Sérgio Augusto

Sérgio Augusto: Vacinas, valores e velórios

Não teríamos mais do que 8 mil óbitos até o fim da pandemia, mas atingimos a marca de 250 mil

Já estava me preparando para ser vacinado quando as vacinas acabaram. Foi aí que descobrimos que, na estupefaciente gestão do general Placebo no Ministério da Saúde, a vacinação é regida por dois calendários, como o tempo já foi em priscas eras. Pelo calendário juliano, quando há vacinas disponíveis, e pelo calendário gregoriano, quando elas acabam e ainda não têm data para chegar. Daí a máxima romana “sine vaccinus, sine die”, cunhada antes da invenção da primeira vacina. 

E assim as vacinações no Rio foram jogadas para as calendas. Ainda bem que para as calendas romanas, não para as gregas. Será que nas calendas de março saberemos quando, pelo calendário gregoriano, levaremos nossa redentora picada? 

Pior do que essa espera, possivelmente passageira, e as justificadas incertezas relativas à segunda dose foi tomar conhecimento das descaradas mentiras sobre a performance de Bolsonaro durante a pandemia que a ministra Damares e o chanceler Ernesto Araújo tentaram vender na ONU. Ficaram só na tentativa porque ninguém lá fora acredita mais em nada que diga, faça ou prometa fazer de bom o ogro que nos governa, exaspera, envergonha, e concentrou no extermínio seu mais eficaz programa de corte de gastos na Previdência. 

Não menos desalentadora foi a constatação de que a Bolsa de Valores se sensibiliza muito mais com uma troca no comando da Petrobrás pelo presidente da República que seus investidores ajudaram a eleger do que com as ininterruptas e recordistas altas na contagem de mortos e infectados pela covid, no País. Não teríamos mais do que 8 mil óbitos até o fim da pandemia, basofiou o capitão negacionista em abril do ano passado. Atingimos a marca de 250 mil mortos esta semana; 50 mil só nos últimos 48 dias – e vacinamos apenas 3% da população.

Se alguma coisa o presidente sabe fazer, e bem, é mentir e tirar o dele da reta. “Não sou coveiro”; “Não sou profeta”; “Não compro seringas”. Pilatos ao menos lavava as mãos. O capitão nem sequer usa máscara.

A fulminante queima de ações da BR também veio corroborar a teoria de que a matança em curso, se não faz parte de um maquiavélico projeto político e econômico do bolsonarismo, como a aniquilação da cultura e da educação, desmoralizou em definitivo o chavão de que “as nossas instituições estão funcionando”. Se estivessem, ou pelo menos o STF estivesse, a pleno vapor, o nosso Napoleão de hospício já estaria na ilha de Elba da nossa imaginação. 

Verdade que o ministro Alexandre de Moraes se tem comportado com o destemor que seu cargo exige, mas Dias Toffoli, Luiz Fux e Gilmar Mendes, conforme salientou na terça-feira o comentarista político Bernardo de Mello e Franco, facilitaram o serviço para a chicana que culminou com a anulação das quebras de sigilo bancário e fiscal de Flávio Bolsonaro, no inquérito das rachadinhas. Toffoli e Fux travaram a investigação por cinco meses, e Mendes abriu a gaiola para Fabrício Queiroz, o factótum da familícia. 

Comprado o Legislativo, cooptadas e neutralizadas as Forças Armadas mediante cargos, subsídios, promessas, leite condensado e claque em formaturas de cadetes, pergunto: quais instituições ainda funcionam normalmente nestas bandas? 

Por encarnar e afiançar a “ultima ratio” de qualquer país que as possua, as Forças Armadas (sim, mais de dez nações sobrevivem sem o seu concurso) deveriam preservar-se de aventuras como foram os golpes de que participaram desde a Proclamação da República. O que pretendia impedir a posse de Juscelino Kubitschek, em 1955, foi só uma (ou a) exceção à regra justamente porque um oficial do Exército, o marechal Henrique Teixeira Lott, e sua excalibur da legalidade melaram a tempo a conjura udenista. 

Quando vejo, leio ou ouço alguém lamentar a escassez ou mesmo ausência, hoje, de políticos e outros figurões civis de alto nível, sempre me vem à lembrança a figura do marechal. Com ele, nenhum golpista tirava farofa. Que reação lhe provocaria um confesso autogolpista como Bolsonaro? Que atitude teria face à fascistoide ameaça do general Villas-Boas ao STF, em abril de 2018? 

O ator, humorista e cronista Gregório Duvivier desenvolveu uma tese que, em outras cabeças, inclusive na minha, já andou caraminholando. Ao contrário do que se pensa, o presidente não protege e prestigia além da conta os seus ex-colegas de farda, notadamente os da arma em que fez carreira, o Exército, mas, na verdade, os rebaixa e desmoraliza. Ao lhes dar emprego e funções que exigem especial capacitação, expõe-lhes a incompetência e engorda as desconfianças de que suas nomeações são menos frutos de uma ineludível promiscuidade corporativista do que das limitações sociais impostas pela vida em caserna. Azar nosso se o capitão só se dá com milicos. 

Para Duvivier, Bolsonaro está se vingando do coronel que o humilhou, reprovando-o por sua “falta de lógica, racionalidade e equilíbrio”, de outro oficial que condenou sua “excessiva ambição em realizar-se financeiramente” e, acrescento eu, do general Ernesto Geisel, que o considerava “um mau militar”. 

Não sei se concordo com a hipótese de que nem décadas de propaganda antimilitar da esquerda causaram mais estrago na imagem do Exército do que a sanha empregatícia do presidente, mas é possível que sim. Já a suspeita de que só agora, com meio século de atraso, o capitão cumpre uma missão que lhe teria sido delegada pelo capitão Carlos Lamarca, não é, como toda blague, para ser levada a sério. É para rir.

Ria, enquanto o golpe não vem. 

*É jornalista e escritor, autor de ‘Esse mundo é um pandeiro’


Sérgio Augusto: Dedo podre

Só deixei de torcer pelo ministro Porcina (aquele que foi sem nunca ter sido) ao ver entrevista

Circunscrito a um reduzido círculo de conhecimentos (infestado de ineptos, inaptos e bandidos) e à mercê das preferências de dois grupos de pressão superficialmente conflitantes – os militares e os olavistas – Bolsonaro continua fazendo as escolhas mais calamitosas inimagináveis. Além do dedo podre, repito, não tem quadros.

A cada ministro ou secretário demitido, ninguém mais se pergunta “quem será o sucessor?”, mas “que outro estupor ele irá convidar?”. Um estrupício caitituado pela militância ou sugerido pela milicância, favorecido pela ala ideológica ou pela ala verde-oliva? Essa distinção em alas, aliás, é uma lereia. Por que só alas e não facções e grupelhos? Ala, só a das baianas; mais respeito com elas e o carnaval.

Deveria ter soado alvissareira a escolha do professor Carlos Alberto Decotelli. Não fora indicado pelos apparatchiks da ultradireita da Virginia, parecia homem sério, preparado e equilibrado, um antípoda do Weintraub. A negritude, até então apenas representada no governo por Hélio Negão, um Lothar sem Mandrake, noves fora o défroqué noir Sérgio Camargo, também contava a seu favor. Afinal seria o primeiro afrodescendente alçado a ministro da Educação desde a criação do ministério na República Nova. Acabou sendo, coitado, o único ministro da Educação demitido antes de tomar posse.

Mesmo convicto de que qualquer pessoa se desmoraliza ao aceitar integrar o atual governo, torci para Decotelli conseguir provar os doutorados e distinções que dizia ter.

É que sua figura me trouxe à lembrança um professor de Latim do Colégio Pedro II, José Pompílio da Hora, sujeito preparadíssimo, também mestre em grego, filosofia e história, formado em direito pela Universidade de Nápoles, daí o leve sotaque italianado que nunca perdeu e lhe conferia um ar meio solene, quase pedante.

Pompílio da Hora era negro e por duas vezes no início da década de 1950 teve sua entrada no Itamaraty frustrada pelo que então chamavam de “preconceito de cor”. Não guardou rancor, nem se entregou à autocomiseração. Esse episódio de racismo marcou minha adolescência, de maneira indelével, como se pode notar.

Prof. Pompílio protegia descaradamente as meninas da turma, descascava os rapazes, e me fez decorar e traduzir, de castigo, os primeiros versos da Eneida (“Arma virumque cano…”, canto as armas e o varão), enquanto lubrificava a garganta com pastilhas Valda, seu único vício público. Pensei nele, no racismo do Itamaraty e só fui deixar de torcer pelo ministro Porcina (aquele que foi sem nunca ter sido) ao assistir àquela fatídica entrevista que ele deu à Globo News no início da semana.

Achei-o antipático, presunçoso, pernóstico e enrolador. Cheguei a desconfiar que a mídia o estivesse tratando com mais rigor que o dispensado aos cascateiros brancos do governo (Ricardo “Yale” Salles, Damares, o próprio Weintraub), com seus turbinados currículos acadêmicos, mas, em vez de ficar ruminando sobre um eventual viés racista da imprensa (e da Fundação Getúlio Vargas) em relação a Decotelli, preferi assuntar a presença dos negros na carreira diplomática e o comportamento deplorável de antigos ministros da Educação.

Nosso primeiro embaixador negro, Raimundo Sousa Dantas, foi uma ousada invenção de Jânio Quadros. Sua nomeação para representar o Brasil em Gana (África), em 1961, gerou resistência entre diplomatas e intelectuais brasileiros. Se hoje ainda só temos 5% de negros na carrière, assim mesmo graças a uma política de cotas e bolsas de estudos relativamente recente, imagine 60 anos atrás. Hoje Pompílio da Hora seria até embaixador, como Jackson Luiz Lima Oliveira, que já nos representou em Zâmbia e na Nigéria, e conhece a fundo a influência do racismo estrutural no Itamaraty.

Como teria sido Decotelli à frente da Educação é curiosidade que jamais será satisfeita. Pior do que seus dois antecessores (Ricardo Vélez Rodriguez e Abraham Weintraub) não seria, mas não consigo imaginá-lo ao nível do que Ney Braga e Eduardo Portella, sobretudo o segundo, conseguiram ser no governo Geisel.

É possível entender as razões do estado deplorável do ensino, e não só do ensino, no Brasil pela trajetória dos que assumiram o ministério da Educação desde sua criação em 1930. Seu primeiro ocupante, Francisco Campos, foi quem redigiu, em 1937, a Constituição do Estado Novo e, em 1964, os dois primeiros atos institucionais da ditadura militar.

Em 20 anos de ditadura, tivemos 10 ministros da Educação e dois interinos, nenhum naturalizado (como o colombiano Vélez), nem palhaço (como Weintraub), uns mais, outros menos afinados com os “ideais revolucionários” do regime. Os quatro primeiros (Luiz Antônio da Gama e Silva, Flávio Suplicy de Lacerda, Moniz de Aragão e Tarso Dutra) foram de lascar.

Gama e Silva ganhou o cargo pela limpeza ideológica que fizera, quando reitor da USP, banindo de seu corpo docente os professores Florestan Fernandes, Mario Schenberg, Octavio Ianni, Paul Singer, Fernando Henrique Cardoso e outros “esquerdistas”. Quatro anos depois poria sua sapiência jurídica a serviço da redação do AI-5.

Suplicy de Lacerda notabilizou-se por um acordo de cooperação do MEC com a Agência de Desenvolvimento dos EUA (Usaid), que visava transformar o ensino brasileiro num projeto tecnocrático e foi levado adiante por Tarso Dutra, que pegou pela proa as revoltas estudantis de 1967-69, motor e flecha da Passeata dos 100 Mil e outras decisivas manifestações de repúdio à ditadura. Por ser jurista, como Gama e Silva, encarregaram-no de revisar o texto do AI-5.

Não podia dar muito certo um ministério historicamente mais preocupado com a repressão do que com a educação.


Sérgio Augusto: Chevette, alazão e Learjet

A última vez em que fui preso, cavalguei um cavalo e inaugurei uma boate eu estava com Miguel Paiva. O mesmo Miguel Paiva que vocês conhecem como artista gráfico, cartunista, roteirista, e criador de dois personagens mais famosos do que ele: a Radical Chic e o Gatão de Meia Idade, ambos seus alter egos, ela mais do que ele, mas isso pode ser preconceito meu.

Temos aí 46 anos de amizade e mais uns trocados de convivência. Fomos até vizinhos, nas cercanias da Fonte da Saudade, onde até hoje mora Ziraldo, que cheguei a pensar que fosse o verdadeiro pai do Miguel, tão ligados entre si os conheci.

Temos certeza de que nos conhecemos no Pasquim, quando a maior parte da redação do irreverente semanário tirou dois meses de férias compulsórias na Vila Militar, sem qualquer acusação formal. Para que o jornal continuasse existindo e circulando, Miguel ajudou a montar, com Marta Alencar, um mutirão de jornalistas do Rio e São Paulo, que a um dos dois confiavam suas solidárias colaborações, pagas, que jeito?, a leite de pato.

E foi assim que, com Miguel suando a camisa no meio de campo, o Pasquim não falhou um só número durante o confinamento de seu núcleo duro pela ditadura militar.

Incorporado em definitivo à equipe, depois da soltura do pessoal, passei a dividir com Miguel um espaço na garagem do número 32 da Rua Clarisse Índio do Brasil, na fronteira do Flamengo com Botafogo, a segunda sede do jornal. Era o melhor lugar da casa, pois suas dependências também funcionavam como estúdio fotográfico, o que vale dizer que as candidatas ao consagrador título de “Garota do Pasquim” ali desfolhavam a margarida a alguns palmos de nossas mesas de trabalho quando não sobre elas languidamente reclinadas.

Mas não foi por esse voyeurismo e impudicícias igualmente veniais que fomos presos, em 29 de fevereiro de 1972, a poucas horas da celebração de mais um bissexto natalício do Jaguar, o diretor da espelunca.

Tarde linda, ensolarada, a polícia à procura de um Chevette branco utilizado no assalto a um banco no centro da cidade, e Miguel, eu e o então fotógrafo Bruno Barreto circulando pela Lagoa num Chevette igualzinho, que Paulo Francis vendera ao jornal antes de se estabelecer em Nova York.

Porque não tínhamos como provar que o veículo era nosso, pois seus documentos não estavam no porta-luvas, fomos parar na 14.ª DP, no Leblon, e de lá levados para o Dops (a polícia política), em cujos arquivos apenas o precoce Bruno, a dias do seu 17.º aniversário, não possuía um prontuário.

Estávamos a caminho de uma entrevista com Ricardo Amaral, para um número especial do Pasquim sobre Ipanema. Miguel faria a entrevista e Bruno, os cliques. Na época cuidando da edição geral, nem precisava ter ido, mas, para sacudir a leseira vespertina, aderi à caravana. Tinha meus documentos em ordem, ao contrário do Chevette e do motorista. Miguel, o motorista, até os tinha, porém de acréscimo – eis o busílis – portava uma carteira falsa de estudante, com outro nome. Para quê? Para pagar meio ingresso em cinemas e teatros, pilantragem consuetudinária sem distinção de raça, cor, religião, sexo e classe social.

Fomos polidamente tratados no Dops. Desconhecia até então possuir uma ficha naquela malévola repartição. Com três ou quatro denúncias: ter organizado um abaixo-assinado pela libertação dos “Oito do Glória” (intelectuais presos quando protestavam contra a ditadura e a presença do general Castelo Branco numa conferência da OEA, no Hotel Glória, em novembro de 1965), ter participado de um debate “subversivo” no Museu da Imagem e do Som sobre o filme Terra em Transe (fora apenas o moderador), e trabalhar no não menos “subversivo” Pasquim.

“Não sabia de nada disso”, ponderei ao delegado. “Nunca me importunaram. Tenho viajado todos os anos para o exterior sem problemas.”

“Viajava”, interrompeu-me o agente da lei. De fato, dali em diante, por dois ou três anos precisei de licença da polícia para me ausentar do País nas férias.

No carnaval do mesmo ano, fomos num fusca do Rio até a fazenda do pai de Miguel, em Canguçu (277 km ao sul de Porto Alegre). Foi lá que montei meu último alazão. Num longo trecho dessa viagem fomos escoltados pelo Puma conversível do arquiteto e designer Sérgio Rodrigues, de quem me tornara grande amigo graças a Miguel, que também me apresentou, mais ou menos na mesma época, a outro arquiteto e designer ipanemense, Alberto Reis, em cuja piscina, debruçada sobre a Avenida Niemeyer, inventamos e praticamos um esporte carioca da gema: o piscibol, que nada mais era que um jogo de basquete disputado numa “quadra” de polo aquático, ou seja, numa piscina.

A inauguração da boate, bem, se tivesse um mínimo de pudor, me empenharia ao máximo em tirá-la de minha biografia. Tremendo mico. Jamais gostei de boate e aquela nem na zona sul do Rio ficava, e sim na cidade mineira de Governador Valadares. Era uma homenagem a Ziraldo, tanto que a batizaram de Toca do Jeremias, de que só me lembro das luzes estroboscópicas e da barulheira infernal.

Mas se nem o homenageado foi à inauguração, por que, com mil jeremias, Miguel, eu e nosso fiel escudeiro Bruno Barreto topamos a aventura? De minha parte, atribuo a indulgente concessão à viagem de volta, num Learjet, sem gastar um tostão.

Quem quiser saber a versão do Miguel, é só comprar Memória do Traço, seu livro de reminiscências, escritas e fartamente ilustradas, publicado esta semana pela Chiado Books.


Sérgio Augusto: O ocaso da Filosofia

Rivalidade entre as áreas do conhecimento já estava na raiz das birras de Sócrates com os sofistas

Cultura clássica ou científica? Essa dicotomia imemorial já estava na raiz das birras de Sócrates com os sofistas e também contribuiu para a condenação do filósofo a beber cicuta. Com a revolução industrial, ela ressuscitou no século 19, ganhou fôlego na Alemanha (com a “Controvérsia do Método” entre Carl Menger e Gustav Schmoller), ressurgiu nas teorias de Benedetto Croce e T.S. Eliot, atingindo seu apogeu numa palestra do cientista e romancista britânico C.P. Snow, que depois virou livro (As Duas Culturas) e referência mundial.

Isaac Newton valeu-se da filosofia de Robert Boyle para revolucionar a ciência. Einstein, devotado leitor de Sófocles e Cervantes, adorava mergulhar na filosofia e até criou uma academia de amigos para estudar David Hume e seu Tratado da Natureza Humana e a Ética de Espinosa. O racha entre os dois saberes existe, mas é menos adstrito do que se pensa e diz.

Faz 60 anos na próxima terça-feira que Snow expôs, na Universidade de Cambridge, o seu incômodo pela divisão entre as ciências e as culturas ditas humanas, a seu ver, “um obstáculo à solução dos problemas mundiais”. Embora condenasse tanto o analfabetismo literário e artístico dos cientistas quanto a ignorância científica dos intelectuais literários, propugnando uma espécie de conciliação de sensibilidades, Snow acabou acusado de bajular o establishment científico, e não apenas por seu contemporâneo F. R. Leavis. O paleontólogo Stephen Jay Gould considerava o conceito de Snow (recauchutado em 1963 e aqui traduzido pela Edusp há quatro anos) furado, míope e daninho.

Daninho por reavivar, segundo Gould, uma polêmica desnecessária e potencialmente tóxica. Disso tivemos prova dias atrás, quando nosso atual presidente e seu ministro da Educação soltaram os cães contra as disciplinas “humanas”.

Reclama-se, injustamente, que o governo Bolsonaro está parado. Não está parado quem para trás anda. Entre as inúmeras e mais recentes evidências da regressão – censura à publicidade, reiterado desprezo à cultura, incentivo ao turismo sexual, à espionagem macarthista em sala de aula e ao genocídio campesino, indulgência com as milícias paramilitares – a indicarem que a grande questão brasileira é, hoje, a recuperação de uma civilização mínima, nenhuma me escandaliza mais que o descalabro da educação, a maior vítima da preamar obscurantista da semana passada.

A ditadura de 64 investiu militarmente contra as universidades, invadiu-as, nelas fez prisões, saques a bibliotecas e laboratórios, e ameaças, como a do coronel Darcy Lázaro, ao ocupar a UnB (“Se essa história de cultura vai-nos atrapalhar a endireitar o Brasil, vamos acabar com a cultura pelos próximos 30 anos”), que, para o bem de todos, não se cumpriu. Como agora vivemos numa democracia, nada daquilo, por enquanto, aconteceu. Mas os indícios adversos são preocupantes.

O atual ministro da Educação Abraham Weintraub ainda não promoveu expurgos em universidades, ao estilo Gama e Silva, fugaz responsável pela área após o golpe de 64 e algoz de FHC, Florestan Fernandes e outros professores quando reitor da USP, mas, pelas invectivas que tem feito, vontade não lhe deve faltar. A exemplo do engenheiro Suplicy de Lacerda, sucessor do jurista Gama e Silva no ministério, Weintraub, egresso do mundo financeiro, tem uma visão tecnocrática do ensino. Lacerda montou o famigerado Acordo MEC-Usaid (agência norte-americana para desenvolvimento internacional) visando privilegiar a criação de cursos técnicos e profissionalizantes em detrimento dos cursos de humanidades (ciências humanas, filosofia, línguas etc) mais voltados para a formação crítica do cidadão.

O pretexto, hoje, como ontem, é “focar em áreas que gerem retorno imediato ao contribuinte”. Até parece que o mercado de Uber não está cheio de engenheiros, arquitetos e cientistas desempregados. Essa balela utilitarista nem mais disfarça suas reais intenções: anestesiar a estudantada e sufocar o espírito contestatório de alunos e professores, que o ministro e seu chefe consideram perigosos agentes do “marxismo cultural”, este idoso espantalho ideológico cujo antissemitismo de origem deveria ser motivo de repulsa por alguém minimamente decente e bem informado.

O cordão sanitário não funcionou meio século atrás e deverá ser outro fracasso agora.

Para justificar os anunciados cortes nos recursos nas universidades, o ministro invocou a realização, nas dependências das três, de eventos políticos, por ele reduzidos à categoria de “balbúrdias”. Ou seja, foi uma punição, que não teria ocorrido se, em vez de uma manifestação de repúdio ao fascismo, como uma delas foi, em 2018, tivesse sido uma balbúrdia qualquer contra a, digamos, internação num manicômio do filósofo da Virginia, que, por sinal, até o momento não deu um pio sobre o raide contra as “humanas”.

Para dar algum peso à vendeta, o governo providenciou duas novas “mamadeiras de piroca”: a existência de orgias nos campi e uma queda de desempenho da UnB, UFBA e UFF. As patranhas foram logo desmistificadas. “Nunca vi ninguém pelado em 20 anos de vida acadêmica”, disse uma professora, “mas laboratórios sem insumo, aluno sem bolsa e paredes ruindo, sim”. Consultado o ranking da Times Higher Education, verificou-se que as universidades na berlinda até melhoraram suas performances. No Bolsonaristão, a mentira não tem pernas curtas, é perneta.


Sérgio Augusto: A volta do ‘Pasquim’

Catarse coletiva de norte ao sul do País, fenômeno igual nunca se viu na imprensa brasileira

Pouco antes das eleições, o presidente eleito revelou que um dos objetivos de seu governo seria fazer o Brasil semelhante ao de 50 anos atrás. Fiz as contas, deu 1969.

Vivíamos em 1969 sob uma ditadura militar, que o ex-capitão e seu vice general negam com a mesma convicção dos que contestam o Holocausto, o aquecimento global, a esfericidade da Terra e a inexistência de Papai Noel.

Muita mais gente do que se imagina sente nostalgia por um tempo que não viveu. Tenho amigos que, a exemplo do protagonista daquela comédia de Woody Allen, lamentam não terem vivido na Paris dos anos 1920, quando os pais de alguns deles ou ainda eram bebês ou nem haviam nascido. Tal não é o caso do presidente eleito, que já era vivo em 1969. Mas tinha apenas 14 anos quando tudo aquilo aconteceu, sem ele se dar conta.

Desde dezembro do ano anterior enfrentávamos o tacão do AI-5 (epa! 50 anos redondos na próxima quinta-feira) e já testemunháramos a invasão do Teatro Ruth Escobar, na capital paulista, pelo Comando de Caça aos Comunistas, que depredou o cenário e espancou o elenco do musical Roda Viva, de Chico Buarque (pois é, já naquela época Chico incomodava os boçais).

Em vez de punir exemplarmente os celerados do CCC, o que fez a ditadura? Proibiu o espetáculo, “degradante e subversivo”, na tacanha avaliação do censor Mário F. Russomano.

Antes de saltar para 1969, outra deplorável lembrança: domingo passado também fez 50 anos que o Teatro Opinião, no Rio, sofreu um atentado à bomba, executado pelos mesmos espiroquetas do CCC. Se 1968 terminou nesse clima, como esperar um refresco no ano seguinte?

No último dia de agosto de 1969, uma junta militar provisória foi empossada no lugar do general Costa e Silva, que sucumbira a um derrame. Por que não empossaram o vice-presidente Pedro Aleixo? Justamente porque vivíamos numa ditadura e ele era um civil, um vice apenas pro forma, decorativo. Quatro dias depois, houve o sequestro do embaixador norte-americano, e uma nova Lei de Segurança Nacional foi promulgada antes de setembro chegar ao fim. Até que nos enfiaram goela abaixo outro general – o pior de todos: Emílio Garrastazu Médici.

Por tudo isso, a hipótese de voltar 50 anos atrás me soa, na mais complacente das estimativas, sinistríssima, um disparate de quem ignora história ou hibernou mentalmente naquele período. Ou sofreu uma lavagem cerebral oceânica (de Oceânia, a distopia de 1984).
Se forçado a voltar àqueles idos, talvez me sentisse meio obrigado a ajudar a recriar o irreverente semanário Pasquim – ou O Pasquim, como chegou às bancas, em 26 de junho de 1969, mantendo o artigo definido até trocar o desenho do logo no número 289 – e isso daria um trabalho dos diabos.

Primeiro, porque de seus fundadores apenas três ainda vivem, sendo que nenhum dos dois plenamente funcionais (Jaguar e Claudius) toparia encarar o desafio de ressuscitar, na atual conjuntura, o mais afamado baluarte impresso contra a ditadura militar. Segundo, porque estamos no século 21, o País mudou, o mundo mudou, nós mudamos ou fomos a isso constrangidos pelo politicamente correto; e porque talvez não faça mais sentido imprimir jornais e distribuí-los analogicamentes.

Mas se o presidente eleito insistir em voltar ao passado em vez de pensar o presente e o futuro, alguém, motivado pela Terceira Lei de Newton, poderá sentir a necessidade de lançar um sucedâneo eletrônico do Pasquim.

Não seria eu, contudo, a pessoa mais indicada para a tarefa, embora seja um dos poucos brancaleones sobreviventes. À exceção de Jaguar, Ziraldo e Claudius, os verdadeiros esteios do jornal (Millôr, Ivan Lessa, Paulo Francis, Henfil) e seu idealizador (Tarso de Castro) não habitam mais este mundo.

Dos citados, apenas três merecem ser considerados fundadores do jornal. Vez por outra, incluem Ziraldo, Henfil, Francis e até Ivan Lessa entre os criadores do Pasquim. Ledo engano. Tarso, Jaguar, Sérgio Cabral, Carlos Prósperi (designer), Claudius e Luiz Carlos Maciel – este foi o grupo que bolou e pôs nas ruas o jornaleco. Ziraldo apenas colaborou no primeiro número, com um de seus já conhecidos Zeróis. Henfil estreou no segundo número, Francis no sexto e Ivan no vigésimo sétimo.

Quando em suas páginas debutei, O Pasquim já estava no número 9. Sucesso instantâneo, começara com uma tiragem de 20.000 exemplares semanais, logo esgotados, chegaria aos 80.000 no número 16, alcançando espetaculares 200.000, dois meses depois. Catarse coletiva de norte ao sul do País, fenômeno igual nunca se viu na imprensa brasileira.

Revivê-lo, numa redação ou como leitor, seria a maior compensação que poderíamos ter à regressão prometida pelo presidente eleito. Que, receio, seria completa. Ou seja, com o mesmo repertório repressor de 50 anos atrás: censura prévia, apreensões em bancas, atentados à bomba (sorte nossa que a programada para explodir a sede do jornal, na madrugada de 12 de março de 1970, pifou) e prisões sem base legal (como a que trancafiou 70% dos seus integrantes na Vila Militar, durante dois meses).

A despeito das negações já feitas e vindouras, isso foi o que eu vi, ouvi e vivi. E ainda que desmintam também a existência do Pasquim – que, aliás, durou mais que a ditadura – não haverá como corroborar esse wishful thinking quando, daqui a poucos meses, a coleção completa do histórico hedbomadário estiver todinha digitalizada e disponível na internet, com um dispositivo de busca completo, por edição, assunto, autores e até palavras.

Moral da história: não precisamos voltar a 1969 para termos de volta o passado – no caso, o melhor do passado, e ao alcance do dedo.


Sérgio Augusto: No Brasil, 1968 foi marcado pelo 'Cinema Fora da Lei' e pela Tropicália

Assim como o século 20 só começou em 1914, com a 1.ª Guerra Mundial, o ano de 1968 só teria começado com as agitações de maio, que na verdade tiveram início em fevereiro (na França) e em março (no Brasil). Em Paris, com uma crise na Cinemateca Francesa; no Rio, com o assassinato de um estudante. Se valem marcos positivos – e por que não valeriam? – tiro dois da cartola: a Ofensiva do Tet, no penúltimo dia de janeiro, quando os vietcongues começaram a “virar” a guerra no Vietnã, e um manifesto do jovem (22 anos) crítico paulista Rogério Sganzerla, Cinema Fora da Lei, escrito enquanto rodava O Bandido da Luz Vermelha.

Com o manifesto e seu filme, só lançado comercialmente em São Paulo no fim do ano, o cinema brasileiro acendeu a primeira fogueira da conflagração cultural da temporada, marcada por atos, fatos, feitos e desfeitos de consequências duradouras. Da crescente politização dos filmes à eclosão do Tropicalismo; da primeira montagem de O Rei da Vela à invasão, por 90 trogloditas do CCC (Comando de Caça aos Comunistas), de outro espetáculo de José Celso Martinez Corrêa, Roda Viva, com músicas de Chico Buarque; do colossal show cívico da Passeata dos 100 mil à provocativa bandeira serigrafada (“Seja marginal, seja herói”) de Hélio Oiticica; das primeiras e arrojadas feiras de arte no Museu de Arte Moderna do Rio à criação, pelo governo, do Conselho Superior de Censura, que Millôr Fernandes recepcionou com esta tirada: “Se é de censura, não pode ser superior”.

Já na abertura de seu manifesto – um contraponto ao da “estética da fome” de Glauber Rocha – Sganzerla anunciava: “Meu filme é um faroeste sobre o 3.º Mundo”, uma fusão e mixagem de vários gêneros, um filme-soma. Misto de bangue-bangue urbano com toques de documentário e comédia musical, do noir de Orson Welles e do anarquismo de Godard, O Bandido da Luz Vermelha foi, em outra clave, o Terra em Transe de 68. Acabou justamente premiado no Festival de Brasília, concorrendo com Nelson Pereira dos Santos (Fome de Amor) e uma das melhores e mais politizadas safras do cinema brasileiro moderno.

Brasília 68 foi especialmente agitado e, de certo modo, contaminado pela crise institucional protagonizada pelo deputado Márcio Moreira Alves, que despertara a ira dos militares ao sugerir que a população boicotasse os festejos da Semana da Pátria. A Comissão de Justiça da Câmara ainda se recusava a autorizar o governo a processar o deputado quando este fez uma aparição relâmpago no Hotel Nacional (QG do festival), para conversar com os amigos do cinema e da imprensa – e abafou. Horas depois, o poder verde-oliva impôs-se ao legislativo, baixou o AI-5 e fechou o Congresso.

Apesar dos feitos cinematográficos, da poderosa influência (mesmo in absentia) de Glauber e da agitadora onipresença de Zé Celso, 1968 afinal se consagrou como um ano musical por excelência e insistência. O entusiasmo juvenil pelos festivais que a TV Record promovera em 1967 ajudou a consolidar a Tropicália liderada por Caetano Veloso, Gilberto Gil e os Mutantes, um contraponto irracional, anticonvencional e antropofágico do dirigismo programático (e pretensamente brechtiano) do Centro Popular de Cultura, até então hegemônico junto às esquerdas e ao público jovem.

Não sem alguns percalços. Vaiado pela plateia estudantil que lotava o Teatro Tuca, na capital paulista, Caetano, do alto da autoridade moral que lhe dera a recente composição É Proibido Proibir, encarou sem piscar a intolerância. “Mas é isto que é a juventude que diz querer tomar o poder?”, berrou. “Vocês não estão entendendo nada. Nada. Se vocês forem em política o que são em estética...”

Essa guerra cultural entre irmãos – todos vítimas das mesmas forças retrógradas estéticas e ideológicas que mandavam no País – culminaria com um duelo musical, não entre o samba tradicional e as guitarras elétricas tropicalistas, mas entre uma canção lírica e outra de protesto. A brasilidade pura não estava em jogo na noite de 29 de setembro, final do Festival Internacional da Canção, no ginásio do Maracanãzinho, no Rio. Uma das finalistas, Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque, era a Canção do Exílio de Gonçalves Dias revisitada. A concorrente, Para Dizer que Não Falei de Flores (também conhecida como Caminhando), de Geraldo Vandré, conquistara a plateia, que a tomou por um hino de protesto contra a ditadura.

Os jurados do festival afinal optaram pelo protesto sutil de Sabiá, escolha recebida com a mais estrepitosa vaia que meus ouvidos já ouviram – e certamente também os de Tom e Chico, que saíram constrangidos. Torci por Sabiá, que o tempo me convenceu ser a mais bela das canções brasileiras. Caminhando acabou proibida pela Censura e Vandré, perseguido pelos militares.

O aziago 1968 tinha tudo para terminar mal, como de fato terminou. Enquanto o Festival da Canção descia a cortina, um enfarte tirava de nosso convívio o mais estimado gozador da imprensa e da TV, Sérgio Porto, vulgo Stanislaw Ponte Preta, o Lalau das “certinhas” e do Febeapá (Festival de Besteiras que Assola o País), aliviando um pouco a barra dos poderosos do dia, vítimas diárias de seu sarcasmo. Em menos de duas semanas, outra perda irreparável para o humor e a cultura: Manuel Bandeira, nosso poeta mais alegre, partia de vez para Pasárgada. 1969 não lhe faria a menor falta.