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Sérgio Augusto: Como Pinochet influencia a extrema-direita contemporânea
Gangues pró-Trump usam símbolos do ex-ditador chileno e se inspiram em grupos paramilitares como o Patria y Liberdad, bancado pela CIA e surgido no Chile logo após a eleição de Salvador Allende
A cobra fumou. Tem muito tempo: 76 anos. Era uma jararaca e simbolizava a FEB (Força Expedicionária Brasileira), que, surpreendendo a descrença geral, fumou—ou seja, finalmente foi para a Itália lutar contra Mussolini e Hitler. Uma cobra do bem.
As lendas amazônicas e a poesia de Raul Bopp nos legaram a Cobra Norato, a serpente emplumada de maias e astecas inspiraram D. H. Lawrence, mas não esperem boa coisa do ofídio batizado pelos gringos de “Hoppean snake” (ou a cobra de Hoppe). Hoppe, não Hopper (Edward), que nunca foi de pintar animais invertebrados.
Cascavel enroscada, com um quepe militar na cabeça, a cobra hoppeana virou uma espécie de suástica dos baderneiros de extrema direita americanos, onipresentes nos ralis trumpistas e ativíssimos naquela invasão do Congresso americano, incitando o desacato e o terror.
Os serviços de segurança, mesmo sob Trump, já estavam em seu rastro; com Biden na presidência, a vigilância deverá redobrar, tantas já foram as ameaças dos neofascistas de sabotar instalações elétricas, o sistema de telecomunicações, os serviços de saúde e outras variedades de terrorismo detectadas nas últimas semanas.
Os criadores dessa víbora inspiraram-se na que adorna a “bandeira de Gadsden”, pavilhão projetado há 246 anos pelo político e soldado Christopher Gadsden, por inspiração de Benjamin Franklin, para simbolizar as colônias americanas que se rebelaram contra os colonizadores ingleses e alimentar-lhes a patriótica beligerância. A inscrição que a acompanha (“Não pise em mim”) era uma advertência: pacífica, ela só atacava se fosse atacada. Outra cobra do bem, no caso, a serviço da Revolução Americana.
Sua filha bastarda, a peçonha de Hoppe, nem o Butantã talvez a aceitasse em seu ofidiário.
O quepe que ela ostenta na cabeça é o do general Augusto Pinochet, sanguinário e corrupto ditador do Chile de 1973 a 1990, que, por não ter tido sucessores, encarnou solito a tirania que implantou sobre o cadáver de Allende. O helicóptero que também ilustra os estandartes e as camisetas da malta paramilitar machista vidrada em Trump (Boogaloo Boys, Proud Boys, Three Percenters e Oath Keepers) é uma réplica dos que transportavam presos políticos para despejá-los, vivos, nas águas do oceano, um dos highlights do programa de extermínio do regime pinochetista.
A aparentemente bizarra fixação de organizações políticas neofascistas americanas por Pinochet e a fetichização de sua parafernália repressivo-militar intrigaram o jornalista Christopher Chatham, que sobre elas produziu uma informativa reportagem para o Intercept, na semana passada. Chatham descobriu parentescos entre as gangues trumpistas e o grupo paramilitar Patria y Liberdad, bancado pela CIA e surgido no Chile logo após a eleição de Allende.
A chave do fetiche está no nome da cobra. Hoppe é uma homenagem ao alemão de origem Hans-Hermann Hoppe, que dá aulas de economia na Universidade de Nevada, em Las Vegas, e amealhou seguidores como doutrinador da “economia libertária” de matriz austríaca, estufa do anarcocapitalismo, cujo objetivo supremo é a eliminação do Estado e a proteção à soberania do indivíduo e do “livre mercado”.
Bagrinho e idólatra de Ludwig von Mises, que formou com Friedrich von Hayek a dupla dinâmica do libertarismo econômico, Hoppe tem livros traduzidos no Brasil pelo think tank Mises Brasil. O mais conhecido, “Democracia, o Deus que Falhou”, copiou o título (“The God That Failed”) de uma histórica coletânea de ensaios sobre a desilusão com o comunismo de seis notáveis intelectuais (André Gide, Arthur Koestler, Louis Fischer, Ignazio Silone, Stephen Spender e Richard Wright) publicada em 1949 e entre nós traduzida nove anos depois.
Para Hoppe, comunismo e democracia são farinhas do mesmo saco, que ele rejeita com o vigor de um fanático apologista do mais puro darwinismo social. O fim justifica os meios, o sufrágio universal é uma opressiva intervenção estatista, é preciso desmantelar os programas de bem-estar social, privatizando em massa as empresas públicas e desregulando as corporações—a tais ideias peçonhentas outras foram agregadas, como, por exemplo, a remoção física de indesejáveis (comunistas, homossexuais etc) para manter a ordem numa sociedade libertária autêntica.
OK, mas por que o Chile, por que Pinochet?
Chatham lembra que Hayek foi, junto com Milton Friedman, um dos embaixadores do neoliberalismo no Chile de Pinochet, ao qual Paulo Guedes, o Posto Ipiranga, também prestou serviço. Hayek ficou amigo do soba andino, visitou Santiago, mas não teve nada a ver, pessoalmente, com o enriquecimento ilícito do ditador, embora as fraudes cometidas pelo general possam ter sido amplamente facilitadas pelo afrouxamento regulatório aviado por Hayek e conselheiros ideologicamente identificados com os anarcocapitalistas de Viena e Chicago.
A ditadura de Pinochet deixou um saldo de 3000 mortos e mais de mil desaparecidos. Pinochet conseguiu driblar tanto a Justiça, que acabou morrendo antes de ser exemplarmente julgado e punido por crimes bem maiores que sua roubalheira, como foram vários de seus cúmplices no reinado de terror instaurado no Chile em setembro de 1973. Lá, os Ustras que aqui são idolatrados por Bolsonaro, Mourão e, implicitamente, pelo autoritário general Eduardo Villas Boas, tiveram de prestar contas com a Justiça. No Chile, a cobra do bem já fumou.
Sérgio Augusto: Tempos ásperos
Vargas Llosa candidata-se a ser, com todas as honras, o Balzac das ditaduras cucarachas
Saudei aqui, em 2006, a eleição de Evo Morales, a grande esperança chola de um país que, até então, sofrera cerca de 200 golpes de Estado em 175 anos de história. Cholos são os índios aculturados da Bolívia. Morales não os decepcionou: a desigualdade social diminuiu bastante, o PIB subiu de forma surpreendente. Muitos criollos (brancos descendentes de colonos europeus), donos seculares daquelas terras e riquezas, desdobraram-se na manutenção de seus privilégios e do recorde golpista boliviano, fazendo Morales pagar bem caro pela teimosia de um mandato a mais – o quarto.
Se antigamente os gringos cobiçavam a prata e, depois, o gás dos bolivianos, agora em jogo também figuram as maiores reservas de lítio do mundo. Combustível básico das baterias de celulares e dos carros elétricos, o lítio virou o pré-sal da Bolívia.
Poucos meses atrás, quando começou a balançar o coreto da direita (Áñez, Camacho e Mesa) que tomou conta do poder após derrubar Morales, o fundador da fábrica de carros elétricos Tesla Motors, Elon Musk, temeroso de perder a mamata do lítio, ameaçou, ele próprio, uma nova virada de (sem trocadilho) mesa. “Vamos dar um golpe em quem quisermos!”, fanfarronou o empresário. Ridículo. Musk foi um dos mais gozados pela lídima vitória eleitoral do candidato de Morales, Luis Arce, no último fim de semana.
Minha recolhida celebração da segunda “vitória chola” coincidiu com a leitura do novo romance de Mario Vargas Llosa, Tempos Ásperos, traduzido pela Alfaguara. A rigor, só mudei de país: da Bolívia para a Guatemala, ambos com majoritária população indígena e passado, presente e vilões similares. Vilões adventícios e autóctones, de ternos e fardados, com e sem armas de fogo. Nas repúblicas bananeiras da América Latina, férteis em bananas e outras riquezas vegetais e minerais, as palavras golpe e militar são como irmãos siameses, inseparáveis.
(Sempre que algo palpitante rende manchetes à Guatemala, eu me lembro de uma hilariante chamada do telejornal que o comediante Chevy Chase apresentava no humorístico Saturday Night Live, nos anos 1970: “Um terremoto de grande intensidade atingiu ontem a Guatemala, matando 350 ditadores militares”).
O romance de Vargas Llosa conta a história de um deles, o tenente-coronel Carlos Castillo Armas que, em 1954, à frente de um exército de mercenários financiado pela CIA, tirou da presidência da Guatemala o coronel Jacobo Árbenz Guzmán, eleito democraticamente em 1950. Começava ali a longa cruzada golpista dos EUA ao sul do Rio Grande, alimentada pela Guerra Fria e arquitetada pelos sinistros irmãos John Foster e Allan Dulles, respectivamente secretário de Estado e diretor da CIA do governo Eisenhower, dois falcões obcecados com a União Soviética e o “avanço do comunismo” mundo afora. Pelos estragos que causaram, esses dois mereciam um círculo especial no Inferno de Dante.
Tempos Ásperos é, de certo modo, uma complementação de A Festa do Bode, que o escritor peruano escreveu sobre o ditador dominicano Rafael Trujillo, 20 anos atrás. Vargas Llosa candidata-se a ser, com todas as honras, o Balzac das ditaduras cucarachas.
Déspotas fardados é o que não falta na história do continente; todos “cavernícolas fanáticos” do anticomunismo, quase todos irremediavelmente corruptos e ocasionalmente assassinados. Trujillo, por sinal, aparece no livro, assim como outro assassinado, Anastasio Somoza, que permitiu o treinamento dos mercenários da Castillo Armas na Nicarágua, pois a invasão foi uma operação consorciada pelos tiranetes da região subservientes aos interesses econômicos, ideológicos e geopolíticos dos EUA.
Árbenz Guzmán era um militar honesto, reservado, caladão (daí o apelido de “Mudo”), apenas interessado em aclimatar ao país uma democracia moderna à americana, com imprensa e eleições livres e concretizar uma eficiente reforma agrária, também os anseios de seu antecessor, o educador Juan José Arévalo, de quem Guzmán foi ministro da Defesa.
O coronel legalista enfrentou mais de trinta tentativas de golpe contra Arévalo, demonizado, sem pudor nem fundamento, como títere do comunismo soviético. Essa mesma aleivosia seria lançada contra Guzmán pela máquina de mentiras e meias-verdades manipulada da CIA e disseminadas na imprensa amiga pelo embaixador americano na Guatemala, John Peufiroy, que não ganhara o apelido de “açougueiro da Grécia” por eventuais obras beneficentes em Atenas, seu posto anterior.
Em janeiro de 1954, Peufiroy insinuou à revista Time que o comunismo avançava célere na Guatemala. No mês seguinte, falsas armas soviéticas “destinadas à Guatemala” apareceram, misteriosamente, na Nicarágua. Tais patranhas eram as fake news da época, inventadas e orquestradas por um ancestral de Steve Bannon chamado Edward Bernays.
Pioneiro da propaganda e do serviço de relações públicas, Bernays era o braço direito do magnata das bananas Samuel Zemurray, dono da United Fruit, que, embora tivesse conseguido do governo guatemalteco um bom preço pela compra de parte do seu gigantesco latifúndio, não abriu mão do golpe.
Em 18 de julho, Guzmán foi derrubado e exilou-se no México, onde viveu até morrer, em 1971. O traiçoeiro coronel Castillo Armas, “figura apagada que passou pela Escola Militar sem glória nem brilho”, enterrou o país, mas não chegou ao fim de sua ditadura, interrompida em 1957 quando um guarda da presidência o despachou para os quintos do inferno.
*É jornalista e escritor, autor de ‘Esse mundo é um pandeiro’