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Maílson da Nóbrega: Como Bolsonaro prejudica o Banco do Brasil
É o primeiro presidente a interferir na gestão administrativa do BB. Isso tem consequências
Dias atrás noticiou-se que o presidente Jair Bolsonaro iria demitir o presidente do Banco do Brasil (BB), André Brandão, no cargo havia apenas quatro meses. Motivo: sua irritação com o anúncio, pelo BB, de um programa de demissão voluntária, que estimava a adesão de 5 mil funcionários, e o fechamento de 112 agências. As ações do banco despencaram na B3.
Bolsonaro já havia interferido na gestão do BB. Em 2019 mandou o banco suspender a veiculação de um comercial de TV que buscava atrair grupos jovens, até mesmo com apelo a questões de raça e gênero. O vídeo recebeu elogios de especialistas, mas irritou um presidente sensível a pautas de costumes e ignorante da realidade do banco.
Nesses dois casos, o BB seguia estratégia para se manter competitivo no sistema bancário. Essa realidade foi iniciada a partir de 1986, quando o banco perdeu o acesso à “conta de movimento”, um mecanismo que lhe conferia suprimento automático, ilimitado e sem custos de recursos do Banco Central (BC).
Com o tempo, a “conta de movimento” tornou-se insustentável. Ela provocava emissões de moeda, que precisavam ser neutralizadas pelo BC, mediante venda de títulos públicos federais. Os empréstimos do BB impactavam o endividamento da União e eram fonte de pressões inflacionárias. A “conta de movimento” foi extinta em 1986.
Essa mudança criou um desafio para o BB, o de sobreviver sem o acesso fácil e grátis a recursos do BC. O risco de falência foi evitado mediante injeção de capital da União, nos anos 1990. De lá para cá, o banco modernizou-se, adotou novas práticas gerenciais e ajustou sua estrutura à nova realidade.
Hoje, o novo desafio é adaptar-se a um ambiente crescentemente competitivo. O BB tem de se preparar, via eficiência, para concorrer com seus pares no setor privado. Seus concorrentes têm reduzido quadros de pessoal e fechado agências. As medidas do BB eram coerentes com essa realidade.
Nada disso foi inteiramente absorvido por grande parte da classe política, que ainda enxerga o BB pelas lentes dos tempos da “conta de movimento”. De tempos em tempos surgem pressões para que o banco amplie seus empréstimos a juros abaixo do mercado ou para que seja utilizado para forçar os bancos privados a reduzir suas taxas de juros, como se continuasse a obter recursos no BC, sem custos. Dilma Rousseff deu ordens ao banco para emprestar mais a juros camaradas, impactando sua rentabilidade. Bolsonaro parece ter a mesma visão ultrapassada. Pior, vem mostrando não entender os poderes do acionista controlador. É o primeiro presidente a interferir na gestão administrativa do banco.
A demissão do presidente do BB, ao que se diz, foi suspensa por conselho dos que alertaram Bolsonaro sobre os riscos da imprudência. Acionistas minoritários nacionais e estrangeiros poderiam buscar a responsabilização administrativa ou judicial do presidente, alegando o crime de abuso do controlador.
O BB tem naturalmente dificuldades de competir com os bancos privados, dados os custos que lhe são inerentes. Entre eles, pode-se mencionar a sede em Brasília, que desconsidera as características de sistemas financeiros em todo o mundo, qual seja, a concentração em certas cidades, o que propicia economias de aglomeração. Os bancos se agregam em Nova York, São Francisco, Londres, Frankfurt, Zurique, Amsterdã, Paris, Roma e outras praças relevantes. No Brasil, isso ocorre em São Paulo.
Além disso, o Banco do Brasil está sujeito a outros ônus, como o de submeter-se às regras de concorrência pública para adquirir equipamentos e serviços, bem como à volatilidade administrativa derivada da substituição de sua diretoria ao sabor das mudanças de governo, ou mesmo antes, como já aconteceu na atual administração.
O mercado financeiro identifica e precifica os riscos da interferência do governo no BB. As ações do banco sofrem um desconto em relação aos seus principais pares do sistema bancário. O desconto médio tem oscilado em torno de 30%, mas costuma subir em momentos de intervenção governamental. Passou de 50% em 2015-2016, quando a presidente Dilma Rousseff deu ordens para o banco aumentar empréstimos e reduzir juros. Agora chegou perto disso, com o voluntarismo inconsequente de Bolsonaro. No começo do governo Lula, o BB chegou a exibir um prêmio sobre as ações de seus concorrentes privados, quando a percepção era de que não havia ingerência externa na sua gestão.
A demissão do presidente do BB foi evitada, mas a possibilidade de sua ocorrência neste governo pode ter deixado consequências. O presidente do BB, detentor de uma carreira bem-sucedida em importantes bancos privados, deve ter-se dado conta de que não dispõe da autonomia que lhe fora assegurada quando do convite para dirigi-lo. Doravante terá de pensar duas ou mais vezes quando tiver de tomar decisões, avaliando quais delas poderiam excitar os instintos intervencionistas e autoritários do presidente. É um novo custo. O mal está feito.
SÓCIO DA TENDÊNCIAS CONSULTORIA, FOI MINISTRO DA FAZENDA
Afonso Benites: Lira acomoda oposição, mas acordo reduz participação de mulheres
Grupo do novo presidente do Legislativo aumentou de 3 para 4 membros na Mesa Diretora. Oposição terá duas vagas e só uma ocupada por uma mulher. Depois de ameaças, grupo de Baleia Rossi não levou tema ao STF
Primeiro bate. Depois assopra. Assim foram as primeiras 24 horas da gestão do neobolsonarista Arthur Lira (PP-AL) na Presidência da Câmara dos Deputados. Temendo a judicialização de um tema interno do Legislativo, o parlamentar alagoano líder do Centrão deu um passo atrás e desistiu de cancelar todas candidaturas dos membros do bloco opositor ao seu na disputa pelo comando da Casa. Na reunião de líderes, Lira chegou a um denominador comum com outras lideranças em que seu grupo político acabou ganhando quatro vagas dentre as seis da Mesa Diretora. As outras duas, acabaram com os apoiadores de Baleia Rossi (MDB-SP).
Até a noite de segunda-feira, as seis cadeiras seriam divididas igualitariamente, três para cada bloco parlamentar. No entanto, assim que eleito, Lira decidiu invalidar a inscrição do grupo de Baleia Rossi e embaralhou o jogo. O motivo foi que o PT havia entregue seus documentos de inscrição da chapa seis minutos além do horário permitido, o qu, na sua visão, causaria um vício formal ao processo, mas mesmo assim foi aceito por Rodrigo Maia. Sua estratégia era ocupar cinco das seis vagas ainda em disputa da Mesa Diretora. Diante da repercussão, nesta terça-feira, negociou a nova configuração. Alguns deputados disseram que ele chegou querendo imprimir o seu tom à administração, que oscila entre a firmeza e a abertura ao diálogo. “O ato foi necessário, não para dar um pé na porta, mas um freio de arrumação”, afirmou minutos após ser eleito em entrevista à emissora CNN Brasil.
A solução de Lira resultou que a Mesa Diretora será ocupada assim: o PL indicará a primeira-vice-presidência, o PSD, a segunda. A primeira secretaria, que é responsável pelo orçamento da Casa, será do PSL. A segunda secretaria fica com o PT. A terceira, com o PSB. E a quarta, com o Republicanos. Desses, apenas petistas e peessebistas não são originalmente do grupo de Lira. Com a nova composição, o PSDB e a REDE acabam excluídos do processo.
Na nova configuração, também há uma considerável redução da participação feminina na cúpula gerencial da Câmara. Antes, havia a expectativa que três dos seis postos chaves ―excluindo a presidência― fossem ocupados por mulheres. Agora, apenas o nome de Marília Arraes, pelo PT, deverá figurar entre as dirigentes da Casa. Antes as outras indicadas seriam Rose Modesto (PSDB-MS) e Joenia Wapichana (REDE-RR). Havia um simbolismo nessas nomeações, já que apenas 15% da Câmara é ocupada por mulheres. No caso de Joenia, ela seria a primeira indígena a ocupar um cargo de comando na Casa.
Tradicionalmente, a ocupação dos cargos na Mesa Diretora ocorre de maneira proporcional. Ou seja, os maiores partidos ou blocos partidários indicam quem ocupará cada função. Se a decisão de implosão do grupo de Baleia persistisse como ameaçou Lira, apenas o PT entre os dez apoiadores de Baleia Rossi poderia indicar um membro. Como quem estivesse doutrinando os seus pares, Lira disse ao final do encontro dos líderes partidários que espera que os deputados tenham entendido como serão tomadas as decisões de sua gestão. “Nós trataremos democraticamente, sempre por maioria, ou decisões da Mesa ou decisões do colégio de líderes. Nada mais de decisões isoladas, como dissemos durante a campanha”, afirmou aos jornalistas.
Com a decisão da madrugada, os parlamentares que se sentiram prejudicados ameaçaram ingressar com uma ação conjunta no Supremo Tribunal Federal, o que não ocorreu em decorrência da composição ajustada por Lira e os líderes ao longo da tarde.
Por que a disputa?
Essas funções de dirigentes na Câmara são consideradas estratégicas pois, por meio delas, os parlamentares ganham destaque midiático, podem contratar assessores comissionados e administram orçamentos internos. Além de substituir o presidente, o primeiro-vice-presidente da Câmara é o responsável por analisar os requerimentos de informação a outros órgãos públicos. O segundo-vice analisa os pedidos de reembolso de despesas dos deputados e age como uma ponte institucional com órgãos dos Legislativos de Estados e Municípios.
O primeiro-secretário é uma espécie de prefeito da Câmara. O segundo zela pelas relações internacionais da Casa, o que inclui a emissão de passaportes para os deputados e o estágio universitário. O terceiro-secretário analisa requerimentos de licença e justificativas de ausência dos parlamentes assim como dá autorização prévia de reembolso de despesas com passagens aéreas internacionais. Já o quarto-secretário controla os apartamentos funcionais da Casa.
Cláudio Gonçalves Couto: Quando o rabo abana o cachorro, ou a eterna volta do Centrão que nunca se foi
Pressionado pelas ameaças de impeachment e pelas investigações que o acossam, Bolsonaro inverteu a lógica do presidencialismo de coalizão com as eleições de Arthur Lira e Rodrigo Pacheco
Durante seu primeiro ano e meio de mandato, Jair Bolsonaro tentou cumprir uma promessa impossível que fez a seus eleitores, mas que a bem da verdade fez mesmo foi a si próprio: governar sem base de sustentação no Congresso. No país do presidencialismo de coalizão, Bolsonaro fez muitos crerem (e talvez ele mesmo tenha acreditado) que montar uma coalizão presidencial decorreria de uma escolha do presidente, em vez de ser uma imposição institucional. O apoio desbragado de seu Governo a Arthur Lira na Câmara e a Rodrigo Pacheco no Senado mostraram que, ao menos momentaneamente, o chefe de Governo cedeu à realidade do funcionamento de nosso presidencialismo multipartidário.
A coalizão que Bolsonaro agora monta, contudo, tem lá suas particularidades. Primeiramente porque, diferentemente de seus antecessores, o atual mandatário não dispõe de um partido que possa capitanear essa aliança. Sarney contou com o velho PMDB, FHC com o PSDB e Lula com o PT. Jair dinamitou as relações com a legenda de ocasião pela qual se elegeu e para cujo inchaço contribuiu —o PSL. No lugar dela, ficou sem nada, já que a tentativa de construir o Aliança pelo Brasil naufragou miseravelmente. O resultado imediato desse fracasso foi o grande fiasco presidencial nas eleições municipais, em que o presidente não dispôs de uma agremiação sua, que pudesse fazer crescer e reforçar sua base país afora —para além do insucesso quase geral dos candidatos avulsos apoiados por ele.
O outro desdobramento dessa situação aparece agora. O presidente é mais caudatário de uma coalizão legislativa à qual aderiu do que o contrário. Durante obiênio de Rodrigo Maia se falava em parlamentarismo branco, uma analogia imprecisa para descrever o que era, na realidade um Governo congressual. Nesse contexto, o Executivo, indisposto a articular uma base parlamentar e incapaz de liderar o processo legislativo, reivindicava os méritos pela aprovação de medidas que, embora convergissem com sua agenda na área econômica, eram aprovadas mais a despeito do que graças ao Governo. Não à toa colheu seguidas derrotas na derrubada de vetos, caducidade de medidas provisórias e irrelevância congressual da pauta reacionária de costumes.
Pressionado pelas ameaças de impeachment e pelas investigações que o acossam, acossam seus familiares e apoiadores radicais, Bolsonaro inverteu a lógica do presidencialismo de coalizão, em que os partidos do assim chamado Centrão aderem ao Governo do dia em troca de benesses estatais —razão pela qual entendo que sejam mais bem definidos como partidos de adesão. Em vez disso, é Bolsonaro que adere a eles, mostrando que por vezes, na política, ocorre de o rabo abanar o cachorro.
Tal inversão é reveladora não só da fragilidade estrutural desse Governo —dependente que é da proteção dos partidos de adesão por meio de uma coalizão defensiva—, mas também do quão tênue é a conversão de Bolsonaro à moderação democrática inerente ao presidencialismo de coalizão. O presidente da segunda metade do mandato não se tornou mais comedido; apenas recuou. Para isso, lançou mão dos vultosos recursos disponibilizados pelo “orçamento de guerra” da pandemia para cooptar a maioria que elegeu Arthur Lira, provocando rachas em partidos que até então mantinham certa independência com relação ao Executivo, como o DEM, o PSDB e o MDB.
O caso do DEM é particularmente notável e merece comentário à parte. A agremiação logrou, durante os anos petistas, manter-se na oposição. Isso levou à sua diminuição congressual, com parlamentares menos programáticos abandonando o barco e rumando para os partidos de adesão que constituíram a base fisiológica das coalizões petistas (PP, PL/PR, PTB, PRB, PSD, PMDB). A longa travessia no deserto pareceu ser recompensada com a entrada no Governo Temer, a conquista da presidência da Câmara por Rodrigo Maia e o bom desempenho nas últimas eleições municipais. Ou seja, o DEM mostrou não se tratar de um partido de adesão —à diferença do PMDB. Mas eis que agora o partido sucumbe ao fisiologismo e ao regionalismo (notadamente o baiano), embarcando de vez na nau adesista. Embora tenda a render frutos no plano regional, tal manobra reduz muito a capacidade do partido de liderar uma coligação competitiva nas próximas disputas presidenciais. Afinal, partidos programaticamente invertebrados têm dificuldade de se incumbir dessa tarefa.
É bem verdade que para esse desfecho contribuiu decisivamente o estilo imperial e a voracidade de Rodrigo Maia. Ao mesmo tempo que se indispôs com os colegas de Câmara, dispensando-lhes mais desdém do que atenção, apostou demasiadamente na possibilidade (sempre algo dissimulada) de uma nova recondução à presidência da Casa. Seu fracasso nesse intento acabou por levar de roldão também as pretensões de seu colega de partido e então presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Com isso, Maia não apenas se isolou no DEM e fora dele, mas perdeu o timing para construir sua sucessão. Quando tentou fazê-lo, Lira já estava muitas braçadas à frente, contando ainda com o substancial auxílio da busca aflita do Governo por proteção congressual. Ambição em excesso (como na relutância em construir um sucessor para valer) e não fazer as coisas no tempo certo são dois erros mortais que frequentemente acometem políticos até então bem-sucedidos, mas inebriados com o próprio sucesso. Costumam custar caro, como mostram tantos casos na história.
A questão agora é saber se o Governo Bolsonaro terá mais do que proteção congressual, ao menos enquanto compensar para os partidos de adesão e suas lideranças se manterem atrelados ao barco governista. No Senado, a maioria que elegeu Pacheco contra a candidata identificada com o lavajatismo, Simone Tebet, congrega forças que estão muito longe de apoiar o bolsonarismo e suas agendas —como PT, PDT e Rede. Na Câmara, embora Lira não tenha tido o apoio dos partidos da oposição de esquerda, contou com votos que ultrapassam em muito as hostes bolsonarescas, e que dificilmente se repetirão quando (e se) temas da pauta reacionária de costumes forem a votação. Ou seja, uma coisa é ter apoio suficiente para evitar um impeachment, CPIs incômodas e outras iniciativas tormentosas —ou seja, uma base defensiva. Outra, bem diferente, é fazer avançar uma agenda própria altamente controversa, contando para isso com os votos de uma coalizão que o Governo não lidera, pois em vez de ela ter aderido a ele, foi ele que aderiu a ela.
E tudo isso, claro, sem contar com a forma como tal base se comportará caso se mantenha a queda de popularidade do atual presidente. Nessa frente, as perspectivas não são das melhores, tendo em vista a situação econômica, a condução na pandemia e, por último, mas não menos importante, a decepção que Bolsonaro provocou em boa parte de seus antigos eleitores ao fazer justamente aquilo que prometera combater: a velha política do Centrão —ainda que em sua versão invertida.
*Cláudio Gonçalves Couto é cientista político, professor da FGV EAESP, produtor do canal do YouTube e podcast ‘Fora da Política Não há Salvação’.
Fernando Exman: Crônica de uma vitória anunciada
Depois de Cidadania e Saúde, aliados cobiçam Educação
Há meses não se via um movimento daqueles, em plena segunda-feira pandêmica, na conhecida “rua dos restaurantes” da Asa Sul.
Localizado a dez minutinhos do Congresso - de carro, claro, para enfrentar a precária mobilidade urbana da capital federal -, o endereço tornou-se um destino tradicional de parlamentares na hora do almoço ou depois das votações. Nos últimos meses, contudo, os carros oficiais viraram objeto raro na paisagem.
Uma exceção foi justamente a última segunda-feira. A exigência legal de que as eleições para as mesas diretoras da Câmara e do Senado fossem realizadas presencialmente deu um alívio não só para os caixas dos restaurantes ali instalados, como ajudou também quem foi atrás de informação.
Motoristas à espera, deputados e dirigentes partidários comendo, confabulando. Preparavam-se para as sessões que dali a algumas horas definiriam a nova cúpula do Legislativo. O maior distanciamento entre as mesas não prejudicava quem tentava aproveitar o descuido de alguma excelência um pouco mais incauta.
À frente, um dirigente partidário falava baixo com seu interlocutor. Nada feito. Ao lado, guarda baixa. E o assunto era um só: a perspectiva de vitória dos candidatos governistas, que se confirmaria em breve.
“Bolsonaro vai fazer barba e cabelo. Só não vai fazer o bigode porque não tem uma terceira Casa. Se tivesse bigode, faria também”, falava em voz alta um deputado do Nordeste aos companheiros de mesa. Ele dizia possuir uma lista dos colegas da bancada estadual que, embora tivessem sinalizado apoio a Baleia Rossi (MDB-SP), votariam com ele em Arthur Lira (PP-AL). Inclusive de siglas de esquerda. “Este aqui só disse que vai no Baleia para não perder a chance de ser líder do partido dele, para não perder apoio interno.”
Um dos interlocutores creditou a vitória à experiência acumulada pelo presidente Jair Bolsonaro em seus quase 30 anos como deputado federal: alguém que, nas suas palavras, foi do baixo clero, sabe o que a massa de deputados quer e espera receber do governo. Qualquer governo. E de fato Bolsonaro usou as armas que estavam disponíveis no paiol da Secretaria de Governo, distribuição de emendas e cargos, para emplacar dois parlamentares próximos no comando do Congresso.
Mesmo assim, no Executivo existe a consciência de que fidelidade, nesse tipo de relação, sobretudo com partidos do Centrão, vai até certo ponto. Esta foi a dura realidade enfrentada por governos anteriores, mas na ótica de autoridades do atual governo era o preço a ser pago para que o poder da Presidência da República pudesse ser exercido com amplitude. Contou também, claro, a necessidade de reduzir os riscos de um processo de impeachment ser acolhido.
No governo, há um sentimento de relativa frustração com a demora no avanço das pautas defendidas na campanha de 2018, tanto na área econômica como na agenda de costumes ou de flexibilização no acesso a armas e munições, para citar alguns exemplos caros ao presidente e ao seu eleitor mais fervoroso. Passada a disputa pelo comando do Parlamento, portanto, não haveria mais por que esperar para destravar uma série de votações que vinha sendo postergada por causa da disputa política pelo comando da Câmara, pelas eleições municipais e, depois, pelo recesso.
Aliados do novo presidente da Câmara dos Deputados reconhecem a importância do Planalto nas articulações que levaram à vitória de Arthur Lira, mas destacam o trabalho feito meses a fio pelo próprio candidato e seu grupo. Entre eles, existe a convicção de que a vitória ocorreu a despeito da imprensa, dos formadores de opinião, e que o mercado financeiro precisaria aceitar o resultado do pleito, qualquer fosse ele, para então necessariamente construir uma boa convivência - e interlocução - com o sucessor de Rodrigo Maia (DEM-RJ).
Durante a campanha, eles reconheciam que Maia sempre teve um melhor diálogo com os principais agentes do mercado. O agora ex-presidente da Casa fala a mesma língua do ministro da Economia, Paulo Guedes, o que permitiu, inclusive, que eventuais desentendimentos entre os dois pudessem ser superados em determinados momentos. No entanto, às vésperas da eleição integrantes do grupo de Lira passaram a dizer que consideravam incabível o fato de parte do setor privado ver na candidatura adversária mais previsibilidade para a economia, até porque Baleia Rossi havia formado seu bloco com partidos de esquerda.
No Senado, a eleição de Rodrigo Pacheco (DEM-MG) contou com o já conhecido impulso vindo do Palácio do Planalto, mas também foi construída com o apoio de parlamentares que se opõem a algumas das pautas que visam a redução do tamanho do Estado.
Isso não quer dizer que Lira e Pacheco ignorarão o que a equipe econômica disser. Pelo contrário. Ambos pretendem construir saídas conjuntas com Guedes e prometem respeitar o teto de gastos. É provável, entretanto, que ouçam mais a ala política do governo e busquem mais convergências com o próprio presidente.
O ministro Luiz Eduardo Ramos tende a sair fortalecido do processo eleitoral. Depois de ser alvo de insistentes especulações sobre uma eventual exoneração, o chefe da Secretaria de Governo, articulador político do Planalto, pode colocar no currículo sua participação no estado maior dessas duas campanhas vitoriosas.
Onyx Lorenzoni deve mesmo deixar o Ministério da Cidadania para retornar ao núcleo decisório do Planalto. Se conseguir manter a Subchefia para Assuntos Jurídicos sob a Secretaria-Geral, terá controle sobre todo e qualquer ato publicado no “Diário Oficial da União”. A SAJ historicamente foi um braço da Casa Civil, mas foi realocada na atual administração. É um instrumento poderosíssimo e coloca seu detentor muito próximo ao presidente.
A sinalização de Bolsonaro de que não haverá recriação de ministérios já fez com que os interesses da base se voltassem para as pastas da Saúde e da Educação. Agora que ele adotou para valer o presidencialismo de coalizão, será a vez do Centrão fazer barba, cabelo e bigode, até que se defina a pauta que será tocada até o fim de 2022.
Rosângela Bittar: Quadrilha
Dominado por Jair Bolsonaro e Centrão, o ambiente político é irreversivelmente estéril
É com profundo sentimento de pesar que se anuncia o fim dos tempos. Sejam das reformas, da rotina política ou tudo o mais que tenha vida ou inspire esperança. Inclusive as soluções para o grande desafio da pandemia.
O ambiente político, dominado por Jair Bolsonaro e Centrão, é irreversivelmente estéril. Sem espaço para avanços ou reformas. Nem a administrativa (como enquadrar o funcionalismo com rigor em meio ao vale-tudo?); nem privatizações (conseguirão vender empresas por eles loteadas?); ou reforma tributária (é lícito perder receita para um projeto liberal que não existe?).
O Congresso renunciou à sua agenda própria. Enfraquecido, dividido e sob nova direção, restou ao Parlamento submeter-se à agenda do Executivo.
O governo, também fragilizado, não consegue adesões, sequer internamente, para suas propostas. O ministro Paulo Guedes é satélite e está estacionado há tempos. Seu anunciado pacote econômico não tem respaldo nem do próprio presidente.
A sucessão na Câmara e no Senado esgotou qualquer capacidade de ação coletiva. Nada se pode esperar além da aprovação de um orçamento caviloso e da indispensável bolsa social de sobrevivência no caos.
A lei é a do mercado persa. Vale tudo para vender.
Como nos versos da Quadrilha do poeta Drummond, o círculo é vicioso. Os elos, porém, não são de amor, mas de oportunismo.
Parlamentares negociam o mandato para fazer caixa eleitoral e alimentar sua campanha de reeleição. É só o que interessa nesses dois anos finais da legislatura. Com os bolsos cheios, fidelizam prefeitos. Uma vez reeleitos, voltam à boca do caixa e começam a vender tudo de novo. E assim sucessivamente: Jair paga a Arthur, que sacia o bando, que transfere ao prefeito, que elege o deputado, que vende seu voto ao governo, que financia a campanha.
Bolsonaro adquiriu com o Centrão o primeiro estágio do projeto da própria reeleição, além de miudezas do seu passivo judicial. Como, por exemplo, o engavetamento do impeachment e a suspensão das CPIs, a das Fake News e a dos crimes de gestão da pandemia.
Numa operação triangular, o Congresso pode ter levado de volta ao estoque um produto encalhado, a CPI da Toga. Quem sabe não conseguirá empacotar junto o comando dos três poderes para quitar sua fatura?
No varejo, há vistosos produtos de safra, indiferentes para o Centrão, mas que valem ouro no Palácio do Planalto. O armamentismo, por exemplo, é um. A macabra licença para matar, outro.
Os brasileiros não estão preocupados com os destinos de Rodrigo Maia, com a sorte de Simone Tebet, ou o sucesso de um futuro projeto democrático à sucessão presidencial. Para isso há tempo.
Tebet foi derrotada por ser candidata da Lava Jato. O deputado Rodrigo Maia perdeu na rasteira habitual de ACM Neto. Pedra cantada há duas semanas: Neto foi visto em festa com Bolsonaro num palanque entre Alagoas e Sergipe, em inauguração da ponte de Propriá. A Bahia, ausente do fato, estava na foto.
Neto já se opusera à primeira disputa da presidência da Câmara por Maia. Quando apoiou o candidato do então presidente Temer, Rogério Rosso, sentenciou sua filosofia: em eleição para presidente da Câmara não se fica, jamais, contra o candidato do presidente da República.
Além do mais, sua disputa pessoal com Maia é antiga e nos últimos anos a balança pendeu para o presidente da Câmara. Chegou ao momento de decisão. Ao destruir Maia, o demista baiano fez uma opção oportuna pensando no seu futuro. Quem sabe a associação Bolsonaro-Lira não representará sua bala de prata na próxima batalha com o PT, que, por acaso, tem na Bahia sua base estadual mais sólida?
Já aos brasileiros em geral sobra o bizarro desafio de apreciar a fusão das táticas milicianas do governo Bolsonaro com a súbita aparição de um novo protagonista alagoano.
Ruy Castro: Receita de Bolsonaro: sonegar
O país já está pagando a sua reeleição -a não ser que siga o seu conselho de 1999
Em 1999, quando era pago pelos cofres públicos para se fazer passar por deputado, Jair Bolsonaro disse que "sonegava tudo o que era possível". Referia-se aos impostos que, apesar de todas as benesses, tinha de pagar e que, segundo ele, o governo mandava "para o ralo ou para a sacanagem". Ao admitir que sonegava, Bolsonaro estava incitando à desobediência civil.
Hoje, em que ele é pago pelos cofres públicos para se fazer passar por presidente, será interessante observar sua reação se uma pessoa com qualquer tribuna recomendar ao povo que deixe de lhe pagar impostos. Motivos para sonegação não faltam. Se são os impostos que permitem ao Estado funcionar e justificam sua existência, onde está a aplicação deles em saúde, educação, economia, segurança, transportes, ambiente? O país está se desfazendo —a pandemia avança à toda, brasileiros morrem por falta de oxigênio, milhões de jovens não sabem qual será seu futuro escolar, os investimentos evaporam, a mata é arrasada e o mundo nos olha com escárnio e estupor. Antes fossem o ralo e a sacanagem. Com Bolsonaro, é a morte.
Como nunca geriu nem uma quitanda de açaí, ele não está nem aí para o Executivo, exceto o comando deste. E, quando se diz que é para ele que pagamos os impostos, é literal. Estamos pagando para que se reeleja.
São nossos impostos que bancam suas viagens de campanha pelo Nordeste, o suborno de prefeitos e ruralistas, os outdoors que cobrem as estradas do país com sua foto. É um palanque nacional. Mas nada supera a farsa desta segunda-feira: pagamos a Bolsonaro para ele comprar os políticos que irão protegê-lo do impeachment, aprovar suas pautas assassinas e garantir sua reeleição. E as emendas e verbas que lhes ficou devendo são apenas a entrada —as futuras prestações lhe custarão muito mais.
Não a ele. Custarão a nós —a não ser que sigamos o seu exemplo e passemos a sonegar.
Bruno Boghossian: O que Bolsonaro vai produzir com um pacote premium de governabilidade?
Centrão gostou das promessas de regalias no governo, mas velhos entraves não vão desaparecer
Depois de dois anos no Planalto, Jair Bolsonaro finalmente assinou o pacote premium de governabilidade no Congresso. A aliança com os partidos do centrão já foi selada nas eleições da Câmara e do Senado, mas ainda resta saber que tipo de governo esse pacto vai produzir.
O presidente procurou uma base de apoio, em primeiro lugar, para se proteger das investigações que cercam sua família e dos efeitos políticos do desastre oficial na pandemia. Amparado, ele também gostou da ideia de aproveitar as novas amizades para tentar aprovar alguns itens de sua agenda de campanha.
Os olhos do centrão podem estar brilhando diante das regalias governistas prometidas por Bolsonaro, mas isso não significa que velhos entraves vão desaparecer de uma vez.
Na economia, os novos chefes do Congresso disseram que pretendem aprovar uma reforma administrativa e uma reforma tributária. Faltou lembrar que nem Bolsonaro nem os parlamentares estão interessados em mexer nas carreiras de servidores ou ressuscitar a CPMF. O acordo pode produzir, no máximo, um par de reforminhas com baixo impacto sobre as contas públicas.
Bolsonaro só conseguiria tirar proveito de algum impulso de governabilidade se houvesse um plano concreto de governo. A primeira metade de seu mandato provou que o Planalto está longe disso –e ainda consegue sabotar o que poderia dar certo, como é o caso da vacinação.
Com o apoio de um centrão conservador, o presidente deve se distrair com uma agenda de costumes. Assim, ele pode mobilizar sua base popular e atrair de volta alguns eleitores insatisfeitos. Se a economia continuar no buraco, porém, esses humores não devem durar muito.
Horas depois da vitória de Arthur Lira (PP) na Câmara, os operadores políticos do centrão pareciam otimistas com a possibilidade de aprovar até alguns projetos espinhosos da pauta do governo. Um dirigente dizia que Bolsonaro terá força para isso “se não fizer besteira”. Há quem acredite em milagres.
Ricardo Noblat: Se gritar pegar Centrão, não fica um meu irmão!
Aliança para sempre enquanto dure
Jair Bolsonaro já pagou parte da dívida que tinha com o Centrão ao liberar mais de 3 bilhões de reais para obras em Estados e municípios indicados por deputados e senadores que elegeram Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) para presidir a Câmara e o Senado pelos próximos dois anos.
Se depender de auxiliares de Bolsonaro, porém, a outra parte da dívida – a da entrega de ministérios e outros cargos importantes da administração pública – será resgatada em suaves prestações. É para poder avaliar melhor o quanto o Centrão de fato lhe será fiel. Portanto, nada de reforma ministerial ampla.
O recomendável é que ela aconteça a conta gotas, na medida em que o governo consiga aprovar no Congresso projetos do seu interesse. Eles são muitos, e esse é um dos problemas que Bolsonaro enfrenta porque ele nunca sabe quais deveriam ser prioritários, e emperra na hora de bancá-los e de ir à luta.
Todo cuidado com o Centrão, pois, é pouco. Para o Centrão, a recíproca também é verdadeira: todo cuidado com Bolsonaro é pouco. Um não confia no outro e tem motivos de sobra para não confiar. Como candidato, Bolsonaro desancou o Centrão e disse que jamais governaria na base do toma-lá-dá-cá.
Quando começou a dar foi disfarçadamente para não chocar nem ser malhado por seus seguidores que haviam acreditado em sua palavra. E, queixa-se o Centrão, embora ultimamente tenha sido mais generoso na distribuição de cargos, posições e dinheiro, ele ainda está muito longe de entregar tudo que já foi empenhado.
Quem aderiu a quem – o Centrão a Bolsonaro ou o contrário? A discussão não faz sentido. O Centrão está onde sempre esteve – na antessala de qualquer governo que careça de sua prestimosa ajuda. Tem sido assim desde que ele nasceu durante a Assembleia Nacional Constituinte de 1988. E assim será para todo o sempre.
Bolsonaro é filhote do Centrão. Enquanto deputado federal, passou por sete partidos do Centrão e aprendeu com eles o que pôde. Ficou sem partido quando abandonou o PSL pelo qual se elegeu – queria controlá-lo junto com os seus filhos e acabou perdendo a parada. Quis criar um novo partido para chamar de seu – perdeu.
Uma vez que perdeu a parada de intimidar o Congresso e o Supremo Tribunal Federal para tocar o país como um governante autoritário, restou-lhe dar meia volta e pedir socorro ao Centrão. Socorro para salvá-lo de um pedido de impeachment, salvar os filhos enrascados com a Justiça e salvar o sonho da reeleição.
Não foram Lira e Pacheco que pegaram carona com Bolsonaro para se eleger. Foi Bolsonaro que pegou carona com eles para sobreviver. Bolsonaro elogiou Baleia Rossi (MDB-SP), adversário de Lira, que sempre votou alinhado com o governo, mas afirmou que não o apoiaria porque ele era apoiado pela esquerda.
Ora, ora, ora… A esquerda apoiou Pacheco para presidente do Senado e Bolsonaro não deu um pio. Lira apoiou Lula, apoiou Dilma, apoiou Temer e agora diz que apoiará Bolsonaro. Amor que será eterno enquanto dure e for conveniente.
A Câmara faz por merecer Arthur Lira e Bia Kicis
Uma coisa puxa a outra
Alto lá! Por que a deputada federal Bia Kicis (PSL-DF) não pode presidir a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara? Só por que ela é bolsonarista de raiz?
Só por que ela é investigada pelo Supremo Tribunal Federal no inquérito que apura a distribuição de fake news e o financiamento de movimentos hostis à democracia?
Só por que ela já postou vídeos nas redes sociais ensinando a não usar máscaras contra a Covid-19? Só por que em dezembro último ela incitou os amazonenses a romperem o isolamento social?
A Comissão é a mais importante da Câmara. Cabe a ela analisar a legalidade e a constitucionalidade de todos os projetos que ali chegarem – entre eles, pedidos de impeachment.
É verdade que a presidência da Comissão sempre foi reservada para políticos de renome, de passado ilibado e com grande conhecimento jurídico. Ou então para ex-presidentes da Câmara.
Kicis não atende a tais pré-requisitos. Mas, e daí? A Câmara também não é mais o que foi até o final dos anos 90. Há seis anos, seu presidente, Eduardo Cunha (MDB-RJ), foi cassado e preso.
De resto, se o deputado Arthur Lira (PP-AL) pode presidir a Câmara, por que Kicis não pode presidir a Comissão? O passado de Lira depõe mais contra ele do que o de Kicis contra ela.
Só no Supremo Tribunal Federal, Lira responde a cinco inquéritos. Três sobre a eventual prática de corrupção ativa e passiva – incluindo aquele onde se tornou réu.
O quarto inquérito investiga crime de formação de quadrilha. No quinto, ele foi denunciado por crime de lavagem de dinheiro.
Há ainda uma investigação no Tribunal Regional Federal da 5ª Região (TRF-5). A acusação, neste caso, é de crime contra a administração pública.
Lira é investigado no Tribunal de Justiça de Alagoas por crimes contra a honra. E tem contra si, ainda, uma acusação de agressão contra sua ex-mulher.
Presidente da Câmara é o segundo na linha de sucessão do presidente da República. Na ausência de Bolsonaro e do vice-presidente Hamilton Mourão, Lira os substituiria.
Deverá ser impedido de fazê-lo porque é réu em ação penal no Supremo. Quem substituirá Bolsonaro e Mourão é o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG).
Se a Câmara entende que está em boas mãos com Lira, por que não estará também com Kicis na presidência da Comissão? Os dois se merecem – e a Câmara merece os dois.
Elio Gaspari: O ocaso de Rodrigo Maia
Lira entrou em campo com um forró e uma canetada
Rodrigo Maia foi um bom presidente da Câmara e saiu da cadeira maior do que quando a ela chegou. Se não houvesse outro critério, três dos seus quatro antecessores passaram algumas noites na cadeia. Sofreu uma derrota amarga porque acreditou na própria mágica. Teve calma demais na partida e de menos na chegada. Seu candidato foi batido por Arthur Lira no primeiro turno.
Junto com o senador Davi Alcolumbre, Maia tentou uma reeleição inconstitucional e foi devorado pelo centrão, essa massa disforme de parlamentares, que já digeriu Dilma Rousseff e Fernando Collor, e agora mastiga Jair Bolsonaro.
Depois da maré eleitoral de 2018, que produziu o capitão e alguns jacarés, Maia preservou a autonomia do Parlamento. Naqueles dias estavam postas as cartas para uma aventura golpista com tinturas plebiscitárias. Passados dois anos, viu-se que as tais “bancadas temáticas” que formariam uma nova base parlamentar para o bolsonarismo eram conversa fiada.
Se o “posto Ipiranga” Paulo Guedes não conseguiu se entender com Maia, isso não se deveu às convicções do presidente da Câmara. Os desentendimentos vieram do caráter errático do Planalto e da dificuldade que Guedes mostrou em relação ao cumprimento das combinações que fazia.
De volta à planície, Maia poderá mostrar o vigor de suas ideias.
Ele conhece o Congresso e sabe que os protestos contra a liberação de verbas em troca de votos são choro de perdedor. Maia desafiou o Planalto, não conseguiu formar uma base de apoio e perdeu. Sofreu traições capazes de exasperar grandes políticos nordestinos. Perdeu para Arthur Lira, filho do senador Benedito de Lira. O novo presidente entrou em campo com um forró e uma canetada com a qual pretendia bloquear o acesso da oposição à Mesa Diretora. Com esse estilo, sua gestão promete.
Falando pouco antes da votação, Lira prometeu uma casa onde haja “menos eu e mais nós”. Nós queria dizer nós mesmo.
COVAS ZANGOU-SE
Tucano, quando sobe no salto alto, não desce nem para tomar banho. O prefeito Bruno Covas reelegeu-se, aumentou o próprio salário, retirou o benefício do transporte gratuito para os idosos e foi ao Maracanã ver o jogo do Palmeiras contra o Santos.
Criticado, disse que levou o filho para usufruir de “algumas horas inesquecíveis”. Podia ter visto o jogo pela televisão, mas quis ir ao Rio. Tudo bem, o doutor estava de licença depois de ter passado por sessões de radioterapia.
Covas subiu no salto quando atribuiu as críticas à “hipocrisia generalizada que virou nossa sociedade”. A sociedade brasileira não tem nada a ver com essa história. Nela há gente que talvez fosse ao Maracanã, se tivesse os meios. Falar mal do povo é coisa de quem não tem o que dizer.
Depois de ver Covas no estádio, o dono do restaurante Ponto Chic (berço do sanduíche bauru) resolveu descumprir a determinação que limitava o funcionamento de sua casa. Ele tem 110 funcionários, perdeu 30% do faturamento e não demitiu ninguém. Inesquecíveis são os baurus do Ponto Chic, e não podem ser comidos pela televisão.
Depois da rebelião do bauru o governador João Doria começou a admitir a reabertura dos restaurantes.
*Elio Gaspari é jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".
Bernardo Mello Franco: Maia perdeu o bonde do impeachment
No último dia de reinado na Câmara, Rodrigo Maia ameaçou receber um dos 62 pedidos de impeachment que adormeciam em sua gaveta. A bravata gerou marola nas redes sociais, mas não chegou a assustar o governo. Aos ouvidos da classe política, soou apenas como um ato de desespero.
Maia teve diversas chances de frear a escalada autoritária do bolsonarismo. Ele viu o presidente tramar um autogolpe, estimular motins nas polícias e atiçar radicais que pregavam o fechamento do Congresso e do Supremo. Em vez de permitir a abertura de um processo de cassação, preferiu lavar as mãos e distribuir notas de repúdio.
Ao ser cobrado pela omissão, o deputado dizia não ver base jurídica para o impeachment. Crimes de responsabilidade não faltaram. Faltou coragem para enfrentar extremistas e contrariar agentes econômicos que lucram com o desgoverno.
No sábado, Maia engrossou a voz e acusou os bolsonaristas de adotar métodos do fascismo. Esses métodos estão em uso desde a campanha de 2018, quando o então presidenciável ameaçava fechar jornais e mandar adversários para a cadeia ou o exílio.
Sem a prisão de Fabrício Queiroz, o plano da quartelada poderia ter evoluído das palavras à ação. Bolsonaro foi contido pelo cerco judicial a seus filhos, não pela covardia do Legislativo.
Maia perdeu duas vezes o bonde do impeachment. Ele passou pela primeira vez entre março e abril de 2020, quando o capitão ejetou dois ministros da Saúde e virou alvo de panelaços diários. A inércia da Câmara permitiu que Bolsonaro continuasse a atuar a favor do vírus. Ele recuperou popularidade com o auxílio emergencial e conseguiu se equilibrar na cadeira.
O bonde voltou a passar no mês passado, quando ficou claro que o negacionismo federal deixou o país no fim da fila das vacinas. O deputado recebeu novos apelos para agir, mas estava mais preocupado em pedir votos para o aliado Baleia Rossi.
Ao vociferar no domingo, Maia já havia perdido o controle da eleição da Câmara. A abertura do impeachment era um imperativo ético, mas seria reduzida a um ato de vingança. Que seria anulado rapidamente por seu sucessor, ansioso para mostrar serviço ao Planalto.
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A frente ampla de Baleia Rossi encalhou na praia, mas produziu cenas inusitadas na eleição da Câmara.
Ex-líder do governo Bolsonaro, a deputada Joice Hasselmann foi aplaudida por deputados do PT ao chegar ao Congresso.
Eleita com um discurso feroz contra o ex-presidente Lula, ela rompeu com o Planalto e se aliou à esquerda na sucessão de Rodrigo Maia. Quase foi chamada de companheira.
Depois da recepção calorosa, Joice travou um animado bate-papo com a deputada Jandira Feghali, do PCdoB.
O tema da conversa foi a dieta que mudou a silhueta da ex-bolsonarista. Ela contou que perdeu 20 quilos em pouco mais de cinco meses.
Apesar das novas companhias, Joice se manteve fiel ao capitão em ao menos uma coisa. Ela chegou à Câmara sem máscara, e assim continuou ao confraternizar com os petistas.
Em tempo: no fim da noite, a deputada esqueceu o apoio a Baleia e participou da festa da vitória de Arthur Lira, o candidato do Planalto.
Zeina Latif: 'O liberalismo Viúva Porcina'
A política econômica no Brasil poucas vezes foi liberal em nossa história, menos ainda por convicção. O liberalismo só ganha ímpeto nas crises. Na atual, nem isso.
Historicamente, prevaleceu o nacional-desenvolvimentismo - mesmo quando não existia esse termo, do pós-guerra –, que defende a intervenção estatal para a promoção do desenvolvimento de economias atrasadas. Não há preocupação com o desequilíbrio fiscal e a política monetária é condicionada ao estímulo da economia.
Em vez de eliminar os problemas estruturais que obstruem o desenvolvimento, como a baixa qualificação da mão de obra e a insegurança jurídica, busca-se atalhos e privilegia-se alguns setores - em geral empresas ineficientes que não conseguem se tornar competitivas - em detrimento dos demais.
Enquanto isso, o liberalismo condena artificialismos e preconiza medidas horizontais, com resultados favoráveis também em países emergentes.
O fato é que a ação estatal fracassou. Não se trata de erros de implementação, como alguns argumentam, mas de concepção - como na “canetada” nas tarifas de energia em 2013. Políticas são renovadas mesmo quando não funcionam, como a Zona Franca de Manaus, que nem desenvolveu a região, nem preservou a floresta.
Erros de política econômica geralmente demoram para se materializar, como nos governos Geisel e Dilma, responsáveis pelas mais graves crises da nossa história. Isso dificulta a compreensão da sociedade, que muitas vezes hostiliza quem faz o ajuste. Este, por sua vez, não é lei da física; depende de convicção e liderança do presidente.
O liberalismo, por outro lado, não se apresenta satisfatoriamente à opinião pública como agenda republicana, do bem-comum.
Avalio que a fraqueza remonta à formação da intelectualidade ainda no Império, com predomínio dos bacharéis liberais da escola de direito de São Paulo. Na imprensa, na política e no serviço público, defendiam a liberdade para os negócios, mas se ajustaram ao patrimonialismo, como aponta Sérgio Adorno.
Os proprietários rurais defendiam o liberalismo de forma oportunista, pois demandavam proteção e ajuda estatal nos momentos críticos. Além disso, o pensamento liberal não acompanhou valores democráticos de igualdade. Como resultado, foi associado à elite conservadora.
A ditadura militar prejudicou bastante o liberalismo na opinião pública. A linha dura militar resgatou o nacional-desenvolvimentismo, depois das iniciativas liberais de Castello Branco, que combateu a inflação e conduziu reformas, como a criação do Banco Central com autonomia.
Com a crise aberta, o governo Figueiredo retomou a ortodoxia, que ficou associada ao autoritarismo. Mas ficou o saudosismo no nacional-desenvolvimentismo, ignorando o legado da década perdida dos anos 1980.
O governo Collor, com abertura comercial e privatização, tampouco contribuiu para reforçar o pensamento liberal, por conta do fracassado plano de estabilização.
FHC e Lula 1, por convicção ou pragmatismo, avançaram com políticas de cunho liberal, sob bombardeios. Escaldados, não apresentaram suas plataformas como sendo liberais, pela associação equivocada a entreguismo e elitismo.
O preconceito foi atenuado após o desastre de Dilma e com o caminho iniciado pelo impopular governo Temer, que compreendeu o momento. Bolsonaro, presidente eleito, desperdiça a oportunidade aberta.
Mais uma vez, monta-se um cenário de desmoralização do liberalismo. O governo se apresenta como liberal, mas não é. Pior, seu discurso está associado ao anticientificismo e a valores antidemocráticos, contaminando o debate público.
Não há avanços em abertura da economia, privatizações, redução de benefícios tributários e eliminação de privilégios do funcionalismo - temas que dependem de (inexistente) convicção e liderança do Executivo. Não se trata de bancar as eleições das presidências do Congresso.
A grave crise deveria fortalecer as reformas liberais, inclusive para se atender às demandas por recursos públicos sem ferir o compromisso com a disciplina fiscal. Não é ao que se assiste.
Somos um país de crenças estatizantes e com grupos organizados com capacidade de bloquear reformas. Liberalismo não é para os fracos. O governo pode estar comprometendo seu tardio e tímido avanço no debate público, podendo abrir espaço para retrocessos em momento crítico da economia brasileira.
Alberto Aggio e Marcus Oliveira: Política e utopia na América Latina
O filosofo italiano Remo Bodei (1938-2019) lembrava que, dentre os primeiros utopistas, como Tomás Morus ou Tommaso Campanella, a utopia era mobilizada como pedra de toque para julgar o presente, com a ressalva de que era algo inatingível. No final do século XVIII, ainda segundo Bodei, mais precisamente em 1770, Louis-Sébastien Mercier escreveu um romance intitulado “L’anno 2440”, no qual desloca o tema da perfeição para o futuro, imaginando que partindo de um presente imperfeito os homens poderiam chegar a um futuro perfeito.
Esse pensamento utopístico invadiu o discurso de todas as revoluções depois da Revolução Francesa de 1789. A ele se incorporaria a epopeia judaica na construção da utopia secular presente nos discursos dos revolucionários dos séculos XIX e XX: assim como Moisés vê a terra prometida de longe e morre antes de chegar ao deserto, os revolucionários sabiam que sua terra prometida dizia respeito às gerações futuras. Em suma, segundo Bodei, a utopia não é outra coisa senão uma aproximação progressiva a uma ideia de perfeição que pode nunca ser alcançada, mas que, de toda forma, deve continuar a ser perseguida quase como um “dever moral”.
Já o historiador alemão Reinhart Koselleck (1923-2006), buscou a experiência temporal característica da modernidade para construir a sua visão sobre a utopia. Para Koselleck, a modernidade é experimentada a partir de uma separação entre a experiência e a expectativa. Essa separação implica numa fratura entre o passado, considerado como elemento a ser superado, e o futuro, aquilo que se busca atingir como culminância do progresso ou da racionalidade. A revolução, nesses termos, figura como o momento ruptural responsável por produzir essa superação radical do passado, anunciando a construção do futuro imaginado e desejado.
Desde a conquista e a colonização, as ideias utópicas se entranharam na autoconsciência da América, particularmente na América Latina. A invenção da América, como demonstrou Edmundo O’Gorman (1905-1996), é acompanhada de uma libertação dos potenciais imaginativos europeus. Impulsionadas pela certeza da novidade inesperada, as nações europeias se lançaram ao Novo Mundo munidas de um imaginário fecundado pelas possibilidades do maravilhoso.
Todavia, essa dimensão imaginativa convive com os aspectos trágicos da história do Novo Mundo. Além dos inúmeros genocídios, a construção dos Estados latino-americanos carregou consigo, três séculos depois, as terríveis heranças coloniais. Nesse sentido, a criação da modernidade na América Latina apresenta feições diversas dos modelos clássicos europeus. As grandes transformações históricas ocorreram, em geral, em hipoteca com o passado.
Essa configuração moderna implica experiências temporais diversas. O presente, ao carregar os fardos do passado é, concomitantemente, a desilusão melancólica daquilo que poderia ter sido e a esperança que orienta a construção daquilo que deveria ser. Portanto, essa complexa trama de temporalidades, ao contrário de cancelar, impulsionou o desenvolvimento das utopias na América Latina. Compreendida como o espaço por excelência do vir a ser, buscou-se, por diversos caminhos, a construção do maravilhoso.
Durante o século XX, a Revolução Cubana de 1959 configurou-se no momento mais expressivo e simbólico desse pensamento utópico. Embrenhados nas matas da Sierra Maestra, os guerrilheiros cubanos acentuaram a persecução do caminho utópico da Nossa América, conferindo tons revolucionários ao pensamento de José Martí. Em seguida, disputando a orientação das esquerdas latino-americanas com a URSS, o modelo cubano produziu inúmeras cisões e estimulou o surgimento de grupos guerrilheiros pelo continente. Com isso, a gesta revolucionária cubana fincou raízes no pensamento e na historiografia do continente.
HAVANA, 1959
Ao se reforçar a utopia da revolução, os obstáculos para a elaboração de um reformismo democrático por parte das esquerdas se intensificaram. No Chile de Allende (1970-1973), o anúncio da possibilidade de construção do socialismo por uma via pacífica, democrática e institucional, conviveu com ambiguidades revolucionárias que contribuíram para minar as bases de legitimidade política de Allende. Evidentemente, não se trata de imputar culpa à Unidade Popular pelo autoritarismo de Pinochet, mas de marcar a incapacidade de constituição de uma determinada hegemonia no Chile.
Em virtude dos traumas e exílios gerados pelos autoritarismos, a democracia passou a assumir a centralidade da reflexão política sobre o continente, em detrimento da revolução. Contudo, essa aproximação em relação à democracia não cancelou os horizontes utópicos para a América Latina, de modo que as derrotas e os pesos do passado continuam impulsionando imagens utópicas presentes, por exemplo, no bolivarianismo de Hugo Cháves e Nicolás Maduro, bem como em inúmeras correntes político-ideológicas da esquerda latino-americana.
Num cenário mundial no qual se superou, de há muito, a lógica política dos “assaltantes do céu” e, objetivamente, a revolução deixou de ser o fiat do desenvolvimento histórico, como afirmou Luiz Werneck Vianna no já longínquo ano de 1996, como ainda colocar a utopia como referência maior do pensamento crítico latino-americano? Como pensar o futuro na América Latina para além das utopias? Em seus desdobramentos, essas expectativas utópicas, ao invés de auxiliar, criam obstáculos para a vivencia ativa e produtiva do tempo da política e da democracia. O desejo revolucionário de um futuro redentor, paradoxalmente, comprime ou mesmo oprime a própria modernidade que lhe deu ensejo. Em razão disso, o regime político característico da modernidade, fundado na indeterminação dos espaços de poder, estaria de antemão preenchido, impedindo a expressão democrática dos sujeitos em busca de necessários consensos progressivos. Na América Latina, de forma geral, utopia e revolução foram acionados comumente como antagônicos à modernidade e à democracia.
O questionamento às utopias não significa adesão ao presentismo ou mesmo a uma determinada visão liberal que advoga o fim da história. Ao contrário, trata-se de pensar o futuro a partir da chave no qual a política democrática seja o caminho para a definição daquilo que se quer transformar ou conservar na sociedade.
*Publicado em parceria com o Estado da Arte: https://estadodaarte.estadao.com.br/utopias-al-horizontes-eda/