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Eliane Cantanhêde: O alvo foi o Capitólio, não as Torres Gêmeas, mas também foi terrorismo

Havia clara previsão de tumultos, depois da ordem de comando de Trump para seus seguidores entrarem em ação. E ele é o grande culpado

Não foi a Al Qaeda, não foram as Torres Gêmeas, não morreram quase três mil americanos, mas ainda assim o que ocorreu na (ainda) maior democracia do mundo não tem outro nome: foi terrorismo, um terrorismo doméstico, interno, contra o Capitólio (o Congresso dos Estados Unidos) e atiçado pelo próprio presidente da República, Donald Trump. E onde estava a Força Nacional?

É de uma gravidade imensa para os EUA e para o mundo, jogando luzes e temores também na democracia brasileira. Não é exagero. Afinal, o presidente Jair Bolsonaro segue todos os passos de Trump, contra o multilateralismo, o Acordo de Paris, a China e todas as orientações científicas no combate à pandemia – da “gripezinha” ao estímulo à cloroquina e ao pouco caso com as vacinas. E, como Trump, ataca o sistema eleitoral, joga denúncias irreais e irresponsáveis de fraudes no ar.

Mas não é só isso. Aqui no Brasil, como lá nos EUA, Bolsonaro e Trump jamais abrem a boca para condenar assassinatos cruéis cometidos por policiais contra negros e pobres, mas fazem todo um jogo de aproximação com as forças policiais e militares. Lá, as Forças Armadas, aparentemente, não caíram na esparrela. E aqui?

Chamam a atenção: 1) o quase embaixador em Washington Eduardo Bolsonaro estar nos EUA, confraternizando com os Trump justamente neste momento; 2) o tuíte misterioso do assessor internacional da Presidência, Filipe Martins, com uma mensagem que parecia ser “a cobra está fumando” e deixou a turba bolsonarista em êxtase, antes de ser apagada; 3) o silêncio do governo brasileiro.

Tudo é chocante: os trumpistas vandalizando o Capitólio, armados, quebrando janelas, ocupando o plenário, o assento e o gabinete da presidente da Câmara, Nancy Pelosi, diante de um punhado de policiais impotentes, assustados e em alguns momentos batendo em retirada.

E não foi por falta de aviso. Havia clara previsão de tumultos, depois da ordem de comando de Trump para seus seguidores entrarem em ação. Trump é o grande culpado. Negacionista, mentiroso, disseminador do ódio, incapaz de aceitar a derrota. Doente.

Ele, porém, não tem apoio apenas daqueles terroristas que invadiram o Capitólio. Tem apoio também de lunáticos de toda ordem que se amparam em ideologias nefastas para estimular armas, maus policiais, militares medrosos ou oportunistas e gerar... mortes.

Trump vai, mas o trumpismo fica e é exportado da maior potência para o mundo. O chanceler Ernesto Araújo dizia que só Deus salva o Ocidente da China e do comunismo. Na verdade, Deus precisa é salvar o mundo de Trump e seus seguidores.  


Correio Braziliense: Rodrigo Pacheco (DEM), com apoio do PSD, larga em vantagem pelo comando do Senado

Com o apoio do PSD, Rodrigo Pacheco larga bem na corrida pela Presidência. MDB tem quatro nomes viáveis, e Podemos e PSDB decidirão apoio no dia 15

Luiz Calcagno, Correio Braziliense

O apoio unânime da bancada do PSD à eleição do líder do DEM, Rodrigo Pacheco (MG), para a Presidência do Senado, abriu larga vantagem do candidato contra adversários. “Se fosse hoje”, comentou um congressista ao Correio, “ele estaria viabilizando a candidatura”. O acordo fechado deu uma boa vantagem ao postulante apoiado pelo presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP), pois a sigla tem a segunda maior bancada da Casa, com 11 integrantes. Para se eleger, um candidato precisa de 41 votos.

O caminho de Pacheco, porém, não está todo pavimentado. Podemos e PSDB se reunirão, no próximo dia 15, para discutir quem avalizarão. E o MDB, que luta para reconquistar o cargo, tem quatro nomes viáveis para a corrida eleitoral. O pleito está marcado para 1º de fevereiro.

O senador petista Paulo Paim (RS) destacou que Alcolumbre termina bem o mandato e que ele dialogou com todos os partidos durante a gestão. O trâmite nas mais variadas alas ideológicas do Senado deu força para que o atual presidente consiga impulsionar seu sucessor. Outro ponto importante é a atenção de parlamentares para que, diferentemente dos últimos dois anos, as duas Casas do Congresso não sejam comandadas por uma mesma legenda — a Câmara é dirigida por Rodrigo Maia (DEM-RJ).

Paim, que vê força em Pacheco, lembrou, no entanto, que “em política, tudo pode acontecer”. Ele disse ter recebido ligações dos emedebistas Simone Tebet (MS) e Eduardo Braga (AM), que também estão no páreo, para falarem sobre as eleições. “O candidato que dialoga e se apresenta no momento é o Pacheco. A Simone me ligou, o Eduardo Braga me ligou. Trocamos ideias. Mas, até o momento, não há candidato oficial”, afirmou. “Em política, tudo pode mudar do dia para a noite, mas, quando a posição começa a se consolidar, é difícil votar atrás. Na minha avaliação, a esquerda deve ter uma postura semelhante à da Câmara: trabalhar com a unificação de partidos e tentar fazer com seja eleito quem tem compromisso com democracia, política social e humanitária, soberania, independência do palácio (do Planalto). É o mínimo.”

Para Tebet, a postura do PSD não surpreendeu. “Sabíamos que parte dele já se alinhava na corrente que se coloca pela continuidade política na eleição da Presidência do Senado. A nota foi, apenas, algo assim como um registro cartorial”, disse, em referência ao comunicado da sigla.

Questionada sobre a força de Alcolumbre e de Pacheco, a senadora admitiu que o atual presidente do Senado é um forte cabo eleitoral. “Há elementos que o fortalecem, não há como negar. Mas também impedem outras legendas, mais independentes, ou insatisfeitas, de acompanhá-lo”, ponderou. Além de Tebet e Braga, são considerados candidatos viáveis o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra (MDB-PE), e Eduardo Gomes (MDB-TO).

O grupo Muda Senado — que colecionou insatisfações com a gestão de Alcolumbre, entre as quais a paralisação do projeto de lei da prisão após condenação em segunda instância, que tramitava na Casa — também não parece receptivo a Pacheco. Líder do Podemos e integrante do grupo, Alvaro Dias (PR) está entre os críticos. “Há uma grande decepção, há um bom tempo, que o sistema não se altera, o toma lá dá cá está presente. Isso tudo gera decepção, desconforto e desestímulo. Esse é o clima”, enfatizou.

Lasier Martins (Podemos-RS), por sua vez, mandou um recado pelo Twitter. “A menos de 30 dias para deixar a Presidência do Senado, Davi Alcolumbre arquivou todos os pedidos de impeachment contra ministros do STF (Supremo Tribunal Federal) que estavam protocolados na Casa. O grupo #MudaSenado está empenhado em eleger um presidente da Câmara alta que faça jus ao cargo que ocupa”, publicou.

Na opinião do analista político Melillo Dinis, “para o governo, o cenário no Senado é de céu de brigadeiro”. “É confortável, e o que sair dali será nos marcos políticos e institucionais que o governo deseja. Não tem surpresa no Senado, e o nome que vier será palatável. O Senado virou um espaço de apoio à articulação do Planalto”, destacou.


El País: Congresso dos EUA confirma vitória de Biden após revolta instigada por Trump

Ao final de um dia caótico, que deixou quatro mortos, presidente republicano se compromete com uma transição “ordenada”

Amanda Mars, El País

As urnas e as instituições deram o tiro de misericórdia na era Trump, na madrugada desta quinta-feira, após uma jornada lamentável para a história dos Estados Unidos. O Congresso confirmou a vitória do democrata Joe Biden horas depois de ser invadido por uma turba de seguidores do presidente republicano, agitados por suas acusações infundadas de fraude eleitoral. Os graves distúrbios, que deixaram quatro mortos, obrigaram à suspensão da sessão e à mobilização da Guarda Nacional, mas os parlamentares voltaram a se reunir ainda na noite de quarta-feira, numa sólida exibição de firmeza, e cumpriram a Constituição. Às 3h40 horas (5h40 em Brasília), o vice-presidente Mike Pence ―que pela Constituição é também o presidente do Senado― declarou a vitória do candidato democrata, após dias de pressões do seu chefe, que lhe pedia para se rebelar. Imediatamente depois, Trump emitiu um comunicado em que continuava protestando pelo resultado mas, pela primeira vez, se comprometia a uma transição de poderes “ordenada” em 20 de janeiro.

Nesse dia Biden tomará posse e iniciará um mandato que terá ampla margem de manobra, pois os democratas controlarão a Casa Branca, a Câmara de Representantes (deputados) e também o Senado, após a eleição de dois democratas ―Raphael Warnock e Jon Ossoff― no Estado da Geórgia. Começará então o duro trabalho de curar feridas, estender pontes e reparar reputações. Líderes de todo o mundo condenaram o ocorrido nos EUA (uma das poucas exceções foi o brasileiro Jair Bolsonaro), país visto como referência de democracia e solidez institucional, e que há 200 anos não vivia algo assim.

“Vamos terminar exatamente o que começamos e certificaremos o vencedor das eleições presidenciais de 2020. O comportamento criminal nunca dominará ao Congresso dos Estados Unidos”, disse o líder dos republicanos no Senado, Mitch McConnell. Ele qualificou a revolta como “insurreição fracassada” e proclamou com orgulho: “Os Estados Unidos e este Congresso já confrontaram ameaças muito maiores que a turba perturbada de hoje. Não nos dissuadiram antes e não nos dissuadirão agora. Tentaram romper nossa democracia e fracassaram”. O vice-presidente Mike Pence havia reaberto a sessão, pouco antes, dizendo que “vocês não ganharam, a violência nunca ganha, a liberdade ganha.” Os discursos tinham algo de terapia de grupo.

Após quatro anos acolhendo a retórica incendiária de Donald Trump, os republicanos se depararam neste nublado dia de janeiro de 2021 com um monstro de aspecto muito feio, uma multidão que quebrava vidraças do seu grande templo democrático, escalava suas paredes, irrompia nos plenários e se sentava na poltrona da presidência do Senado. A democracia se impôs, mas o sistema ficou abalado.

O pavio havia sido aceso pela manhã por Trump num comício em frente à Casa Branca, justamente por ocasião da sessão parlamentar que certificaria a vitória democrata nas eleições presidenciais. “Depois disto, vamos caminhar até o Capitólio e vamos incentivar nossos valentes senadores e congressistas”, disse a uma multidão formada por milhares de pessoas vindas de todo os EUA. “A alguns não vamos incentivar muito, porque vocês nunca irão recuperar o país de vocês com fraqueza, têm que mostrar força”, acrescentou. Ao final, os trumpistas partiram para o Capitólio e, depois de romper o cordão policial, desencadeou-se a violência.

Os legisladores correram para se refugiar, e Mike Pence foi retirado, enquanto os manifestantes zanzavam pelo interior do edifício, alguns com bandeiras confederadas e outros fantasiados, deixando uma nota tragicômica na jornada. Um deles se sentou na poltrona do presidente do Senado; outro, no gabinete da presidenta da Câmara, Nancy Pelosi, a quem, segundo a Associated Press, deixou uma mensagem que dizia: “Não recuaremos”. Quatro pessoas morreram, segundo a polícia: uma mulher atingida por um tiro, e outras três por emergências médicas. A cifra de detidos chegava a 52, o que parecia muito pouco para o espetáculo vivido, e a polícia encontrou duas bombas caseiras e uma geladeira com coquetéis molotov nas imediações. O escasso preparativo do dispositivo de segurança diante de uma manifestação que já se previa monumental e a lentidão da resposta fizeram as perguntas se multiplicarem, sobretudo depois da ostensiva presença das forças da ordem durante os protestos contra o racismo em meados deste ano.

“O que aconteceu aqui é uma insurreição incitada pelo presidente dos Estados Unidos”, denunciou o senador republicano Mitt Romney, de Utah. “Assim é como se discutem as eleições em uma república bananeira, não em nossa república democrática”, afirmou em nota o ex-presidente republicano George W. Bush. Mas é nessa rica república onde esta tempestade foi se formando dia a dia desde a derrota eleitoral de Trump em 3 de novembro, com a conivência de uma parte dos políticos conservadores.

Imagens do momento em que o Capitólio nos EUA foi invadido.
Imagens do momento em que o Capitólio nos EUA foi invadido.

Um grupo de senadores e deputados republicanos planejava torpedear a sessão de confirmação de Joe Biden com o argumento das supostas irregularidades nas urnas, embora inúmeros tribunais tenham concluído que não havia base para essas suspeitas, e de exaustivas recontagens não terem levado a resultados diferentes. O Congresso deveria contar os votos certificados pelos Estados em dezembro passado, numa sessão conjunta da Câmara de Deputados e do Senado, um último trâmite exigido pela Constituição antes da posse do novo presidente, em duas semanas. Os legisladores insubmissos tinham preparado uma bateria de objeções aos escrutínios dos Estados que foram decisivos para a derrota de Trump, embora elas não tivessem perspectiva de prosperar, já que seria necessário o aval da Câmara de Representantes, de maioria democrata, e do Senado, onde apenas uma dúzia de republicanos apoiava a manobra. O objetivo, portanto, era fazer barulho, mas o estrondo afinal veio do lado de fora.

O cômputo das cédulas era feito em voz alta, território por território, por ordem alfabética, e o primeiro protesto chegou cedo, na vez do Arizona, um Estado que, ao se inclinar por Biden em 3 de novembro, escolheu um presidente democrata pela primeira vez desde 1996. Quando o debate sobre essa objeção começou, a confusão se instalou às portas do Capitólio e a sessão teve que ser suspensa. Mike Pence foi retirado, os legisladores se refugiaram sob suas mesas, e foram observadas cenas de grande violência no Capitólio. Depois do ocorrido, pelo menos quatro dos políticos que pretendiam lançar as objeções mudaram de opinião, como a senadora georgiana Kelly Loeffer – que acaba de perder a reeleição –, alegando problemas de “consciência”. A objeção foi derrubada e o cômputo em voz alta continuou, com outra longa interrupção ao chegar à Pensilvânia.

De Trump não se ouvia nada a essas horas. A rede social Twitter tinha decidido bloquear sua conta durante 12 horas, e o Facebook, durante 24, depois de apagar as mensagens em que desculpava a violência de seus seguidores e insistia nas teorias conspiratórias da fraude eleitoral. “Estas são as coisas e acontecimentos que ocorrem quando se tira uma vitória sagrada e esmagadora de grandes patriotas, que foram tratados de forma má e injusta durante muito tempo. Vão para casa em paz e amor. Recordem este dia para sempre”, tinha publicado em sua conta. Em uma declaração em vídeo, chegou a dizer aos participantes dos distúrbios: “Vão para casa, amamos vocês, vocês são muito especiais, mas precisam ir para casa”. Por causa dos incidentes, quatro funcionários graduados da Casa Branca se demitiram, segundo a Bloomberg, entre eles o subassessor de Segurança Nacional, Matt Pottinger, e Stephanie Grisham, chefa de gabinete da primeira-dama.

Ao todo, o drama se prolongou por quase 15 horas. O ataque da quarta-feira não foi o primeiro sofrido pelo Capitólio, pois em 1954 um grupo de nacionalistas porto-riquenhos disparou na Câmara de Representantes e feriu vários deputados, e em 1998 um homem matou dois policiais. Mas a última vez que o prédio havia sido sitiado por uma turba foi durante o ataque britânico liderado pelo general Robert Ross, em 1814, depois da batalha de Bladensburg.

Apesar do tumulto, intuía-se que a invasão não configurava um golpe de Estado, já que a Bolsa de Nova York subiu 1,4%, mais atenta aos estímulos econômicos prometidos pelo novo Senado do que aos tumultos que os investidores viam pela televisão. Mas morreu gente, passou-se medo, e Washington debruçou-se sobre o abismo. E agora, até 20 de janeiro, restam duas semanas com um Trump na Casa Branca que ninguém no seu círculo parece capaz de frear.


Pedro Doria: O simbolismo múltiplo da eleição do primeiro senador negro na Geórgia

É simbólico que, no tempo do Vidas Negras Importam, o estado da Geórgia tenha elegido seu primeiro senador negro na história. Foi um resultado apertadíssimo: com 98% das urnas apuradas, o reverendo Raphael Warnock, do Partido Democrata, vencia a senadora republicana Kelly Loeffler por 50,6% a 49,4%.

Mas a simbologia está por toda parte.

A Geórgia foi um dos mais seguros estados da Confederação que rompeu com os EUA para impedir a abolição, disparando a Guerra Civil. E a Batalha de Columbus, que encerrou a guerra, ocorreu no estado.

Warnock venceu no condado de Clayton, onde ficava a fictícia fazenda Tara, do romance "...E o Vento Levou" — um dos principais ícones daqueles que celebram a memória escravagista. Venceu, aliás, também no condado de Muscogee, onde a Guerra Civil terminou.

Ele é o pastor da Igreja Batista Ebenezer, de Atlanta — o seu é o mesmo púlpito no qual pregava Martin Luther King quando disparou, ainda nos anos 1950, o movimento dos Direitos Civis que marcou a década de 60.

Há vinte anos a Geórgia não elegia um senador democrata — elegeu um, e negro, no momento em que o presidente que deixa a Casa Branca passou quatro anos incitando movimentos supremacistas brancos.

Além disto, Warnock chegará a um Senado presidido, também pela primeira vez, por uma pessoa que não é branca. Este cargo cabe ao vice-presidente da República. À vice-presidente Kamala Harris.

A corrida eleitoral não terminou. O também democrata Jon Ossoff está por alguns milhares de votos à frente do senador republicano David Perdue e, se sua vitória for confirmada, Joe Biden presidirá nos dois primeiros anos de seu mandato com maioria no Congresso. Mas um símbolo importante foi posto.


Pedro Cafardo: Nobres que aqui legislam não legislam como lá

A omissão do governo federal deixou na mão de prefeitos e governadores a tarefa de tentar socorrer os brasileiros sem emprego e renda a partir deste mês

Nossos nobres deputados e senadores saíram para suas merecidas férias deixando para trás a discussão do prolongamento do auxílio emergencial, necessário enquanto não passa a pandemia da covid-19. Observem que não foram colocadas aspas, na frase acima, nem em “nobres” nem em “merecidas”. Mesmo assim, talvez o leitor veja ironia no emprego desses dois adjetivos.

Seja por culpa do Executivo ou do Legislativo, deixar para depois do recesso uma discussão tão importante é, no mínimo, um desrespeito à população atingida pela crise. O auxílio emergencial, que começou em abril com R$ 600 por mês e acabou em dezembro com R$ 300, foi responsável pela relativa estabilidade do país durante a pandemia, até agora. Desculpem o catastrofismo, mas sem essa ajuda seria impossível prever o que teria ocorrido nas ruas e nos supermercados, diante do desespero e da fome.

O auxílio foi um sucesso porque reduziu a miséria e estimulou o consumo. Mas aumentou a popularidade do presidente, lamentam críticos. Dane-se a popularidade do presidente, embora ele não a mereça, porque atrapalhou e ainda atrapalha o país no combate à doença. Importante é socorrer pessoas que ficaram sem renda, seja lá qual for a consequência política dessa iniciativa.

Ao adiar sem remorsos a discussão do auxílio para 2021, prevaleceu a tese da austeridade fiscal, segundo a qual o país não tem recursos para isso. Entendem teóricos que seria uma irresponsabilidade gastar mais dinheiro com o auxílio porque estaríamos transferindo às gerações futuras o ônus do enfrentamento da crise de hoje. Seria bom perguntar a esses teóricos quais serão os reflexos nas próximas gerações se as atuais forem assoladas pela extrema pobreza.

Os gastos com o auxílio, dizem os teóricos, teriam impacto na dívida pública, porque o governo seria obrigado a fazer emissões de moeda e títulos. No meio do ano passado, esses “falcões fiscais” - expressão usada nos EUA por J. Bradford DeLong, ex-secretário adjunto do Tesouro - previam que o Brasil terminaria 2020 com a dívida interna próxima de 100% do PIB. Isso seria um desastre, porque desestimularia os investimentos estrangeiros no país. Mas a previsão falhou. A relação deve ficar abaixo de 90% do PIB, mesmo depois de o governo ter gastado mais de R$ 600 bilhões com a pandemia, sendo R$ 300 bilhões com o auxílio.

Sim, é um erro buscar no gasto público a salvação para a atual crise. Mas tampouco se pode buscá-la no corte de despesas. Trata-se de uma situação excepcionalíssima que, aqui e em qualquer outro lugar, exige decisões excepcionais. É inegável que o auxílio emergencial teve e terá, se for prorrogado, impacto positivo no consumo e na produção, o que tende a melhorar a relação dívida/PIB, preocupação-mor dos falcões. Segundo DeLong, “a lição mais importante [da atual crise] que ainda não foi absorvida é que, em uma economia profundamente deprimida, os empréstimos e gastos do governo aumentam a prosperidade de curto e longo prazo do país”. Por isso, esses gastos mais expandem a capacidade fiscal do que aumentam o peso da dívida.

A continuidade do auxílio emergencial, no Brasil, esbarraria em limitações constitucionais relativas a gastos da União e isso obrigaria o Congresso a votar a extensão do Orçamento de Guerra, que vigorou até 31 de dezembro. E daí? Que seja votada. Afinal, a ameaça de calamidade pública continua, porque os índices de infecção e morte pela covid-19 crescem de forma assustadora e a vacina, por causa de incompetências, ainda é um sonho no país. E, segundo o líder do Governo na Câmara, deputado Ricardo Barros (PP-PR), não houve “nenhuma iniciativa, de qualquer parte [antes do recesso] para que se prorrogasse ou se renovasse o Orçamento de Guerra”.

Lá no norte, porém, num dos países mais ricos do mundo, os parlamentares dos Estados Unidos fizeram a lição de casa antes do fim de ano. Aprovaram um pacote de ajuda equivalente a R$ 4,7 trilhões (US$ 900 bilhões) para o combate à pandemia. Embora tenha recursos de apenas 40% do pacote anterior, baixado no início da pandemia, o novo conjunto de medidas atende a variados setores da economia. Dá um bônus de US$ 600, que ainda pode ser aumentado para US$ 2 mil, a quem ganha até US$ 75 mil por ano; US$ 300 adicionais por semana durante 11 semanas aos desempregados; US$ 325 bilhões em empréstimos para pequenas empresas, sendo US$ 284 bilhões “perdoáveis” se o dinheiro for empregado para pagar salários, aluguéis e outros gastos primordiais; US$ 100 por semana a empreendedores individuais; US$ 69 bilhões para a distribuição de vacinas contra o coronavírus; US$ 22 bilhões para programas de testagem nos Estados; US$ 13 bilhões para assistência nutricional; US$ 7 bilhões para acesso à banda larga; US$ 45 bilhões para agências de transporte e trânsito; e US$ 25 bilhões em ajuda para aluguel.

Um pacote desse é de dar água na boca. Inclui bilhões em crédito direcionado a empresas, em especial a pequenas, apoio também suspenso aqui pelo BC desde o dia 1º. A omissão do governo federal deixou na mão de prefeitos e governadores a tarefa de tentar socorrer os brasileiros sem emprego e renda a partir deste mês.

Claro que um pacote brasileiro similar ao americano não teria tamanha dimensão. Mas a pergunta que fica no ar é: por que os americanos já têm e o Brasil ainda não tem medidas para combater os estragos sociais da segunda onda da covid-19 e iniciamos 2021 sem sequer discutir o tema nas áreas oficiais?

Para a resposta, vale pedir ajuda aos universitários, ou melhor, aos pré-universitários que vão fazer o Enem. Escolham uma das opções: a) o povo americano é, de fato, mais necessitado que o nosso e não tem como atravessar a pandemia sem ajuda do governo; b) as autoridades americanas são mais irresponsáveis do que as nossas e põem em risco as gerações futuras gastando trilhões para atender e tentar salvar a geração presente; c) os EUA podem gastar com o auxílio porque têm uma situação fiscal mais confortável do que a nossa (relação dívida/PIB é de 106% e a do Brasil, de 89%); d) nossos teóricos são mais competentes que os deles para evitar desastres fiscais; e) nossas autoridades são mais realistas; f) nenhuma das anteriores.


Mariliz Pereira Jorge: Aborto legal no Brasil

Falta aos políticos brasileiros peito para encarar esse assunto e trazer para o debate o que é de fato pertinente sobre o tema

Gol da Argentina. Na madrugada desta quarta (30), o Senado aprovou a descriminalização do aborto, que passa a ser legal até a 14ª semana de gestação e depende exclusivamente da decisão da mulher, como acontece em quase 70 países. Momento histórico. Marca mais um capítulo de um longo caminho percorrido pelas mulheres desde que a Rússia legalizou a prática há cem anos, ainda antes de se tornar União Soviética.

Enquanto isso no Brasil... A nossa legislação é mais parecida com a de países como o Afeganistão, o Irã e a Síria, o que nos dá a dimensão do atraso em que vivemos. Os direitos reprodutivos de nós, mulheres, não nos pertence, mas ao Estado, infestado de gente feito Jair Bolsonaro.

Em outubro, o presidente assinou um decreto para estabelecer, como estratégia nacional de longo prazo, a defesa da vida “desde a concepção” e dos “direitos do nascituro”. A medida foi considerada por defensores dos direitos reprodutivos mais um passo contra as possibilidades de interrupção de gravidez previstas em lei.

Nosso Congresso não fica atrás. Já escrevi que o Portal da Câmara registra 574 projetos em que o aborto é mencionado. Só em 2020 foram 64, muitos apenas pioram a vida da mulher, com aumento de pena, imprescritibilidade dos “crimes contra a vida”. No ano passado, o Senado desengavetou uma Proposta de Emenda Constitucional que proíbe o aborto desde o início da gestação.

Falta a sociedade e aos políticos brasileiros peito para encarar esse assunto e trazer para o debate o que é de fato pertinente sobre o tema: questões médicas, legais, direitos individuais, empatia. O aborto não pode ser criminalizado. As mulheres não devem ser tratadas como assassinas por defenderem tal bandeira, como quer Jair Bolsonaro, ao insinuar nas redes sociais que esta colunista seja uma genocida. A história vai contar quem é o genocida.


Míriam Leitão: Uma disputa nada trivial no Congresso

Há muito mais em jogo na disputa do comando das duas casas do Congresso do que parece. As diferenças ideológicas entre partidos de centro, ou entre pessoas de um mesmo partido, podem parecer imperceptíveis. Mas, dependendo da escolha feita pelos parlamentares, o país elevará os riscos institucionais que correm na atual administração, ou terá a chance de reduzi-los.

A autonomia do Legislativo é parte fundamental da barreira contra as tendências autoritárias do presidente e de luta contra a sua agenda retrógrada. Não se espera um Congresso que faça oposição ao presidente, mas que ponha limites ao Executivo dentro do necessário e saudável processo de freios e contrapesos.

Bolsonaro, em 2020, no início da pandemia, participou de manifestações que pediam o fechamento do Congresso. Isso deveria ser o suficiente para convencer os partidos de oposição, ou os parlamentares que têm apreço pela democracia, de qualquer partido ou tendência, a ficarem longe de um deputado ou senador que tenha a marca de candidato desse presidente.

Não foi exagero, portanto, que a frente articulada pelo deputado Rodrigo Maia em torno do deputado Baleia Rossi tenha se apresentado com a bandeira da democracia. É disso que se trata. E quem deixou isso claro foi o próprio presidente, com a sua reiterada apologia da ditadura militar que vitimou o Brasil por duas décadas. Hoje o governismo representa também apoio às medidas de desmonte do aparato de proteção institucional das comunidades indígenas, do meio ambiente, da educação e da saúde.

A agenda do presidente Bolsonaro é estranha às necessidades urgentes do país. O Brasil precisa neste momento fortalecer Saúde, Educação e proteção ambiental. O presidente quer excludente de ilicitude para os policiais, a chamada escola sem partido, mineração em terra indígena e armamentismo. Nada mais estrangeiro às necessidades do país. A educação se transformou em uma tarefa mais urgente com a pandemia. A Câmara teve que lutar inúmeras vezes para derrotar as tentativas de tirar dinheiro do Fundeb. Ora eram ideias ruins do Ministério da Economia, ora eram truques do governo para levar dinheiro para instituições privadas.

Alguém pode considerar que, na economia, o candidato do governo teria mais aderência à agenda de reformas. Pode ser o oposto. A reforma econômica mais importante no Congresso é a tributária, e quem levou o projeto que tramitou na Câmara, mesmo diante de todo o desinteresse do governo, foi o deputado Baleia Rossi. Também no projeto econômico o candidato da frente não governista pode ser mais interessante. Diante da queda da sua aprovação, o presidente-candidato pode reagir com o ideário no qual ele acredita: o populismo fiscal.

O argumento do deputado Arthur Lira de que sua eleição daria ao governo um aliado para enfrentar a crise só ficaria de pé se o governo tivesse enfrentado a crise. Ele a agravou quando criou conflitos federativos, fez campanha eleitoral antecipada, provocou aglomerações, submeteu o Ministério da Saúde ao seu obscurantismo e mandonismo, sabotou medidas sanitárias de proteção, espalhou dúvidas sobre a vacina. Bolsonaro demonstrou durante toda a crise de 2020 que ele é impermeável ao conhecimento. Simplesmente não entendeu a natureza da crise, nem quis entender. Sua ação foi deletéria. Dar mais poder a este governo eleva exponencialmente o risco que o país corre em todas as áreas.

No Senado, abre-se uma possibilidade com a candidatura da senadora Simone Tebet. Ela é mulher num país de poder excessivamente masculino. É qualificada. A candidatura dela representaria sem dúvida um avanço, porque a senadora é também uma profunda conhecedora da Constituição, que tem sido tão afrontada nos últimos anos. Entre ela e os senadores homens pré-candidatos, dois deles líderes do governo no Congresso e no Senado, há uma enorme diferença.

Nas duas Casas agora se negocia. É natural que os cargos das mesas e das comissões estejam em disputa, porque isso dará à minoria maior ou menor possibilidade de atuação. O grande cenário, contudo, mostra que há algo muito mais valioso em jogo do que os cargos que o governo tem oferecido em troca de apoio aos candidatos dóceis ao Executivo.


Carlos Pereira: Subserviência do Legislativo?

Alinhamento entre os chefes do Executivo e do Legislativo não se traduz em autocracia

Tem existido uma crescente preocupação com a possibilidade de vitória de Arthur Lira (PP), candidato apoiado pelo Presidente Jair Bolsonaro, na eleição para a presidência da Câmara dos Deputados. Esse desassossego não é totalmente destituído de razão, pois o alinhamento político entre chefes do Executivo e do Legislativo sempre traz o risco de subserviência do poder Legislativo ao já extremamente poderoso Executivo no Brasil. 

Alguns, inclusive, enxergam que esta suposta subordinação do Legislativo ao Executivo traria perigos reais para a própria democracia brasileira. Essa preocupação ficou explícita no discurso de lançamento do deputado Baleia Rossi (MDB) como candidato de oposição ao governo Bolsonaro à presidência da Câmara. A narrativa construída buscou inspiração no “pai” da democracia brasileira e da “Constituição cidadã”, Ulysses Guimarães, repetindo o mote: “temos ódio e nojo da ditadura”. 

O cientista político Scott Morgenstern, Professor da Universidade de Pittsburgh, propõe uma tipologia para entender quando legislativos seriam proativos, situação na qual seria a força preponderante no processo de formulação e de aprovação das leis, ou reativos, quando o Legislativo raramente inicia uma legislação, atuando fundamentalmente em negociações ao reagir a iniciativas legislativas preponderantemente do Executivo.

Para Morgenstern, os legislativos na América Latina são de três perfis; 1) subserviente: não oferece qualquer veto ou resistência ao Executivo, inclusive aos seus potenciais desvios; 2) cooperativo: frequentemente concordando com projetos presidenciais, mas geralmente exigindo compromissos ou recompensas em troca do consentimento; e 3) recalcitrante: bloqueia a maioria das iniciativas do Executivo se posicionando como adversário do presidente. 

O alinhamento político entre os chefes do Executivo e do Legislativo não é condição suficiente para definir o perfil de atuação do Legislativo. Outros aspectos como sua profissionalização, padrão de carreira dos parlamentares e a proximidade de interesses entre o Executivo e o legislativo exercem papel decisivo no perfil e no padrão de atuação do Congresso vis-à-vis o Executivo. 

Legislativos que apresentam pouca profissionalização e baixo índice de reeleição tendem a ser subservientes. Por outro lado, quanto maior a motivação dos legisladores em permanecer no Legislativo e maiores os incentivos à sua profissionalização, mais proativo e influente será o Legislativo. Quando o governo não desfruta de maioria no Congresso, legislativos podem apresentar um padrão cooperativo com o Executivo ou mesmo migrar para o perfil recalcitrante com os interesses do Executivo em caso de polarização entre governo e oposição. 

O alinhamento político entre os poderes legislativo e executivo tem sido a regra e não a exceção no Brasil. Todos os presidentes da República que minimamente entenderam o funcionamento do presidencialismo multipartidário, fossem eles de esquerda, de centro ou de direita, atuaram ativamente para que a presidência das casas legislativas fosse ocupada por parlamentares do seu partido, ou, pelo menos, de partidos da coalizão. Portanto, não tem necessariamente nada de antidemocrático em o presidente buscar a congruência de interesses entre o Executivo e o Legislativo. 

É precipitado concluir que o Legislativo seria uma “vítima indefesa” dos poderes do presidente, pois, na medida em que esses poderes foram delegados pelos próprios legisladores, podem ser por eles também retirados. Um bom exemplo foi a restrição imposta pelos legisladores em 2001 à reedição indefinida de Medidas Provisórias, que aconteceu quando, pasmem, o presidente da Câmara dos Deputados, Aécio Neves (PSDB), era do mesmo partido do Presidente FHC. Ou seja, a despeito de um alinhamento político com o Executivo, o Congresso não se furtou em restringir os poderes do presidente. 

*Cientista Político e professor titular da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas (FGV Ebape)


Silvio Almeida: Democracia e desigualdade devem ocupar lugar central no debate político pós-pandemia

Relação entre os dois temas será central no debate político pós-pandemia

Ano de 2021 começará com enormes desafios e não haverá mais lugar para pensamento idealista apartado dos conflitos da realidade.

Utilizo esta última coluna do ano para tratar do que considero os principais assuntos sobre os quais a sociedade terá que se debruçar nos próximos anos: democracia e desigualdade.

O debate sobre democracia e desigualdade não é recente nem uma novidade. Entretanto, a pandemia, a crise econômica e a incapacidade política demonstrada por grande parte dos governos expuseram as imensas contradições do que se convencionou chamar de democracia e a insuficiência das medidas contra a desigualdade.

O ano de 2020 evidenciou que as garantias jurídico-formais da democracia não são suficientes para assegurar a participação popular no processo político. Governos autoritários, com propensões genocidas e “suicidárias” (na expressão de Paul Virillo) foram eleitos e, utilizando-se da forma democrática, desorganizaram social e economicamente seus respectivos países, instalaram desconfiança no próprio sistema que os permitiu chegar ao poder e foram direta ou indiretamente responsáveis pela morte de milhares de pessoas devido ao modo com que se portaram no contexto da pandemia.

Da mesma forma mostraram-se falhas e limitadas as instituições encarregadas de zelar pela democracia. O domínio das fake news, o ambiente anti-intelectual e a distorção provocada pelos algoritmos das redes sociais colocam em xeque um dos postulados máximos do processo democrático, a informação baseada na verdade. Parte do problema também repousa na maneira como os interesses econômicos e o alinhamento às políticas neoliberais têm se refletido na tolerância da grande imprensa e do sistema de justiça com governos autoritários e comprovadamente incompetentes. Caminhamos para um mundo em que a degradação das condições de vida, a destruição ambiental e a desorientação existencial faz com que se instaure um grave dilema entre democracia e ordem social.

Tratar a questão da desigualdade será também assunto prioritário na próxima quadra histórica. Penso que o tema se desdobrará em duas grandes questões. O primeiro desdobramento será um novo debate sobre o papel do Estado na economia. Os delírios neoliberais de “cada vez menos Estado” mostraram-se um retumbante fracasso, inclusive para o mercado. Sem um sistema forte e coeso de proteção social, como é o caso do Sistema Único de Saúde, a tragédia da Covid-19 poderia ser muito maior. Nesse sentido, a instituição de uma renda básica universal está definitivamente na agenda brasileira, não apenas por sua capacidade de fortalecer o sistema de proteção social, mas pelos impactos positivos da medida sobre o conjunto da economia.

O segundo desdobramento será a questão racial. A ascensão de governos ancorados em um “neoliberalismo autoritário” expôs a forma como o racismo é um elemento organizador da desigualdade. O silêncio teórico da economia acerca do racismo foi quebrado, o que revelou ao fim e ao cabo a insuficiência de políticas de desenvolvimento econômico que não tratam da desigualdade racial. A partir de reflexões sobre política industrial, relações de trabalho, tributação, ciência e tecnologia e empreendedorismo terão que observar os impactos sociais do racismo.

O ano de 2021 começará com enormes desafios teóricos e práticos e não haverá mais lugar para que democracia e desigualdade sejam pensadas de modo idealista e apartado dos conflitos da realidade.

*Silvio Almeida, professor da Fundação Getulio Vargas e do Mackenzie e presidente do Instituto Luiz Gama.


Correio Braziliense: Eleição na Câmara vai ditar o rumo de projetos no Congresso

Disputa entre Baleia Rossi e Arthur Lira para a Presidência da Casa Legislativa definirá se o parlamento continuará com o esforço reformista, que marcou a gestão de Rodrigo Maia, ou abrirá espaço para a pauta de costumes, valorizada pelo Planalto

Sarah Teófilo e Renato Souza, Correio Braziliense

A depender de quem ocupar as cadeiras de presidente na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, uma mudança de rumos poderá ser vista no Congresso a partir de fevereiro de 2021. Depois de um 2020 trágico, o Legislativo decidirá quem comandará as Casas pelos próximos dois anos, em meio a um cenário delicado nos âmbitos sanitário, econômico, político e social.

Dois caminhos mostram-se traçados, em especial na Câmara: de um lado, a manutenção de uma pauta reformista e liberal, e do outro, o surgimento, com mais força, de matérias da chamada “pauta de costume”, até o momento contida, muitas vezes, pelo atual presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que é quem pauta as matérias para análise. Depois de ter sido impossibilitado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) de concorrer à reeleição, assim como o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), as movimentações têm sido intensas para viabilizar uma sucessão.

Na quarta-feira, Maia e 11 partidos definiram o deputado Baleia Rossi (MDB-SP) como o candidato que representará o grupo que pretende ser independente do governo e vai rivalizar com Arthur Lira (PP-AL), líder do Centrão e preferido do Planalto para comandar a Casa Legislativa em 2021. A aliança em torno de Baleia Rossi tem respaldo até de partidos de esquerda, como o PCdoB e PT, e do PSL. Essa duas últimas legendas compõem as maiores bancadas da Casa.

Arthur Lira também busca viabilizar uma vitória. Apesar do esforço de mostrar que não levará adiante as pautas de costume, um aceno importante de Bolsonaro ao seu eleitorado, Lira deve ceder para agradar o Palácio do Planalto se for o próximo presidente da Câmara. No âmbito econômico, analistas afirmam que Lira não tem o mesmo perfil reformista e liberal de Rodrigo Maia, embora valorize as pautas ligadas a esses temas.

Em relação às pautas de interesse do Planalto, Rossi e Lira sinalizam para caminhos opostos. Em caso de uma vitória do emedebista, a tendência seria manter uma agenda reformista e independente do governo. Se a Presidência estiver nas mãos do pepista, o alinhamento será grande com o Planalto, que terá maior facilidade de emplacar matérias de interesse, em especial temas controversos da “pauta de costumes”. Em qualquer cenário, vale frisar, os analistas acreditam que as pautas relativas à pandemia terão prioridade.

Sócio da Hold Assessoria Legislativa, o cientista político André César afirma que se o bloco alinhado com o atual presidente da Câmara vencer, deve-se esperar uma continuidade no esforço de aprovar reformas estruturantes. “A tributária pode ter chance; a administrativa, também. Tem, ainda, a PEC emergencial e outras matérias, como a de autonomia do Banco Central, e a Lei do Gás”, pontua. Segundo o analista, as pautas reformistas continuarão sendo debatidas com o roteiro já traçado.

No caso de vitória de Lira, César acredita que também haverá o discurso de reformas, mas essa iniciativa chegará atrasada, pois o roteiro já foi traçado. É possível que Lira queira reorganizar a ordem de prioridades estabelecida ao longo de 2020. A expectativa maior será em relação à “pauta de costumes”, componente ao qual o Planalto tem muito apreço. Nos últimos dias, o presidente Jair Bolsonaro sinalizou seus interesses no Congresso, ao dizer que uma possível mudança na Casa Legislativa, alinhada com o governo, permitiria aprovar o excludente de ilicitude, espécie de salvo conduto para policiais militares que matarem durante operações de segurança. “(Com a vitória de Lira), haverá reforço nesta agenda que o Maia, de certa forma, conseguiu segurar”, diz André César.

Pandemia
Ainda que haja diferenças importantes entre Rossi e Lira na Presidência da Câmara, em qualquer cenário, a pauta relativa à pandemia deve receber prioridade. É como avaliam André César e a professora de ciência política da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Mayra Goulart. Ela frisa, também, que o governo federal, em termos de agenda econômica e políticas públicas, tende a querer gastar pouco, ao mesmo tempo em que pretende mobilizar a pauta de costumes. Segundo ela, o debate moral segue uma estratégia política. “Porque gasta pouco, entrega pouco e não tensiona com o mercado”, explica.

De acordo Mayra Goulart, falta interesse ao governo tensionar por qualquer agenda — seja econômica, seja de costumes. Na avaliação da professora, quando o presidente fala, por exemplo, de excludente de ilicitude, trata-se de uma “bravata”. “É o tipo de coisa que já foi apresentada antes, e caiu sem muita briga por parte do governo. É mais bravata, é fácil de falar. Você agrada as suas bases conservadores, mas, ao final, não aprova nada, não acontece nada”, afirma.

O analista político do portal Inteligência Política Melillo Dinis acredita, por sua vez, que a pauta econômica será prioridade, independentemente da vitória de Rossi ou Lira. “Maior do que a vontade de cada grupo, todos nós estaremos submetidos a uma grande pressão — a pandemia. Por mais que ele (Bolsonaro) seja separado da realidade, a realidade vai bater à porta”, argumenta. No caso de vitória do bloco de Maia, Dinis acredita que o processo de contenção do governo federal continuará. Já em caso de vitória de Lira, a quem ele chama de “gestor de conveniências”, haverá sinal verde para movimentar a pauta de costumes.

Professor do Instituto de Ciência Política da Universidade de Brasília (UnB), Paulo Calmon ressalta por que essas eleições do Congresso são fundamentais para o Planalto. De acordo com ele, Bolsonaro enviou diversas propostas ao Congresso que foram ignoradas. “Com a eleição de um aliado na Presidência da Câmara, essas propostas poderiam ganhar novo fôlego, assim como outras que estão praticamente prontas, mas, ainda, não foram encaminhadas pelo Palácio do Planalto porque se julgava que teriam pouca chance de aprovação em uma Câmara sob a liderança de Rodrigo Maia”, pontua.

O cientista político reitera que, com Lira, o governo deve enviar propostas que integram a “pauta de costumes”, assim como reformas do sistema político/eleitoral e do sistema penal/judiciário. Calmon acredita que o Planalto também deve aproveitar para enviar reformas nas relações federativas, “alterando o atual equilíbrio e restringindo a autonomia dos estados e municípios”. “E reformas econômicas, especialmente aquelas voltadas para redução do tamanho do Estado e imposição de austeridade fiscal”, diz.

No caso de uma vitória da aliança constituída por Maia, Calmon aposta no avanço das reformas econômicas, principalmente a tributária. “Por outro lado, (Maia) questionaria as pautas mais conservadoras, obstacularizando o avanço da agenda de reformas propostas pelo presidente”, avalia.

Senado discreto
No Senado, a disputa talvez fique centralizada entre Davi Alcolumbre e o MDB, que tem alguns nomes no páreo e é favorito na disputa. Os líderes do governo no Senado, Fernando Bezerra (PE), e no Congresso, Eduardo Gomes (TO), que integram o partido, são possíveis candidatos. O líder da bancada do partido, Eduardo Braga (AM), também tem o nome lembrado, e a senadora Simone Tebet (MS), que se colocou à disposição e diz que o MDB não será oposição ao governo.

Paralelamente aos movimentos do MDB, Alcolumbre tenta viabilizar Rodrigo Pacheco (DEM-MG). O nome de Antonio Anastasia (PSD-MG), vice-presidente da Casa, também foi citado. Entra na disputa o Muda Senado, grupo composto por 18 senadores de diferentes partidos que, se não lançar candidatura própria, deve apoiar um nome para tirar Alcolumbre de campo.

Para o cientista político André César, o Senado vive uma realidade distinta da Câmara. Não há uma dicotomia clara na disputa entre um nome alinhado ao governo e outro mais independente. Além disso, a tendência é de que se busque um nome mais consensual. Para ele, o grupo Muda Senado deve fazer barulho, mas sem peso, enquanto o governo busca viabilizar uma sequência à gestão Alcolumbre.

“Alcolumbre foi um líder que ajudou na agenda governista, contribuiu para minimizar ruídos, por exemplo o caso do Flávio (Bolsonaro), com as rachadinhas e tudo mais. O que o governo teme é que entre alguém do MDB menos alinhado, como o Eduardo Braga”, afirma. Ainda assim, segundo César, pensando em Braga e Simone Tebet, por exemplo, o cenário ao Planalto é mais propício com Braga que, para o analista, tem um perfil que possibilita uma negociação com o Planalto melhor do que seria no caso da senadora.

O cientista político Melillo Dinis afirma não enxergar mudança substancial no cenário, independentemente do nome que chegará à mesa do Senado. “O Senado não terá protagonismo algum; ficará na esteira do que a Câmara impuser ou do que o Planalto provocar. O Senado gostou desse ‘local’ de reivindicação de governadores. Virou uma Casa de repercussão. Alcolumbre e parte do Senado estavam atrás de construir temas locais, virou um clube de vereadores”, afirma.

O professor Paulo Calmon, da UnB, avalia que o Senado continuará muito influenciado pela sua atuação como Casa revisora. “Ou seja, revendo e corrigindo eventuais excessos ou equívocos ocorridos nas decisões da Câmara e do Palácio do Planalto”, afirma. De acordo com o professor, o Senado “continuará sendo avesso às propostas que geram efeitos importantes no equilíbrio federativo”.

Para ele, o Senado tem um equilíbrio de forças diferente daquele que prevalece na Câmara, e a ascensão de Alcolumbre “decorreu de um movimento de renovação, impulsionado pelo clima da eleição presidencial, e de enfrentamento de um grupo mais experiente de senadores que vinha liderando o Senado ao longo de muitos anos”.

“O momento, agora, é outro e muitos senadores simpáticos a essa ampla renovação mudaram de opinião. Ainda não está claro qual será o desfecho desse novo processo de realinhamento”, opina.

De olho em 2022
O mandato nas presidências do Senado e da Câmara é de dois anos — mais um motivo pelo qual a disputa é tão importante ao presidente Jair Bolsonaro. Os próximos chefes do Parlamento estarão nos cargos nas eleições de 2022, quando Bolsonaro deve disputar a reeleição.

Para o analista político Melillo Dinis, a vitória de Arthur Lira significaria um “salto” mais liso e agradável ao presidente. Ao mesmo tempo, o chefe do Executivo terá que trabalhar, porque não poderá culpar a Câmara por eventuais problemas ou falta de avanço na pauta do Planalto. Já a vitória do outro bloco significa mais dificuldade a Bolsonaro, mas ele continuará culpando a Casa. “O que é uma prática que ele faz com muita qualidade. O presidente é campeão em culpar os outros por seus atos”, afirma.

A professora da UFRJ Mayra Goulart afirma que uma vitória de Lira certamente deve ajudar Bolsonaro, no sentido de evitar o tensionamento e a manter as pautas de costume, que são promessas de campanha do presidente que ele ainda não conseguiu cumprir.


Rosângela Bittar: O futuro do atraso

A eleição dos presidentes da Câmara e do Senado não ficam definidas por antecipação, nunca. As negociações que levam a reviravoltas na boca da urna não permitem dizer que o favoritismo de hoje, do candidato governista Arthur Lira, permanecerá até 2 de fevereiro.

Dois exemplos da memória.

O mais recente: na primeira eleição de Rodrigo Maia, 2017, depois do mandato tampão após renúncia de Eduardo Cunha, o DEM só o apoiou na véspera, e o aliado principal, o PSDB, definiu-se na manhã da votação.

O mais perturbador: Apesar da proibição regimental, o PT se dividiu em 2005 e lançou dois candidatos. Um oficial, Luiz Eduardo Greenhalgh, outro avulso, Virgílio Guimarães. Venceu Severino Cavalcanti, que não estava na história. E saiu dela como uma anedota.

São fatos que reduzem a mera hipótese a apregoada certeza da vitória dos candidatos do presidente Jair Bolsonaro às presidências da Câmara e do Senado. No Senado ainda há três nomes disputando a unção presidencial mas, na Câmara, o candidato Arthur Lira já negocia abertamente em nome do presidente, há meses. 

Embora favorito, com uma campanha agressiva em concessões e troca de favores, Lira ainda não pode receber cumprimentos. Qualquer celebração antecipada é mera ironia.

Tudo pode acontecer nesses longos 40 dias que separam este Natal da inauguração do ano Legislativo, data da eleição das Mesas. Será um janeiro de frenesi político, longe de qualquer realidade dos brasileiros.

Única alternativa que resta ao governo para dar seriedade à sua empreitada é formular uma agenda que dê substância ao varejo das negociações. O Congresso não faz milagres, não tem planos de governo e precisa de uma proposta sobre a qual trabalhar e votar.

O que Bolsonaro já apresentou até agora é um rosário de demandas pessoais, familiares, corporativas e eleitorais. Algumas de exceção à lei. Barrar o impeachment, na Câmara, e salvar o enlameado filho Flávio Bolsonaro, no Senado, são metas explícitas.

O que inquieta nas manifestações recentes do presidente sobre o que quer para o ano que vem é a inexistência das áreas de emergência, começando pelo controle da pandemia.

Bolsonaro quer mandar na Câmara e no Senado para aprovar o excludente de ilicitude (licença para matar), a educação domiciliar, os benefícios para igrejas, o imposto sindical, a redução da Lei da Ficha Limpa e da Lava Jato. Sem esquecer o atraso dos atrasos: a volta do voto impresso.

Não contente em dedicar todo o seu mandato, exclusivamente, à campanha da reeleição, o presidente quer usar a Câmara para discutir o voto impresso e montar desde já o processo de acusação de fraude eleitoral, diante da possibilidade crescente da derrota em 2022.

Os sinais são preocupantes, o Brasil está sendo arrastado ao abismo social, econômico e político. Bolsonaro transforma suas convicções pessoais e retrógradas em políticas públicas.

Sindicato

A propósito das negociações para a volta do imposto sindical, João Carlos Gonçalves, Juruna, secretário-geral da Força Sindical, enviou-me um esclarecimento:

“Li seu artigo cujo título é Depois da meia-noite. Queria lhe informar que o movimento sindical não está pedindo a volta do imposto sindical, aquele que cada trabalhador pagava um dia de salário anual. Pagava porque o não associado também é beneficiado pelos acordos e convenções coletivas. O que o movimento sindical quer, e isso está parado na Câmara dos Deputados, é a regulamentação de legislação que deixe claro se o sindicato vai também trabalhar para não sócios sem receber nada. A cada convenção coletiva que o sindicato faz, precisa fazer um Termo de Ajuste de Conduta, com o Ministério Público do Trabalho, para poder cobrar de quem não é sócio, pelos benefícios das convenções coletivas estendidas a ele”.

*COLUNISTA DO ‘ESTADÃO’ E ANALISTA DE ASSUNTOS POLÍTICOS


O Estado de S. Paulo: Articulação de Maia leva MDB a impasse

Sigla prefere eleição no Senado e avalia que Baleia Rossi não deve concorrer na Câmara

Daniel Weterman, O Estado de S.Paulo

BRASÍLIA - O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), só está à espera do PT para anunciar o candidato que vai apoiar à sua sucessão, em fevereiro de 2021. O nome favorito para concorrer ao comando da Câmara com aval do bloco parlamentar liderado por Maia é o do deputado Baleia Rossi (SP), presidente do MDB. 

Maia disse que divulgará até amanhã o escolhido para enfrentar Arthur Lira (Progressistas-AL), líder do Centrão que conta com o respaldo do Palácio do Planalto na disputa. A demora ocorre por causa da bancada do PT, que está dividida e se reúne hoje para tentar chegar a um acordo, mas também em razão de um impasse nas fileiras do MDB.

Na semana passada, senadores do MDB procuraram Baleia Rossi para dizer que a sigla terá um candidato à cadeira do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP). Argumentaram que, diante dessa decisão, ele não deveria concorrer à Câmara para não atrapalhar as articulações no Salão Azul. A avaliação foi a de que seria muito difícil o Congresso eleger integrantes do mesmo partido, como ocorre hoje com o DEM, para dirigir as duas Casas.

Em almoço com líderes do bloco, nesta segunda-feira, Maia afirmou que a eleição no Senado não pode interferir na disputa da Câmara. Na prática, porém, em casos assim as negociações políticas costumam demandar mais atenção. O outro nome que conta com a simpatia do presidente da Câmara é o do deputado Aguinaldo Ribeiro (Progressistas-PB), líder da Maioria. O partido de Aguinaldo, no entanto, dá sustentação a Lira.

“Estamos dialogando para sair com um nome e com o bloco de fato unido”, afirmou Maia. O grupo reúne 11 partidos, que somam 281 parlamentares. O PSOL pode aderir ao bloco. Para ser eleito presidente da Câmara o candidato precisa ter o apoio de 257 dos 513 deputados. O voto, porém, é secreto e muitas bancadas estão rachadas. “É preciso agora ver o que nos une, e não o que nos divide. Nosso objetivo é derrotar o candidato do governo”, disse o deputado Carlos Zarattini (PT-SP).

A bancada do PT é a maior do bloco, com 54 integrantes. Embora a sigla esteja no grupo de Maia, o apoio de petistas ainda é disputado individualmente por Lira.