partidos burgueses” em direção ao grande acordo social representado pelo Welfare State.
O que se vislumbra do horizonte do século XXI é bem distinto. A China não exporta revolução (nem está interessada em construir um capitalismo democrático). Quer vencer a competição capitalista global e por isso está engajada na corrida, contra os Estados Unidos, pelo domínio das tecnologias de ponta. Dessa corrida dificilmente resultará uma guerra entre as grandes potências, felizmente. E, se resultar, será travada por supermáquinas comandadas a distância sem o envolvimento de grandes contingentes populacionais. Pode haver uma hecatombe nuclear, mas aí é outra história. Não estão no horizonte nem a solidariedade social provocada pela tragédia da guerra nem o receio da revolução a favorecer por vias tortas pactos sociais produtores de maior inclusão social e melhor distribuição da renda.
Onde ancorar a esperança de um mundo melhor, que o progresso técnico ao mesmo tempo viabiliza e nega à parte importante das sociedades? Na democracia. Com todos os seus defeitos, cada vez mais aparentes, e portanto corrigíveis, é o único regime que obriga quem tem poder a levar em consideração os perdedores e lhes dá meios não violentos para se fazer ouvir.
O maior mérito da socialdemocracia europeia no século XX foi compreender que a democracia não era um meio para tomar o Estado de assalto e sim um projeto político civilizatório que permite reduzir assimetrias de poder e ampliar os níveis de bem-estar geral viabilizados pelo desenvolvimento das forças produtivas. A socialdemocracia rompeu com o marxismo ao optar pelo reforma do capitalismo, mas dele preservou a convicção de que o desenvolvimento tecnológico não apenas não pode como não deve ser bloqueado.
O grande desafio contemporâneo é colocar as novas tecnologias a serviço de uma agenda de aumento geral dos níveis de bem-estar social e da transição para uma economia movida pelo uso sustentável dos recursos naturais. A universalização de programas de renda mínima para proteger os trabalhadores dos efeitos do desemprego estrutural, sem estigmatizá-los, é uma resposta provavelmente necessária, mas insuficiente. Trabalho não é apenas fonte de renda, é fonte de inserção social, autoestima e desenvolvimento pessoal.
O mais importante direito social frente às transformações tecnológicas em curso é o direito à aquisição das habilidades necessárias ao desempenho de funções socialmente valorizadas. Educação e trabalho deixaram de ser duas fases sequenciais da vida. O trabalhador precisa estar preparado para navegar o mar revolto das mudanças tecnológicas. Isso requer aprendizado constante. Mais do que habilidades técnicas específicas, são necessárias habilidades gerais tanto cognitivas quanto sócio-emocionais, cujo desenvolvimento, ao longo da vida, será tanto maior quanto mais cedo forem trabalhadas.
Uma sociedade do conhecimento para todos, desde a primeira infância, que valorize as habilidades técnicas de programação, operação e manutenção de sistemas inteligentes e análise dos dados gerados por eles, mas também as habilidades voltadas aos cuidados do corpo e da mente, ao entretenimento, à fruição artística, à compreensão dos fenômenos sociais e da natureza, e da interação entre ambos.
Bela utopia, da qual o Brasil precisa para se mover e construir seu futuro. Onde buscar inspiração, ou melhor, ideias, experiências, tentativas? A esquerda estatista e retrógrada e os liberais crentes do livre mercado e do Estado mínimo (não são todos) decretaram a morte da socialdemocracia. De fato, ela não goza de boa saúde eleitoral na Europa. Não significa que o pensamento socialdemocrata nos países avançados tenha definhado e que a reinvenção do Welfare State seja uma batalha perdida.
Bons sistemas públicos de saúde e educação, creches e escolas de ensino infantil de qualidade, adequação dos currículos do ensino básico com vistas a facilitar a transição escola-trabalho, reformas dos sistemas previdenciários para ajustá-los a mudanças demográficas, flexibilização das legislações trabalhistas combinadas com políticas ativas de emprego (não apenas proteções temporárias contra o desemprego, mas treinamento e capacitação permanente dos trabalhadores, com participação de empresas, governos, sociedade civil e sindicatos), serviços de apoio ao empreendedorismo, incentivo à economia de baixo carbono, etc.
O fato de que essa agenda combine elementos socialdemocratas, liberais e ambientalistas não é mera coincidência, e mostra que o debate público no Brasil está preso ao passado. Corremos o risco de ficar sem futuro.
* Sérgio Fausto é superintendente Executivo da Fundação FHC. Colaborador do Latin American Program do Baker Institute of Public Policy da Rice University. Membro do GACINT-USP.