senado

Vera Magalhães: Vida estraga-prazeres

Mais de 300 pessoas trocaram perdigotos na covidfest da vitória de Arthur Lira. Jair Bolsonaro e os filhos se refestelaram de comemorar nas redes sociais. O general Luiz Ramos teve um momento “vão ter de me engolir” pelo sucesso da articulação política da qual participou. Mas, passada a ressaca da eleição das Mesas do Congresso, a vida real bate à porta do governo e do Legislativo. E ela, sabemos, não anda nada festiva.

O primeiro para quem essa ficha caiu foi Paulo Guedes. Coube ao ministro da Economia ser o estraga-prazeres e lembrar um pequeno detalhe: o Orçamento de 2021 ainda não foi votado pelos senhores forrozeiros.

Sem essa providência básica, não há como falar em novo auxílio emergencial, a promessa mais repetida de Lira e Rodrigo Pacheco, levada pelos festeiros parlamentares às suas bases — as mesmas que eles ignoraram solenemente ao, no escurinho da urna, dar o controle das duas Casas do Parlamento a um presidente que já foi eleito internacionalmente como o pior do planeta no enfrentamento da pandemia.

Não foi só Guedes a jogar água no chope dos deputados e senadores. O novo presidente do Itaú, Milton Maluhy Filho, desafiou o coro dos contentes com os descalabros cometidos por Bolsonaro e Pazuello ao longo de um ano de transmissão descontrolada do novo coronavírus no Brasil, com mais de 225 mil vidas ceifadas, para dizer o óbvio: um atraso de seis meses no Programa Nacional de Imunização reduzirá à metade a previsão de crescimento de 4% para o PIB deste ano feita pelo banco.

O atraso já está dado. A vacinação acontece literalmente a conta-gotas, com doses contadas da CoronaVac, que Bolsonaro e Pazuello sabotaram enquanto puderam, e do imunizante de Oxford-AstraZeneca, em quantidade igualmente racionada.

Sem vacina e, portanto, sem retomada da economia, sem empregos e sem crescimento, o governo não terá outra saída a não ser reeditar alguma forma de auxílio emergencial, como pressiona o bloco de Lira — e teme Guedes.

Vem aí, portanto, um cabo de guerra no Congresso, que até ontem estava em festa, e o abraço da vitória do novo comando do Legislativo nos ocupantes do Planalto já é passado diante da pressão que vai começar.

De um lado, os parlamentares querem dar satisfação a seus eleitores a respeito de quando haverá vacina e de quando poderão retomar suas atividades, algo impossível com o ritmo de contágio e morte a que continuamos a assistir (e para que eventos irresponsáveis como a comemoração de Lira só contribuem).

De outro, os nobres congressistas querem ver entregues as emendas e os cargos prometidos. E também não há dinheiro suficiente para pagar essa fatura.

Diante de uma pauta assim congestionada pelas emergências da pandemia, da economia real e do fisiologismo, só os incautos da Faria Lima ainda podem acreditar que sairão dos escaninhos no curto prazo projetos como reforma tributária, reforma administrativa e privatizações.

Os financistas e empresários podem esperar sentados, como vêm fazendo enquanto assistem omissos e complacentes a Bolsonaro cometer crimes sucessivos contra a saúde pública e a democracia.

Também é muito etéreo e remoto traçar cenários para 2022 com base só no resultado do xadrez congressual, quando a vida nua e crua bate à porta dos políticos acompanhada pela sombra da morte. Quem me disse isso quando questionei a respeito do saldo da eleição das Mesas para a sucessão foi Ciro Gomes, que está acertadamente mais de olho nos indicadores do mundo real que nos conchavos entre um cada vez mais enfraquecido Bolsonaro e um Legislativo com apetite pantagruélico. Eis um encontro que nunca resulta bom para os governantes: o da fome dos políticos com a geladeira vazia do Orçamento e com a gritaria das ruas.


El País: Arthur Lira poderá fazer área ambiental ter saudades de 2020

Faltou ao caos ambiental brasileiro no ano passado um ingrediente básico tradicional: o Congresso

Marcio Astrini, El País

Sim, é verdade que tivemos um terço do Pantanal virando cinza, o maior desmatamento na Amazônia em 12 anos, a “boiada” passando, o ministro do Meio Ambiente desmontando a própria pasta, o combate à mudança do clima extinto, o Ibama manietado e o vice-presidente da República ameaçando controlar “100% das ONGs”. Mas faltou ao caos ambiental brasileiro no ano passado um ingrediente básico tradicional: o Congresso.

Todo o desastre que vimos, que não foi pequeno, resultou do Executivo operando praticamente sozinho. Isso não é normal por aqui. Em geral o Parlamento, dominado pela bancada ruralista, é a fonte da maioria dos retrocessos ambientais. Em 2020, dois fatores impediram que isso ocorresse. Um foi a pandemia, que interrompeu o trabalho das comissões e pôs no caminho de suas excelências coisas mais urgentes do que destruir o futuro do Brasil e ampliar nosso isolamento internacional. O outro foi Rodrigo Maia.

Apesar de todas as críticas que possam ser feitas a Maia (cole a sua favorita aqui), o deputado evitou que a caixa de Pandora ambiental fosse escancarada por seus colegas e pelo Palácio do Planalto. Maia engavetou o projeto sociopata de Bolsonaro de abrir terras indígenas a todo tipo de exploração comercial; deixou caducar na undécima hora a MP da Grilagem; e manteve em banho-maria até mesmo uma proposta de seu interesse, o desmonte do licenciamento ambiental. De forma inédita, o Congresso virou um amortecedor de choques ambientais produzidos pelo Executivo.

Com a retomada das atividades parlamentares, a demanda reprimida por favorecer lobbies de poluidores, avançar sobre terras públicas e eliminar regulações emergiria em 2021 de qualquer forma, principalmente via comissões ―mesmo com Baleia Rossi, Luiza Erundina ou o papa Francisco na presidência da Câmara. A vitória acachapante de Arthur Lira (PP-AL) nesta segunda, porém, pode colocar as ameaças e os retrocessos num outro patamar. Caso Lira tenha como uma de suas prioridades a agenda antiambiental costurada entre ruralistas e Bolsonaro, veremos no Congresso uma enxurrada histórica de tentativas de aprovação de retrocessos ambientais. Nesse cenário, o inferno é o limite.

Só para refrescar a memória: a última atuação de Arthur Lira no plenário num tema ambiental, no ano passado, foi uma articulação para aprovar a Medida Provisória que liberava a grilagem de terras no Brasil. O texto não foi a voto. Hoje é Lira quem controla o que vai ou deixa de ir para o plenário.

No dia do infame discurso da “boiada”, Ricardo Salles lamentou que o Governo precisasse operar o desmonte ambiental de forma “infralegal”, porque nada passava no Congresso. Com o Centrão no comando, esse óbice pode deixar de existir. Antigos sonhos do Governo, como ver anistiadas as invasões de terras praticadas por seus apoiadores na Amazônia e ter o garimpo legalizado em terras indígenas, ficam subitamente mais próximos.

As áreas protegidas do país também estão ameaçadas, no atacado. Em mais de uma ocasião Bolsonaro lamentou que a redução ou extinção de unidades de conservação ―como a Estação Ecológica Tamoios, onde ele foi multado por pesca ilegal― só possa ser feita por projeto de lei e não por decreto. O Governo trama desde 2019 contra o Sistema Nacional de Unidades de Conservação. A extinção do Instituto Chico Mendes, que o Governo deseja levar a cabo o quanto antes, não será um ato isolado.

Juntem-se a essas propostas os clássicos imortais das bandas podres do ruralismo e da indústria na Câmara: o enfraquecimento do licenciamento ambiental, a flexibilização ainda maior do Código Florestal, a venda de terras a estrangeiros e a liberação da caça e de agrotóxicos. Algumas dessas “boiadas”, uma vez sacramentadas em lei, tornam-se irreversíveis.

Mas calma, porque fica pior. Além da agenda antiambiental, o consórcio entre Bolsonaro e o Centrão também pode ser campo fértil para fazer avançar a possibilidade de “hungarização” do Brasil ―o sonho do clã Bolsonaro e seus agregados militares de solapar a democracia. O primeiro ato do novo presidente da Câmara na noite de segunda-feira, dissolvendo o bloco da oposição, passa uma mensagem bem clara sobre o tamanho do apego de Lira à democracia. Assim, não seria espanto ver tramitando no Congresso propostas contra as instituições identificadas como inimigas pelo regime Bolsonaro: as ONGs (o “câncer”), a academia (os “baderneiros”) e a imprensa.

Compõe o rol de tragédias da nossa nacionalidade o fato de essa investida contra o desenvolvimento sustentável ocorrer justamente no momento em que a pauta ambiental assiste a uma virada histórica no mundo. A eleição de Joe Biden criou uma conjunção astral inédita entre EUA, Europa e China a favor da ação contra as mudanças climáticas. A recuperação pós-covid-19 desses países tem tudo para ser impulsionada pela economia de baixo carbono, fazendo da proteção ambiental e das populações tradicionais um ativo, além do respeito a nossa própria constituição. Porém, no Brasil, não apenas estamos ignorando vantagens comparativas nesse setor, como estamos deliberadamente implodindo suas bases. Infelizmente, o preço poderá ser cobrado em sanções comerciais e diplomáticas, investimentos e empregos.

Espero estar errado sobre tudo o que escrevi aqui, mas, se há coisa que a história recente do Brasil tem nos ensinado é que até podemos esperar o melhor, mas devemos sempre nos preparar para o pior.

*Marcio Astrini é secretário-executivo do Observatório do Clima, rede de 60 organizações da sociedade civil.


Folha de S. Paulo: Lira e Pacheco definem pauta econômica como prioridade e cobram agilidade na vacinação

Presidentes concordaram em definir prazos para entrega de relatórios da reforma tributária e da PEC Emergencial

Renato Machado e Danielle Brant, Folha de S. Paulo

​Os novos presidentes do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), e da Câmara, Arthur Lira (PP-AL), divulgaram nesta quarta-feira (3) uma pauta conjunta que prioriza projetos econômicos e defenderam um processo de vacinação mais ágil no país.

Mesmo enfrentando a oposição manifesta do presidente Jair Bolsonaro (sem partido), ambos declararam apoio a um auxílio emergencial dentro do teto de gastos.

Lira e Pacheco realizaram um evento nesta manhã, no qual leram um documento conjunto, com pautas prioritárias para o Congresso. Na sequência, os presidentes das Casas foram para o Palácio do Planalto para um encontro com o presidente Jair Bolsonaro (sem partido).

Inicialmente, Lira e Pacheco se reuniriam na noite de terça-feira (2), após a escolha da Mesa do Senado. No entanto, a sessão atrasou, pois não houve acordo para a composição e a vice-presidência da Casa precisou ser decidida na votação.

Pacheco, que discursou primeiro, defendeu que seja estabelecido um prazo de entrega do relatório final da comissão mista que analisa as PECs (Propostas de Emenda à Constituição) de reforma tributária 45, da Câmara, 110, do Senado, e a proposta de CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) apresentada pelo governo.

Na noite desta quarta, Lira e Pacheco se reunirão com os relatores das PECs, Aguinaldo Ribeiro (Câmara) e Roberto Rocha (Senado).

Os dois presidentes também defenderam um prazo para entrega do relatório da PEC Emergencial, que estabelece gatilhos de cortes de gastos e está a cargo do senador Márcio Bittar (MDB-AC).

Pacheco também sinalizou apoio a uma das prioridades de campanha de Lira, a votação da reforma administrativa. O presidente do Senado elencou ainda como prioridade destravar outras pautas econômicas, com a PEC dos Fundos e do Pacto Federativo.

“Começamos um alinhamento nas duas Casas, para os bons propósitos do país”, afirmou Pacheco.

Lira também disse que a decisão conjunta é um símbolo de como as duas Casas vão trabalhar. “Com muito diálogo e harmonia, procurando agilizar as pautas necessárias para o crescimento e desenvolvimento do nosso país”, disse.

“Neste momento o foco é união de forças para combater a maior pandemia em 100 anos e a busca de alternativas legislativas para a vacina e para alavancar a economia” afirmou o presidente da Câmara.

No documento conjunto, ambos manifestam solidariedade “com as dezenas de milhares de vítimas da pandemia e seus familiares” --atualmente, o país tem 226 mil mortos pela Covid-19.

Eles pedem para tornar mais ágil o acesso dos brasileiros às vacinas, assegurando que haja recursos “e que não faltem meios para que toda a população possa ser vacinada no prazo mais rápido possível.”

Além disso, se comprometeram a avaliar “alternativas de oferecer a segurança financeira através de auxílio emergencial para aqueles brasileiros e brasileiras que estejam enfrentando a miséria em razão da falta de oportunidade causada pela paralisia econômica provocada pela pandemia.

Pacheco recuou em relação a sua plataforma de campanha, quando defendeu que, não fosse possível conciliar com o teto de gastos, poderia extrapolar o instrumento de contenção de despesas.


Sonia Racy: 'O mundo político funciona no modo crise', diz Murillo de Aragão

Para consultor político e advogado, vitória de Jair Bolsonaro no Congresso lhe dá, enfim, uma base para governar

O período por que passa hoje o Brasil, com idas, vindas e incertezas no trato da pandemia, pode ser entendido como uma espécie de “terceira guerra mundial”, concorda o cientista político, consultor e advogado Murillo de Aragão, da Arko Advice. “O País nunca enfrentou um desafio dessa magnitude”, que “não afeta apenas a saúde, mas também o comércio, o entretenimento, a educação, os hábitos da sociedade”. Mas o pano de fundo, adverte, é “um mundo político que funciona no modo crise”: só quando a coisa fica muito grave, é que se consegue um consenso e uma saída. 

Aragão segue de perto esse circo de acertos e conchavos há cerca de 30 anos, como consultor de bancos e empresas, em contato frequente com a área de investimentos, aqui e no exterior, além de atuar como palestrante. Sobre a vitória política do presidente Jair Bolsonaro, anteontem, com a eleição de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco como presidentes de Câmara e Senado, ele pondera, nesta entrevista para Cenários: “Não significa que a coordenação política esteja feita, ela está só começando. E vai ser afetada pela reforma ministerial que vem por aí.” A seguir, vão os principais trechos da conversa.

A Câmara acaba de eleger, como presidente, Arthur Lira, preferido de Bolsonaro. Como vê essa mudança?

O Arthur Lira venceu pela força do governo e também pelo poder de articulação dele, do Ricardo Barros e do Ciro Nogueira dentro do Congresso. É um conforto para o governo, e também para as agendas da equipe econômica. Mas isso não significa que a coordenação política do governo está feita. Ela está apenas começando. 

E em que consiste essa nova coordenação? O que vai mudar?

É uma nova etapa, onde a presença de um aliado dará ao presidente a tranquilidade para enfrentar os ataques políticos que o governo vem sofrendo no caso da pandemia. Mas essa tranquilidade terá de ser mantida e reforçada por uma coordenação eficiente. E esta vai ser afetada pela reforma ministerial que deve ocorrer em breve. 

E no médio e longo prazo? Como vê as eleições de 2022?

Considerando a máquina pública e a popularidade do presidente, ele é um forte candidato a estar no segundo turno. E até agora não temos uma candidatura forte no outro campo. Aí, existem desafios, e o maior desafio de Bolsonaro é ele mesmo. Porque existe uma narrativa antipolítica e, agora, ele se volta para o mundo político. Mas há outros dois problemas intimamente ligados – a pandemia e a economia.

Como vê a politização da pandemia, a briga entre governos e vacinas?

Olha, na área científica existe uma vaidade enorme... Eu tenho uma passagem pela academia, onde fiz meu doutorado, dou aula, e conheço o universo científico, onde há muita competição. E tem a questão geopolítica da vacina. Podemos fazer um paralelo com a guerra: quem tiver a vacina terá uma arma mais moderna...

Pode-se encarar o atual desafio como uma espécie de terceira guerra mundial, contra um inimigo invisível?

Sim, é como eu vejo. Olha, um ano atrás postei na minha coluna na (revista) Veja um alerta sobre a pandemia, e tudo o que eu mencionei lá atrás mais ou menos se realizou. O País nunca enfrentou um problema dessa magnitude. Ela afeta a todos no Planeta, igualmente. E mais: não afeta apenas a saúde. Afeta os hábitos da sociedade, o comércio, o entretenimento. No livro Ano Zero, que escrevi no ano passado, comparei alguns efeitos da guerra na sociedade. Por exemplo, o número de abortos na Alemanha foi gigantesco, depois da Grande Guerra. Nos Estados Unidos, depois do crash de 1929, famílias foram destruídas, centenas de milhares de pessoas vagavam pelo país como vagabundos... A pandemia pode ter esse mesmo efeito.

Como isso poderia ser resolvido?

O Brasil é um País que funciona no modo crise. Quando a situação piora muito, aí se chega a um consenso. A gente vai marchando entre conchavos e acertos, veja aí a eleição de agora na Câmara e no Senado. Partidos têm um pé no governo e outro fora do governo, a ambiguidade é parte do sistema. Só haveria união se a situação piorasse muito. 

O ministro Paulo Guedes condicionou a volta do auxílio emergencial a um corte de custos que depende do Congresso. Acha isso possível? 

Essa questão tem uma complexidade e uma simplicidade enorme. Vou falar da simplicidade. O Estado aqui é mais forte que a sociedade e o aumento da despesa acaba sendo financiado pelo aumento da arrecadação. Alguém dirá que o teto de gastos cria limites. Mas se a pandemia se tornar mais dramática, ele será flexibilizado, talvez por uma PEC, e acaba caindo na conta do cidadão. Num imposto sobre transações digitais, uma CPMF, uma contribuição social sobre lucro dos bancos, um Bolsa Família vindo de outras fontes. 

Acha possível a união de forças políticas se a pandemia se agravar ainda mais? Acredita num impeachment?

A única razão que me pareceria capaz de unir as forças políticas seria para derrubar o presidente. Mas não vejo nada disso acontecendo. Porque o impeachment tem uma forma. Na Arko Advice a gente fez uma fórmula que foi aplicada no caso Collor, lá de 1992. Você tem de avaliar três fatores. O primeiro é o motivo, e esse é o que menos importa. Segundo, e este importa bastante, é a popularidade. Presidente popular segura um impeachment. Bolsonaro tem hoje popularidade (somando ótima, boa e regular) acima dos 50% e militância muito aguerrida. 

Ele é um político que tem estratégia?

Eu o vejo mais tático do que estratégico. Bolsonaro foi competente ao criar sua candidatura, num momento de descrédito do centro político e da esquerda. Criou uma estratégia para se eleger, mas no governo ele não tem estratégia. O governo foi montado, desmontado, e aí chegou a pandemia. O hiperpresidencialismo deixou de existir e Bolsonaro aprendeu isso na marra. Quando diz “eu não consigo fazer nada, a Justiça não deixa fazer”, é verdade. E isso é o que protege a nossa democracia – e talvez paralise alguns dos nossos avanços. 

Muito se fala num poder exacerbado do STF. Isso é bom para a democracia?

Judiciário foi por muito tempo um Poder opaco, quase chapa branca. De certo modo, continua sendo. Mas o que tivemos desde o mensalão em 2005, com Joaquim Barbosa, foi um crescente protagonismo do Judiciário. O STF virou tribunal recursal da política, toda polêmica termina lá. 

Fala-se a toda hora em governo de esquerda, de direita. Diria que o atual governo é de direita?

Às vezes, o governo é politicamente de direita e economicamente de esquerda.. O atual é politicamente de direita, sim, e economicamente liberal, mas não deixa de ter traços do tenentismo, surgido nos anos 20, e que é intervencionista. Foi o tenentismo que criou a Petrobrás, a Eletrobrás. Então, há traços de direita, de esquerda... O Brasil é assim.

Tem uma frase muito boa do Nizan Guanaes, publicitário, mas que só faz sentido em inglês: não existem mais “left” ou “right”, existem “right” ou “wrong”, certo ou errado...

É uma realidade. O pragmatismo se impõe sobre os fatos e as crenças. Uma vez, meu filho Tiago foi com um grupo à China e, numa palestra que assistiram, na Juventude Comunista do PC Chinês, alguém disse: “Vocês sabem por que a América do Sul não dá certo? É porque vocês não respeitam o mercado!” Os mais esquerdistas, na sala, ficaram horrorizados. O conferencista explicou: “Nós respeitamos o mercado, produzimos o que ele quer”. Esse é o pragmatismo que nós deveríamos ter.

O Fernando Gabeira me disse anos atrás uma frase sobre capitalismo. “Não adianta você mandar o capitalismo para o inferno, que ele há de fazer um bom negócio por lá.” Mas, voltando ao tema, qual seria a reação se o Paulo Guedes pedisse o chapéu?

Em uma ou duas ocasiões, houve rumores de que ele iria embora. Acho que todo ministro deveria ter, não digo uma carta de demissão na gaveta, mas estar preparado para uma eventualidade. Foi mais ou menos o que aconteceu com o Wilson Ferreira, na Eletrobrás, quando sentiu que não ia fazer diferença no processo. E ele fez um belíssimo trabalho de reorganização na Eletrobrás. 

Você acredita num programa de privatização do atual governo?

Acredito sim, principalmente naqueles itens já colocados nas PPIs, que são uma herança do Uma Ponte para o Futuro, projeto do Michel Temer, que deu as bases do programa do ministro Tarcísio de Freitas, na Infraestrutura.

Que recado, enfim, você daria aqui sobre o futuro do País?

Estou há 40 anos em Brasília e diria que o País melhorou muito, sobretudo porque a sociedade se interessou mais pela política. Há hoje uma presença maior das elites empresariais e culturais debatendo o Estado e seu funcionamento. Outro avanço importante é a redução do corporativismo. A reforma política vem sendo feito em fatias. E temos US$ 350 bilhões em reservas, um sistema financeiro saudável e taxas de juros mais realistas. 

Pelo que você diz, continuamos, então, a ser o País do futuro?

Estamos construindo o futuro, ainda que a passo de tartaruga. E acho que vamos continuar avançando. Os embates que tivemos nestes dois anos de governo Bolsonaro revelam uma sociedade democrática e a existência de instituições fortes. Isso é muito importante.

*CEO da Arko Advice, sócio fundador da advocacia Murillo de Aragão, professor adjunto da Columbia University (Nova York), autor de “Reforma política – o debate inadiável.”


Ascânio Seleme: O que esta Casa quer

Houve um período em que a vontade popular influenciava as decisões tomadas pelos deputados

Houve uma época na vida política nacional em que a Câmara dos Deputados subordinava-se ao eleitor. Os movimentos das massas, o clamor das ruas, o rufar dos tambores mexiam com posições enraizadas, transformavam "verdades absolutas" e forçavam deputados a votar de acordo com o pleito manifesto pela maioria. Na votação do impeachment do ex-presidente Fernando Collor, o então deputado Ibsen Pinheiro, presidente da Câmara, promulgou o resultado com uma frase emblemática que resumia esse sentimento. “O que o povo quer, esta casa acaba querendo”, disse o deputado.

Muitos outros exemplos comprovam a tese de Ibsen. Inúmeras matérias que contrariavam interesses de governos e de suas bases parlamentares acabaram sendo aprovadas para atender aquele grito rouco que é impossível não se ouvir. O segundo impeachment no Brasil, da ex-presidente Dilma Rousseff, também confirma que é bom não contrariar a vontade do povo. A cassação do odiado Eduardo Cunha, que perdeu a presidência da casa e em seguida o mandato, acabando preso, da mesma forma corrobora a máxima de Ibsen.

Mas, nos dois últimos anos, contrariando a história, os parlamentares aparentemente deram as costas ao clamor popular. O presidente do Brasil que cometeu uma dúzia de crimes de responsabilidade permanece no cargo e, mesmo tendo apenas 37% de apoio popular, não teve na Câmara seu processo de cassação encaminhado. Na noite de segunda-feira, viu-se outro sinal inequívoco de que os senhores deputados e as senhoras deputadas estão se lixando para o que o povo quer ao elegerem o deputado Arthur Lira para a presidência da Câmara. O que importa é o que esta casa quer.

Talvez a explosão das mídias sociais tenha alguma parte nisso, já que os parlamentares falam apenas com os que os apoiam, com puxa-sacos, com sua curriola nos seus estados. Não ouvem o macro, o maior, o todo. O fato é que a Câmara elegeu Lira, candidato apoiado pelo presidente Bolsonaro, que abriu o cofres em favor do deputado condenado em duas instâncias por peculato e lavagem de dinheiro e denunciado por outros crimes, inclusive violência doméstica.

Sua posse lembrou a de Eduardo Cunha, com a gritaria entusiasmada do centrão e do baixo clero. Houve até foguetório na Praça dos Três Poderes ao final da sessão. Em frente ao Congresso, alguns dos mais fiéis seguidores de Bolsonaro rezavam na tarde de ontem pela eleição de Lira.

Nos salões da Câmara, os eleitores do deputado pareciam adestrados, em grande parte. Alguns foram instados a gravar o registro do seu voto sob pena de não levar um prometido “agrado” do Palácio do Planalto, na forma de dinheiro ou cargo público. Lembraram eleitores dos coronéis do passado não muito remoto dos rincões brasileiros. Votaram com o cabresto no focinho, sendo encaminhados na posição que Lira e Bolsonaro apontaram.

A Câmara tem agora no comando uma réplica mais elaborada de Jair Bolsonaro. O primeiro ato do novo presidente da Câmara, excluindo unilateralmente seus adversários da mesa diretora, mostra o caráter vingativo, revanchista e intolerante do deputado. Lira, que se elegeu com as verbas e os cargos do Executivo, pode agora querer dominar o próprio presidente. O primeiro gesto do eleito cria um problema para Bolsonaro, que sonhava com uma Câmara mais pacificada sem Rodrigo Maia. O que Lira fez foi implodir de saída qualquer apaziguamento.

A Casa, que não quer mais o que o povo quer, sob Lira pode também não querer o que o presidente quer. Bolsonaro vai ter que alimentar sem parar a bocarra gigante do deputado que já mostrou que não tolera negativas e não aceita perdas de prazo. O capitão que se cuide, o deputado é que carrega a chave que pode abrir um dos mais de 60 pedidos de impeachment que repousam na mesa que era de Rodrigo Maia.


Merval Pereira: Antilavajatismo

Entre as incoerências explicitadas nos acordos para a eleição dos novos presidentes da Câmara e do Senado não está o interesse pessoal dos parlamentares no fim da Operação Lava-Jato. Ao contrário, o antilavajatismo une a maioria deles, o que facilitou o presidente Bolsonaro ter apoio até do PT na eleição do Senado.

Ao apoiarem a candidatura de Rodrigo Pacheco, os petistas alegaram que não poderiam votar na candidata senadora Simone Tebet, uma clara apoiadora do combate à corrupção e da Lava-Jato, que também, ou principalmente por isso, foi abandonada por seu partido, o MDB, e até mesmo pelo Podemos, que sempre anunciou que gostaria de ter o ex-ministro Sérgio Moro entre seus filiados para lançá-lo  candidato à presidência da República. O apoio formal do Podemos foi para Tebet, mas não a maioria de seus votos.

Na Câmara, foi mais fácil a esquerda fechar acordo com a chapa de Baleia Rossi, pois nenhum dos dois candidatos tem simpatias pela Lava-Jato. Não foi preciso rasgar a fantasia. Desde que Bolsonaro partiu para a confrontação com Moro, surgiu um campo enorme de interesses comuns entre os partidos e o Palácio do Planalto.

A posição do DEM, por exemplo, que acabou rachado pela decisão de seu presidente ACM Neto de liberar a bancada para votar em Arthur Lira, provocou efeitos colaterais até mesmo nas prováveis alianças para a disputa presidencial ano que vem. ACM Neto, juntamente com o presidente da Câmara Rodrigo Maia, tinha encontros regulares com o apresentador Luciano Huck e seu grupo político liderado pelo ex-governador do Espírito Santo Paulo Hartung.

Cozinhavam em fogo brando a candidatura de Huck à presidência, que deveria se filiar ao Cidadania, presidido por Roberto Freire, mas ter o DEM como principal partido de sua coligação eleitoral. Com a aproximação do DEM com o governo federal, a possível candidatura de Huck já não é provável, pois o PSDB, que seria outro grande partido a apoiá-lo, tem o governador João Dória como candidato natural.

Maia, que pretende deixar o DEM, tem sido especulado como futuro tucano, e foi rejeitado pelo Cidadania. Uma união do DEM, PSDB e MDB para lançar candidatura única parece descartada no momento, pois dois deles estão se aproximando do governo Bolsonaro e voltando ao berço de onde saíram, o Centrão.

O PSDB tem uma dissidência interna importante representada pelo ex-governador Aécio Neves. Ele conseguiu uma maioria para abandonar a candidatura de Baleia Rossi e aderir formalmente a Arthur Lira, o que só não se concretizou pela interferência do governador João Doria e do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso. Se a oficialização da adesão não aconteceu, provavelmente a maioria dos votos tucanos foi para o candidato do Palácio do Planalto no escurinho da urna de votação.

A possibilidade de construção de novas alianças, sempre à disposição de quem está com os poderes presidenciais na mão, como ressaltam apoiadores do presidente Bolsonaro, é um fato do presidencialismo de coalizão. As eleições de ontem escancararam quão gelatinosa é a ideologia partidária brasileira, e como as posições são trocadas a partir de interesses pessoais.

O a essa altura ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia já teve o sonho de fazer um novo partido de centro-direita, quando o governo Bolsonaro saíra das urnas consagrado, e parecia que o pêndulo havia mudado de direção por período duradouro. Não via viabilidade em um acordo de centro-esquerda.

Mas barrou, por exemplo, a participação do ex-juiz Sérgio Moro das negociações políticas, depois que ele fora chamado para conversas com o governador João Dória e com o presidenciável Luciano Huck. A ponto de ter obrigado Huck a declarar que a turma dele era a de Maia e ACM Neto, alijando Moro. Hoje, Maia está afastado da centro-direita, e ficou mais ligado à esquerda, devido à sua posição de combate direto ao governo Bolsonaro.


Bernardo Mello Franco: Bolsonaro compra seguro contra impeachment e CPI

A vitória de Arthur Lira sela o enlace entre Jair Bolsonaro e o Centrão. É um casamento de interesses, ditado pela gula dos parlamentares e pelo instinto de sobrevivência do governo.

Na campanha de 2018, o capitão definiu o grupo como “a nata do que há de pior” no Brasil. Ao subir a rampa, ele continuou a tratar a turma com desdém.

Partidos como o PP de Lira e o PTB de Roberto Jefferson, acostumados a abocanhar cargos em todas as gestões anteriores, viram-se preteridos na partilha de ministérios e estatais.

Foi uma surpresa amarga para as duas legendas, que haviam oferecido abrigo ao então deputado Bolsonaro por mais de uma década.

O ensaio de independência durou enquanto o presidente se julgava forte o suficiente para governar sem dividir poder com o Congresso. Essa situação mudou com a queda de popularidade e com o cerco judicial aos filhos do capitão.

Fragilizado, Bolsonaro se rendeu ao Centrão e decidiu abrir os cofres para comprar proteção parlamentar. O investimento em Lira representa a contratação de um seguro contra o impeachment, cuja apólice terá que ser renovada periodicamente até 2022.

O Planalto tem muitos motivos para festejar. No médio prazo, o presidente tende a afastar a ameaça de um processo de cassação.

Apesar de seus múltiplos e repetidos crimes de responsabilidade, Bolsonaro deverá continuar na cadeira até o fim do mandato. Mesmo que a sua permanência signifique o aumento de mortes que poderiam ser evitadas se o país tivesse um governante interessado em conter a pandemia.

Lira também deverá bloquear qualquer tentativa de instalação de CPI para apurar a omissão do Planalto no combate ao coronavírus.

Alinhada ao bolsonarismo, a Câmara tende a lavar as mãos diante da crise humanitária em estados como o Amazonas, onde pacientes continuam a morrer sufocados pela falta de oxigênio.

O desperdício de dinheiro público na produção de cloroquina, a negligência na negociação de vacinas e os desmandos do ministro Eduardo Pazuello também deverão continuar impunes.

De brinde, Bolsonaro foi dormir com a notícia da derrota acachapante de Rodrigo Maia, cujo candidato, Baleia Rossi, recebeu apenas 145 votos.

Rifado por seu próprio partido, que o abandonou a menos de 24 horas da votação de ontem, o agora ex-presidente da Câmara arrisca encerrar o mandato como um zumbi.

A julgar pelas expectativas do governo, a vitória de Lira não se limitará a blindar Bolsonaro. O capitão também espera destravar pautas reacionárias como a liberação das armas e o desmonte da legislação ambiental.

No entanto, ele poderá ser obrigado a pagar ainda mais para ver. Discípulo de Eduardo Cunha, Lira sabe como inflacionar o preço de favores e votações. Agora que ele assumiu o volante, o taxímetro do apoio ao governo passará a correr na bandeira dois.


Vera Magalhães: Pior líder mundial? Vamos dar a ele o Congresso!

Jair Bolsonaro é considerado o pior líder mundial no enfrentamento da pandemia do novo coronavírus. Sua popularidade está em queda em qualquer pesquisa de opinião que se olhe, em praticamente todos os estratos e regiões. Não existe vacina disponível para a grande maioria da população brasileira. A economia patina após um soluço de recuperação à custa de auxílio emergencial e a desigualdade, depois do mesmo soluço, é maior que no início da pandemia.

Qual a resposta dos senhores parlamentares a esse estado de coisas? Simples: dar a este presidente o comando das duas Casas do Congresso. A que custo? As cifras variam bastante, mas sempre na casa dos bilhões de reais, vindos do Orçamento federal já estourado e de mais sacrifício a gastos que deveriam ser prioritários.

Parece impossível de entender, e é mesmo. A política vai mostrando que não tem nenhum compromisso com as preocupações reais do Brasil, as urgências sociais, de saúde pública, econômicas e institucionais, e que viu na fragilidade de Bolsonaro a chance de lhe arrancar até a cueca na forma de fisiologismo explícito para afastar o fantasma do impeachment, a única coisa que aflige de fato o capitão.

Não importa que, para isso, os partidos implodam suas próprias estruturas e comprometam a própria estratégia para 2022. Como em 2018, as principais siglas mostram incapacidade de projetar as consequências de médio e longo prazo de suas ações, e ignoram a capacidade de Bolsonaro de manter uma base fiel, ainda que minoritária, para construir sua candidatura em cima dos erros dos adversários (além de outros expedientes conhecidos, como fake news, discurso de ódio, negação da política e, agora, rios de dinheiro público).

DEM, PSDB, PSD e MDB adiam ou comprometem em definitivo qualquer possibilidade de construírem uma frente alternativa ao bolsonarismo para 2022. Presos ao imediatismo de cargos e emendas não levam em conta nem o básico: se a economia continuar derretendo e a pandemia avançando, a popularidade de Bolsonaro vai cair ainda mais.

E é por isso, pela vida real, que se impõe, que talvez a vitória esperada do presidente nas eleições das Mesas não se configure um respiro longo ou uma melhora efetiva da governabilidade.

Todas as muitas e caras promessas feitas para angariar votos para Arthur Lira na Câmara começarão a ser cobradas no primeiro dia, com mais virulência quanto maior for o desgaste de Bolsonaro nas pesquisas.

O Orçamento em frangalhos não comporta todos os ministérios e emendas prometidos, e a gritaria não vai demorar, porque o Centrão não tem pruridos de fazer a cobrança em alto e bom som e na forma de votações.

Não será simples também a Lira fazer andar a pauta regressiva que Bolsonaro espera ver transformada em prioridade legislativa: a oposição, depois de um primeiro ano dominado pela discussão da reforma da Previdência e um segundo em que a pandemia ditou o apoio a projetos do governo, agora será ruidosa e atuante, mesmo que saia derrotada hoje.

A discussão sobre a volta do auxílio emergencial vai estressar Paulo Guedes e sua equipe. O governo reclamou muito de Rodrigo Maia, mas vai sentir falta do compromisso que ele sempre teve com o ajuste fiscal diante do comando do rei do Centrão, para quem o teto de gastos é apenas um obstáculo ao cumprimento das promessas de campanha.

E o impeachment? Os 60 pedidos que Maia deixa na gaveta deverão ficar lá como um alerta a Bolsonaro de que, se não ajoelhar no milho e entregar tudo o que prometeu, pode ser colocado na roda pelo hoje aliado.

Neste caso, aliás, não há que se esperar fidelidade: nem o presidente hesitará em culpar o Centrão pela persistência do fracasso de seu governo, nem o Centrão vai titubear se tiver de rifar o presidente caso sua popularidade afunde de vez no pântano da pandemia. É como a parábola do escorpião e do sapo, só que a diferença é que os dois companheiros de travessia têm ferrão.


Míriam Leitão: Duas Casas de costas para o país

O Congresso virou de costas para a sociedade nesta eleição. Enquanto o país está sendo devastado pela pandemia, atingido pela desastrosa gestão da crise, açoitado pelas ofensas do presidente Bolsonaro, a Câmara e o Senado, como se estivessem em outro planeta, negociavam com olhos em outras questões. Houve ecos, alguns poucos, do que realmente aflige o Brasil, mas o que pavimentou o caminho dos candidatos governistas foram verbas e cargos. Os eventos da sucessão no Congresso terão reflexos na política e na economia.

Na política, houve uma mudança de curso importante, diz o cientista político Jairo Nicolau. O governo Bolsonaro aderiu nesta eleição à construção de uma maioria com base em partidos. Isso significa uma reversão daquela ideia inicial, fracassada por inviável, de ignorar os partidos e fazer acordos com as bancadas. É um equívoco avaliar que houve agora a adesão de Jair Bolsonaro ao centrão, ao fisiologismo e à velha política. Ninguém adere ao que sempre foi. Esse é o seu grupo. Bolsonaro é o que ele definia como “velha política”. Pensou que poderia costurar alianças diretamente com as bancadas temáticas. Não deu certo, porque não daria mesmo.

Bolsonaro fez explícita intervenção no Congresso para, desta forma, afastar o fantasma do impeachment. No Senado, conseguiu um feito impressionante. O senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) foi eleito com convincente maioria, juntando votos dos seguidores de Bolsonaro e dos partidos de esquerda. Pacheco conseguiu também tirar do maior partido, o MDB, a presidência da Casa. E o fez com apoios do próprio MDB, que abandonou sua candidata Simone Tebet. Pacheco falou em pacificação, sendo o candidato de um presidente que fez do mote da campanha o gesto de armas apontadas. E elas têm atirado.

A equipe econômica via o dia de ontem como uma vitória que permitirá que ela siga com a sua pauta de reformas. O problema é que são reformas de Itararé. As propostas feitas são fracas e não terão impacto fiscal importante. E a tendência é agora de aumento de gastos, por vários motivos.

Uma das fontes de despesa serão os compromissos assumidos com os deputados e senadores que frequentaram a sala do ministro Luiz Eduardo Ramos, onde foi instalado um balcão de negócios que custarão bilhões de reais. Havia outros balcões em outros ministérios. Em alguns deles se ofereceu recursos não rastreáveis porque extraorçamentários. Essa farra deu ao governo a vitória e uma conta para pagar.

O Congresso vai também aprovar uma nova etapa do auxílio emergencial. Os quatro candidatos que disputaram ontem falaram isso nos seus discursos. Como a pandemia não acabou, e até piorou, ao contrário do que a equipe econômica acreditava que estaria acontecendo neste momento, será necessário mesmo. Já deveria ter sido proposto pela própria equipe.

Não haverá contrapartidas suficientemente fortes para esse novo gasto. A PEC emergencial tem vários gatilhos para serem disparados em momento em que for preciso conter gastos. Mas o governo desidratou a proposta que havia sido incialmente formulada pelo deputado Pedro Paulo, como lembrou ontem em conversa com o blog o economista Sérgio Vale. Um dos pontos é o não aumento dos benefícios vinculados ao salário mínimo, porém isso só poderá ser acionado no ano que vem, porque neste já foram corrigidos.

Das outras reformas, de que o mercado financeiro e a equipe econômica tanto falam, a administrativa foi esvaziada pelo presidente antes de ir para o Congresso, a tributária foi ignorada pela própria equipe que mandou apenas a fusão de PIS e Cofins. A privatização da Eletrobras, o novo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, diz que é contra.

É da natureza do centrão ser governista. Foi nos governos Fernando Henrique, Lula, Dilma e Temer. Mas seu apoio é negociado a cada projeto e seu preço costuma ser alto. Curta e baixa é a sua lealdade. No racha do DEM, uma parte voltou à sua natureza de centro fisiológico, abandonando a ideia de ser centro programático entre polos. O PSDB, com raras exceções, ficou no muro onde sempre esteve.

É da natureza do centrão ampliar gastos. Portanto, a vitória de ontem de Bolsonaro foi mais uma derrota para a equipe econômica. O pior, contudo, foi essa dissonância entre o sofrimento do país e os acordos opacos feitos pelo Congresso.


Valor: Com centrão, agenda econômica não ganha impulso, diz cientista político

Centrão deve ajudar a barrar impeachment e investigações de irregularidades, mas não tem votos para garantir o avanço da agenda econômica nem de pautas conservadoras

Cristiane Agostine, Valor Econômico

SÃO PAULO - A provável vitória do Centrão no comando da Câmara dos Deputados, com a eleição de Arthur Lira (PP-AL), deve ajudar o presidente Jair Bolsonaro a barrar não só um processo de impeachment contra ele, mas também investigações de irregularidades no governo federal em Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs). No entanto, não garante a aprovação de projetos de interesse do presidente, nem o avanço da agenda econômica e de pautas conservadoras. Na análise do cientista político Carlos Pereira, professor da FGV, a consolidação da aliança de Bolsonaro com o Centrão não dará ao presidente o controle das votações nem a certeza de governabilidade.

O Centrão, diz o cientista político, é a “maior minoria” na Câmara: tem apoio suficiente para impedir o impeachment, mas não tem votos na Câmara para dar maioria simples nem qualificada para aprovar projetos.

Pereira avalia a aliança com o Centrão como um “estelionato eleitoral” do presidente. A defesa da agenda anticorrupção e as críticas à “velha política” e às práticas do “toma-lá-dá-cá”, que marcaram a campanha eleitoral de Bolsonaro em 2018 e o primeiro ano do governo, caíram por terra, diz o professor da FGV. O presidente deu um “cavalo de pau” na forma de se relacionar com o Legislativo, ao trocar o tom belicoso por um acordo com o partidos como PP, PL e Republicanos, com a oferta de cargos e recursos vultuosos. A vitória de Lira, afirma Pereira, é sinônimo da derrota das bandeiras defendidas por Bolsonaro e, ao mesmo tempo, a vitória do presidencialismo de coalizão no Brasil.

O avanço da agenda econômica dependerá mais do empenho do governo do que do novo presidente da Câmara, independentemente de quem for eleito. Na avaliação de Pereira, as pautas de interesse da equipe econômica não foram aprovadas por falta de articulação política e por erros do governo. Se o presidente não aprovar reformas como a administrativa e tributária, diz o professor, não poderá mais culpar o Congresso por divergências e assinará uma “sentença de incompetência”.

Para o cientista político, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), errou ao não usar a ameaça de abertura de impeachment contra Bolsonaro para fortalecer a candidatura de Baleia Rossi (MDB-SP) contra Lira.

A seguir, trechos da entrevista ao Valor ontem, antes da votação na Câmara e no Senado.

Valor: A vitória de Lira coroa o fortalecimento do Centrão, com o retorno do protagonismo na Câmara depois de Eduardo Cunha?

Carlos Pereira: É uma vitória de Bolsonaro, não do Centrão. Bolsonaro fez uma mudança radical, deu cavalo de pau na política que implementou inicialmente com o Legislativo. Ele teve uma postura desde o início do governo de muito confronto com o Legislativo e acreditou que poderia governar através de conexões diretas com sua base eleitoral, passando os partidos e o Congresso. Ele colheu tempestade, muitas derrotas no Legislativo e viu crescer a possibilidade real de que seu governo terminasse de forma prematura pelo impeachment. Diante das sinalizações que o presidencialismo multipartidário deu, fez uma mudança radical, um cavalo de pau, e passou a querer governar com os partidos, montando uma coalizão com Centrão. O Centrão soube aproveitar essa inflexão. Estavam disponíveis a participar de uma coalizão dependendo do que fosse ofertado em troca.

Valor: Essa coalizão garante governabilidade? E enterra as possibilidades de um impeachment?

Pereira: Não está claro se essa coalizão poderá dar maioria consistente e sustentável ao governo no Legislativo, mas pelo menos é capaz de dificultar iniciativas que o governo julga não desejáveis como o impeachment. O Executivo está oferecendo execução de emendas individuais e coletivas, espaço no governo, ministérios.

O presidente se torna dependente dessas figuras que são ideologicamente amorfas e fica mais vulnerável”

Valor: Mas a vitória de Lira afasta um eventual impeachment?

Pereira: Fica mais difícil, mas vale salientar que esse alinhamento entre o Executivo e o Legislativo, na figura dos presidentes da Câmara e do Senado não é a exceção, mas sim a regra. Raramente os presidentes da República não dispõem da preferência dos presidentes das Casas do Legislativo. Só aconteceu três vezes desde a Nova República. Aconteceu com Collor, com a eleição de Ibsen Pinheiro para a Câmara - Collor ignorou esse processo e recebeu impeachment do Legislativo. Com Lula, no segundo mandato, quando perdeu popularidade depois do mensalão e perdeu capacidade governativa. Severino Cavalcanti venceu, mas logo caiu ao ser pego em escândalo de corrupção. E com Dilma, quando o governo também errou ao peitar de frente Eduardo Cunha, insistindo na candidatura de Arlindo Chinaglia. Nesses três episódios em todos esses anos de democracia o presidente teve essa arena de animosidade com os presidentes das Casas Legislativas. No restante, os presidentes têm tido capacidade de influenciar no processo eleitoral e eleger presidentes da Câmara e do Senado comprometidos com a agenda do presidente.

Valor: Essa interferência não reduz a independência do Congresso?

Pereira: O grande receio desse alinhamento é que o Legislativo perca a capacidade fiscalizatória, de constranger, de restringir o presidente diante de eventuais desvios. Isso é preocupação relevante, mas o alinhamento entre os presidentes das duas Casas do Legislativo e do presidente não é o único elemento que define o grau de subordinação do Legislativo ao Executivo. Há outros aspectos. O fato de o presidente da Câmara ser do mesmo partido ou da coalizão ou do arco de alianças do presidente não significa subserviência. Mas é uma preocupação, sim. Existe esse risco.

Valor: Mas o presidente terá maior controle da agenda no Legislativo com um aliado no comando...

Pereira: Não diria controle, mas maior influência. Em última instância, a decisão continuará sendo de Lira e de Pacheco. Bolsonaro terá que negociar com essas figuras importantes, mas é melhor negociar com alguém do seu campo do que da oposição. O ganho de Bolsonaro é de articulação, mas não significa necessariamente que vai passar o rolo compressor e que a decisão dele vai prevalecer sempre. Há um controle endógeno, que é a fragmentação política. Os partidos têm muita dificuldade de agir de forma coesa.

Valor: Um aliado no comando pode barrar não só impeachment, mas também investigações, CPIs...

Pereira: Pode, desde que seja premiado a contento. Tem que levar em consideração a gerência da coalizão. Montar a coalizão não é fácil, mas mais difícil ainda é gerir a coalizão. É uma coalizão minoritária. O Centrão não tem votos suficientes para dar maioria nem simples nem qualificada. Tem a maior minoria, pode dificultar o impeachment, mas não tem maioria para aprovar o que Bolsonaro quer. Bolsonaro necessariamente vai precisar dos votos da oposição para aprovar sua agenda. O que o Centrão pode ofertar para Bolsonaro é uma agenda muito mais negativa do que positiva. Ele pode dificultar um impeachment, mas é muito difícil que Centrão consiga oferecer a aprovação de uma agenda ultraconservadora, anti-gay, pró-arma, de costumes se Bolsonaro quiser levar para frente. O Centrão não tem votos para aprovar isso. Tem quantidade de votos para vetar coisas, mas não para aprovar coisas.

Valor: Essa blindagem é confiável? O apoio tende a ser duradouro?

Pereira: Lira é jogador estratégico. Está observando os retornos para ele e para um conjunto de forças que estão jogando hoje. Se mais na frente Lira ou Pacheco perceberem que Bolsonaro não gerencia bem a coalizão, não recompensa de acordo com o peso proporcional de cada um dos parceiros, se monopoliza o jogo, os termos dessa negociação podem mudar. No governo Dilma, o PMDB foi maltratado, era desproporcional a alocação de recursos e de poder entre os parceiros, apesar de os parceiros terem o mesmo peso no Legislativo.

Valor: Bolsonaro foi eleito com um discurso contra a “velha política”, mas essa aliança com o Centrão derruba essa bandeira, não?

Pereira: Sim, com certeza. É um estelionato eleitoral. Bolsonaro desceu do pedestal do discurso dele da antipolítica, de que é o limpo, o poderoso’, de que não vai negociar com as armas do presidencialismo multipartidário, porque igualava isso a corrupção. Agora, joga com as mesmas armas ou armas piores do presidentes anteriores. Obviamente ele comete um estelionato eleitoral de marca maior. Mas isso não se dá pela preferência do presidente, mas sim porque percebeu que se continuasse jogando do jeito anterior, ele talvez não terminasse o mandato dele. Houve um aprendizado institucional, percebeu que o presidencialismo multipartidário é mais forte do que ele.

É muito difícil que Centrão consiga oferecer a aprovação de agenda ultraconservadora, de costumes, pró-arma

Valor: E o desgaste político?

Pereira: Bolsonaro negocia com o Centrão em troca de recursos, de cargos, e isso se choca com o discurso de que jamais faria isso. Obviamente terá custo político e eleitoral com seus eleitores, que cobram a coerência. Mas do ponto de vista institucional, da democracia, é muito melhor ter um presidente que negocia e se subjuga às regras e ditames do presidencialismo multipartidário do que um presidente que nega tudo isso e diz que vai derrubar as instituições, que desrespeita o Judiciário e o Congresso. Bolsonaro perde o jogo ao cometer estelionato eleitoral, perde o discurso e a agenda renovadora. Mas, em última instância, quem venceu foram as regras do jogo do sistema político brasileiro.

Valor: Lira tem sido um antagonista na pauta anticorrupção na Câmara. Essa é outra bandeira de Bolsonaro que foi derrubada?

Pereira: Não resta dúvida. A agenda anticorrupção do governo foi por terra. Mas já tinha ido com a saída de Sergio Moro. Quem votou em Bolsonaro na expectativa de que fosse aprovar uma agenda anticorrupção, dançou. E esse eleitor já abandonou Bolsonaro. A vitória de Lira é o sinônimo da derrota de Bolsonaro, do que ele representava. Mas é uma vitória para o presidencialismo de coalizão no Brasil.

Valor: Como ficará a agenda econômica? Rodrigo Maia era um aliado de Paulo Guedes, mas Lira vai em sentido contrário, com a defesa de medidas que geram maior gasto público. As reformas devem passar?

Pereira: Acho que pouco muda. O que vai definir é a preferência mediana do Congresso e não a presidência das Casas. E a preferência mediana do Congresso é muito favorável ao equilíbrio das contas públicas, equilíbrio macroeconômico, controle inflacionário, redução da carga tributária. Então, independentemente do eleito, nada muda na pauta econômica. A agenda econômica não avançou mais não em função de Maia, mas sim em função do governo, que foi tímido, teve problemas de coordenação, teve incompetência. Não conseguiu avançar na agenda liberal que prometeu na campanha por erros do próprio governo, não pelo Legislativo. O Legislativo não será empecilho para que o presidente consiga, se assim o quiser, colocar para frente uma agenda econômica vigorosa, que seja consistente com o ajuste fiscal, equilíbrio das contas públicas, controle inflacionário. Se Bolsonaro e Guedes colocarem para frente essa agenda, não terá problemas para aprová-la, porque a maioria do Congresso é favorável.

Valor: O senhor vê um ambiente mais favorável para as reformas administrativa e tributária?

Pereira: Vai depender do Executivo. Se tiver capacidade de gerir esse jogo e ter celeridade na proposição da agenda, o Congresso não será obstáculo. Com Lira ou Baleia Rossi, não vejo impacto tanto na agenda de reformas econômicas como administrativas. O que acho pouco provável é agenda relacionada a costumes, a agenda conservadora, que muitos têm receio. O Congresso é muito diverso e o presidente não terá maioria para construir essa vitória. Do ponto de vista econômico, vai depender do governo. Se não tiver mudanças, governo não poderá mais culpar o Congresso. Se essas reformas não ocorrerem, o governo assina sua sentença de incompetência.

Valor: A gestão de Rodrigo Maia foi vista como uma espécie de freio a ações antidemocráticas do presidente. Sem esse limite na Câmara e com um líder do Centrão no comando da Câmara, o que se pode esperar? De onde virá esse limite?

Pereira: Isso ainda não está claro. A presidência da Câmara e do Senado não são os únicos elementos de veto para o Executivo. Há também o tamanho da coalizão e a gerência da coalizão, por exemplo. Esses elementos estarão em movimentação, mesmo quando o presidente tem a presidência da Câmara e do Senado aliados de primeira hora, fiéis. Essa coalizão não é majoritária, mas sim minoritária. Não capacita o governo a colocar para frente uma agenda muito distante do que a maioria do Congresso deseja, do que a maioria vem a desejar. A maioria do Congresso não faz parte da coalizão do presidente. O presidente ainda tem que remar contra. Vai ter que negociar e se dobrar não só à maioria da Câmara, mas também ao próprio Centrão. E cada vez mais o Centrão se torna importante para Bolsonaro, para a continuidade do governo. Com isso, o presidente se torna dependente dessas figuras que são ideologicamente amorfas e fica mais vulnerável. Fica refém dessas figuras.

Valor: Como analisa a articulação de Maia em torno da candidatura de Baleia Rossi? Quais erros foram cometidos?

Pereira: O erro de Maia foi não ter utilizado o instrumento do impeachment há muito tempo. A única saída para que o candidato de Maia fosse vencedor era ter usado crivelmente a ameaça de aceitar alguns dos pedidos de impeachment. Tinha o poder e não usou. Como não fez isso, não tinha nada a ofertar e daí dançou. A desidratação da candidatura de Baleia Rossi era esperada, porque a única coisa que poderia ele ofertar era espaço na Mesa Diretora da Câmara e nas comissões, mas Lira podia ofertar isso também e mais: ministérios, espaços no governo, execução de emendas, outras políticas públicas. A candidatura de Lira ficou mais atrativa. O que pegou foi a oportunidade de retornos que possam conferir sobrevivência eleitoral nas próximas eleições. Quanto mais recursos financeiros e eleitorais puder acumular nesse processo, maiores as chances de reeleição. Maia, mesmo sendo experiente, cometeu esse erro básico de não perceber o que estava em jogo e quais os poderes tinha. Se queria fazer sucessor, deveria ter usado a bala do impeachment na mão. Mesmo se não fosse aprovado, a ameaça iria deixar o Executivo em uma posição defensiva e não proativa e ofensiva como se deu nesse processo. Usar essa ameaça nas últimas horas soou como mal perdedor.

Valor: O senhor vê reflexos para 2022 dessas alianças que foram costuradas na disputa pela Câmara e pelo Senado?

Pereira: Está se costurando um campo mais orgânico de Bolsonaro com Centrão, além de um campo de centro-direita e a esquerda. Mas nem sempre ter poder no Congresso significa ter poder eleitoral. Se Bolsonaro souber jogar o jogo, aprovar reformar, se o Brasil começar a crescer de novo, aí essa articulação que começa a se formar com a eleição de Lira e Pacheco pode se configurar em uma aliança eleitoral. Mas se o governo não gerencia bem, se a economia continua patinando, o desemprego continua alto, a pandemia continua forte, com o número de mortes aumentando e sem uma vacinação eficiente, aí o jogo será outro. As peças estão se movendo tendo como horizonte 2022, mas se Centrão vê que a economia não decola, que popularidade do presidente cai, não será surpresa que Lira e líderes deem uma banana para Bolsonaro e embarquem em uma candidatura de oposição.

Valor: O DEM e PSDB saíram divididos das eleições para o Legislativo. Houve divergências no MDB no Senado. Como avalia a situação desses partidos agora? E a composição de uma frente desses partidos para 2022 ficará comprometida?

Pereira: Com a dissidência dentro do DEM, Rodrigo Maia deveria sair do partido e buscar uma alternativa. Do contrário, vai virar parlamentar de baixo clero. Não vai ganhar mais um centavo do governo Bolsonaro. De forma geral, sobre as alianças para 2022, não creio que o apoio a Lira ou a Pacheco configuram um apoio a Bolsonaro em 2022. Não se pode confundir isso. Não se deve avaliar que os deputados do DEM, PSDB, DEM que votaram no candidato do Bolsonaro, votarão no Bolsonaro.


Carlos Melo: Rodrigo Maia, novos presidentes e grandes desafios

Atividade dinâmica, a política é cruel. Há três meses, o Dem saía das urnas municipais quase consagrado – era o mais vistoso. Rodrigo Maia colhia os maiores louros. O então presidente da Câmara posicionava-se como o aglutinador do chamado “centro”, o “sujeito do diálogo” pelo qual, não sem motivo, muitos clamavam. Com vistas em 2022, Maia seria a ponte desde o centro direita até o centro esquerda. Independente do candidato à presidência desse amplo espectro, certo é que Maia seria um dos articuladores do que se pretendia “uma frente ampla”.

A fama que Maia construiu não foi imerecida: no longo período em que se manteve à frente da Câmara, deu extraordinário salto de importância; interveio no debate nacional, propôs. No mais, não se deixou levar pelo canto que lhe oferecia o lugar de Michel Temer; articulou o teto de gastos e a reforma da Previdência – com todos seus erros, acertos e inevitabilidades –, defendeu as prerrogativas do Congresso Nacional e seu papel de freio e contrapeso ao bolsonarismo.

A possibilidade de continuar no centro da cena, foi-lhe, porém, corretamente negada pelo Supremo. O papel da aglutinação foi-lhe retirado pelos próprios correligionários do Dem, pelos parceiros do PSDB e de outros partidos em que, entre a fidelidade ao líder e a fidelidade a seus próprios interesses, ficaram naturalmente consigo mesmos. Como demonstrou O Estadão (aqui), as verbas do governo tiveram poder irresistível diante do apetite dos parlamentares. Sem conexão com o Executivo, Maia (e Rossi) tornou-se pão dormido; no curto prazo, não apeteceria aquele tipo de paladar; deixou de ser perspectiva de poder.

Para reaver a esperança de exercer papel relevante em 2022, o emotivo ex-presidente terá que se reconstruir. Rapidamente, numa dinâmica mais vertiginosa que sua queda. Como diz a canção, se seu mundo caiu, carece aprender a levitar. E haverá ambiente para isso.

Nesta terça-feira, Câmara e Senado amanheceram com novos presidentes, ambos apoiados por Jair Bolsonaro — quem, um dia, estimulou sua turba a fechar as duas Casas. Terá mudado de ideia? O tempo dirá. O processo político não depende apenas da vontade dos atores; menos ainda das confabulações em torno de cargos e emendas. Bem ou mal, há uma sociedade com expectativas, interesses, desesperos e, às vezes, indignação. Os desafios para contentá-la são gigantes. Já a dimensão do entendimento dos problemas do país e a efetividade da ação governamental para resolver múltiplas crises é ínfima.

A situação interna se deteriora, o respeito externo ao país derrete. Paciência e resignação têm limites; os leões da morte, do desemprego e da fome rugem. E o centrão ouve mal. Tome-se o programa (sic) que Arthur Lira expôs da tribuna, ao defender a candidatura e mesmo as platitudes mencionadas, já eleito: foram discursos de, para e pelo “baixo clero”. No máximo, espumas sobre o país, democracia, autonomia do Legislativo. Nada muito além disso. Não falou para o Povo. Antes, dirigiu-se a seus pares — o seu povo verdadeiro. Ao que tudo indica, isso não bastará. Se houver, o engenho e a arte — que têm faltado — haverá espaço para vários Maias.

*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.


Eliane Cantanhêde: Dupla vitória de Bolsonaro

Aliados de Bolsonaro se unem no Congresso, adversários de 2022 se autodestroem e perdem

O que a eleição municipal de 2020 uniu a eleição para as presidências da Câmara e do Senado desuniu: MDBDEM e PSDB, os três carros-chefes de uma candidatura de centro em 2022, agora empacam, sem bússola e sem piloto. O desastre, enorme, pode ser personalizado em Rodrigo Maia, que implodiu sua corrida para um lugar ao sol entre os principais articuladores políticos do País.

A vitória do presidente Jair Bolsonaro é muito maior do que apenas a garantia de aliados cômodos e ativos na Câmara e no Senado, agora sob a condução do deputado Arthur Lira (PP-AL) e do senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG). Já é espetacular, mas vai além. De um lado, o resultado nas duas Casas do Congresso deixa Bolsonaro numa situação bastante confortável. De outro, desmonta, já nos alicerces, a construção de uma sólida opção de centro.

O clima do Planalto, ontem, era de festa. O general Luiz Eduardo Ramos jurava que não comprou votos coisa nenhuma, apenas conduziu a distribuição “normal” de emendas. E que não trocou, nem trocaria, cargos por votos, só fez a “equalização” das vagas de governo: se o apoiador de Arthur Lira no Estado tal não tinha vaga nenhuma, mas o aliado de seu adversário Baleia Rossi (MDB-SP) tinha duas... Ora, tinha de melhorar essa balança aí.

O fato é que o governo entrou pesado, sim, e Bolsonaro se empenhou pessoalmente, sim, nas duas disputas, mas é preciso admitir que as forças políticas tiveram, como sempre têm, seus movimentos próprios, com sua dinâmica particular. Ou seja: contaram nos resultados, também, os acordos intramuros da Câmara e do Senado, as guerrinhas intestinas nos partidos, as divergências ideológicas.

Se o Planalto despejou R$ 3 bilhões em emendas “extras” para 250 deputados e 35 senadores, houve 250 deputados e 35 senadores que estavam pensando mais em suas vantagens do que em votar no que julgavam melhor para o País. Ou recebiam o favor aqui, para trair o voto ali. Vá se saber.

E o que aconteceu no DEM é uma verdadeira aula de política. Quando o então prefeito ACM Neto deu o troféu de campeão de votos a Bruno Reis, seu candidato à sua sucessão em Salvador, o que o mundo político vislumbrou foi uma forte aliança de Neto com o também eleito Eduardo Paes (Rio), Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre para amalgamar uma sólida aliança de centro para 2022.

O que se vê, dois meses e meio depois, é Maia para um lado, Alcolumbre para outro e ACM Neto liderando a maior rasteira de um partido num dos seus principais líderes – o próprio Maia. Sem a presidência da Câmara, sem fazer o sucessor, sem o seu partido, sem interlocução com Alcolumbre e histérico com Neto, ele vai precisar se reconstruir.

Se o DEM rachou, o que dizer dos parceiros potenciais para 2022? O MDB do Senado não teve o menor prurido, ou decência, ao jogar a candidata Simone Tebet (MS) aos leões e o MDB da Câmara não se uniu devidamente em torno de Baleia Rossi. O PSDB, rachado no Senado entre Tebet e as benesses de Rodrigo Pacheco, por um triz, não repetiu o passo trôpego do DEM na Câmara. Foi, voltou, foi de novo e disse que ficou com Maia e Baleia.

Política é assim. Bolsonaro foi o grande derrotado em novembro, levou um tombo com a posse de Joe Biden, outro com a falta de vacinas e um terceiro com a asfixia de Manaus e, assim, caiu nas pesquisas e passou a conviver com o fantasma do impeachment. Quanto mais ele descia a ladeira, mais a “opção de centro” subia. Pois não é que as posições se inverteram? 

Agora, é acreditar nas juras de amor à democracia, à República e à Federação que todos os candidatos fizeram. Mas Pacheco fez o discurso da unidade no Senado, Lira partiu para a guerra na Câmara. Por seis minutos.