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Sérgio Abranches: EUA de volta ao futuro

A vitória de Joe Biden marca um novo momento político nos Estados Unidos. Em um sentido muito direto, ela repõe o país na trilha que havia sido aberta pela eleição de Barack Obama. É mais do que a eleição de Biden, um senior Democrata moderado, para presidente. A eleição de Kamala Harris é um marco em si e além do que Biden representa. É a primeira mulher, a primeira pessoa de origem em várias minorias, negra, latina, asiática, a ocupar a vice-presidência dos Estados Unidos. Esta vitória é resultado da formação de uma coalizão que uniu Democratas moderados e de esquerda, em torno dos dois. Uma nova coalizão progressista, que aposta no Green New Deal e repõe a diversidade americana no caminho da plena cidadania.

A eleição de 2008 foi um marco. Levou à Casa Branca, pela primeira vez na história, um presidente negro. Foi o resultado de uma longa luta, que começou, no plano institucional, com a aprovação da 14a Emenda à Constituição, em 1868, dando aos afroamericanos os direitos de cidadania política. Mas eleitores negros continuaram a ser barrados nos locais de votação e a supressão do voto negro continuou. Para enfrentar mais seriamente este bloqueio, a 15a Emenda à Constituição, aprovada em 1870, determinou mais claramente que o direito aos cidadãos dos Estados Unidos não podem ser negados ou reduzidos pelos Estados Unidos ou qualquer um dos estados, com base em raça, cor, ou situação prévia de servidão. Mas, a luta prosseguiu, penosa e sangrenta. Passou pelos anos 1960 e 1970, por Martin Luther King, seu sonho e seu assassinato, até chegar a 2008 e a eleição de Obama, filho do segundo casamento de um economista queniano e uma antropóloga de origem anglo-saxônica.

Mas, a luta não acabou. As vítimas negras da brutalidade policial, atravessaram o governo Obama e aumentaram com Donald Trump. O assassinato de George Floyd à luz do dia, por dois policiais brancos, tornou-se o leit motiv para o movimento Black Lives Matter, que globalizou. O retorno à trilha inaugurada por Obama, entretanto, é efetivo e relevante. Kamala Harris na Vice-Presidência dos Estados Unidos compartilha os símbolos do poder imperial da Presidência — ela terá a segurança, o avião e o helicóptero Air Force Two, o respeito e a deferência prestados aos governantes dos Estados Unidos. Esta mulher sintetiza, para além de Obama, a possibilidade de estar no poder do conjunto das minorias étnicas do país e das mulheres. Não é pouco, nem é trivial.

Este resultado é importante, também porque demonstra, inequivocamente, a incidentalidade de governantes como Donald Trump. Ele entrou numa eleição atípica, em 2016, e sai numa eleição atípica em 2020. Como eu disse ser a trajetória provável dos governantes incidentais em meu livro (O Tempo dos Governantes Incidentais, Companhia das Letras, 2020). Quando este tipo de governante obtém o segundo mandato, é muito perigoso, porque escala o ataque às instituições democráticas por dentro. Eleição atípica, no segundo caso, por duas razões. A primeira, a campanha desigual, com Biden respeitando as regras de segurança na pandemia, mesmo com prejuízo de sua presença em colégios eleitorais relevantes e da reunião de eleitores no seu entorno. Trump, ao contrário, manteve comícios em desprezo a qualquer protocolo de segurança sanitária e, nos últimos três dias, fez um rali de comícios, chegando a ir a dez estados por dia. E perdeu. A segunda, a quantidade inédita de votos antecipados e, principalmente, por e-mail. Estes votos foram esmagadoramente por Biden, porque ele e seus correligionários convocaram os eleitores a votar desta maneira, o voto era importante e a necessidade de votar de forma segura, sem aglomerações ou filas, também. Foi a vitória da responsabilidade contra a insensatez.

Politicamente, a eleição de Biden foi apoiada por uma ampla coalizão antiTrump e pela democracia, que uniu o centro e a centro-direita do partido à sua esquerda, buscou os independentes e atraiu personalidades republicanas. Uma ampla coalizão que alcançava também os representantes e os movimentos sociais das minorias. Esta amplitude e diversidade teve como representante Kamala Harris.

No plano geopolítico, a vitória de Biden/Harris, tem várias implicações importantes. É uma mensagem dizendo que os governantes incidentais, por mais poderosos que pareçam, podem ser derrotados. É, também, uma convocação para a luta contra a intolerância contra minorias étnicas, imigrantes e todas as demais minorias. Deve demarcar o início do processo de reconstrução do multilateralismo, em maior sintonia com os desafios existenciais desafiando a governança global, como a mudança climática, os refugiados, os imigrantes, a crise global e a vertiginosa transição estrutural e tecnológica.

Biden não mudará radicalmente a atitude internacional dos Estados Unidos. Não tenho a ingenuidade de imaginá-lo como um revolucionário, no plano doméstico ou internacional. Obama tampouco o foi. Mas são avanços significativos e devem ser considerados como tal. Joe Biden e Kamala Harris, presidente e vice-presidente dos Estados Unidos, repõem os Estados Unidos de volta à trilha do futuro.

*Sérgio Abranches, cientista político


Valor: Diminuição de auxílio vai gerar frustração e aversão a Bolsonaro, diz Sérgio Abranches

Para Sérgio Abranches, vive-se hoje no tempo dos governos incidentais, que representam rupturas, mas com tendência de serem efêmeros

Por Diego Viana, Valor Econômico

SÃO PAULO - Em 2017, o cientista político Sérgio Abranches se referiu à atualidade, no título de um livro, como a “Era do Imprevisto”, por ser uma fase de transformações profundas. Em política, o imprevisto leva à emergência de um personagem particular, que se traduz como “O Tempo dos Governantes Incidentais” (Companhia das Letras, 304 págs., R$ 69,90). Com os sistemas políticos desadaptados às mudanças velozes, esses líderes surgem das franjas do sistema, com um discurso fomentado pela frustração e alicerçado na aversão aos políticos estabelecidos. No entanto, como prometem transformações que não são capazes de entregar, essa mesma base afetiva os torna efêmeros.

O “governante incidental” é marca de um período de “interregno”, quando uma ordem global perdeu o vigor sem que sua substituta esteja em pleno funcionamento. Em parte, esse estágio transitório explica traços comuns a muitos incidentais, como o negacionismo climático. A formação de novas lideranças, capazes de gerar propostas adequadas aos novos tempos, é o caminho para superar o momento das lideranças incidentais, para Abranches.

No entanto, o cientista político aponta que o Brasil é um país em que o surgimento de novos quadros é lento, em razão do caráter oligárquico e enrijecido dos partidos e outros centros de formação. Essa é uma vantagem do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). Ao mesmo tempo, o apoio recém-conquistado graças ao auxílio emergencial é uma faca de dois gumes: reduzi-lo para garantir equilíbrio fiscal causaria novas frustrações; expandi-lo pode levar à perda da simpatia dos mercados.

A pandemia de 2020 acelera alguns processos em curso. Um deles é a percepção de que políticas sociais e de bem-estar não podem ser inteiramente abandonadas, mesmo com a ênfase no equilíbrio fiscal. Outro é a gradual adoção de algo como o projeto americano do Green New Deal, um conjunto de investimentos para acelerar a transição rumo à economia verde e, ao mesmo tempo, garantir empregos e justiça social.

Veja a seguir os principais tópicos tratados na entrevista.

Governantes incidentais
“A ascensão desses políticos é mais do que uma manifestação da era do imprevisto. É uma reação a ela. As eleições que produzem vitórias dos incidentais representam rupturas com os padrões eleitorais. As sociedades estão reagindo com medo, insegurança, incerteza e ressentimento às mudanças estruturais que os países atravessam. Não é trivial que parte da classe média americana branca tenha se empobrecido por conta da destruição de empregos qualificados tradicionais. Quando buscam o bem-estar social, essas pessoas encontram um sistema que não está sintonizado para o branco.

De repente, chega muita gente da classe média branca querendo cheque de desemprego ou entrando nos outros serviços de proteção social, que estão calibrados para os negros e latinos. Essas pessoas ficam ressentidas de ter de entrar em uma fila com gente que consideram inferior. Gente que antes trabalhava para eles. Produz-se, assim, um setor da classe média branca americana raivoso, uma das bases eleitorais de Donald Trump.”

Ruptura eleitoral
“Um elemento central da ruptura eleitoral é a frustração constante. Já há algum tempo, os ciclos econômicos são tais que as expectativas nunca são cumpridas. Os eleitores ficam frustrados, porque o que imaginavam estar comprando com o voto não é entregue. Além de produzir vitórias incidentais, a frustração garante que esses líderes são efêmeros. Eles geralmente vêm da margem ou de fora da política, mas também geram expectativas que não se realizam. E produzem frustração. É quase uma lei da política: a frustração das expectativas eleitorais se transforma em aversão e rejeição, ou seja, em voto contra, na fase seguinte. Na Itália, o afastamento de [Matteo] Salvini levou os populistas do Movimento 5 Estrelas a se alinharem à política clássica. Mas eu me preocupo com o caso brasileiro, porque não estamos produzindo novas lideranças. No próximo ciclo eleitoral, tudo indica que vamos ter mais do mesmo e pode estar se criando o espaço para que surja um novo populista.”

Bolsonaro e Guedes
“Trump não recuperou a popularidade, mas Bolsonaro, sim, por efeito do auxílio emergencial. No meio de uma grande recessão, com uma taxa avassaladora de desemprego, de repente o governo despeja dinheiro nas mãos das pessoas, e ele faz a diferença, de fato. Mas quanto isso dura? O governo não tem fôlego fiscal para manter esse nível de auxílio. Pode prorrogá-lo por mais dois meses, a um custo alto, mas não pode continuar no ano que vem. Pode tentar mudar o nome do Bolsa Família, para marcar como concessão pessoal de Bolsonaro, mas vai ser um valor menor. Quando o governo dá algo e depois reduz a dádiva, gera frustração e aversão.

Quando cair de R$ 600 para R$ 300, ainda mais com um processo de recuperação duvidoso, isso vai produzir frustração, voltando ao ciclo de gerar expectativa e entregar frustração. Já o apoio do mercado financeiro é essencial para Bolsonaro. Significa a garantia de ter fluxo de investimento. A pergunta é até que ponto o mercado vai crer religiosamente no liberalismo do governo, que já deu seguidas demonstrações de que não é liberal, nem tem compromisso com o rigor fiscal.”

Governo e mercado
“As âncoras de Bolsonaro com o mercado ainda são Paulo Guedes e Roberto Campos Neto. Mas o conflito permanente entre o gastador e o austero sempre acaba produzindo a saída de alguém. Não tem como sustentar por quatro anos um atrito permanente. Por outro lado, Guedes tem uma atitude ambivalente. Em geral, defende a austeridade para certas plateias. Mas quando fala para plateias mais políticas, tem um discurso populista. ‘Vamos gastar para eleger o presidente’… Qual é o Guedes que vai prevalecer? Ele também cria mais expectativa do que pode entregar. Na fábrica de reformas do ministro, tem muito menos do que é prometido. O discurso é de reforma tributária e descentralização; na prática, o projeto é mudar dois impostos e recriar a CPMF.”

Presidencialismo de coalizão
“O modelo do presidencialismo de coalizão não acabou. Ele gera efeitos para Bolsonaro. O fato de não ter uma coalizão tem consequências políticas para ele. Falhou o projeto de usar a relação direta com a população para forçar o Congresso a fazer o que ele quer. A aproximação com o Centrão é um ponto de inflexão pessoal, não político. Bolsonaro se aproxima do Centrão quando as investigações sobre a rachadinha ameaçam sua família. Ele vai em busca de uma aliança com o Congresso pela imunidade, contra um pedido de impeachment. Enquanto Rodrigo Maia (DEM) não vir os evidentes crimes de responsabilidade que o presidente comete em série, não tem impeachment.

Bolsonaro tem que manter alguma relação amistosa com ele para manter sua imunidade. Com isso, teve que desarmar, dentro da estrutura do governo, o aparato da Lava-Jato. Houve uma janela aberta para um impeachment, mas ela não foi aproveitada. Agora, certamente a probabilidade diminuiu. Mas pode ressurgir. Como as investigações continuam pressionando a família Bolsonaro, ele precisa de uma base no Congresso que seja capaz de vetar um pedido de autorização para ser processado.”

Pauta de costumes
“Bolsonaro tem perdido todas as disputas nas suas pautas mais caras, dos chamados ‘costumes’, por exemplo. Armas, religião, moralismo. Nas políticas públicas, o que ele tem feito é se aproveitar do que o Congresso faz. Ele não fez nenhuma grande proposta. As reformas da previdência e a do saneamento básico estavam prontas. O saneamento só foi salvo porque Tasso Jereissati (PSDB) resolveu assumir a liderança do processo. O auxílio emergencial também. O Congresso se tornou o gerador de políticas públicas, que depois Bolsonaro assume como se fossem dele.”

Relação com os EUA
“A presença de Trump na Casa Branca é indispensável para Bolsonaro por várias razões, a primeira sendo que ele o copia o tempo todo. Com Joe Biden, Bolsonaro perderia seu modelo. Outro ponto é que, se Biden for eleito, os EUA retornam imediatamente ao Acordo de Paris. O Brasil não chegou a sair do acordo, mas sua atitude se tornou hostil. A volta dos EUA nos deixaria na posição de pária, com Arábia Saudita, Bolívia, Venezuela. Está em jogo a projeção internacional do Brasil, que já vinha em declínio acelerado por conta do desmantelamento do Itamaraty, da saída de cena dos diplomatas profissionais, que sempre foram um recurso fundamental de influência internacional do Brasil.

O Brasil tinha uma reputação internacional muito boa por causa do ‘soft power’. A ciência brasileira se destaca com ilhas de excelência importantes, participando dos principais projetos científicos globais. A diplomacia brasileira era uma das mais profissionais, conferindo uma capacidade de intermediação e negociação internacionais e uma presença global muito fortes. Com esse declínio, se os EUA mudam de posição e deixam de dar cobertura, o Brasil perde muito. O mesmo vale na questão comercial. Trump, pelo menos, tem um discurso de boa vontade com o Brasil, embora seja duvidoso na prática. Com um governo Biden, vai ser como é com a Europa. O acordo com a União Europeia já subiu no telhado. Se o governo americano também decretar que só tem tratado comercial com proteção da Amazônia, acabou.”

Pós-pandemia
“Alguns eventos ainda em curso vão ser determinantes. O que podemos ver agora é como as sociedades estão reagindo. Nos EUA, a popularidade de Trump caiu fortemente. Parece que a onda populista que o elegeu (e que já começava a declinar) vai ser interrompida. Outra coisa que estava em declínio e parece a caminho de ser superado é o processo de austeridade. Não a ponto de romper com a ideia de que deve haver equilíbrio fiscal. Mas a austeridade que vinha sendo imposta era ultraliberal, cortando direitos sociais básicos. Vimos que os países que se deram melhor na pandemia foram os que deixaram a saúde pública funcional, como Portugal e Alemanha.

No Reino Unido, o primeiro-ministro conservador declarou que sua vida foi salva pelo serviço nacional de saúde. E os conservadores vêm enfraquecendo esse sistema desde o tempo de Margaret Thatcher [primeira-ministra de 1979 a 1990]. A Espanha, que enfraqueceu muito seu serviço de saúde, se saiu mal. Nos EUA, ficou claro que o sistema estritamente privado não funciona em casos assim. Em Nova York, ele não resistiu a 15 dias de pandemia. Ficou claro que é preciso preservar serviços sociais e redes de proteção, neste mundo cheio de imprevistos. Não é só uma questão de justiça social: tem custos econômicos e políticos.”

Green New Deal
“O Green New Deal é uma combinação de duas coisas. O lado ‘new deal’ é a necessidade de uma rede de proteção social que alcance os novos desprotegidos, que não estão contemplados pelas redes tradicionais. Tem um processo de mudança nos empregos e negócios em que a destruição é mais rápida do que a criação. Só se diz isso no campo do emprego, mas é verdade também para empresas: os novos negócios, como os novos empregos, exigem qualidades distintas das tradicionais. A sociedade está enfrentando o desafio de se reeducar, seja para ser empresário, seja para ser trabalhador. É um processo demorado, com muitas perdas no caminho. Algum tipo de proteção para esse contingente, que fica inesperadamente fora do jogo, vai ser necessário para evitar uma convulsão social.

A parte do ‘verde’ se impõe pelo fato de que a mudança climática está aí. Nos EUA, a indústria de seguros se deu conta de que estava no meio do caminho da mudança climática, não quando um furacão atingiu New Orleans, porque atingiu a parte pobre, que não era segurada, mas quando uma tempestade atingiu Chicago e Nova York. As seguradoras passaram a exigir dos clientes mais responsabilidade climática e transparência com o risco climático.”

A economia e o clima
“Era inevitável que os fundos de investimentos dissessem: sem cuidado com a mudança climática, não invisto. A poupança da indústria de seguros e previdenciária é a grande fonte de recursos financeiros. É indissociável a questão econômica da climática. Ao mesmo tempo, a mudança estrutural torna indissociável a questão social das carências que essas transformações produzem. Assim se associam o ‘green’ e o ‘new deal’. Tecnicamente, temos condições de atingir carbono zero no curto prazo. Se os países quisessem fazer uma transição rápida, poderiam. Temos a tecnologia para isso.

O problema é a resistência de parte do grande capital, associado à indústria fóssil. Nos EUA, as Indústrias Koch são grandes financiadoras do trumpismo porque sabem que seu negócio está com os dias contados. Temos substitutos funcionais para o petróleo na energia: carros elétricos, vento, sol, biomassa. Podemos ter uma matriz energética diversificada, deixando o petróleo só como matéria-prima, onde tem muitas aplicações ainda em que ele não é substituível.

O fato é que poderíamos estar fazendo a transição muito mais rápido. Não estamos por causa das condições políticas. Há um descompasso entre o poder e a influência política que as novas forças têm, ligadas por exemplo, à energia eólica ou solar, e as velhas, ligadas à siderurgia ou ao petróleo. São décadas de lobby. Esse descompasso trava a mudança.”

Novas lideranças
“Mobilizações como a de Greta Thunberg têm um poder importante, porque geram novas lideranças. Uma coisa é certa: quando ocorrer a transição de geração no poder, o mundo vai ser sustentável. Os valores já mudaram na base da sociedade, só que eles ainda não têm poder político. As novas gerações ainda não estão no poder. Esses movimentos estão ampliando o espaço de criação de lideranças. No mundo inteiro, e no Brasil desde a época da ditadura, os centros tradicionais de formação de lideranças se tornaram centros de perpetuação de oligarquias. Quem está produzindo novas lideranças são os movimentos sociais, sobretudo os ambientais, assim como o movimento negro e outros. O problema é que produzem lideranças com muita identidade própria, mas pouca capacidade de aglutinar forças. Esse processo ainda está em curso.

No Brasil, desde o princípio, nossa democracia não se preocupou com a formação de lideranças. Mesmo hoje, os movimentos fora da estrutura partidária de criação de lideranças, dos quais saíram nomes importantes, são vistos com preconceito nos partidos, seja porque têm influência econômica ou outra razão. As oligarquias resistem. O surgimento de novas lideranças significa a circulação das elites: uma parte sai do poder para que ele seja ocupado por uma nova liderança. No Brasil, os canais foram obstruídos, e os partidos estão oligarquizados.

Mas esse também é um problema nos outros países. Pelo menos têm surgido lideranças novas fora da estrutura partidária dominante, como os Verdes na Europa. Na Espanha, o vice-primeiro-ministro veio dos movimentos de rua. Esse processo é universal. A democracia tem ciclos de realinhamento partidário. A partir de determinado momento, a estrutura partidária fica tão ossificada que novas forças buscam rompê-las. Esse processo está em curso no mundo inteiro.”


Folha de S. Paulo: Bolsonaro caiu em uma armadilha com auxílio emergencial, diz Sérgio Abranches

Cientista político que cunhou o termo presidencialismo de coalizão avalia que presidente ignora o modelo e vai ao centrão 'em busca de imunidade'

Guilherme Magalhães, Folha de S. Paulo

SÃO PAULO - Referência na análise do sistema político brasileiro pós-redemocratização, marcado pelo que chamou de presidencialismo de coalizão, o cientista político Sérgio Abranches, 70, avalia que o modelo não acabou com a eleição de Jair Bolsonaro em 2018.

O presidente, porém, "tem desconsiderado as regras do modelo", escreve Abranches em seu novo livro, "O Tempo dos Governantes Incidentais", recém-lançado pela Companhia das Letras.

Para ele, que posiciona Bolsonaro sob o pano de fundo da ascensão de líderes populistas em diversos países em uma década de vertiginosas mudanças socioeconômicas, esse tipo de governante é efêmero, o que não significa que não cause estragos por onde passa.

A aproximação de Bolsonaro em direção aos partidos do centrão indica que o presidente passou a jogar o jogo do presidencialismo de coalizão?

Não, porque o presidencialismo de coalizão é um modelo transacional. Há uma troca entre governo e Legislativo no sentido de uma certa transferência de poder do Executivo não para o Legislativo, mas para os membros da coalizão. E ele tem uma vocação majoritária, é uma busca de uma aliança para poder governar.

No caso do Bolsonaro, ele foi na direção do Congresso em busca de imunidade, quando se sentiu ameaçado pela questão do impeachment, pelo processo da "rachadinha".

Agora, na verdade, ele está fazendo uma transição do modelo autocrático voluntarista para um modelo autocrático populista. Por isso ele está lançando a extensão do auxílio emergencial. Isso ele descobriu por acaso, teve que aceitar o auxílio emergencial forçado pelo Legislativo. Aí viu como oportunidade capturar o auxílio para ele, e ao ver o impacto disso na popularidade, resolveu prolongar.

Mas ele caiu numa armadilha, porque de um lado, para manter esse grau de satisfação que ele conseguiu com o auxílio, tem que manter no mesmo plano para que não haja perda de renda real. Mas tem uma limitação fiscal, ele tem que arrebentar o teto de gastos e se desavir com uma parte do Congresso e com o mercado financeiro que o sustenta.

A última pesquisa Datafolha apontou que Bolsonaro está com a melhor avaliação desde o início de seu mandato. Como o sr. avalia essa queda na rejeição ao presidente?

Claramente Bolsonaro se beneficiou do auxílio emergencial e está se beneficiando dessa naturalização da doença [Covid-19]. Os EUA estão discutindo a ameaça existencial à democracia que o Trump representa, e aqui estamos sob a mesma ameaça existencial, tanto da democracia como do nosso modo de vida, e a gente não reage da mesma forma. Não há o nível de indignação e mobilização e acho que nem a mesma clareza das lideranças.

Estava vendo na coluna do Conrado [Hübner Mendes], ele discutindo esse papel da Advocacia-Geral da União, da Procuradoria-Geral da República e do Ministério da Justiça na questão do dossiê antifascista.

Todos os três fugiram da finalidade das suas instituições. E essa é a maneira pela qual esse novo autoritarismo se firma, carcomendo por dentro as instituições de freios e contrapesos e aumentando o poder discricionário do presidente. Vamos ter de pensar remédios para isso.

Essa é a questão fundamental do Brasil. A gente ainda não se deu conta de que tem coisas anormais demais acontecendo, ameaçando a sociedade brasileira, o padrão de convivência minimamente civilizado que a gente estava construindo, ainda com todos esses problemas que eu falei, e a nossa democracia.

Neste mês, o ministro Dias Toffoli passa o comando do STF a Luiz Fux. Qual o legado que Toffoli deixa e o que esperar da nova gestão?

O Toffoli deu um péssimo exemplo de como ser presidente do Supremo Tribunal Federal. Ele se envolveu com os chefes do Poder Legislativo e Executivo para fazer pacto de políticas públicas, algo absolutamente impensável pro chefe do Poder Judiciário.

Ele vai analisar a constitucionalidade das políticas públicas. Não pode autocraticamente dar um aval, não pode assinar em nome dos outros dez ministros do Supremo um pacto em favor de coisa nenhuma, a não ser a favor da democracia e da Constituição.

O presidente do Supremo tem que manter uma certa distância cerimoniosa dos chefes dos outros Poderes. Não é que ele deve ser adversário ou não ter uma relação cordial ou não comparecer a cerimônias oficiais, nas quais o protocolo diz que os chefes dos Poderes devem estar juntos. Agora, posse banal de ministro do Executivo, coisa em quartel, não faz o menor sentido.

Toda democracia precisa de um certo grau de formalismo. Ela requer certas formalidades. O presidente da República não pode atravessar uma rua e se sentir bem recebido, como amigo, na posse de um procurador-geral da República.

Um procurador-geral da República não pode sair da sede da Procuradoria e fora da agenda, à noite, ir visitar um presidente para conversar sobre assuntos que ninguém fica sabendo quais foram. Isso aconteceu entre a Raquel Dodge e o Temer, não é só o Augusto Aras. O Aras entrou pela porta dos fundos, é um caso muito pior.

Imagino que o Fux vá ter um comportamento mais afastado do Executivo porque ele tem mais experiência de magistratura do que o Toffoli. O Toffoli era um advogado político que virou ministro do Supremo.

Enquanto isso, Bolsonaro vem dando sinais de que pode reatar com seu antigo partido, o PSL, depois do fracasso da tentativa de reunir o bolsonarismo no guarda-chuva da Aliança pelo Brasil. É puro pragmatismo tendo em vista a eleição municipal e o fundo eleitoral do PSL ou o sr. enxerga algo mais nisso?

A motivação principal é grana, é o dinheiro do fundo, e as eleições municipais. Porque, na verdade, essa é a primeira eleição que efetivamente o PSL vai disputar. Ela que vai definir se ele vai virar partido ou não. Porque até hoje ele é uma casca improvisada, inchado.

A gente já viu isso. O PRN do Collor inchou e desinchou rapidamente. Claro que a gente está num processo de realinhamento partidário, as bancadas perderam tamanho. Mesmo o PT, que ficou com a maior bancada da Câmara dos Deputados, é metade do que já foi.

Todos os partidos estão em teste. Os tradicionais têm que mostrar que têm capacidade de renovação, de revitalização. E os novos têm que demonstrar capacidade de permanência. Dos novos o que tem mais que provar é o PSL, inclusive por isso, foi do Bolsonaro, deixou de ser do Bolsonaro, volta a ser do Bolsonaro.

O sr. argumenta que a onda populista já começou a perder força em alguns países europeus porque é inevitável que os eleitores que os elegeram se frustrem ao longo do caminho. Mas para a democracia emergir revigorada é preciso que, nesse refluxo, alguma inteligência política seja capaz de recentralizar o sistema. O sr. enxerga sinais dessa inteligência no horizonte brasileiro num eventual refluxo do bolsonarismo?

Por exemplo, o Partido Democrata dos EUA. O fato de lideranças muito jovens, como a Alexandria Ocasio-Cortez, e outras já experimentadas, como o Bernie Sanders, da esquerda do partido, se unirem para dizer o seguinte: desta vez a gente precisa de um cara como o Joe Biden, porque a gente precisa unir conservadores, moderados e progressistas contra essa ameaça à democracia americana.

Isso não tem aqui no Brasil. Acho que essa inteligência tem. Há lideranças jovens, inclusive no Congresso, que têm essa visão, que o Brasil precisa parar de ficar brigando brigas velhas e olhar para frente.

Parar de fazer política pelo retrovisor, como a gente tem feito desde sempre. A gente fez a Constituição de 1988 olhando para o retrovisor, para evitar o retorno do autoritarismo. Era preciso que alguém olhasse mais para frente, mas tinha a hiperinflação. A gente tinha que resolver esse legado.

A gente vem suprindo os déficits do passado, lutando contra a parte negativa do nosso legado, e deixando de olhar para frente. Enquanto isso o mundo foi mudando de forma vertiginosa. Agora estamos com um dilema na mão. Continuamos com os passivos, porque não fomos capazes de resolver nenhum deles, exceto talvez a inflação. E mesmo a democracia estamos vendo que não.

Estamos com o desafio de construir um Brasil que seja viável no século 21 e esse desafio é grave demais para não termos nenhuma liderança entre as mais experimentadas do país com clarividência para ver que está na hora de buscar essa inteligência na sociedade brasileira.

Isso que me espanta. Não ter lideranças com essa visão de que o futuro já está aqui e ele não é uma coisa que chega e a gente adere, é uma coisa que a gente constrói. E não é fácil construir um futuro num mundo que está mudando tão radicalmente quanto este. Um futuro com paradigmas novos e a gente ainda não conseguiu se libertar dos problemas velhos. É um grande desafio e me angustia muito, não vejo nenhuma liderança com essa visão.

RAIO-X
Sérgio Abranches, 70

Nascido em Curvelo (MG), é cientista político, sociólogo e escritor. Autor de, entre outros, "A Era do Imprevisto: A Grande Transição do Século 21" e "Presidencialismo de Coalizão: Raízes e Evolução do Modelo Político Brasileiro", ambos publicados pela Companhia das Letras

O TEMPO DOS GOVERNANTES INCIDENTAIS
• Preço R$ 69,90 (304 págs.) e R$ 39,90 (ebook)
• Autor Sérgio Abranches
• Editora Companhia das Letras


Sérgio Abranches: É possível uma frente democrática?

Há sinais de que vários setores do campo democrático, em um amplo espectro ideológico, têm conversado sobre a formação de uma frente plural contra o avanço autoritário de Bolsonaro. São iniciativas importantes. Há muita incompreensão e ressentimento fechando possibilidades de uma frente que inclua todos os setores. Em geral, são pessoas e lideranças que se consideram democráticas, desde que não tenham que exercer um mínimo de tolerância em relação à posição de lideranças e grupos de campos ideológicos distintos. É um equívoco e uma demonstração de autoritarismo.

O equívoco está em imaginar que frentes, como a Frente Ampla de 1966, ou a frente pelas Diretas Já, no Brasil, o Pacto de Moncloa que democratizou a Espanha, ou a Concertación que restaurou a democracia chilena, se formam por cooptação. Não. Elas se formam por escolha de cada parceiro em passar por cima de diferenças e desavenças e começar a conversar com os adversários tradicionais. Se fosse por cooptação — convite ou convocação — não seriam frentes, nem plurais, nem democráticas.

O primeiro movimento é aceitar os outros como parceiros, com todas as restrições do passado. O segundo, é conversar com todos os setores democráticos sobre os objetivos específicos da frente e sobre uma agenda mínima, que todos possam apoiar. Significa reservar as ideologias e as questões específicas de cada campo, para o momento posterior, quando a frente tenha alcançado seus objetivos. Toda frente é limitada no tempo e na agenda e envolve parceiros autolimitados para se enquadrar no limite do acordo contra a ameaça comum. O terceiro passo é o diálogo interno a cada campo, para ampliar a convicção dos companheiros e obter o comprometimento geral com a iniciativa. Liderança é testada, exatamente, quando tem que sacrificar provisoriamente determinadas convicções e ressentimentos de embates passados, diante de uma ameaça existencial, e atravessar pontes entre campos hostis.

Tenho visto reações apequenadas à possibilidade de uma frente. Seja porque só admitem uma frente de esquerda, seja porque não admitem aceitar como interlocutores antigos adversários. Uma reunião de setores da esquerda não é frente, é aliança de grupos ou facções de um mesmo campo ideológico ou de campos adjacentes. Frente é com os outros campos. Ela se baseia no reconhecimento das especificidades da conjuntura e na identificação da contradição principal que está a mover o processo político. Há várias versões da contradição principal, que conduzem à possibilidade de uma frente.

Para mim, parece evidente que a espinha dorsal da conjuntura de crise atual é a oposição civilização versus barbárie, ou neofascismo versus democracia republicana. As causas das rupturas no processo político-democrático podem variar drasticamente, dependendo de cada ponto de vista. O que fazer, uma vez vencida a ameaça autoritária, também dependerá da competição abertas em disputas eleitorais justas entre as várias propostas. Logo, o passado e o futuro do futuro não podem entrar em cogitação nas negociações de uma frente, porque dividem. É bom que dividam e é importante que continuem a dividir. O que se discute na formação de uma frente é a identificação do inimigo principal e comum. O que fazer no presente e no futuro imediato, que coincidirá com o restabelecimento das plenas condições de convívio democrático e competitivo.

Há uma dose de grandeza de todas as partes na negociação de uma frente. Todas têm que superar feridas abertas nos embates que tiveram entre si no passado recente. Alguns bastante duros e que deixaram feridas profundas. Todas têm que abrir mão de suas visões e demandas, para desenhar uma agenda comum de transição entre uma conjuntura que nos ameaça e outra que reabre a possibilidade de que possamos divergir em liberdade. Uma agenda que responda aos problemas imediatos, sem cujo atendimento não seria possível transitar para uma situação de normalidade democrática, nem para o novo normal pós-pandemia. Mas, é nos momentos de autolimitação e de busca de comunalidades entre os desavindos que as lideranças mostram sua capacidade. Políticos que se afogam em mesquinharias, como Bolsonaro, nunca serão líderes. Podem, no máximo ser déspotas. No caso, sem qualquer ilustração.

Como é que se imagina ter sido possível a aliança entre Estados Unidos, União Soviética e Reino Unido contra o nazismo? Churchill e Roosevelt trocaram cartas amargas durante o período de formação da frente antinazista, revelando sérias divergências geopolíticas, fundamentais para o após-guerra. Churchill dedicava aristocrático desprezo por Roosevelt que, por sua vez, opunha-se fortemente ao império britânico. Ambos detestavam o que Stalin representava e reconheciam a ameaça representada pela União Soviética aos interesses de seus respectivos projetos nacionais de poder. Quando a URSS invadiu a Polônia, Roosevelt descreveu o governo de Stalin como a ditadura mais absoluta do que qualquer ditadura no mundo. Stalin, por sua vez, dedicava a ambos desdenhosa ironia. Ele tinha profunda desconfiança de ambos. Mas, havia Hitler, o nazismo, a ameaça de derrota do Reino Unido e a invasão da União Soviética. E houve Pearl Harbor. Uma vitória do nazismo representaria uma grande ameaça aos interesses geopolíticos da potência americana emergente. Depois da guerra, vencida a partir da aliança dos três líderes, eles passaram à mais ferrenha disputa. Com a decadência do Império Britânico, passou a dominar o antagonismo polarizado entre EUA e URSS, que alimentou a Guerra Fria e a détente nuclear, nada cordial.

Quem viveu as agruras do regime militar sabe que não é exagero dizer que um avanço autoritário no Brasil de hoje representa uma ameaça existencial para todos os que prezam a democracia. Põe em risco as condições essenciais para continuarmos competindo por projetos que buscam, por caminhos diversos, manter o Brasil no campo democrático e buscar soluções estruturais para as necessidades da maioria. A extrema direita no poder, com um projeto que se assemelha ao fascismo, racista, excludente, reacionário e hierárquico, associado aos interesses econômicos mais predatórios do país é uma ameaça existencial a todo democrata verdadeiro.

Eu, particularmente, considero que uma saída democrática do impasse em que nos encontramos e a superação rápida e efetiva da necropolítica que vem sendo aplicada com patológica frieza pelo governo pressupõe um amplo entendimento entre as forças políticas nacionais. Vivemos o pior momento da história da Terceira República, inaugurada com a Constituição de 1988. É inédita a superposição de crises pandêmica, de governança, econômica e política, gerando enorme estresse institucional. Só não houve retrocessos muito perigosos, como a sonegação de informações sobre o avanço da pandemia pelo ministério da Saúde, ou a flexibilidade precipitada e sem respaldo médico do isolamento social, porque a Justiça bloqueou essas decisões com liminares.

São muitas as decisões insensatas interrompidas por decisões judiciais ou por decretos legislativos. Isto mostra que as instituições de freios e contrapesos estão funcionando. Contudo, não é normal que funções regulares de governo, decisões de políticas e escolhas de governantes tenham que ser recorrentemente corrigidas ou obstadas por intervenções do Legislativo e, principalmente, do Judiciário. Não existe a possibilidade de um governo funcionar à base de liminares delimitando seu campo de ação. Mas, este bloqueio legislativo e judiciário se faz indispensável diante dos danos que as escolhas de Bolsonaro podem produzir, sobretudo no campo da segurança coletiva frente à pandemia.

Para que possamos superar com rapidez e eficácia a ameaça autoritária que já se desenhou, não é possível confiar em um acordo com Bolsonaro, como parece fazer o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Tóffolli. Bolsonaro não faz acordos. Quer a aceitação de suas escolhas pelos outros Poderes. A única alternativa é a união de todos os setores democráticos da sociedade em uma frente plural para barrar o avanço autoritário.

Volto a meu ponto central. Uma frente se constrói com diálogo e pela entrada voluntária de lideranças e forças políticas na conversação. Não há espaço para cooptação ou indução de adesões. Ela requer um movimento espontâneo. Há lideranças que têm a capacidade e o descortino para atuar como viabilizadores cívicos, propiciando oportunidades para o encontro de forças atritadas em torno de uma agenda mínima comum pró-democracia. É o papel inverso ao dos viabilizadores da tirania que apoiam o avanço autoritário, mesmo não tendo confiança, nem particular apreço pelo governante no poder, imaginando que para eles sairá tudo bem. No caso de uma frente democrática, os viabilizadores têm a noção cívica de que construir pontes entre forças até agora adversárias é uma ação necessária para a preservação e o aprofundamento da democracia. É este o caminho que tornaria possível a tão necessária frente democrática.

*Sérgio Abranches é cientista político


Sérgio Abranches: Bolsonaro em modo defesa

Presidente já perdeu a capacidade de governança

A aproximação de Bolsonaro com o centrão é uma mudança de modo de governo. Ele não quis formar uma coalizão majoritária, quando tinha condições políticas e poder de barganha para tanto. Agora não tem, nem uma, nem outra. O desgaste precoce, o conflito com o Legislativo, o Judiciário e os governadores, as trapalhadas na pandemia e o caso Moro lhe tiram as condições objetivas de negociar a maioria. Escolheu ser um presidente minoritário e o será até o fim. Então, o que ele e o centrão negociam?

Certamente nada parecido com uma coalizão programática, ou o mais próximo disso, como imagina o vice-presidente, general Mourão. Bolsonaro está em modo defesa. Este modo tem precedente na história recente do presidencialismo brasileiro. Foi o que paralisou de vez o governo Michel Temer, depois do “caso JBS”. A presidente Dilma Rousseff até ensaiou algumas tentativas nesse modo, mas não teve sucesso.

Bolsonaro cometeu dois erros políticos importantes. O primeiro foi demitir o ministro da Saúde. Ao fazê-lo, perdeu a possibilidade de ter pelo menos esta parte do governo atuando de forma positiva na pandemia. Agora ficou claro que o governo federal é parte do problema no avanço da Covid-19, o que enfraquece seu apoio social. O outro foi forçar a saída de Sergio Moro. Perdeu o apoio de parte dos que votaram nele para combater a corrupção e expôs-se num caso rumoroso de comportamento irregular. Este pode se agravar com a revelação do vídeo da reunião ministerial em que pressionou o ministro da Justiça a intervir na Polícia Federal. Teve que entrar em modo defesa. Um sacrifício para quem vive do confronto.

O modo defesa leva o presidente a negociar sua imunidade junto ao Parlamento, em troca de cargos e fatias do Orçamento. Imunidade para bloquear autorizações para que seja processado por crime comum pelo Supremo Tribunal Federal e para evitar a aprovação de pedidos de impeachment. Não faz parte da troca qualquer apoio a uma agenda de políticas. O modo defesa produz uma colusão e não uma coalizão. A colusão é sempre uma aliança negativa, nunca uma união propositiva. Não precisa de maioria, apenas de número de votos suficiente para bloquear a formação da maioria qualificada na Câmara dos Deputados necessária para autorizar o processo ou o impeachment, que é de 2/3. Bastam-lhe 172 votos. É muito mais caro em cargos e recursos do que a coalizão. O presidente fica refém e tem que pagar resgate o tempo todo.

Uma das características do modo defesa no presidencialismo de coalizão é a paralisia legislativa. Houve, porém, uma mudança na atitude do Legislativo, que aumentou seu poder de manejar a agenda decisória, diante da fraqueza política de Bolsonaro. O Legislativo se tornou mais ativo. O que antes era paralisia decisória, agora passou a ser um jogo de voto e veto. O Legislativo vota o que quer, aumentaram muito as proposições de iniciativa dele próprio, e o presidente veta o que não quer. Sempre com o risco de ver seus vetos derrubados. Outro traço do modo defesa é a crise política permanente. Estamos em crise política crônica desde o segundo governo Dilma. Há momentos em que ela se acalma, como no primeiro ano de Temer, e outros em que se torna aguda, como agora.

Bolsonaro já perdeu a capacidade de governança. A dúvida é se terá condições de manter o mandato. Isto lhe custará cargos, recursos e a política econômica. Para ficar com o mandato, terá que abandonar a política de Paulo Guedes que o sustenta no mercado financeiro. Ele terá que evitar conflitos com seus neoaliados no Congresso e abandonar a atitude de confronto com os governadores a eles ligados, além de reduzir o contencioso com o Legislativo. Como Bolsonaro só opera por confronto, será que consegue manter sua colusão de pé?

*Sérgio Abranches é cientista político


Sérgio Abranches: Uma questão de responsabilidade

Mau exemplo do presidente é uma ofensa ao cargo e um desrespeito às autoridades sanitárias e à população brasileira

A presença do presidente da República em uma manifestação pública em meio a uma ameaça concreta de epidemia da Covid-19 tem muita gravidade. A atitude do presidente desfaz todo o cauteloso trabalho de seu ministro da Saúde, desobedece as recomendações das autoridades sanitárias, de epidemiologistas e da OMS.

Há formalidades inerentes ao exercício da Presidência que são inescapáveis. Uma delas, está na Constituição, é respeitar o decoro do cargo. Ao violar publicamente medidas cautelares explícitas, durante a crise sanitária que se agravará nas próximas semanas, o presidente feriu o decoro. É o seu governo, junto com os governos estaduais, que recomendam evitar aglomerações e contatos físicos.

O mau exemplo do presidente é uma ofensa ao cargo e um desrespeito às autoridades sanitárias e à população brasileira. Sugere que a pandemia não tem a importância que os médicos dizem que ela tem. É uma atitude irresponsável. Atua-se com o cenário de maior gravidade, porque é uma epidemia sem precedentes, cujos desdobramentos se desconhece.

Bolsonaro fere o decoro e desrespeita os limites constitucionais da Presidência ao dar apoio explícito a uma manifestação antidemocrática, contra o Legislativo e o Judiciário. São Poderes Republicanos que o presidente tem a obrigação constitucional de respeitar e defender.

A mentalidade autoritária de Bolsonaro é notória. Mas, ao tornar-se presidente, ele se comprometeu a respeitar o código de deveres do cargo, que desrespeitou em duas dimensões. A comportamental, ao participar de manifestações de rua que elevam o risco de ampliação do contágio. Sua presença é um péssimo exemplo à população. A institucional, ao convalidar ataques aos Poderes constituídos da República.

Ao agir assim, o presidente comete crime de responsabilidade. Fere o decoro, estimula ataques aos Poderes constitucionais e induz a população a subestimar os riscos associados à uma grave epidemia sem precedentes.

*Sérgio Abrances é sociólogo, cientista político e escritor


O Globo: 'Caminhamos para a paralisia do governo', afirma Sérgio Abranches

Criador do termo ‘presidencialismo de coalizão’ diz que Bolsonaro frustra parte de seu eleitorado e prevê que governo não conseguirá caminhar se não resolver articulação com Congresso

Thomas Traumann,  O Globo

RIO - Em 1987, quando a Constituição ainda estava sendo debatida no Congresso, o cientista político Sérgio Abranches, hoje com 70 anos, cunhou a expressão “presidencialismo de coalizão” para definir as novas relações entre o o Executivo e o Legislativo. Sem maioria no Congresso, o presidente seria forçado a compor seu governo com aliados. Essa relação complexa dominou a política até Jair Bolsonaro se eleger. “Este presidente se recusou a fazer a coalizão e se nega a se articular com os partidos. Não há possibilidade de funcionar”.

Passados seis anos, quais foram os gatilhos das marchas de 2013?
Primeiro havia uma insatisfação generalizada com a economia, sinais de que o poder de compra da população estava comprometido. Isso criava uma insatisfação difusa. O segundo componente foram as redes sociais, a possibilidade de as pessoas saberem que existem outras tão insatisfeita quanto elas. Aí, um grupo mais organizado chamou para discutir a questão das tarifas de ônibus, e o que começou como uma coisa pontual se espalhou como um protesto generalizado porque havia gente descontente com o desemprego, outros com a política, outros com a corrupção.

Esses são movimentos de contágios, igual à Primavera Árabe (na África e Orienta Médio) ou dos Coletes Amarelos (França). É um movimento que reflui quando vai para a violência, com os Black Blocs, mas deixa nas pessoas a sensação de “foi legal ter ido para a rua. Pelo menos eles nos ouviram em algumas coisas”.

A partir de 2013 as ruas foram tomadas pela direita. Por quê?
Depois do lacerdismo (do ex-governador Carlos Lacerda, 1914-77) não apareceu ninguém capaz de legitimar o sentimento de direita. Ele ficou no armário, enrustido, enquanto PSDB e PT dominavam o debate. Mas quando os direitistas encontram outros falando sem censura o que eles só pensavam, passamos a ver a verdadeira cara do espectro ideológico brasileiro.

Por que uma das novidades nas manifestações recentes é a defesa da intervenção militar?
Não é saudade, é ignorância. Aquela maioria com cartazes dizendo “volta” é de gente que nunca viveu a repressão, não teve pais perseguidos e mortos. Nunca me preocupei com a demanda de volta dos militares porque é de gente que não sabe o que está falando. E os que sabem são uma minoria que não vão vingar.

O que achou das declarações de Eduardo Bolsonaro e Paulo Guedes sobre AI-5?
As menções ao AI-5 são feitas como ameaça. Nos dois casos referiam-se aos protestos do Chile e prometiam o AI-5 se ocorresse algo assim por aqui. Por outro lado, mostra que eles têm medo das ruas.

O mais importante são as muitas transgressões à democracia que o governo vem fazendo ou estimulado seus simpatizantes a fazer, como perseguições aos que pensam diferente, ameaças a professores que dão tópicos que eles consideram “ideológicos”; aparelhamento do estado para desmontar mecanismos de fomento à cultura e às artes; censura, que chamam de “filtragem” nas concessões para áreas de pesquisa; ameaças a funcionários que querem cumprir o seu dever, no Ibama e, no ICBMBio.

O ministro da Educação promete deixar as áreas de filosofia e ciências humanas sem apoio. Há muita vingança e retaliação por parte de membros do governo contra instituições nas quais não conseguiram entrar ou progredir por mérito. São inúmeras as ameaças à liberdade de expressão e à liberdade de cátedra. A tentativa de Bolsonaro de tirar a "Folha de S. Paulo" da licitação para renovar assinaturas, os ataques à TV Globo. Estão fazendo o país escorregar para o autoritarismo. Há risco institucional e, até agora, pouca reação articulada a essas ameaças

Por que o discurso anticorrupção é tão popular?
Somos uma sociedade muito desigual, que se urbanizou tardiamente e muito rapidamente. Nossa classe média por muito tempo era toda estatal ou trabalhava em empresas fornecedoras do setor público. Com a crise dos anos 90 e as privatizações, temos a formação aceleradíssima de uma classe média capitalista, urbana, civil, que trabalha em empresas independentes do Estado.

É uma classe média que convive com o risco da demissão, sensível à inflação e com visão de curto prazo, que produz uma memória curta também. Quer dizer, eu me lembro das minhas aflições mais presentes. As minhas aflições passadas já não lembro porque eu tenho mais com o que me preocupar. Portanto, é uma nação que se desaponta rapidamente, muda de opinião constantemente e culpa o establishment político por essa frustração recorrente.

A antipolítica é uma regra?
Se formos pegar o período pós-militar, todos os candidatos tentaram de alguma forma se apresentar como fora do establishment: o Collor era o caçador de marajás; Fernando Henrique, o pai do Plano Real; Lula, o cara que veio da pobreza; a Dilma era a gerente e o Bolsonaro, apesar de tantos anos como deputado, também se vendeu como antipolítica.

O senhor cunhou a expressão “presidencialismo de coalização” para definir as relações entre o Palácio do Planalto e o Congresso. Por que existe a imagem de que essas relações são sempre espúrias?
Talvez porque ela tenha sido espúria mesmo, né? Agora, a realidade é mais sofisticada do que a noção de que um bando de ladrões entrou na política para assaltar os cofres públicos.

Tem a ver com o nosso sistema institucional, que desde os militares está baseado em um governo central que arrecada tudo, manda em tudo, e em governos estaduais e municipais
dependentes demais da União. Então, o presidente é o que tem recursos para doar e os deputados e senadores são os demandantes dessas verbas. Para se reeleger, eles precisam que o governo federal atenda suas comunidades. E essa necessidade de atender os estados produz uma distorção na função do Legislativo.

O congressista deixa de se preocupar com legislação e fiscalização do Executivo e passa a ser uma espécie de despachante, de vereador federal. Por isso, a pauta do Congresso é sempre fiscal. É sempre “me dá um dinheiro aí porque meu estado está com problema”. E a pauta do governo federal é sempre uma pauta de reforma porque essa pressão fiscal é insustentável financeiramente. Então, ficamos presos a uma armadilha. Temos um problema estrutural que não se resolve exclusivamente com leis anticorrupção, é preciso preparar os estados e municípios para serem autossustentados.

Olhando em perspectiva o cenário de 2015, com as primeiras manifestações do impeachment, o governo Dilma perdendo a maioria no Congresso, a explosão do desemprego e da inflação, o impasse político era evitável?
Só se Lula tivesse escolhido outra pessoa em 2014 e tirado a Dilma.

Em 2018, o desemprego já afligia 13 milhões de trabalhadores, o ex-presidente Lula estava preso, houve o atentado em Juiz de Fora... A eleição do Bolsonaro era inevitável?
Para isso era preciso que o candidato do PSDB não fosse o Alckmin e o PT tivesse lançado o Haddad logo no começo. Mas a quantidade de condições necessárias para manter a polarização PSDB-PT era tamanha que provavelmente o Bolsonaro era mesmo inevitável.

Em um artigo recente, o senhor escreveu que a desilusão dos eleitores com o poder de voto para mudar a suas vidas pode aumentar.
A minha sensação é de que os eleitores brasileiros em 2022 vão querer votar. Porque como o presidente Bolsonaro vai governar o tempo todo em confronto e isso produz uma reação negativa na sociedade em busca de alguém que os eleitores imaginem ser capazes de derrotar o Bolsonaro

Haverá um antibolsonarismo em 2022 como houve um antipetismo em 2016 e 2018?
Sim, nossa história é de seguidores fiéis versus uma massa que rejeita esse líder.

Já está dado que a campanha de 2022 será entre Bolsonaro e o PT?
É cedo, muito cedo. Qualquer candidato que se apresente agora será alvo de vários lados. É desgaste na certa. Antecipação de campanha nunca funciona como os candidatos querem. A conjuntura é muito dinâmica. Pode alavancar ou fazer naufragar os que se lançam afoitamente. Muita coisa pode ainda acontecer, que crie condições propícias ao surgimento de uma candidatura alternativa à polarização que elegeu Bolsonaro.

Qual a sua avaliação dos discurso de Lula pós-soltura?
Se Lula persistir na ideia de polarizar com Bolsonaro e não conseguir afastar sua inelegibilidade, decretará a derrota de quem saia pelo PT em seu lugar. Facilitará a recandidatura de Bolsonaro. Se fizer uma campanha com o discurso que usou na saída da prisão, corre certamente o risco de perder. Lula tem condições de formar uma frente pela democracia, mais ampla. Até agora não mostrou querer assumir este papel.

Muitas lideranças políticas e intelectuais do PT continuam a atacar setores democráticos que não apoiaram o partido, principalmente no governo Dilma. Fazem como Bolsonaro. O presidente declara qualquer um que pense diferente dele como “petista”, “vermelho" ou “comunista”. Parte dos petistas trata opositores como se fossem “bolsonaristas” ou “golpistas”. Há, no entanto, lideranças importantes e mais conscientes no PT que defendem uma frente mais ampla, pela democracia. Espero que elas prevaleçam e convençam Lula.

A que o senhor atribui a queda de popularidade do governo?
Bolsonaro prometeu uma mudança instantânea, gerou uma expectativa muito difusa e produziu frustração por causa do amálgama muito disforme do eleitorado que o elegeu. Uma parte grande queria alguém que fosse o anti-PT. Hoje esses olham o caso Flávio Bolsonaro e falam “qual é a diferença?”. Por outro lado, a situação econômica piorou. Embora a inflação tenha caído, o desemprego persistiu, portanto, a renda real continua muito baixa. E as pessoas querem um alívio imediato.

Essa frustração ameaça o futuro do governo?
Se olharmos o modelo que organizou a política brasileira desde a Constituição de 1988, Bolsonaro precisa de uma coalizão no Congresso, uma articulação política eficiente, uma pauta substantiva que gere também mudanças de curto prazo. Ele não está cumprindo nenhuma dessas condições. Portanto, por esse modelo, o governo não vai dar certo e não vai terminar o mandato. Só que...

...esse modelo não existe mais.
Teve a ruptura. O presidencialismo de coalizão não está funcionando, qual é a previsão do modelo? É de que vai haver um conflito crescente entre Executivo e Legislativo, vai haver uma paralisia decisória, produzindo uma piora generalizada das condições da sociedade e o governo cai. É o que diz o modelo, mas o modelo pode não funcionar. Mas este é o governo mais frágil desde Collor do ponto de vista de sustentabilidade.

Mas o Congresso hoje não dissipa os confrontos e leva adiante as reformas?
Tem um mito hoje no mercado financeiro sobre o poder do Congresso. Só que o protagonismo do congresso no presidencialismo tem um nome: chama-se crise política. Se o presidente não tem protagonismo significa que alguma coisa está errada. Este presidente se recusou a fazer a coalizão, se nega a se articular com os partidos e prefere falar com os congressistas individualmente. Não há possibilidade de funcionar. O presidente precisa ocupar a agenda legislativa não é só para aprovar as coisas que quer aprovar; é para evitar que sejam aprovadas coisas que possam atrapalhar o seu governo.

Falta coordenação?
Sim, o desalinhamento das eleições deixou o Legislativo sem um partido pivô. No caso do FHC, era PSDB e PFL. Com Lula e Dilma, era PT e PMDB. Sem um pivô, a tendência é a dispersão. O Congresso ou vota pontos já consensuados, como a reforma da previdência, ou para retaliar o governo, como nas derrubadas de vetos. Esse suposto protagonismo do Congresso é efêmero. A tendência é a divisão. Caminhamos para uma paralisia do governo.

A criação da Aliança pelo Brasil afeta essa sustentação no Congresso?
O governo não tem base governista, por escolha. O presidente decidiu ficar sem coalizão e, agora, sem partido. Está criando uma casca sem miolo com a tal Aliança, se vai virar ou não um partido, a ver, a partir das próximas eleições gerais. Sem coalizão, não se pode falar em base governista. O que Bolsonaro tem é viabilizadores, políticos do DEM e do PSDB que usam sua liderança, experiência e penetração entre os parlamentares para patrocinar reformas, que o governo não se dispôs a articular e liderar. Mesmo revistas ou até redigidas por deputados e senadores, elas vão para a conta do presidente. Afinal, nosso regime é presidencialista e não parlamentarista.

Qual o efeito de o Bolsonaro ser o primeiro presidente com forte vinculação com as igrejas evangélicas?
A adesão das igrejas evangélicas ao Bolsonaro foi brutal. A questão é saber se a defesa da pauta de costumes basta. Porque os eleitores evangélicos também comem, trabalham, são demitidos…

Os sinais de uma economia melhor não ajudam?
Depois de um ano de governo, as pessoas já começam a culpar o governo Bolsonaro pelo seu desconforto. Não é mais o governo do PT. E não estou falando só de percentagem do PIB, mas do que acontece realmente na vida das pessoas. A economia brasileira está parada há muito tempo. Muita capacidade ociosa. Com pouco impulso, tende a crescer, porém moderadamente. 2022 está muito longe neste sentido.

Qualquer previsão que ultrapasse 2020 é muito imprecisa, condicional a mudanças na conjuntura interna e internacional. Para o ano que vem, há dois problemas novos. O acordo, precário, vá lá, entre EUA e China, que vai fazer os chineses trocarem parte da importação de soja brasileira, por soja americana. E o imposto que o governo argentino decidiu impor sobre as exportações de trigo pode pressionar a inflação interna. Sempre haverá muita pedra no caminho desta transição global, que primeiro se manifesta como uma sucessão de crises.


Sérgio Abranches: Ao deixar PSL, Bolsonaro fica mais dependente de base informal no Congresso

Presidente assume o risco de se apoiar em uma minoria ainda mais diminuta

Desde a posse do governo, ficou claro que o modo de governar de Bolsonaro seria sempre tenso. O presidente busca o conflito. Ao deixar o PSL e criar seu próprio partido, de extrema-direita, opta pela posição inédita de ficar uma parte do mandato sem partido. Assume o risco de se apoiar em uma minoria ainda mais diminuta, se a nova legenda não atrair mais do que os 30 do PSL que espera que o acompanhem. Trocaria a posição de segunda bancada para ficar com a nona.

Com esta decisão, que abre mais algumas linhas de confronto, agrava-se a posição do presidente sem coalizão. Ele fica ainda mais dependente de articuladores independentes, cujas agendas têm cada vez menos interseções com a pauta presidencial. Até agora, conseguiu aprovar projetos, principalmente na economia, sobre os quais há maior consenso entre os partidos que se situam do centro à direita do espectro político.

No primeiro ano de governo, o apoio decisivo a Bolsonaro tem vindo do presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), e do PSDB. Maia tem sido o real articulador da agenda econômica do governo e o PSDB, seu viabilizador. O papel do PSDB na reforma da Previdência, que relatou nas duas Casas do Congresso, foi fundamental na sua aprovação. Os relatores terminam por absorver e processar a maior parte da pressão política desviando-a do governo.

Os viabilizadores da agenda governamental têm corrigido erros e exageros, reduzindo pontos de veto. Mas, a margem para a ação deste bloco de apoio é estreita e se esgota nas pautas mais controvertidas.

Na agenda política e de costumes, a base informal não funciona. Elas e divide também em questões político institucionais, como na proposta extemporânea do presidente do Senado, Davi Alcolumbre, de se recorrer a uma Constituinte para resolvera divergência em torno do cumprimento da pena após sentença em segunda instância. Seria provocar um vespeiro em um contexto político tão polarizado e tenso, com enorme risco de sérios retrocessos institucionais.

*Sérgio Abranches é sociólogo e cientista político


O Estado de S. Paulo: ‘Não é momento de discutir 2ª instância no Congresso’, diz Sérgio Abranches

Para especialista, mudar a lei só para punir políticos não é bom: ‘Tem de ter uma discussão de direito, filosófica, doutrinária’

Paulo Beraldo, de O Estado de S. Paulo

O Congresso Nacional deveria julgar em outro momento a possibilidade de uma Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que determine o cumprimento da pena após condenação em segunda instância, segundo o cientista político Sérgio Abranches.

Segundo ele, o debate político está contaminado pela soltura do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na última semana, após 580 dias preso. “Fazer uma mudança institucional apenas para punir ou permitir que alguém escape de punição não é bom. Tem de ser uma discussão de direito, filosófica, doutrinária”, afirmou. Abaixo, os principais trechos da entrevista.

Na sua avaliação, o que a soltura do ex-presidente Lula muda no cenário político brasileiro?
A oposição estava muito desarticulada e o principal partido da oposição no Congresso é o PT, que tem a maior bancada da Câmara e bancada razoável no Senado. E o PT estava, basicamente, envolvido no movimento “Lula Livre”, sem uma liderança clara. Com a saída do Lula, o impacto maior é estruturar e coordenar a direção da oposição.

Há uma tese de que, caso o ex-presidente tenha um discurso mais radicalizado, isso pode favorecer Bolsonaro. Como vê isso?
Se Lula optar por uma polarização que leve a sociedade a ver o mundo entre lulismo e bolsonarismo, de fato será pouco produtivo e tende a dar a Bolsonaro e ao movimento que o levou ao poder mais longevidade e importância do que de fato ele tem. Agora, se fizer uma oposição estruturada, capaz de fazer frente às investidas do governo, seria positivo. O Lula é a liderança com maior capacidade de articular uma frente ampla contra o autoritarismo A questão é saber se ele vai querer.

Como o senhor avaliou as primeiras manifestações de Lula após sua soltura?
Tomei como um desabafo. Ele ficou por um longo período sem poder falar de forma mais ampla, por 580 dias, apenas entrevistas ou mandando recados. Mas (ele) é um ser político e, agora, vai começar a refletir mais sobre qual papel estratégico ele vai desempenhar neste momento tão complicado.

Existe interesse nos comandos do Senado e da Câmara dos Deputados em discutir uma proposta que assegure a possibilidade de prisão em segunda instância?
A discussão da segunda instância está contaminada por uma série de questões subjetivas e não de procedimentos de direito. Se fôssemos julgar abstratamente, é evidente que no Brasil a ideia do trânsito em julgado e a noção de quando é legítimo e justo iniciar o cumprimento da pena é leniente demais. Entendo que o cumprimento da pena a partir da segunda instância é o melhor caminho, de maneira abstrata.

Há clima para essa discussão?
Vejo várias complicações. Nesse clima de radicalização e particularização de questões, talvez o Congresso não seja capaz de tomar uma decisão objetiva. Se ficar como uma tentativa de fazer com que o Lula ou o José Dirceu voltem a cumprir pena, é um mau começo. Se entrar o interesse dos parlamentares que estão prestes a serem julgados na segunda instância, também é ruim. Isso mancharia a legitimidade dessa decisão que já está muito contaminada pela instabilidade da decisão do Supremo Tribunal Federal, que é inexplicável e inaceitável uma Corte Constitucional mudar em tão pouco tempo várias vezes de opinião a respeito de uma questão tão importante. Então, fazer uma mudança institucional apenas para punir ou permitir que alguém escape de punição não é bom. Tem de ser uma discussão de direito, filosófica, doutrinária.


Sérgio Abranches: Essa onda populista vai passar

Quando a direita populista começou a ganhar eleições na Europa e, depois, nos Estados Unidos, formou-se consenso generalizado de que era uma tendência global. O desencanto com democracia representativa, que fora dominada por social-democratas, socialistas e coalizões progressistas, abria espaço para longo período de hegemonia da direita. Os precursores pareciam ser a Alemanha, o Reino Unido e a Espanha, onde a direita conquistara o poder bem antes.

O avanço do populismo em várias democracias do mundo está associado à falta de respostas estruturais, que funcionem, para os problemas criados por uma transição global radicalmente transformadora. Além disso, crises fiscais resultantes dos estreitos limites impostos pelo capital financeiro global, pivô do novo padrão de financiamento de governos e empresas, levaram à imposição de programas de austeridade que solaparam a legitimidade dos governos de esquerda e centro-esquerda. Apenas Portugal, com sua geringonça, uma coalizão de esquerda, resistiu à austeridade-modelo e reajustou as finanças sem sacrificar o legado progressista da era social-democrática. O êxito dessa divergência será testado nas próximas eleições de outubro.

A transição gera instabilidade macroeconômica e social e põe em cheque modelos de negócios e a eficácia representativa das democracias, em sociedades fluidas, que mudam rapidamente, impulsionadas por forças sociais emergentes e pressionadas por forças sociais em declínio. Este entrechoque entre forças desiguais inquieta e desestabiliza. As emergentes não tinham, e talvez ainda não tenham, recursos de poder, influência e mobilização suficientes para confrontar aquelas em declínio, acostumadas ao exercício do poder, portanto mais experientes no manejo da política.

O que parecia uma tendência avassaladora e durável, está dando sinais de ser uma onda, que parece começar a refluir. O primeiro sinal foi a vitória da centro-direita sobre a direita ultranacionalista na França. Seguiram-se as derrotas do PP na Espanha, culminando na vitória e no governo liderado pelo PSOE. O crescimento dos Verdes e o resultado aquém do esperado dos ultranacionalistas, nas recentes eleições para o parlamento europeu, mostraram mudança na direção do vento, a soprar só para a direita. Nessas eleições, o partido mais extremista da direita alemã, o AfD perdeu posições. A dupla derrota de Recep Tayyip Erdoğan na eleição para a prefeitura de Istambul, na Turquia, soma-se a essas pistas de refluxo. Que estão presentes, também, na retomada social-democrática nas democracias nórdicas, Islândia, Finlândia, Suécia e Dinamarca.

Isto não significa, todavia, que estejamos diante de uma renascença social-democrática ou socialista no mundo. O que todas essas eleições, sobretudo para o parlamento europeu, indicam é a fragmentação política. Uma fragmentação que já pôs em cheque o bipartidarismo do modelo original de Westminster, de voto majoritário-distrital, no Reino Unido, desde a coalizão dos Conservadores de David Cameron, com os social-liberais de Nick Clegg. Ela está evidente nos 24 candidatos concorrendo às primárias do Partido Democrata nos Estados Unidos, a cobrir um espectro político que vai da centro-esquerda à esquerda socialista. Tenho tratado dessa tendência à fragmentação e ao realinhamento partidário no Brasil. As eleições de 2018 contiveram os dois movimentos, a onda populista de direita, que elegeu Bolsonaro no segundo turno, e a fragmentação, que produziu o congresso mais fragmentado partidariamente de nossa história e do mundo.

O mais provável é que a tendência seja à fragmentação política, que levaria a um realinhamento partidário futuro, com provável emergência de novos partidos, mais alinhados ao “espírito do tempo” e progressivamente mais representativo das forças sociais emergentes da transição que se ,mostrem mais enraizadas estruturalmente. O refluxo da onda de direita seria perfeitamente compatível a essa tendência à fragmentação e posterior realinhamento partidário.

E, por que a onda de direita refluiria? Porque essas lideranças apelam para a raiva, a decepção e o desencanto da maioria com a persistência dos problemas e a falta de representatividade da velha política. São, porém, incapazes de oferecer soluções estruturais que mitiguem os efeitos da transição e a tornem menos inóspita. Ao contrário, medidas ultranacionalistas, a radicalização nos costumes, a rejeição aos imigrantes, o racismo, a intolerância religiosa, a homofobia, a aposta na violência policial, nada resolvem. Apenas aumentam a rejeição a esses governos e à política. Desta forma, aumentam o desconforto geral. A decepção com o que parecia uma alternativa, uma novidade, amplifica o desgosto e afasta as pessoas da política. Pode dar em uma nova forma de alienação coletiva, um distúrbio da transição, que agrava a falta de opções políticas viáveis, democráticas e eficazes. Esse quadro de frustração, ao mesmo tempo que retira cidadãos, voluntariamente, da arena eleitoral, tende a aumentar a fragmentação política e partidária, na busca aflita por novas opções inovadoras.

Este é um quadro em muito maior sintonia com a grande transição que tenho analisado, inclusive neste espaço. Transformações radicais, como que experimentamos globalmente, são, por um tempo imprevisível, desestabilizadoras. As velhas estruturas ruem, antes que as novas possam assumir seu lugar. São momentos de incerteza, insegurança e medo. Tudo isso provoca desalento e indignação, levando a buscas desatinadas, que abrem espaço para a sedução dos populistas. Estes revelam-se, entretanto, pregadores de esperanças vãs. Ondas como essa do populismo de direita podem voltar a ocorrer, do mesmo modo que ondas de populismo de esquerda. Mas, a tendência persistente é a da fragmentação decorrente dessa busca de novidades políticas. Com o amadurecimento das formações sociais que emergem da transição estrutural, talvez se dê um realinhamento das forças políticas, gerando novos sistemas partidários, profundamente modificados e a consequente renovação da democracia representativa, que pode se tornar mais participativa e aberta.

* Sérgio Abranches é cientista político, escritor e comentarista da CBN.


Sérgio Abranches: Democracia líquida

As democracias são, a um tempo, frágeis e resilientes. Implica-se muito com o uso indiscriminado do conceito de resiliência, tomado de empréstimo da física para tratar da adaptabilidade, maleabilidade dos regimes políticos. Mas, não vejo melhor forma de caracterizar esta intrigante construção iluminista, inspirada nas experiências clássicas da Grécia e de Roma. Ambas conceitualmente ricas, mas concretamente limitadas. Dos ecossistemas resilientes, diz-se que têm a capacidade de retornar à condição original de equilíbrio, após suportar alterações ou perturbações ambientais. Resiliência é a habilidade para resistir, lidar e reagir de modo positivo em situações adversas.

A democracia tem essa capacidade plástica de amoldar-se, absorvendo os choques adversos, para reencontrar o equilíbrio, após as perturbações. É um sistema institucional capaz de das respostas positivas, de se reorganizar em situações desfavoráveis à sua estabilidade e permanência. Ela muda, reconstrói-se, reequilibra-se, em alguns casos, pode até entrar em recesso, mas restaura-se, após os traumas e surtos autoritários.

Democracias vivem sob risco. É possível falar-se em variações no grau no risco que enfrentam a cada momento histórico. Por sua própria natureza, esse regime peculiar cria perigos para si mesmo. Explico. As democracias abrigam seus maiores inimigos, deixando que votem e sejam votados. Um modelo de governabilidade com tal grau de abertura e tolerância é, necessariamente, contraditório.

Ele dá aos adversários das liberdades democráticas o direito de atuarem, nos seus generosos limites institucionais, contra seus próprios princípios fundamentais. No após Segunda Guerra, têm sido esses inimigos, que usam as eleições para poder atacar a democracia por dentro, os principais responsáveis por recessos da democracia. Lideranças autoritárias se elegem e tentam impor-se ao Parlamento, manipular as maiorias no Judiciário, para eliminar o princípio da incerteza. Essa manipulação busca assegurar que as decisões sigam sempre a vontade do governante e, não mais, a fluida composição das maiorias instáveis. Foi o que se deu na Venezuela, na Hungria, Turquia e na Polônia. Pode acontecer nos Estados Unidos e no Brasil.

A democracia se nutre da incerteza. Primeiramente, da incerteza eleitoral. Suas características fundadoras, assentadas nas liberdades e na representatividade, não resistem ao domínio longevo, previsível de governantes. Cada ciclo eleitoral, fonte de energia democrática, deve alimentar a dúvida não só apenas em quem ocupará o posto central do governo, presidente ou primeiro-ministro, mas também, quem deterá a maioria parlamentar. A alternância no poder é um antídoto contra as tendências autocráticas embutidas na possibilidade de perpetuação dos governos. Governos democráticos são, por natureza, precários, marcados pela provisoriedade inscrita no calendário eleitoral.

Democracia é um regime avesso às maiorias imutáveis, aos votos previsíveis.

A imprevisibilidade do resultado das deliberações parlamentares é o mais importante mecanismo de freio e contrapeso às autocracias. O encanto e a força da democracia estão na agregação das escolhas individuais, idiossincráticas, em um produto de deliberação coletiva, numa alquimia que faz o todo melhor que as partes.

O princípio da incerteza, que está no coração do organismo democrático, gera um processo de pressões e contrapressões, incentivos e desincentivos, que tende a resultados negociados, nos quais a maioria que se forma, para ser viável, deve considerar os interesses das minorias. É um sistema que busca o equilíbrio possível, dinâmico, sempre precário. Boa parte da resiliência da democracia está nesse sistema de forças que indica, como melhor resultado possível, aquele que é mais pluralista, isto é, contempla o maior número possível de preferências, evitando gerar danos incapacitantes a qualquer parte.

O máximo de bem, com o mínimo inevitável de mal. Nem é preciso adicionar que tal sistema ideal depende do exercício generalizado da tolerância e da simpatia. Sem aceitação do outro e certa compreensão da perspectiva do outro, não há como esforçar-se para minimizar os sacrifícios dos não contemplados nas decisões coletivas, com proteção garantida aos mais vulneráveis socialmente.

O politólogo americano Edward Burmila, escreveu recentemente na revista The Nation, artigo no qual fala dos perigos que as instituições democráticas correm no seu país, com a guinada dos Republicanos para a direita não-democrática. Aquela que não respeita as minorias, nem busca a melhor agregação possível dos interesses da maioria social. Ele argumenta que o risco institucional, hoje, só não é maior, porque Trump é um autocrata ineficaz. O dia em que um autoritário carismático emergir na direita, alertou, já há evidência suficiente de que as instituições e normas mais estimadas não salvarão os Estados Unidos. Com Trump, diz Burmila, o Congresso e o Judiciário já demonstraram que podem se dobrar à vontade até de um presidente impopular e inepto como ele. Imaginem com um autocrata polido e sedutor, conclui.

A democracia pode mesmo entrar em recesso, diante de lideranças populistas autoritárias e capazes de dobrar o sistema. Um recesso que causará dores severas e perdas talvez irreparáveis à sociedade. A fragilidade das instituições, quando autocratas ludibriam os freios e contrapesos que as protegem, neutralizando os princípios da liberdade e da incerteza, é, também, sua força. Exatamente porque a democracia não é sólida, ela não se desmancha facilmente no ar rarefeito.

A democracia é difícil de quebrar porque ela se amolda. Uma vez eliminada a força que a deformava, ela recupera sua forma, seu estado saudável. Com mudanças, novos freios e contrapesos para evitar a recorrência de um recesso pelo mesmo caminho, mas essencialmente a mesma, a democracia ressurge. No recesso, o ideal democrático alimenta a resistência, as insurreições e a rebeldia. É da sua natureza. Pressionada no topo, ela flui, escorre para a sociedade e dá força à voz potente das ruas.

Regimes de liberdade não comportam solidez. A mentalidade democrática é uma propriedade exclusiva das mentes abertas. A mente fechada é que abriga mentalidades autoritárias. Regimes abertos, compatíveis com a democracia, não discriminam nem seus inimigos. Regimes fechados, próprios ao autoritarismo, discriminam seus próprios aliados e simpatizantes. Por serem duras e fechadas, as autocracias sofrem rachaduras estruturais e, no limite, desmoronam.

* Sérgio Abranches é cientista político, escritor e comentarista da CBN.


O Estado de S. Paulo: ‘Presidente não demonstra capacidade de articulação’, diz Sérgio Abranches

Para Sérgio Abranches, falta de uma coalizão com o Legislativo traz dificuldades para a governabilidade

Paulo Beraldo, O Estado de S. Paulo

Passados quase três meses desde sua posse, o presidente Jair Bolsonaro não mostra forças para fazer uma “aglutinação” no Congresso, agravando a tensão entre Executivo e Legislativo, avalia o cientista político Sérgio Abranches. “Existe uma percepção de que coalizão é igual corrupção. Não é. O que está posto agora é ver como formar uma nova coalizão. Isso implica um projeto de governo bem articulado, um presidente que assuma a liderança disso e que queira formar maioria em torno de ideias que unam e não desunam.” Autor do termo “presidencialismo de coalizão” nos anos 1980, Abranches afirma que “não faz sentido” o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), ser articulador político de qualquer agenda do governo. “Quem tem de fazer articulação é o presidente e suas lideranças, e elas não estão dando demonstração de ter capacidade para essa articulação.”
A seguir, os principais trechos da entrevista:

Como o sr. vê o cenário político?
A eleição de 2018 encerrou o primeiro ciclo do presidencialismo de coalizão, que organizou governo e oposição de 1994 a 2014. Em 2018, houve a substituição de um sistema partidário por outro, um realinhamento. Todos perderam com a eleição de 2018, com exceção do PSL. Esse ciclo caracterizado pelo duopólio na disputa pela presidência entre PT e PSDB, que também organizava tanto governo quanto oposição, começou a dar problema em 2014, teve o auge da crise com o impeachment em 2016 e se confirmou em 2018 quando esse sistema que estava em exaustão se encerrou. O que vemos agora são os resultados disso.

Quais as consequências disso?
Do ponto de vista de organização de governo no Congresso, uma das principais dificuldades é a pulverização. Em 2002, as cinco maiores bancadas representavam 67% do Congresso. Em 2018, os cinco maiores partidos têm 41% das cadeiras. O maior partido é de oposição, o PT, vivendo uma crise interna, e o segundo é o PSL, um partido invertebrado, que tem dado demonstrações de que não tem capacidade de ser pivô de uma coalizão em torno da qual os outros se aglutinam.

Por que falta essa capacidade ao PSL?
Desde o início, Bolsonaro disse que não ia fazer coalizão e não fez o menor esforço para montar maioria no Congresso. Segundo, porque o partido não tem vertebração, ainda precisa se demonstrar como uma organização partidária com ideias. Em terceiro, porque a liderança do Bolsonaro não é suficientemente forte para fazer uma aglutinação no Congresso. Nenhum dos requisitos de estabilidade de governabilidade está amparado: um presidente minoritário, um partido inorgânico, a falta de uma coalizão articulada, relações tensas entre Poderes.

Como sair do impasse?
Existe uma percepção de que coalizão é igual corrupção. Não é. O que está posto agora é ver como formar uma nova coalizão. Isso implica um projeto de governo bem articulado, um presidente que assuma a liderança disso e que queira formar maioria em torno de ideias que unam e não desunam. A crise política tem a ver com o fato que o primeiro ciclo se esgotou e não houve nenhum esforço por parte da liderança vitoriosa de levar adiante um novo ciclo, de estabelecer novas bases para o relacionamento entre Legislativo e Executivo.

Como a prisão do ex-presidente Temer impacta esse contexto?
Ela acontece num momento de acirramento do conflito entre o Legislativo e um clima de tensão dentro do MPF, do STF e de juízes de primeira instância. Vejo que a magnitude política da prisão de Temer se torna mais um ingrediente da crise política. Dá mais munição para os partidos, sobretudo o MDB, fazerem pressão no Congresso, para criar mais impasses e obter mais concessões do Executivo. O MDB, que hoje tem 34 eleitos, pode fazer muita pressão, exatamente por não haver nenhum partido grande e pelo PSL não ter força nem experiência. Todo mundo perdeu poder e o próprio presidente, ao não ser capaz de exercer uma liderança unificadora e perdendo popularidade, também fica sem espaço para dar solução a essa pulverização do poder. Os três Poderes estão dominados por um processo conflituoso que tem a ver com questões políticas fundamentais associadas a essa maneira pela qual se esgotou esse ciclo.

O que a perda de popularidade representa para o governo?
Quanto menor a popularidade, menos capacidade tem de atrair apoio no Congresso. O que atrai é popularidade, carisma. Bolsonaro foi eleito por um conjunto muito heterogêneo de eleitores. É difícil atender expectativas tão diferentes. Até agora, não atendeu nenhuma delas, a não ser a questão das armas (facilitou a posse), que é controvertida.

Como fica, por exemplo, o projeto da reforma da Previdência?
Vai sofrer muito mais por conta da perda de popularidade. Se não surgir uma forma nova de ativar as decisões no Congresso, acho que a reforma terá muita dificuldade. Não faz sentido o presidente da Câmara ser articulador político de qualquer agenda do governo, mesmo que seja do interesse dele. Quem tem de fazer articulação é o presidente e suas lideranças, e elas não estão dando demonstração de ter capacidade para essa articulação. Então, acredito que essa reforma está no limbo, à deriva.