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Hamilton Garcia: O esgotamento da democracia de clientela e os perigos que se avizinham

Falar no esgotamento da democracia de clientela após duas vitórias sucessivas do Centrão, nas eleições municipais de 2020 e nas mesas do Congresso Nacional, pode parecer totalmente despropositado, mas não é. Já há praticamente um consenso, entre muitos analistas políticos, de que a Nova República se esgotou, ela, que não obstante os sinais vindos da luta democrática dos anos 1970-1980, se desenrolou, a partir dos anos 1990, como um movimento transformista que, sob o impulso da luta pelo governo representativo (presidencialismo de coalizão), instaurou, de fato, um regime semi-representativo (presidencialismo de cooptação).

Mas é preciso discutir mais detidamente de qual esgotamento estamos falando. Não se trata apenas, pelo alto, de como a degeneração e a fragmentação partidária erodiram o sistema de representação, mas também, por baixo, de como o eleitorado foi levado a participar, por meio da velha cultura (coronelismo), da política de clientela – que, no nosso caso, apenas em parte se parece com a política de clientela norte-americana, baseada em ativismo social (grupos de pressão) e em modelo partidário horizontal (primárias/caucus) emulado por sistema eleitoral majoritário.

Não apenas isto, mas é preciso entender ambos os fenômenos em chave com o modo de produção predominante no país, no caso, um capitalismo reprimarizado, baseado em exportação de commodities e importação de manufaturados ou seus componentes, com forte participação do setor de serviços e baixa qualificação da mão de obra. Tal modelo, semi-estagnacionista e dependente, não é compatível com o Estado de Bem-Estar e, portanto, com a tão almejada equalização social, e por um motivo básico: sua cadeia de produção/valorização não gera renda compatível, na forma de lucros, impostos e salários, capaz de sustentar tal pretensão. Assim, só resta o endividamento público como viga de sustentação das amplas expectativas sociais e dos interesses privados, a par de porto seguro para o emprego da classe média e de auxílio aos miseráveis, em condições crescentemente gravosas, dado o pesado custo dos juros imposto pelo sistema financeiro nacional – setor hegemônico do bloco histórico em crise.

Claro está que, sem a mudança deste modo de produção – que só pode ser viabilizado por coalizão política ampla de forças político-sociais, o que não se confunde com bloco parlamentar ou simples coalizão eleitoral –, a crise atual não tem solução efetiva, quando muito pode ser rolada e sempre em condições mais críticas. Ocorre que, como historicamente sabemos, são muitas as rotas para a mudança, o que, por si só, não garante que ela seja de fato alcançada, nem mesmo em seu modo mínimo para não falar do ótimo.

O Governo Bolsonaro encarna a mais nova tentativa de mudança desde que o PT abdicou, de fato, desta postulação, em 2002, em prol de um “lugar ao sol” no sistema de domínio, com a diferença de que a extrema-direita sequer tinha um programa digno do nome e que chegou ao poder pela inusitada, embora prenunciada (junho de 2013), revolta de uma população apartada de instrumentos institucionais (partido político) para operar efetivas mudanças políticas.

Como não poderia deixar de ser, inclusive por suas idiossincrasias, tudo aconteceu de maneira mais rápida e atabalhoada com Bolsonaro, até mesmo se comparado à FCM. Já na largada, JMB expôs a fragilidade de sua coalizão eleitoral na crise com os Ministros Bebiano e Cruz, e embora tenha aprovado a Reforma da Previdência, esta se deveu mais a um consenso social, enquanto o Presidente iniciava sua luta desesperada pela própria sobrevivência. Em certa medida, o Governo foi "salvo" pela pandemia, que se transformou em álibi de sua anomia política, ao fim remediada pelo “porto seguro” do Centrão. É verdade que existem dúvidas fundadas sobre tal “segurança”, sobretudo diante de um governo tão frágil quanto atabalhoado. Mas é preciso olhar também para a crise do sistema, onde Bolsonaro se agarra.

Não se pode descartar que o liberalismo radical de Guedes tenha encontrado sua mediação clássica no Brasil neopatrimonial com a "nova" coalizão, o que possibilitará ao bolsonarismo, pelo menos em tese, por meio de sua ala militar, neutralizá-lo enquanto utopia burguesa e convertê-lo de obstáculo à catapulta de um novo arranjo nacional-desenvolvimentista, como já vislumbrado no PAEG em contexto histórico distinto, num cavalo de pau de difícil compreensão, inclusive para os observadores da história que ignoram as implicações da via prussiana em nosso longo processo de modernização.

O PAEG, é verdade, se desenvolveu sob a tutela militar, tutela que hoje seria esmaecida, o que pode comprometer o enquadramento dos atores políticos envolvidos na trama e, consequentemente, seus fins, caso não demonstrem a exata noção do que estão fazendo e em quais circunstâncias. Não obstante, a crise aguda força os atores a uma consciência diferenciada na luta pela própria sobrevivência, como nos ensinou Lênin, o que implica, hoje, em se observar e responder ao desespero social que se anuncia. Não apenas isto, será preciso também tratar da retomada econômica para garantir a renda do trabalho após a emergência, estimulando a esperança dos trabalhadores por dias melhores. Para que tal retomada aconteça, de outro lado, as reformas em discussão no Congresso deverão englobar medidas que contemplem a reindustrialização do país, a começar pelos setores que já dominamos e os que impliquem em enfrentamento da pandemia, como a indústria farmacêutica.

Se isto tiver sequência no âmbito do programa econômico da coalizão bolso-militar-centrista, restará observar a cena político-judiciária, ainda mais incerta em razão das pressões sociais que afetam os aparatos de justiça desde o Mensalão (2005). Mais especificamente, será preciso verificar se um eventual clima de otimismo econômico extra-Mercado será capaz de neutralizar o previsível aumento do mau humor dos cidadãos com seus representantes e a burocracia pública, em meio ao novo cenário de conforto projetado com o fim da Lava-Jato e a possível reabilitação jurídica de vários de suas "vítimas" de colarinho branco, que podem ensejar, a partir de agora, uma ida aos cofres com ímpeto represado, capaz de abalar a credibilidade que resta da reputação anti-sistêmica do bolsonarismo, além de acumular mais combustível sobre mata ressecada.

A própria blindagem de Bolsonaro pelas elites, em função, principalmente, do estancamento da sangria e seus supostos efeitos distensionistas sobre a política e a economia, é aposta inflamável no pior cenário. Nada disso deve passar desapercebido pelos estrategistas do bolsonarismo, que mantém na manga a carta do “auto-golpe", que, no caso do bolsonarismo, como se sabe, está longe do inverossímil e brancaleônico "exército do Stédile”, configurando, de fato, perigo tangível.

Diante disso e da incrível capacidade interpelatória das narrativas bolsonaristas – cuja diferença essencial em relação às narrativas lulopetistas reside tão somente em sua maior facilidade assimilatória pela massa –, é possível que o ônus deum eventual insucesso da coalizão bolsocentrista, em meio às frustrações econômicas e/ou o pipocar de escândalos de corrupção, possa ser jogado, com grandes chances de êxito, nas costas do STF, do próprio Centrão – da qual Bolsonaro conseguiu se distanciar pela ótica popular, não obstante as rachadinhas – e da esquerda, por conta das manobras de anulação processual que podem favorecer LILS  – sob o beneplácito de Bolsonaro, diga-se de passagem – e, em sequência, outros apenados, como Eduardo Cunha e Sérgio Cabral, entre outros.

Tudo isto estará sobre a mesa na campanha eleitoral de 2022, que se inicia agora, fora do controle do TSE, não devendo haver dúvidas sobre a disposição, inclusive já insinuada, de Bolsonaro entrar neste jogo com a intenção de “fazer o diabo para se reeleger” (DR), o que, na prática, projeta sua intenção de aceitar apenas o resultado que lhe beneficie. Isto, naturalmente, não dependerá apenas de sua vontade, mas também exigirá conjuntura favorável, como uma crise que conjugasse colapso social com desespero econômico e desmoralização das instituições republicanas, abrindo caminho para greves de caminhoneiros, alguma inquietação nos quartéis e apelos para a restauração da ordem, cenário em parte visto no pré-1964.

Um conflito desta envergadura não só é possível, como pode acontecer antes da suposta “fraude eleitoral”, em meio ao desarranjo de seu "novo" governo. Outra variável importante a considerar, é como a radicalização política e a frustração das massas com as instituições vai se manifestar, inclusive nos meios militares, já que desde 1930, como nos ensinou José Murilo de Carvalho[i], as FFAA se movimentam na cena política com vistas a conter as ameaças de ruptura vindas de baixo – como a de Prestes, em 1930/1935, e a de Jango/Brizola, em 1964. No contexto atual, todavia, a ameaça potencial vem do baixo-clero bolsonarista, o que tornaria o desenlace ainda mais complexo e incerto.

Fator decisivo para tal evolução da situação é como as massas reagiriam ao caos social. Não se pode descartar a hipótese de que um descontentamento geral se misture à anomia já instalada nas periferias das metrópoles, que, embora de difícil assimilação pelas elites intelectuais (liberais e socialistas) – tendentes a traduzí-la como questão ética –, segue sendo vivenciada pela população sitiada como desafio à sobrevivência, a exigir solução de força (desarmamento) sob os auspícios da lei, que, não acontecendo, escancara as portas para o puro arbítrio da força ilegal, alimentada pelas facções bolsonaristas. Em tal contexto, a politização da crise pela extrema direita poderia catalizar o desejo geral de estabilização e ordem, o que praticamente forçaria uma ação convergente por parte do Alto Comando das FFAA, embora ainda dentro da lei (GLO). 

Tudo isto nos coloca questões para muito além da ideia de resistência democrática experimentada nos anos 1960-1970, ideias que fossem capazes de neutralizar a perspectiva tutelar dos militares sobre a República, perspectiva esta que é a pedra angular do intervencionismo militar desde 1889 e que teve no Gen. Góis Monteiro, nos idos de 1930, um arguto articulador que a traduzia como a expressão institucionalizada da nacionalidade, em cuja sombra poderiam "se organizar as demais forças da nacionalidade"[ii].

À rigor, na posologia deste velho remédio, Bolsonaro não teria lugar, mas tampouco estaríamos à salvo de seus conhecidos efeitos colaterais. O mais sábio, à luz da história, seria reconhecer tais riscos e buscar evitá-los pela franca assunção da crise de nossa democracia (clientelista), articulando, sob o signo da reconstrução nacional, uma saída democrático-desenvolvimentista para a crise em diálogo com os militares.

De novo, pode não ser o ideal, mas é o que nos cabe em meio aos perigos que se avizinham.

Hamilton Garcia de Lima (Cientista Político, UENF/DR[iii])


[i] Forças Armadas e Política no Brasil, ed. Todavia/SP, 2019.

[ii] Apud Carvalho, p. 120.

[iii] Universidade Estadual do Norte-Fluminense/Darcy Ribeiro.


O Globo: Novo estudo comprova a 'boiada' de Salles na área ambiental

Pesquisadores compilaram 57 mudanças promovidas pelo governo Bolsonaro em dispositivos legais que enfraqueceram regras de preservação

Rafael Garcia, O Globo

SÃO PAULO - Um grupo de pesquisadores que compilou despachos federais de regramento ambiental no Brasil encontrou durante o governo Bolsonaro 57 dispositivos legais que se encaixam nas categorias de “desregulação” e “flexibilização”, enfraquecendo regras de preservação. Mais da metade das medidas foi expedida após o ministro Ricardo Salles ter dito em reunião que pretendia “passar a boiada” das propostas do Executivo para o setor, enquanto a pandemia de Covid-19 concentrava a atenção da mídia.

A pesquisa, que retrata um quadro de degradação do arcabouço de proteção ambiental no país, foi liderado pelas ecólogas Mariana Vale e Rita Portela, da UFRJ. As cientistas usaram para o estudo informações do projeto de transparência de dados Política por Inteiro, que lê o Diário Oficial da União usando robôs.

O grupo se concentrou nos chamados atos “infralegais”, decisões do Executivo que não dependem de aval do Legistativo, de vários ministérios, mas que tivessem impacto ambiental. Também incluíram no estudo dados de desmatamento e aplicação de multas ambientais. O resultado do trabalho foi descrito em um artigo no periódico acadêmico Conservation Biology.

“Encontramos uma redução de 72% nas multas ambientais durante a pandemia, apesar de um aumento no desmatamento da Amazônia durante o período”, escrevem os pesquisadores. “Concluímos que a atual administração está se aproveitando da pandemia para intensificar um padrão de enfraquecimento da proteção ambiental no Brasil.”

Flexibilização controversa

Entre as medidas destacadas pelos pesquisadores durante o período da pandemia está a que libera atividade de mineração em áreas que ainda aguardam autorização final, publicada em junho de 2020. Outra norma, no mês seguinte, reclassificou 47 diferentes pesticidas como de categoria menos danosa, sem respaldo em literatura científica.

De setembro passado, os cientistas destacam a medida que facilita autorização para pesca industrial. “A autorização sai sem qualquer tipo de triagem ou avaliação dos pescadores e de suas práticas”, afirmam os cientistas.

O estudo também comparou a taxa relativa de multas por desmatamento na Amazônia, e a comparou com o ano anterior.

Quando a área de floresta derrubada atingiu quase 120 mil km² por mês em agosto de 2019, nos dois meses seguintes a quantidade de multas por esse tipo de crime na região oscilou entre 40 e 60 por mês. No auge da primeira onda da Covid-19, o desmatamento também foi alto, com quase 100 mil km² derrubados num mês, mas as multas ficaram abaixo de 10 por mês.

O estudo também analisou mudanças de pessoal no Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) e do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio).

— Houve substituição de staff técnico em posições de chefia por staff não técnico, que foi marcada pela retirada de servidores com anos de experiência dentro das autarquias ambientais para serem substituídos, por exemplo, por policiais militares de carreira — afirma Erika Berenguer, ecóloga da Universidade de Oxford e coautora do estudo.

A reportagem encaminhou ao Ministério do Meio Ambiente uma cópia do estudo, mas não recebeu resposta até a conclusão desta edição.


Conrado Hübner Mendes: Centrão magistocrático se vende por menos

Para a violência bolsonarista, tempo é tudo; tempo a magistocracia sabe entregar

Para um Estado de Direito funcionar, não basta recrutar bacharéis que recitam leis e jargões, chamá-los de juízes e promotores, conferir-lhes garantias de independência e apertar o play. É recomendável saber quem são, de onde vêm, como pensam e por quanto se vendem. E deixar claro o que deles se espera ética e intelectualmente. E controlá-los.

Entre os obstáculos que emperram o Estado de Direito no Brasil, a hegemonia da magistocracia no sistema de justiça é dos mais ignorados. A magistocracia corresponde à fração de juízes e promotores que parasitam o interesse público e alimentam a corrupção institucional. Sua faceta rentista é só a mais visível.

A magistocracia rifa a legalidade e perde a dignidade, mas não perde a pecúnia. Vive e pratica o lema "crises econômicas são oportunidades, férias para vender, recessos para descansar e leis moralizadoras para retorcer". Se o teto salarial limita a remuneração, que a corporação enriqueça por meio de "verbas indenizatórias", mesmo que a distinção seja espúria.

Sabe-se que em torno de 35% da renda da magistocracia é composta por "extras", em geral isentos de impostos, e que algo próximo de 70% recebe acima do teto. Na pandemia, buscou ser vacinada primeiro. Como o trabalho remoto trouxe economia, aproveitou para quitar passivos acumulados com o dinheiro poupado. Procure saber que "passivos".

Em 2020, só com férias vendidas, o Judiciário gastou pelo menos R$ 423 milhões (revista Piauí). O "pelo menos" se deve à falta de transparência de alguns tribunais, como o TJ-RJ. O TJ-SP gastou R$ 116 milhões para "comprar" férias. O TJ-MG gastou R$ 326 milhões em auxílios.

Sobreviver no centrão magistocrático é mais fácil que no centrão partidário, pois não dependem de voto nem de eleitor. Precisam ter amigos na política, fazer permutas de legalidade e negociações de constitucionalidade. Centrão partidário e centrão magistocrático se ajudam.

Vejam Arthur Lira. Nessa semana, visitou o TJ de Alagoas. O mesmo tribunal que julga sérias acusações contra ele, de corrupção a violência doméstica. Seu presidente, Kléver Loureiro, investigado pelo CNJ, é defendido pela dupla de advogados de Lira. Kléver Júnior, que disputou a Prefeitura de Japaratinga, recebeu apoio público de Lira. "Demandas do Judiciário serão bem recebidas na Câmara", disse Lira, como noticiou site do próprio TJ.

Mas a magistocracia não é só rentista —é também autoritária e colaboracionista. Isso soa como hino militar nos ouvidos de Jair Bolsonaro. A acusação de crime tem pairado sobre si e sua família, e o risco de proteção judicial de liberdades constitucionais afronta seu governo. O processo de cooptação desse outro centrão está inconcluso, mas em disputa.

Augusto Aras tem feito sua parte. Para disfarçar seu passivo colaboracionista, depois de jogar o desastre de Manaus nas costas de prefeito e governador, abriu inquérito contra Pazuello e procedimento preliminar, que nem inquérito é, contra Bolsonaro. Iniciativas bem recortadas juridicamente para desconversar sobre os fatos e crimes mais graves e arquivar o mais rápido possível. Se a gratidão fosse a virtude de Jair, a vaga no STF já teria dono.

O cordão obstrucionista que a magistocracia armou para postergar ao infinito os casos criminais de Flávio Bolsonaro perpassa a gaveta de Gilmar Mendes no STF, algumas gavetas do STJ e do TJ-RJ.

No STF, três inquéritos afetam interesses imediatos de Bolsonaro: investigam bolsonaristas por fake news, atos pelo golpe militar encorajados por Bolsonaro, e intervenção do presidente na Polícia Federal.

São administrados como bombas de contenção, com resultados ainda incertos.

Também vêm do STF demoras úteis ao projeto bolsonarista, como proteção de indígenas e presidiários na pandemia, ou mesmo casos antigos que pisam na veia bolsonarista, como do tráfico de drogas, que dormita em gaveta esplêndida há seis anos, ou dos direitos de mulheres.

Para a violência bolsonarista, tempo é tudo. Tempo a magistocracia sabe entregar.Conrado Hübner Mendes

Professor de direito constitucional da USP, é doutor em direito e ciência política e embaixador científico da Fundação Alexander von Humboldt.


José Serra: Banco Central - Quando autonomia significa mais desigualdade

O Parlamento e o governo sabem que um dos legados da pandemia é o aumento da desigualdade social. Famílias sem acesso a recursos financeiros perdem renda e  emprego, com seus filhos fora da escola, lutando pela sobrevivência. Além disso, não temos orçamento público aprovado nem planejamento financeiro para ajudar essa parcela significativa da população brasileira. É neste cenário que o presidente da Câmara resolveu pautar projeto que institui a independência política do Banco Central, o que tende a aumentar, mais ainda, essa desigualdade.

A proposta é moralmente perversa e deve ser rejeitada, pois a independência política de um Banco Central aumenta a já enorme barreira que separa ricos e pobres. Essa é a conclusão de pesquisadores do Banco Mundial em estudo publicado este ano a respeito do  impacto da independência dos bancos centrais   sobre a desigualdade:“Does Central Bank Independence Increase Inequality?”. Com sólida base teórica, os estudiosos do banco demonstraram a existência de correlação entre a independência do Banco Central e a desigualdade social. Chegaram a três conclusões de fácil compreensão.

Primeiro, a independência dos Bancos Centrais limita o alcance da política fiscal, o que limita a capacidade de um Governo para distribuir recursos. Segundo, incentiva a desregulamentação irresponsável dos mercados financeiros, beneficiando os investidores em bolsa, na medida em que infla os valores dos ativos negociados no mercado. Terceiro, promove indiretamente políticas que enfraquecem o poder de negociação dos trabalhadores, com o objetivo de conter pressões inflacionárias.

A autonomia política do Banco Central é uma pauta que inundou os países industrializados na década de 1970, ajudando a fomentar, na academia, a tese da superioridade da independência dos bancos centrais. Naquele período, muitas democracias aprovaram normas para conferir autonomia a suas autoridades monetárias, com o objetivo de tornar mais efetivo o controle das taxas de juros.

Depois da crise financeira de 2008, o cenário mudou bastante. Hoje os bancos  centrais têm mandato que extrapola, de longe, aquele papel clássico de cinquenta anos atrás, em que as autoridades desses tinham, como única missão, executar a política monetária via definição da taxa básica de juros da economia.

Os bancos  centrais  modernos estão atuando na política monetária em coordenação com a política fiscal, injetando dinheiro para aquecer a economia. O projeto em discussão na Câmara dos Deputados chega a criar um mandato a mais para o nosso BC: promover crescimento e emprego. Esse novo arranjo institucional da política monetária é incompatível com o argumento da soberania política para o esse banco.

No cenário atual, a discussão sobre projetos para garantir independência política para o BC está completamente fora de hora. O Brasil vive uma pandemia das mais graves da história, com hospitais do SUS abarrotados de pessoas infectadas pelo coronavírus. Em algumas localidades, faltam balões de oxigênio para manter pessoas respirando. E o novo presidente da Câmara resolve mostrar serviço, tentando aprovar uma das reformas menos relevantes para o enfrentamento da crise.

Claramente estamos perdendo o foco ao discutir independência do Banco Central, justamente agora. A energia e o tempo do Congresso deveriam estar voltados para a aprovação, antes de mais nada, do orçamento, e discutir como viabilizar um socorro emergencial para as famílias que estão lutando pela sobrevivência. Nada é mais importante no momento.

Neste cenário, o Congresso deveria rejeitar qualquer proposta que possa promover maior desigualdade social. A pandemia já está atuando nessa direção, e o que temos que fazer no Parlamento é combater a desigualdade, como cabe a um poder autônomo da República.

*Jose Serra (PSDB-SP) é senador da República. Foi ministro da Saúde durante o governo de Fernando Henrique Cardoso (1998-2002), ministro das Relações Exteriores durante o governo de Michel Temer (2016-2017), governador de São Paulo e prefeito de São Paulo.


Cristiano Romero: País convive com herança estatal do II PND

Apesar das polêmicas, todo governo reduz Estado na economia

Embora não tenham desmontado inteiramente, até os dias atuais, o modelo nacional desenvolvimentista que faliu durante a crise da dívida, em 1982, todos os presidentes, desde então, diminuíram a participação do Estado brasileiro na economia. Praticamente todos privatizaram ou concederam ao setor privado a gestão de serviços públicos como rodovias, telefonia e aeroportos, algo, ainda hoje, impensável para os defensores de um Estado utópico, provedor de bens e serviços de qualidade.

O fato de todos os governos terem vendido estatais significa que o modelo de desenvolvimento exauriu-se, isto é, tornou-se insustentável do ponto de vista de seu financiamento tanto fiscal (recursos públicos) quanto externo (dívida bancária). O negacionismo dessa realidade - o pior defeito de um governante - por setores da burocracia estatal, do empresariado, da classe média e do meio político à esquerda e à direita produziu nas décadas seguintes a ruína econômica, traduzida pelo advento da hiperinflação, pela queda brutal da taxa média de crescimento do Produto Interno Bruto (PIB), pela deterioração da infraestrutura, pela forte contração das taxa de investimento dos setores público e privado etc.

O II Plano Nacional de Desenvolvimento (II PND) foi lançado em 1974, no governo Geisel (1974-1979), como resposta à crise internacional provocada pela primeira crise do petróleo. O objetivo, conforme anunciou o então presidente na ocasião, era evitar que a Ilha de Vera Cruz caísse numa recessão.

Bem, o II PND não foram medidas tópicas, conjunturais, como redução de impostos, corte de juros ou oferta de crédito oficial subsidiado, mas, sim, um amplo conjunto de iniciativas, envolvendo o governo, o setor privado e o capital externo. Foi a maior intervenção do Estado na economia na história deste território. O objetivo do II PND era dotar o país de infraestrutura comparável à de nações ricas, de um poderoso setor de bens de produção (nos setores siderúrgico, de química pesada, metais não ferrosos e minerais não metálicos) e de energia (petróleo e derivados, energia hidroelétrica e fontes alternativas como etanol e energia nuclear).

Foram durante aqueles anos que o número de estatais atingiu o ápice (382, segundo estudo da OCDE de 2017, realizado a partir de dados fornecidos pelo governo brasileiro). Toda a estratégia só seria viável se a taxa de juros, o custo dos quase US$ 100 bilhões que o país tomou emprestado na década de 1970, jamais subisse aqui e no mercado, “eppur si muove” (mas, ela se move).

Com a segunda crise do petróleo, deflagrada em 1979, a inflação americana escalou degraus até chegar a 20% e, para abaixá-la, o Federal Reserve (Fed, o banco central dos Estados Unidos) moveu as taxas de juros com a mesma intensidade.

Uma continha rápida, grosso modo, evidentemente: no início daquela década, o país chamado Brasil devia pouco mais de US$ 6 bilhões ao exterior e o juro no mercado internacional era negativo; no início da década de 1980, a dívida estava em US$ 100 bilhões, e a taxa de referência do Fed, acima de 20%. Que tal?

A crise da dívida, “a mãe de todas as crises”, se deu em 1982, quando o presidente era o general João Baptista Figueiredo, o último da longa ditadura militar (1964-1985) instaurada por aqui. Já movido pela necessidade de desidratar o Estado criado pelo II PND, Figueiredo instituiu o Programa Nacional de Desburocratização (Decreto n 83.740/79), liderado por Hélio Beltrão e o que mais fez pela “causa”, e criou a Secretaria Especial de Controle das Empresas Estatais (SEST).

“Foi a primeira manifestação concreta de uma preocupação com o gigantismo estatal, com o claro objetivo de introduzir uma primeira agenda de reforma do Estado”, diz Luiz Chrysostomo de Oliveira Filho, especialista no tema das privatizações, tendo trabalhado na modelagem de algumas operações quando trabalhou no BNDES. “A primeira Comissão de Especial de Desestatização foi criada em 1981 [Decreto Presidencial 86215/1981] e fixou normas para transferência e desinvestimentos das empresas controladas, identificando na ocasião 140 prontas para serem vendidas.”

No governo Sarney (1985-1990), o tema privatização começou a ser discutido e, pela primeira vez, associou-se a venda de estatais à redução do endividamento público interno e externo (via conversão de dívida). Até hoje, alguns críticos fazem muxoxo em relação a isso, esquecendo-se de um fato importante: aquela miríade de estatais foi criada às custas do endividamento interno e externo do país. Nada mais justo e razoável que o dinheiro arrecadado com a venda seja destinado à amortização da dívida.

O governo Sarney tentou, com a edição de vários decretos, ampliar o alcance do programa de venda das empresas, observa Chrysostomo, mas foi muito pressionado por grupos de interesses privados a não privatizar nada.

“O Brasil vem realizando diversas desestatizações há mais de 30 anos, incluindo-se modelos de venda de controle, vendas de participação minoritária, concessões públicas e parcerias público-privadas (administrativas ou patrocinadas), presentes em todos os entes da federação”, conta Chrysostomo, que trata do assunto no livro “Reforma do Estado no Brasil” (Atlas, 2020), organizado pelo economista Fabio Giambiagi.


Paulo Delgado: O assador Lira

Quando se formam maiorias predatórias, algo de atentatório à democracia emerge

Se o Executivo quiser humilhar a Câmara por considerar ridículo ter de respeitá-la, a maioria se esfarela. As conveniências venceram, mas como prego mal pregado na parede. Se o presidente não souber lidar com o poder, o humor do Legislativo não vai espelhar o do Executivo. E teremos o parlamentarismo do Centrão.

A concha acústica que seria colocada no ponto mais alto do terreno para projetar o grito de manifestantes para dentro do Congresso jamais foi construída. Mas o espelho d’água para desencorajar a multidão a invadir o prédio, esse, sim, foi aberto.

Senado e Câmara elegeram seus novos presidentes sob a indiferença dos brasileiros. No Senado não foi tanto vitória do governo. Foi o Senado, velho e sem se fazer de caduco, que escolheu um homem jovem, gentil, associativo para enfrentar uma política totalmente sem imaginação. O belo discurso de Simone sobre o mar, barcos e remos se perdeu nas ondas de procuradores imaturos e de um juiz que, se foi duro para perseguir grandes, se viu menor diante de um pequeno. Talvez por isso, a poesia logo foi suplantada pelo discurso de formatura do melhor aluno da turma de 2018.

Um senador sem freios apurou: Simone para lá, Rodrigo para cá, depois morreu. Que gente! Ninguém poderia imaginar que assim contassem votos no Senado da República.

Na Câmara foi diferente. Houve boxe, com socos combinados e frases dirigidas para acalmar a boa consciência de traidores engajados. SUS, rede de proteção social, pauta emergencial, cadeira giratória, todos conheço por nome. Clichês endereçados a aplastados partidos. Uff!

A matemática é inexorável. Dos 211 do bloco de Baleia, 145 votos ele teve. Assolador. Com 247 em seu bloco, Lira obteve 302 votos, revelando que os convencidos eram minoria diante dos dispostos a ser convencidos. Partidos de gente partida.

Não é o apocalipse. Mas há um parentesco natural entre Executivo e Legislativo quando um mesmo apetite adquire peso e a balança do destino coloca a vida perto da necessidade e do medo. Se o Congresso deu outra chance ao presidente, não deve imitar sua deformidade.

A relação com ele é incompatível com a emoção, como bem fez o Senado. Há emoções que ajudam a corrigir e reorganizar o caráter; há outras que o exacerbam. Há inversão de papéis se o Parlamento imagina manipular cordéis do Executivo. Certo que há parlamentares colegas acostumados com a longa prática da hipocrisia que é usufruir o mandato mais do que exercê-lo. Estranho é um número tão grande achar isso natural.

O governo pode ter posto o inimigo em casa. Já o Congresso pode ter armado uma rede em que ele próprio cairá. Se continuar comovido e aceitar suflê, será servido na mesma vasilha do forno sem imaginação do presidente. Em política a distração é cômica.

Todo esse vaudeville é sinal da luta do politeísmo pagão praticado pelos partidos. Alguma coisa lembra George Foreman e sua máquina de grelhar. A iniquidade que a chapa inflige à carne é que permite o triunfo glorioso do churrasco. Mal passado, bem passado ou cru, o assador Lira deve cuidar para produzir pouca fumaça num plenário em que uns nada querem entender, outros nada querem ver e a maioria só vê o que quer. O fácil se torna impossível. E quando se formam maiorias predatórias algo de atentatório à vida democrática emerge.

A tensão é de cabo de guerra. O governo não olha sequer os mortos. Mas a política é um padre mole que une os casais que parentes desaprovam. A hora do divórcio é que interessa em país onde os governos caem de dentro para fora.

Antes do primeiro churrasco Lira homenageia Niemeyer descrevendo a grandeza sutil da arquitetura do plenário. Minutos depois, assentado no trono, queima a carne passada. Anula a votação da Mesa e ataca Maia, inexoravelmente abandonado, sem condições de conter a velocidade da adesão. Fidelidade é guarda-chuva frágil; na tormenta, melhor táxi.

Inacreditável: as 35 propostas prioritárias são um gasto psíquico acreditar. Revelam como a política se desequilibra em desfavor da racionalidade quando os ideais se esgotam. Um amontoado que desvirtua conceitos, privilegia tontices para contornar o custo de enfrentar privilégios. Uma lembra o esquadrão da morte ao defender imunidade para policiais arbitrários. A miscelânea tem gás, água, luz, pedágio, pedofilia, Fräulein, startups, arma, índio e o emergencial é de 2019. Nada sobre os mandarins do Estado, vacina, pobreza, jovem, privilégio militar, desemprego. A incompreensibilidade e o desprezo pela economia fazem o Brasil refratário à evolução humana e a aspirações coletivas.

É uma cegueira fingir não ver que o artificial da economia vai estourar. Manter a estagnação econômica e apostar na pobreza dos não influentes para proteger os influentes da depressão é intelectual e moralmente pouco exigente. A razão da força paradoxal do presidente talvez seja o esforço que faz para manter o estado de crise e evitar que a paz seja um dia longa. Seu jogo parlamentar não se sustenta se metade do dia ele se dedicar à prosperidade de sua reeleição. E na outra metade a impedir a prosperidade da Nação.

*Sociólogo


Arminio Fraga, Miguel Lago e Rudi Rocha: O papel estratégico das prefeituras no futuro do SUS

Os espaços para avançar são enormes e atendem à mais importante prioridade da população

A pandemia de covid-19 revelou a urgente necessidade de uma revisão do papel do Estado e das políticas públicas, sobretudo na área da saúde. Dispor de cobertura universal e de sistemas de saúde robustos provou-se, mais do que um imperativo ético, um desafio prioritário e incontornável à luz dos riscos sanitários que o mundo enfrenta – os de agora e os que ainda estão por vir.

O Brasil construiu ao longo das últimas três décadas o Sistema Único de Saúde (SUS). O SUS produziu resultados extremamente importantes, mas muitos desafios persistem. No longo prazo parece-nos claro que o orçamento para a saúde pública terá de crescer significativamente.

No entanto, enquanto não se repensam as prioridades orçamentárias do País, é necessário concentrar esforços na busca de ganhos de equidade e qualidade que possam ser alcançados sem grandes custos adicionais. A atuação dos 5.570 municípios poderá ser decisiva para a melhora do sistema.

Listamos abaixo cinco linhas de ação fundamentais a implementar localmente, que resultam da Agenda Saúde desenvolvida pelo Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps) e pelos Institutos Arapyaú e Impulso.

A primeira tarefa dos novos prefeitos deveria estar focada em reduzir fatores de risco para a saúde da população por meio de uma política integral de promoção de saúde. Os municípios devem assumir a responsabilidade de zelar pela qualidade do ar, da água, da habitação e da alimentação de seus cidadãos. Podem, por exemplo, incentivar a criação de espaços saudáveis, fomentar a prática de exercícios físicos e limitar o consumo de alimentos ultraprocessados e de açúcares nas escolas. Uma população mais saudável significa mais bem-estar e menor sobrecarga do sistema de saúde.

A segunda é melhorar a capacidade de monitoramento e vigilância sanitária e epidemiológica dos municípios. Tal providência deveria ocorrer de forma integrada com os serviços de atenção primária e com metas claras de redução da mortalidade e da morbidade por causas infecciosas. Prevenção, vigilância e assistência coordenadas deveriam ser capazes de evitar e resolver uma parte substancial dos problemas de saúde da população.

A terceira tarefa é expandir a cobertura da atenção básica e torná-la mais resolutiva. Nesse quesito, cabe dar às equipes do Estratégia Saúde da Família (ESF) mais autonomia e primazia na regulação do acesso aos serviços de média complexidade, de diagnóstico e de especialistas. Em especial, é necessário integrar melhor o atendimento na atenção primária a tais serviços. Expandir o acesso ao ESF a todos os cidadãos é possível e teria um retorno inestimável para o sistema. Deveria ser meta explícita de governo.

Mas não basta ampliar, é necessário melhorar a qualidade. Por exemplo, experimentar novas configurações das equipes. O atendimento à saúde ainda tende a ser muito centrado no médico, dando pouca autonomia aos outros profissionais de saúde. Aumentar a participação da enfermagem na produção ambulatorial seria um primeiro passo importante nessa direção.

Outro espaço promissor seria remodelar os sistemas de pagamento e a relação com os prestadores privados de serviços. Sistemas que remuneram com base nos resultados de saúde – e não por procedimento – conseguem diminuir custos e aumentar a qualidade e a eficiência. Evidências científicas indicam que a porta de entrada do sistema, quando bem administrada e com recursos suficientes, pode resolver 80% dos problemas de saúde da população. Dessa forma se aliviariam as demandas por serviços hospitalares, principalmente o atendimento de urgência e emergência, que em muitas cidades do País já estavam à beira do colapso antes mesmo da pandemia.

A quarta tarefa: pautar as decisões da prefeitura de acordo com dados e indicadores de saúde da população e fazer um monitoramento sistemático dessas métricas. Assim seria possível alavancar o que estiver certo e corrigir rumos quando necessário.

Por fim, porém não menos importante, os municípios devem trabalhar e alocar os seus recursos de maneira coordenada com os seus vizinhos e com o governo estadual. Para isso existem as regiões de saúde – agrupamentos de municípios que constituem uma entidade intermediária do sistema, entre os municípios e o governo do Estado –, hoje pouco exploradas. É inadmissível existir em cada um dos milhares de municípios brasileiros um hospital de referência ou serviços de mais alta complexidade e que demandam escala. A alocação de recursos deve ser planejada e mais bem coordenada. A existência do SUS deveria permitir avanços mais rápidos nessa direção, como já demonstram alguns Estados.

Com essas propostas pretendemos auxiliar os novos governos a melhorarem as políticas de saúde. Os espaços para avançar são enormes e atenderiam ao que é hoje a mais importante prioridade da população.

RESPECTIVAMENTE, PRESIDENTE DO CONSELHO DO INSTITUTO DE ESTUDOS PARA POLÍTICAS DE SAÚDE (IEPS); DIRETOR EXECUTIVO DO IEPS; DIRETOR DE PESQUISA DO IEPS E PROFESSOR DA FGV-EAESP


Ruy Castro: Nós aos olhos dos outros

A crueldade, o crime, a mentira, o hábito doentio de corromper. É o que temos para o momento

O Brasil ignorado lá fora? Nem pensar. Com Deus acima de todos e Bolsonaro acima de tudo, o mundo não tira o olho de nós. Se duvida, eis algumas manchetes recentes:

"Brasil fez a pior gestão do mundo na pandemia, diz OMS". "Com Bolsonaro, Brasil mantém recorde em índice de corrupção na Transparência Internacional". "Biden convoca cúpula do clima em abril e coloca em xeque posição do Brasil". "Corte Interamericana de Direitos Humanos vai julgar o Brasil por omissão na proteção de mulheres e embriões". "Com um assassinato a cada oito dias, Brasil ocupa segundo lugar em ranking da ONU sobre morte de ativistas".

"EUA [leia-se ainda sob Trump] barram tentativa do Brasil de avanço na OMC". "Bolsonaro expõe o Brasil ao ridículo ao ameaçar EUA com pólvora". "Biden ri ao ser perguntado sobre conversar com Bolsonaro". "China felicita Biden e reduz grupo de países fiéis a Trump; Brasil é um deles". "OCDE freia entrada do Brasil em grupo ambiental por política de Bolsonaro para a área".

"Brasil está no topo do ranking de fraudes com dados de cartões". "Brasil quer doar 1 milhão de testes de Covid quase vencidos ao Haiti. Hospitais brasileiros se recusam a receber testes prestes a vencer". "Brasil deve R$ 10,1 bi a organismos mundiais. Itamaraty alerta para risco de sanções por atrasos".

Uma vergonha? Nem tanto. Afinal, as manchetes sobre nossos assuntos domésticos são: "'Finalzinho' de pandemia tem alta de casos em 21 estados. Declaração de Bolsonaro ignora UTIs lotadas em sete capitais". "Governo foi avisado com duas semanas de antecedência sobre possível tragédia em Manaus". "Bolsonaro usou cinco ministérios, militares e estatal para difundir cloroquina". "Presidente manda imprensa enfiar latas de leite condensado no rabo". Etc. Você escolhe: a estupidez, a mentira, o hábito doentio de corromper, a crueldade, o crime. É o que temos para o momento.


Bruno Boghossian: Bolsonaro age como comentarista de problemas do próprio governo

Presidente fala de temas espinhosos como se tivesse perdido a eleição de 2018 e voltado para a Barra da Tijuca

Outro dia, um sujeito parou na portaria do Palácio da Alvorada e reclamou do preço dos combustíveis. Disse que os impostos eram muito altos e que a margem de lucro das distribuidoras era grande demais. "Está todo mundo errado, no meu entendimento. Pode ser que eu esteja equivocado", ponderou.

A queixa poderia ter sido feita por qualquer um dos apoiadores que passam por ali todos os dias, mas o autor daquele lamento foi o presidente da República. Como se não tivesse poder nas mãos ou obrigações no cargo que ocupa, Jair Bolsonaro prefere agir como comentarista de assuntos espinhosos que cercam seu próprio governo.

O presidente fala dos problemas do país como se tivesse perdido a eleição de 2018 e voltado para a Barra da Tijuca. Na segunda-feira (8), ele citou o aumento de preços da cesta básica, mas não apresentou uma ideia razoável para amortecer os impactos dessa alta. "O povo está empobrecendo", refletiu. "Devemos buscar uma solução, e não passa apenas pelo presidente da República."

Não é raro ver Bolsonaro como um palpiteiro instalado no Palácio do Planalto por acidente. No mesmo dia em que examinou a inflação dos alimentos, ele também citou a possibilidade de extensão do auxílio emergencial como algo que só tinha ouvido por aí. "Já se fala em novas parcelas", afirmou. "Eu acho que vai ter, vai ter uma prorrogação."

No caso da vacina contra o coronavírus, Bolsonaro foi mais eficiente em sua sabotagem às ações oficiais do que agora, depois que resolveu mudar de direção para evitar prejuízos políticos. O presidente assumiu o papel de testemunha ao falar sobre o atraso na chegada de insumos: "Tudo é difícil no mundo".

Na função de espectador, Bolsonaro persegue dois objetivos. Primeiro, busca demonstrar camaradagem com apoiadores que criticam o governo pelo diesel caro ou pela falta do auxílio emergencial. De quebra, ele tenta abrir mão de suas responsabilidades como governante –uma especialidade presidencial.


Hélio Schwartsman: Vacina e popularidade

Às vezes Bolsonaro age racionalmente, como no caso da aliança com o centrão

Bolsonaro é um mistério. Às vezes, ele age racionalmente, como vimos no caso da aliança com o centrão, outras vezes, porém, opta por caminhos que lhe trazem claro prejuízo político. O mais emblemático deles é a relutância com a vacinação contra a Covid-19. Há um vínculo claro entre imunizar muito e ganhar pontos na popularidade.

A formidável campanha de vacinação em Israel, que já inoculou com ao menos uma dose 60% da população e experimentou redução de hospitalizações e óbitos, vai se convertendo no elemento que faltava para assegurar ao premiê Binyamin Netanyahu vitória nas eleições de março. Israel vai para seu quarto pleito em dois anos. Os três anteriores foram pouco conclusivos, produzindo governos pouco estáveis. É a vacina que poderá mudar essa história.

No Reino Unido, que também vem se destacando nesse quesito, o premiê Boris Johnson e seu partido conservador vão ganhando pontos nas pesquisas à medida que a imunização avança.

O interessante aqui é que ambos os países são conduzidos por governantes de direita, como Bolsonaro, e que cometeram erros no enfrentamento da pandemia. Uma campanha de vacinação competente parece ter o dom até de redimir o passado.

Penso que cabe aqui uma reflexão mais geral sobre pandemia e legitimidade. Em fevereiro de 2020, quando a doença ia ganhando as manchetes, especulava-se que ela poderia significar a ruína do governo chinês. Um ano depois, o que vemos é exatamente o contrário. Pequim foi capaz de conter o vírus antes mesmo da chegada das vacinas, e os chineses hoje, após olhar para o desempenho dos países ocidentais, não encontram motivos para lamentar o seu regime, pelo menos não no que diz respeito à questão sanitária.

Tudo isso é até meio óbvio. Saúde sempre rendeu votos, o que só torna a posição de Bolsonaro ainda mais enigmática. Ignorância? Loucura? Incompetência? Acho que um pouco dos três.


Ricardo Noblat: Como não pode demiti-lo, Bolsonaro cancela Mourão

À procura de um vice que diga apenas "sim, senhor"!

Sem poder demiti-lo porque foi eleito junto com ele, sem poder fazer de conta que ele simplesmente inexiste, o presidente Jair Bolsonaro decidiu cancelar o vice-presidente Hamilton Mourão.

Faz tempo que já não conversa com ele, mas, ontem, foi muito além: excluiu-o de uma reunião ministerial no Palácio do Planalto. Compareceram 22 ministros. O único que faltou estava viajando.

 “Não fui convidado, não fui chamado. Então, acredito que o presidente julgou que era desnecessária a minha presença”, disse o  general que faz parte do Conselho de Governo.

Mourão deixou passar algumas horas e deu o troco: embora convidado, não foi à cerimônia de lançamento de um programa destinado a atrair investimentos privados para a Amazônia.

A cerimônia contou com a presença de Bolsonaro e de outros ministros. Perguntando por que não foi, Mourão respondeu: “Estava trabalhando, tinha outras coisas para fazer”.

Mourão foi escolhido por Bolsonaro para ser vice na última hora. E mesmo assim porque outros nomes convidados para a função alegaram variados motivos para não ocupá-la.

Bolsonaro queria um vice que não lhe fizesse sombra. Mourão desejava ser um vice com atribuições executivas. Bolsonaro queria um vice que não falasse. Mourão não se faz de mudo.

O presidente é capaz de dizer os maiores absurdos do mundo, mesmo os que o prejudicam. Mourão tentou ser a voz da sensatez e, em alguns casos, o tradutor de Bolsonaro.

Apesar dos desencontros, fingiram dar-se bem até recentemente. Nada pior do que um vice decorativo. Bolsonaro nomeou Mourão para presidir o Conselho Nacional da Amazônia. Não adiantou.

A gota d’água que entornou o copo foi uma troca de mensagens entre um assessor de Mourão e um assessor de um deputado sobre um eventual processo de impeachment contra Bolsonaro.

Mourão só soube das mensagens pela imprensa. No mesmo dia, demitiu o assessor. Com mania de perseguição, Bolsonaro acha que o vice conspira contra ele, e ninguém o convence do contrário.

Daí o cancelamento de Mourão. Que poderá não ser definitivo porque Bolsonaro não tem compromisso com o que diz e faz. Não desqualificava as vacinas? Agora, não as recomenda?

Bolsonaro se comporta na presidência como se fosse um general dentro do quartel. Ninguém pode pensar diferente dele. Ordem dada é para ser cumprida sem maiores discussões.

Há militares que o servem, como os generais Luiz Eduardo Ramos (Secretaria do Governo) e Eduardo Pazuello (Ministério da Saúde), que batem continência e dizem “sim, senhor”.

Mourão bate continência, mas nem sempre diz “sim, senhor”. É por isso que Bolsonaro procura um novo vice para a eleição do ano que vem. O Centrão topa indicar. O Centrão topa tudo.

Um general que se sente à vontade na companhia do Centrão

“Brasil acima de tudo” (grito de guerra da Infantaria Paraquedista)

Se o presidente Jair Bolsonaro está à procura de um vice que lhe diga amém, que em eventos eleitorais saiba manter-se à distância para não lhe fazer sombra, e que ainda por cima possa ajudá-lo a atrair apoios políticos, por que não o general Luiz Eduardo Ramos, atual ministro da Secretaria de Governo?

Ramos entende do riscado. Uma foto que mostrou Bolsonaro disparado, quase sem fôlego, em uma pista de corrida, mostrou também o general tentando imitá-lo, mas bem atrás, sem o risco de ultrapassá-lo. Ramos tem uma sincera admiração pelo presidente. Os dois foram paraquedistas e ainda são bons amigos.

De resto, ao contrário de muitos, militares ou não, que fazem cara feia para o Centrão, Ramos não faz, e orgulha-se de ter servido de ponte entre o grupo e Bolsonaro. Criticado por um general da reserva por andar com más companhias, Ramos respondeu: “Não me envergonho. Não tenho vergonha nenhuma”.

E justificou-se: “Tomei uma atitude coerente. Meu desprendimento de ter aberto mão da minha carreira no Exército mostra que estou a serviço do Brasil. O governo hoje é do Bolsonaro, mas é do Brasil”. Em 2018, Ramos foi uma voz isolada em defesa de Bolsonaro dentro do Estado Maior do Exército.

Até que todos, finalmente, acabaram lhe dando razão. Era preciso evitar a volta da esquerda ao poder. Brasil acima de tudo!


Fernando Exman: Maia diante da sina dos antecessores

Desafio será agrupar polo de oposição ao governo Bolsonaro

Rodrigo Maia agora serve o seu próprio café, comprova a fotografia que ilustrou a entrevista do agora ex-presidente da Câmara dos Deputados ao Valor. Não que ele possa ter deixado de fazê-lo quando sozinho, em sua intimidade, na companhia da família ou de amigos mais próximos. Mas, é possível apostar sem chances de errar que poucas vezes precisou servir-se em público desde 2016, quando assumiu um dos cargos mais importantes do país. O poder traz mordomias e estas se vão das vidas daqueles que as usufruem assim que seus mandatos expiram.

Outro fator que entra nessa conta é a perspectiva de poder ou a falta dela. Quando o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva passou a faixa para a sucessora, a brincadeira que se fazia em Brasília era que o petista teria que reaprender a abrir e fechar portas. Até por isso foi de certa maneira impactante ver Maia abaixo do batente, após a porta entreabrir-se e a maçaneta girar, para receber os repórteres que foram ouvi-lo falar sobre a derrota que sofrera dias antes na disputa pela mesa diretora do Legislativo, reclamar da conduta de aliados históricos e tratar do seu futuro político.

O deputado fluminense não pode contar mais com o apoio do estafe da residência oficial, a ampla casa às margens do Lago Paranoá que hospeda o presidente da Câmara. O imóvel já tem um novo inquilino. Maia também estará de volta ao chão do plenário. Desta vez, com o intuito de se posicionar em relação aos grandes temas nacionais e desempenhar um papel central no processo de construção de um polo de oposição.

Será difícil imaginar que lhe seja confiada a relatoria de algum projeto importante, fundamental para o combate à pandemia de covid-19 ou garantir os alicerces necessários à retomada da atividade econômica. Isso porque a designação de relatores depende do presidente da Câmara, seu sucessor, com quem indica querer manter uma relação cordial. Não significa que poderá dele esperar algum regalo.

Voltando ao café: a luta de qualquer ex-mandatário é tentar mantê-lo quente, e Maia enfrentava essa batalha diária desde o segundo semestre do ano passado. Uma obstrução impediu por diversas semanas o avanço dos trabalhos da Câmara, por exemplo.

Na reta final do processo sucessório, seus adversários faziam troça do seu ocaso e buscavam de todas as formas evidenciar a redução do seu poder de influência entre os colegas de mesa diretora. Discordavam do sistema de votação, do horário da eleição, discordavam por discordar ou em função de alguma estratégia. A regra era divergir e vencê-lo, numa prévia do que seria o resultado da eleição. E venceram.

Depois do triunfo, lançaram dúvidas sobre a manutenção dos relatores por ele indicados. Observa-se, aqui, uma diferença em relação ao que se passa com Davi Alcolumbre (DEM-AP). O ex-presidente do Senado trabalhou para manter-se em alta, primeiro eventualmente como ministro, mas agora na presidência da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Se de fato eleito, além de participar da discussão de todos os projetos importantes que tramitam no Senado, ele pode desempenhar papel fundamental para evitar novas investidas contra ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Continuaria, assim, sendo um interlocutor dos outros Poderes dentro do Congresso.

No Planalto, aguardavam com ansiedade a conclusão da gestão de Maia. As resistências ao sobrenome no entorno do presidente são anteriores às discussões entre Rodrigo e o presidente Jair Bolsonaro, um antagonismo que perdurou durante parte considerável dos dois últimos ano. Remontam ao pai do ex-presidente da Câmara, o vereador Cesar Maia, que foi membro do Partido Comunista Brasileiro e precisou exilar-se no Chile durante a ditadura militar.

Tudo indica que, pelo menos num primeiro momento, irá lhe restar a tribuna. Seu principal desafio será evitar o que parece ser a sina dos ex-presidentes da Casa: a maioria dos antecessores de Maia caiu no ostracismo ou teve problemas com a Justiça. Alguns conseguiram as duas coisas, uma façanha.

Vale lembrar quem são: Waldir Maranhão, Eduardo Cunha, Henrique Eduardo Alves, Marco Maia, Michel Temer, Arlindo Chinaglia, Aldo Rebelo, Severino Cavalcanti, João Paulo Cunha, Efraim Morais, Aécio Neves, Luís Eduardo Magalhães, Inocêncio de Oliveira, Ibsen Pinheiro, Paes de Andrade e Ulysses Guimarães, para ficar com aqueles do período da redemocratização.

Poucos se lembram de Waldir Maranhão, por exemplo. Foi aquele que assumiu interinamente no lugar de Eduardo Cunha e pegou a todos de surpresa ao, numa canetada, tentar anular a sessão que aprovou a admissibilidade do processo de impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff.

Caberá ao próprio Maia, portanto, construir um caminho que o reconduza ao poder. Sua missão primordial será aglutinar um grupo de políticos disposto a ocupar o centro do espectro ideológico, para diferenciar-se da agenda econômica da esquerda e, ao mesmo tempo, fazer oposição a Bolsonaro.

Não será uma tarefa fácil. O deputado está de saída do DEM, ainda não tem destino certo e, por enquanto, não recebeu o apoio público de seus aliados e futuros parceiros de jornada. Alguns deles têm, neste momento, mais a perder com uma eventual exposição. Outros ainda estão buscando assimilar a derrota, ocorrida no primeiro turno e de uma forma que, para muitos, teria abalado o prestígio de Maia e sua imagem de articulador.

No entanto, deve-se levar em consideração a bem sucedida amarração conduzida pelo vencedor. O presidente Arthur Lira (PP-AL) teve o apoio do Palácio do Planalto, mas durante dezenas de meses trabalhou incansavelmente. Ainda é cedo para fazer algum julgamento a respeito do tamanho que Maia sai desse embate.

Por um lado, ele não conseguiu fazer seu sucessor, talvez diminuindo de porte perante os colegas de Parlamento. Por outro, pode ter crescido para fora dos limites do Distrito Federal e do Rio de Janeiro, tendo agora a chance de ocupar um espaço de maior referência na oposição. Ao engajar-se num projeto vitorioso em 2022, inevitavelmente estará credenciado para ocupar pelo menos um ministério de destaque no próximo governo.