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Paulo Fábio Dantas Neto: As unhas da política e as viúvas da Lava Jato

Começo explicando porque o presente texto tornou-se, excepcionalmente, dominical. A live de Maria Bethânia, a princípio, foi só um belíssimo pretexto, convertido em aviso aos leitores dessa coluna, para adiar de ontem para hoje a publicação do artigo semanal. As nuvens políticas do sábado estiveram tão densas que a noite chegou e eu não conseguia encontrar o que dizer com mínima convicção, a não ser constatar a virtual dissolução de uma política moderada no interior do autodenominado centro político.

Depois do cavalo de pau de Rodrigo Maia em adesão (para mim, surpreendente) ao modo João Dória de fazer política - o qual pode até ser chamado de “extremismo de centro” - outros políticos do centro democrático começaram a seguir, ou ameaçar seguir, essa tocha de insensatez que pode conduzi-los a um haraquiri político. Estava a centímetros de arriar o rei diante desse xadrez político de baixa qualidade quando escutei duas frases de Bethânia achadas agora na rede, como memória da live, podendo citá-las sem risco de ser infiel. Uma expressa um desejo de abelha-rainha: "A força dos meus sonhos é tão forte que de tudo renasce exaltação e nunca minhas mãos ficam vazias.". Outra, uma vontade prudente, mediada pela necessidade, com a qual a realeza revela empatia para com quem trabalha e vê entes queridos morrerem como formigas: "Quero vacina, respeito, verdade e misericórdia". 

Acordei neste domingo com a sensação de que a falta de atores políticos capazes de construir uma vontade agregada e prudente está deixando a maioria dos brasileiros sem sonhos fortes e de mãos vazias, em vias de exasperar, por não verem o que exaltar. Ouvi, no entanto, numa entrevista à CNN, concedida dias atrás, pelo jovem governador gaúcho, entre outras ideias que me pareceram lúcidas, a seguinte frase: “eu acredito numa política que efetivamente seja mais sobre cicatrizar do que sobre abrir novas feridas”. Percebi um zum-zum na testa que abriu uma fresta no desalento. Achei não só essa frase, como toda a entrevista, merecedora de um comentário dizendo sim. Mas o dever da análise impunha também considerar as inúmeras razões para dizer não ao que se tem falado e feito no campo onde o governador se move. Só que a algaravia é tão intensa que entontece e não indica por onde começar. Uma segunda leitura, da coluna de hoje da jornalista Eliane Cantanhede, no Estadão, deu-me mote a uma crítica menos apegada às jogadas de varejo do xadrez político e mais voltada a interpretações que se faz sobre elas. Achei, numa interpelação à visão da respeitada colunista, o tema que faltava ontem.  

Cantanhede aventa a hipótese de a empresária Luiza Trajano vir a ser uma alternativa eleitoral, diante da virtual falência de uma frente política do centro liberal-democrático, que estaria se derretendo por adesismo ao governo de Bolsonaro.  A hipótese teria um indisfarçável sentido de retomar o tema da alternativa à “velha política”, que teve forte apelo nas eleições gerais de 2018 e foi arquivado pelos eleitores nas municipais de 2020. Na falta da Lava Jato e diante de Sergio Moro passar de aspirante à política a candidato a réu, seria como buscar outro herói (no caso, heroína) para enfrentar Bolsonaro, alijando a “política dos políticos” do segundo turno. Para sermos justos com Trajano, é preciso dizer que se ela seria tão outsider na política quanto Moro tem as vantagens, em relação ao ex-juiz, de já ter história, como empresária e ativista do grupo Mulheres do Brasil, de contraponto ao extremismo vigente, fazendo oposição afirmativa ao sexismo e ao racismo e de liderar um arrojado e muito bem vindo projeto de intervenção civil em favor da causa da vacinação em massa, que é o principal desafio social do momento. Pauta irrepreensível, cujo apelo agregador provém do fato de ela não ter, até aqui, pretensão político-partidária. Se passar a tê-la, como teve Moro, arrisca-se a perder sentido. A quem se ocupa de política com responsabilidade pública cabe apurar se a hipótese aventureira de substituir o juiz como salvação do país, contra a política, tem anuência da própria Trajano, ou não. No caso de não ter, como parece mais provável, muito bem fará quem a ela se associar. Havendo fogo sob essa fumaça, é preciso que políticos e partidos responsáveis providenciem o antídoto para que esse recurso ao amadorismo político não vingue, como ideal de solução de crises tão complexas como as do Brasil atual. Obtém-se o antidoto por palavras e gestos de moderação e agregação, no campo do centro liberal democrático e na esquerda. Mas no dito centro, abundancia retórica de palavras unitárias já divide espaço com outras que as negam.  E preocupa a escassez de gestos concretos. As razões disso precisam ficar claras.

ACM Neto pode perder a batalha interna que trava no DEM para resistir ao governo pela razão oposta à que Cantanhede aponta. Em vez de adesismo, já se pode perceber - em suas mais recentes declarações sobre a indicação, por um outro partido, de um liderado seu para o ministério da Cidadania - imprudência quase análoga às de Maia e Dória. Mesmo estando o ato do governo cercado de evidências de que se trata de estratégia intencional para colar no presidente do DEM a etiqueta de governista e, com isso, consumar uma implosão do partido, o alvejado cedeu à retórica voluntarista, diante de uma imprensa ávida por confrontos na pequena política. O modo como se expressou, cobrando lealdade política e pessoal a um quadro de outro partido, torna irresistível, para seus adversários, acionar a memória do lado mandonista e informal da complexa e contraditória atitude política do seu avô. Esse lado nega a imagem pública construída pelo neto há mais de uma década. É o que indica até aqui a exoneração, da Prefeitura de Salvador, de um quadro ligado ao ministro indicado, João Roma. Envolve na briga uma prefeitura que já não mais dirige e num contexto social crítico, em que ela precisa manter interlocução com o governo federal. Traz instabilidade, simultaneamente, à institucionalidade federativa e ao combate à pandemia. Tenho me colocado sempre contra visões elitistas, travestidas de progressismo, que desprezam ou demonizam a pequena política. Ela tem papel importante no mundo real, mas Antônio Gramsci é aqui referência incontornável: é grande política reduzir tudo à pequena política. Esse tipo de grande política desertifica a política positiva. ACM Neto ainda tem crédito para se supor que tenha sido um escorregão hepático.

Cantanhede está vendo "implosão" no PSDB também. Será que é isso o que ocorre mesmo, ou ali está se procurando evitar a implosão, um risco provocado por quem a articulista considera ser a vítima, no caso o governador de São Paulo?  Até onde posso enxergar, essa discussão está ligada à situação que abordei em artigo nessa coluna, em 12.12.2020 (“Em busca de um centro: uma eleição e dois scripts”). Da experiência promissora das eleições de 2020 surgiram duas possibilidades de construção de alianças no chamado centro político.

A primeira seguiria uma rota a partir de São Paulo e levaria a atrair a centro-direita para uma aliança ao centro, sob hegemonia do PSDB, para um confronto desde já com Bolsonaro, sendo a possibilidade de incluir a esquerda transferida para o segundo turno, a depender de quem lá chegasse. A segunda possibilidade, que teve êxito em várias capitais, a de uma frente mais ampla se formar já para o primeiro turno, aproximando setores da centro-direita e da centro-esquerda, tendo como âncora uma agenda positiva capaz de envolver o PSDB, outras partes da oposição e setores que se declaravam independentes do governo, como DEM e MDB, sem reconhecimento prévio de hegemonia de qualquer partido. O então presidente da Câmara, Rodrigo Maia, parecia talhado a ser o principal articulador dessa segunda rota, enquanto o governador de São Paulo seria o da primeira.

O modo como se constituiu a frente em prol da candidatura de Baleia Rossi à presidência da Câmara atou, àquela disputa, o destino de uma eventual aliança eleitoral e o modo como Maia reagiu à derrota fê-la transbordar os muros da Câmara e comprometer a segunda possibilidade de rota na arena interpartidária. Recepcionando, no PSDB, o articulador derrotado da segunda rota, João Dória imaginou consolidar, definitivamente, a rota São Paulo - Brasil. Esqueceu de avisar a cozinha, onde a outra rota estava sendo considerada, como demonstram a entrevista do governador gaúcho e a decisão, da Executiva do partido, de prorrogar, por um ano, o mandato do presidente que Doria queria substituir. Evidentemente, como no caso do DEM, o dedo do palácio comparece para incendiar a luta interna, mas quem a provocou é questão em aberto e não uma premissa.

Resta, ainda, falar do MDB e o farei de modo sucinto porque nesse partido não há, por enquanto, uma crise interna com as proporções das que afetam DEM e PSDB. O deputado Baleia Rossi, que se conduziu com dignidade na disputa da Câmara e mantém, após a derrota, um também digno silêncio, precisará mesmo submergir para tentar se manter, ou ao seu grupo, no comando nacional do partido. Terá, para isso, que refratar o duplo ataque que lhe aguarda. De um lado, o do palácio, que quer tornar invertebrados os três principais partidos do centro de modo a ampliar o seu centrão. De outro, o do hábil senador Renan Calheiros, que ensaia fazer da posição de líder do partido no Senado um posto articulador para levá-lo a mover guerrilhas tão verbalmente imoderadas quanto pragmaticamente pontuais contra o governo, como se o MDB pudesse ser uma espécie de centrão do B.

É logico que está em curso, por parte do governo, uma operação para rachar os três partidos, que estão entre os mais institucionalizados do país. Operação que, ademais dos seus objetivos táticos, é coerente com uma tradição estatal brasileira de modelar partidos ao gosto dos interesses do Executivo e com uma estratégia mais geral, do governo atual, de esgarçar e, no limite, destruir instituições. Tem ficado evidente, também, a vulnerabilidade desses partidos a esse tipo de investida, seja por uma crescente dependência de fontes de financiamento orçamentárias (fenômeno estrutural dos sistemas políticos atuais e não uma jaboticaba brasileira), seja por uma cultura personalista que os afeta (embora não os defina, nem seja singularidade deles, pois se espalha por toda a sociedade e tem também uma incidência internacional), seja por  redes de clientela que a eles se vinculam (embora a vida desses partidos não se resuma a elas), seja, ainda, por particularidades regionais próprias da forma federativa do Estado brasileiro e por aí vai. As duas coisas (a investida do governo e a vulnerabilidade dos partidos) são facilmente verificáveis.

O que é obscuro na argumentação - aparentemente límpida, em sua simplicidade - de que o centro político cava sua própria sepultura ao se comportar mal, é o motivo pelo qual deveríamos achar que a estratégia do governo é meramente uma ação beneficiária da má qualidade de uma elite política formada por políticos “menores”, em especial de uma inépcia essencial do centro político. Sem colocar aqui em questão essa qualidade geral, ou a inépcia do centro atual, penso que se toma como causa o que é mais consequência ligada a uma baixa capacidade de certos atores do sistema em dar resposta a desafios. As crises internas do DEM e do PSDB são análogas, mas com raízes distintas. A do DEM resulta de uma iniciativa do palácio, que não está sendo refratada a contento. A do PSDB, de uma afoiteza endógena, aproveitada pelo palácio.  Mas, varejos à parte, a baixa capacidade de resposta afeta os voluntaristas, mais do que os políticos praticantes da moderação. Daí a preocupação prioritária de extremistas adversários do sistema político de alvejarem lideranças e instituições partidárias ligadas ao centro, onde a moderação é mais frequente.

De todo o modo, o extermínio do centro é estratégia de governo e não cabe fazer, de seus alvos vulneráveis, sujeitos de uma oração cujo sentido é uma sentença acusatória que reitera, pela direita, o diagnóstico de “falência da velha política”, por vezes corroborado, na ponta esquerda, pelo de “crise da representação”. Depois de render homenagens, nem sempre sinceras, a políticos que, por terem sido derrotados no jogo pelo seu voluntarismo, tornam-se resíduos funcionais ao argumento, o arremate final dessa argumentação contra políticos moderados resilientes é que, diante do seu adesismo, o jeito é Trajano, mora? Aqui se conclui o diálogo com Cantanhede e começa a análise de um sentimento difuso de contestação da política, que, a meu ver, data vênia, a sua análise subestima.

Extremismo tornou-se consenso negativo tanto na sociedade civil, como no âmbito das instituições. Mesmo se a Câmara de Lira se converter em turba, arrancar recursos de poder para reeleição de deputados e dividir o país em torno de costumes, dificilmente dirá tudo bem, diante de arroubos extremistas contra o sistema democrático. Embora não se saiba até que ponto o eleitorado corresponderá, em 2022, a esse feliz consenso negativo, as urnas de 2020 também deixaram claro um recado por moderação, agora reforçado pelo exemplo de processo político pacificador que deu a vitória a Biden, nos EUA.  Com isso a roda da fortuna girou favoravelmente à elite política e o “lugar de fala” que ela ocupou, no pós-2018, passou a ser cobiçado. Agora todo mundo quer ser moderado, até Bolsonaro.

A acusação de adesismo ao governo Bolsonaro é a tocha acesa por adversários da política dos políticos, deserdados pelo acordo do governo com o centrão, para desalojar políticos moderados da posição relativamente confortável que vinham ocupando. Podiam, desde já, dialogar com a esquerda em torno de protocolos civilizados e, mais adiante, atrair parte do centrão a uma ampla frente democrática, num segundo turno. A imputação de adesismo cumpre o papel centrífugo que acusações de corrupção cumpriram no pre-2018. Em vez de lavar a política, trata-se agora de incendiá-la de novo. A aposta parece ser que ocorrerá o que ocorreu no clima de lacração prévio àquele pleito, ou seja, políticos em geral seguirão atras da tocha, disputando quem é oposição mais firme, num salve-se-quem-puder, procrastinando as pautas unitárias que realmente importam, nesse momento. Essas pautas poderiam ser, então, empalmadas por algum outsider adversário, tanto dos políticos sem rumo, quanto do presidente extremista. O problema é que, enquanto a tocha é seguida, o governo se expande, ocupa o centro, tenta roubar os discursos da vacina, do auxílio social e até o da conciliação.  Daqui a pouco será confundido com a misericórdia.

Especula-se, nas últimas horas, que Luciano Huck, dobrando a aposta de Dória e Maia, poderia ir até a esquerda tourear com Ciro, Lula e Boulos. Flavio Dino, se o está atraindo, faz o jogo certo de quem está na esquerda, tentando levar gente do centro para oxigenar seus ares e torná-la mais competitiva. O jogo do centro é outro e não dá nem pra fazer cócegas em ninguém se não for capaz de unir seus quadros e ainda dividir a direita, costeando o alambrado do centrão. Se uma direita governista é difícil de ser vencida, mesmo quando dividida, imaginem se estiver unida, sob uma hegemonia antidemocrática!

Numa democracia, no entanto, a política dos políticos não chega nunca a ser suprimida e, em geral, após uma faxina, renasce como unha. Foi o que começou a ocorrer nas eleições de 2020. Sobreveio, para o dito centro, um começo de 2021 adverso, pela combinação de assédios de fora e erros em casa. O impulso das urnas do ano passado pode ser retomado se esse agrupamento informe tiver compromisso social para priorizar o combate à pandemia e o auxílio aos mais pobres, responsabilidade para entrar no debate econômico, firmeza na defesa da Constituição, instinto de preservação para não incendiar suas instituições partidárias e prudência política para pacificar os ânimos. São muitos “ses”, o que torna o protagonismo do centro uma hipótese pouco provável no horizonte atual. Sem a concretização de, ao menos, parte dos “ses”, será difícil uma aliança nesse campo tomar forma política e atrair um candidato competitivo – como Luiz Mandetta, por exemplo - para, na hora certa, chamar o eleitorado. Mesmo cumprindo seu dever de casa, até aqui mal encaminhado, não é certo que esse pretenso campo político consiga protagonismo. Mas se parar de bater cabeça terá ao menos como marchar razoavelmente unido para uma outra solução democrática, mesmo exógena, para tentar derrotar o extremismo, que deve piorar muito, se houver reeleição. Pela consideração dessas distintas hipóteses (endógena e exógena), Mandetta será o foco da coluna, na próxima semana. E na seguinte, a esquerda. 

*Cientista político e professor da UFBa.


Breno Altman: Por que o STF está enfrentando a Lava Jato?

Corte tenta se redimir da chancela dada ao que resultou numa anarquia da ordem constitucional promovida pela operação, inclusive com aval do ministro Gilmar Mendes, que hoje lidera as críticas contra seus métodos

Houve um tempo em que a República de Curitiba, com suas regras e procedimentos atípicos, comandada pelo ex-juiz Sergio Moro, recebia a bênção da Corte Suprema. Apesar de um ou outro reparo, o STF parecia avalizar os mecanismos de excepcionalidade que marcavam os processos em curso na 13ª Vara Federal, a sede da Lava Jato. Deslanchada em 2014, a operação viveria sua primavera até o final de 2017. Sob as luzes e aplausos dos principais veículos de comunicação do país, transformados em correias de transmissão do espetáculo exibido a partir do Paraná, a Lava Jato dominava a cena política. Os partidos que compunham a oposição de direita, particularmente PSDB e DEM, entusiasmavam-se com a escalada repressiva contra o Partido dos Trabalhadores e seu líder histórico. Derrotados em quatro eleições presidenciais seguidas, os tucanos apostavam que Moro poderia carimbar seus passaportes de retorno ao comando do Estado.

Forjou-se ambiente de indomável euforia antipetista, semeado por amplos setores da imprensa, a começar pela poderosa Rede Globo, açulando as camadas médias e contagiando as instituições. Sob a bandeira do combate à corrupção, eram corroídas as garantias constitucionais e democráticas. Sequer tratava-se de uma situação nova. A maioria do STF, desde a Ação Penal 470, o chamado “mensalão”, concluída no final de 2012, abdicara da guarda do Estado de Direito, aceitando ou inventando manobras que pudessem solapar o Governo Lula. Alguns dos ministros agiam de forma consciente, talvez acreditando nas denúncias apresentadas pela promotoria. Outros decidiam com a faca no pescoço. Absolver chefes petistas poderia significar um penoso ostracismo.

Somente resistiam algumas vozes isoladas, especialmente o ministro Ricardo Lewandowski. Mesmo a maioria dos indicados durante os mandatos petistas iria aderir à onda das excepcionalidades. O clamor popular fabricado pela mídia de massa, contra um inimigo ao gosto das elites que regem a sociedade, mostrou-se capaz de estimular incontido espírito de manada, cujo ápice ocorreria em 2016, entre a condução coercitiva de Lula e o golpe parlamentar que derrubaria a presidenta Dilma Rousseff.

O ex-juiz Sergio Moro, exatamente nesse período, divulgaria gravações de conversas entre a chefe de Estado e seu antecessor, jogando para a plateia de verde e amarelo. Mais que uma irregularidade, tratava-se de crime escancarado. O STF, no entanto, contentou-se com um muxoxo do ministro Teori Zavascki (1948-2017), criticando a atitude do magistrado curitibano. Seu colega, Gilmar Mendes, agiu no sentido contrário. Com base nos diálogos difundidos, emitiu decisão contrária à nomeação de Lula para a chefia da Casa Civil, em inédita usurpação de atribuição exclusiva do Poder Executivo.

A subversão e a anarquia da ordem constitucional eram chanceladas, entre outras razões, porque jogavam água no moinho da oposição de direita liderada pelo tucanato. O PSDB inegavelmente era a legenda do coração e o bastião dos interesses da imensa maioria dos empresários e banqueiros, dos integrantes da alta burocracia estatal, dos barões da comunicação e das classes médias. Também eram conhecidos e comprovados os vínculos dessa agremiação com os democratas norte-americanos, que governaram a grande potência ocidental até o início de 2017.

Um novo fenômeno, porém, emergiria da potente mobilização golpista contra Dilma, capaz de levar milhões às ruas por sua derrubada. A teia sobre a qual se desenvolveu esse movimento era formada por grupos disseminados nas redes sociais durante os anos anteriores e que tinham mostrado sua musculatura nas chamadas jornadas de junhoem 2013, tomando da esquerda o comando das ruas e as incendiando contra o Palácio do Planalto.

Esses grupos, embora sem coordenação central e com fortes divergências entre si, eram bastante influenciados pela combinação, em diversos graus, de ideias neoliberais com paradigmas neofascistas. Não se reportavam às velhas legendas de direita, fundadoras da VI República, configurada pela Constituição de 1988. Seu papo era outro, misturando nostalgia da ditadura militar, culto às Forças Armadas e antigos credos anticomunistas, um viés autoritário que também embalava valores racistas, sexistas e homofóbicos.

Tais patotas eram adoradoras da Lava Jato, sua principal arma na guerra contra o PT. A turma de Curitiba foi paulatinamente correspondendo a esse amor, se afastando do bloco que havia comandado o impeachment de Dilma e constituído o Governo Michel Temer. Os setores lavajatistas do sistema de justiça, em expansão para outros Estados, como o Rio de Janeiro, foram se incorporando ao caudal político que desaguaria no bolsonarismo. Esse deslocamento refletia a permanente busca por popularidade e a identidade crescente com o projeto de Estado policial representado pelo ex-capitão.

Os sinais práticos logo se manifestariam, entre 2017 e 2018, com investigações e processos abertos contra cardeais do PSDB e do PMDB, atingindo a Aécio NevesEduardo Cunha e o próprio Temer. Além de fortalecer o ramo político de sua nova preferência, a operação Lava Jato queria exibir provas de neutralidade, esvaziando parcialmente as críticas de perseguição à esquerda e preparando terreno para o bote final, a prisão e a interdição do ex-presidente Lula, fundamentais para a disputa presidencial.

Esse cenário levou a uma lenta, mas essencial mudança no STF, liderada por Gilmar Mendes, talvez o ministro menos preocupado em agradar a opinião pública. Um grupo importante de ministros começou a questionar os métodos e as ilegalidades da operação, tratando de colocar-lhe algum anteparo.

A alteração de forças começou a ter maior nitidez em abril de 2018, quando foi julgado habeas corpus que poderia impedir o encarceramento de Lula. O receio de uma derrota levou o general Eduardo Villas Bôas, então comandante do Exército, a desembainhar espada e ameaçar veladamente com a reação dos quartéis. A faca no pescoço deixava de ter sentido figurado e definia a batalha.

A vitória de Bolsonaro e a nomeação de Moro para a pasta da Justiça acabariam por fortalecer o mal-estar político e jurídico contra a Lava Jato dentro do STF, que passaria a ser defendida, com radicalidade, apenas por um trio de magistrados indicados por Lula e Dilma: Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Luiz Fux. O apoio de Cármen Lúcia e Rosa Weber, também nomeações petistas, passou a ser incerto. Conquistava espaço a aliança entre Lewandowski, Mendes, Dias Tóffoli e Alexandre de Moraes, muitas vezes acompanhada por Marco Aurélio de Mello e Celso de Mello.

Os fatos adquiriram outra velocidade em junho de 2019, com os diálogos sigilosos entre os integrantes da força-tarefa e o ex-juiz, revelados pelo site The Intercept e outros veículos. A ala garantistada Corte, junto com a defesa de Lula e a campanha por sua libertação, passava a ter munição de sobra para colocar a operação Lava Jato na berlinda, desarmando sua sustentação na sociedade e no Estado. O mecanismo estava nu, com a mão no bolso.

O tiro de misericórdia, no entanto, seria dado pelo principal beneficiário das arbitrariedades cometidas sob a batuta de Moro. O presidente Jair Bolsonaro, com pouco mais de um ano no governo, via com desgosto e temor a especulação de que seu ministro poderia ser candidato em 2022, enfrentando-o nas urnas em coalizão com a direita tradicional. Tratou de isolá-lo e desestabilizá-lo, até que saísse do governo, em abril de 2020. Para se assegurar da morte política de um perigoso rival, ao mesmo tempo em que tratava de proteger a si próprio e seu clã frente ao sistema judicial, já tinha nomeado Augusto Aras como procurador-geral, em setembro de 2019, com a tarefa de limar o legado da Lava Jato e construir pontes com os garantistas.

Esse giro seria selado em novembro de 2020, com a indicação de Kassio Nunes Marques ao STF, para o lugar de Celso de Mello, retirado por limite de idade. Essa substituição foi primordial, pois consolidava na Segunda Turma do tribunal, encarregada de todos os processos da Lava Jato, uma maioria crítica, formada por Mendes, Lewandowski e o ministro novato, contra Fachin, podendo atrair Carmen Lúcia para um quarteto dominante. Foi o que se viu no julgamento, em 9 de fevereiro, que liberou o acesso da defesa de Lula às conversas entre os procuradores da força-tarefa e o magistrado responsável.

Rompida com a direita tradicional e abandonada pelo bolsonarismo, a Lava Jato recebeu o beijo da morte, ainda que viúvas e órfãos lutem por sobrevida. Seu corpo, fétido, ainda precisa ser enterrado. A anulação das sentenças contra Lula, por suspeição do ex-juiz Sergio Moro, é a grande chance para o STF, redimindo-se, extirpar o “maior escândalo judicial da história humana”, nas palavras de um articulista do New York Times, repetidas pelo ministro Gilmar Mendes, presidente da Segunda Turma do STF, durante a histórica sessão que cravou mais um punhal no coração da República de Curitiba.

Breno Altman é jornalista e fundador do site Opera Mundi.


Luiz Augusto de Castro Neves: ‘Papel do Itamaraty se tornou secundário’

Pragmático, governo da China busca outras vias de negociação, como os governadores, diz Luiz Augusto de Castro Neves

Francisco Carlos de Assis, O Estado de S.Paulo

Para o embaixador do Brasil em Pequim, de 2004 a 2008, e hoje presidente do Conselho Empresarial Brasil-China (CEBC), Luiz Augusto de Castro Neves, o governo chinês optou pelo pragmatismo e não tem levado em consideração os ataques recebidos de alguns membros do governo brasileiro. “O governo brasileiro, nas suas manifestações públicas, tem apresentado algumas disfuncionalidades”. A seguir, os principais trechos da entrevista ao Estadão.

Apesar do discurso ‘antichina’ do governo, a exposição das exportações brasileiras à China saltou de 28%, em 2019, para 32%, em 2020. Teremos uma repetição deste aumento este ano?

Sim. A China, embora tenha crescido 2% no ano passado, sofreu uma desaceleração muito grande, o que gerou uma capacidade ociosa que deverá ser preenchida este ano. E o Brasil se mantém ainda em recessão e tem aumentado as exportações para o mercado chinês e reduzindo suas importações. O aumento das exportações para a China se dá por sua economia estar crescendo mais que a economia mundial.

Mesmo com as compras de insumos para vacinas as importações de produtos chineses não devem ter destaque este ano?

A compra de produtos chineses, de modo geral, tende a se estabilizar ou até diminuir. As importações dos insumos necessários para a fabricação de vacinas contra a covid-19, quantitativamente, não serão decisivas, no agregado, para gerar um aumento nas importações. Nossas importações da China são basicamente de bens intermediários essenciais para a indústria.

Os ataques feitos à China por membros do governo não causam ruídos nas negociações comerciais entre os dois países?

O governo brasileiro, nas suas manifestações públicas, tem apresentado algumas disfuncionalidades. São manifestações vinculadas ao governo e que exprimem posições pessoais. Mas o que tem prevalecido é o pragmatismo e, bem ou mal, a China ainda é o nosso maior parceiro comercial.

Recentemente, os chineses andaram negociando com governadores e com o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia. É uma forma de reduzir o papel do Itamaraty, do Ministério das Relações Exteriores?

A China vai sempre negociar com interlocutores eficazes. O ex-presidente Michel Temer negociou com eles com a anuência do governo federal, mas é fato que o papel do Ministério de Relações Exteriores se tornou secundário. Mas esta tem sido uma tendência mundial. Se antes as negociações comerciais eram de exclusividade do Ministério de Relações Exteriores, hoje Estados e empresas privadas têm seus próprios canais de conexão com o mundo.


Roberto Abdenur: ‘Houve uma destruição da política externa brasileira’

Comércio com os EUA também foi afetado, apesar das concessões feitas por Bolsonaro, em uma postura de 'subserviência', avalia ex-diplomata

Douglas Gavras , O Estado de S. Paulo

O saldo dos dois primeiros anos de governo Bolsonaro nas relações exteriores é destrutivo, avalia o ex-embaixador na China Roberto Abdenur. Na entrevista a seguir, o ex-diplomata, que também já representou o Brasil em Washington, ressalta que a postura de “subserviência” do governo brasileiro em relação ao ex-presidente americano Donald Trump foi ruim para o País sob diferentes aspectos. 

É possível classificar a relação atual do Brasil com a China como uma dependência comercial?

A China despontou como parceiro comercial brasileiro, graças à imensa demanda por commodities, mas não creio que o Brasil seja dependente deles, no sentido de que eles não têm poder para ditar rumos ao governo brasileiro, assim como não éramos dependentes dos Estados Unidos, quando o peso deles era maior na balança brasileira. 

O que temos é uma parceria? 

Temos uma parceria estratégica, que ajudei a lançar quando era embaixador em Pequim, até o início da década de 1990. De lá para cá, isso floresceu, graças ao extraordinário crescimento da China. Na época, já via o avanço chinês com otimismo, mas não imaginei que eles fossem sustentar esse crescimento por quase 30 anos, e que o país se transformaria em uma potência econômica, comercial, militar e tecnológica. 

Como definir a política externa brasileira no atual governo?

O que houve nos dois anos de Bolsonaro é que o Brasil não teve, a rigor, uma política externa. Houve uma destruição da diplomacia. As coisas de que falam o chanceler, Ernesto Araújo, e os assessores da ala ideológica são devaneios, uma nuvem de teorias da conspiração. Chegamos a considerar as próprias Nações Unidas algo indesejável. Nos tornamos o único país do mundo que ataca o multilateralismo.

O saldo da relação muito próxima entre Bolsonaro e Trump é negativo para o Brasil, portanto?

No ano passado, houve um forte encolhimento do comércio com os EUA, muito por conta da pandemia, mas também por protecionismo. O ex-presidente Donald Trump impôs tarifas abusivas sobre aço, alumínio e etanol brasileiros. O comércio foi afetado, apesar de todas as concessões feitas por Bolsonaro, em uma postura inacreditável de subserviência.

A afinidade entre os dois governos feriu o interesse nacional?

Na primeira metade de seu mandato, Bolsonaro se pendurou em Trump. Também já fui embaixador em Washington e as relações com os EUA eram conduzidas de outra forma. Havia diferença de tom, mas também uma linha de continuidade que atravessou governos tão diferentes entre si, como o de Sarney, Collor, FHC e Lula.

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Rolf Kuntz: Com atraso e sem rumo, vai sair o bloco do governo

Sem Orçamento e sem plano, o governo vai afinal entrar em 2021

Sem carnaval, sem dinheiro, sem rumo claro e sem Orçamento, o governo segue, no entanto, o costume imputado ao povo brasileiro: começar o ano só depois do fim da batucada. Bem depois, no caso do governo, como se a pandemia solta, a vacinação apenas iniciada e a economia sem fôlego admitissem lentidão, indecisão e administração segundo o modelo pazuellino. O presidente Jair Bolsonaro anunciou mais quatro parcelas de auxílio emergencial, provavelmente a partir de março. A recém-nomeada presidente da Comissão Mista de Orçamento, deputada Flávia Arruda (PL-DF), prometeu aprovação da lei orçamentária até o fim do próximo mês. Com as duas providências, o Poder Executivo poderá iniciar, enfim, algo parecido com uma gestão normal, com uns três ou quatro meses de atraso.

Sem a ajuda emergencial, milhões de famílias continuam sofrendo os horrores econômicos produzidos pela pandemia. O auxílio acabou no fim do ano, porque foi programado como se o drama devesse acabar em 31 de dezembro. O projeto de lei orçamentária, enviado ao Congresso no fim de agosto, foi elaborado como se 1.º de janeiro fosse o começo de uma nova história.

Levou-se em conta, no projeto, o legado fiscal das ações especiais de 2020: um enorme desajuste nas contas federais, uma dívida pública bem maior do que se podia prever, uma gestão financeira muito complicada e nada além disso. Mas o mundo real seguia um roteiro diferente, com desafios bem mais amplos. O governo ignorou essa possibilidade, preferindo festejar uma suposta recuperação em V e apostando numa economia mais forte e com mais emprego em 2021.

Enquanto a pandemia matava, os pobres afundavam, o presidente se envolvia em polêmicas sobre a vacina e o ministro da Saúde fazia tudo errado, o governo derrapava na confusão e perdia tempo. O ministro da Economia, Paulo Guedes, demorou a admitir, pelo menos em público, a hipótese de novos pagamentos de auxílio. Pressionado pelos novos presidentes da Câmara e do Senado, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco, acabou, aos poucos, discutindo o assunto mais abertamente.

Resistiu, no entanto, a entrar no jogo, como se a nova ajuda aos mais necessitados só interessasse, politicamente, aos interlocutores. Cobrou soluções, tomando como exemplo as condições especiais aprovadas no ano passado, mas sem a iniciativa de uma proposta. Numa ação paralela, ao menos em aparência, o presidente Bolsonaro logo se mostrou favorável à retomada do auxílio, mas sempre ressaltando as limitações do Tesouro.

No entendimento enfim anunciado na quinta-feira, o ministro da Economia apareceu em segundo plano, porque o presidente da República e os presidentes da Câmara e do Senado se haviam destacado como defensores da nova ajuda.

O interesse do presidente Bolsonaro talvez seja, como em outros momentos, basicamente eleitoral. Mas o socorro aos necessitados pode ser também relevante para a economia. A recuperação iniciada em maio obviamente se enfraqueceu no segundo semestre.

Em dezembro, a produção industrial foi 0,9% maior que em novembro, mas o crescimento perdeu vigor nos oito meses de retomada. No balanço final, o desempenho da indústria em 2020 foi 4,5% inferior ao de 2019. O varejo encerrou o ano com vendas 6,1% menores que as de novembro. O volume vendido em 12 meses foi 1,2% maior que o do ano anterior, mas os números do bimestre final foram muito ruins. Quanto aos serviços, começaram a melhorar só em junho, com pouco impulso, e recuaram 7,8% em 12 meses.

Os últimos dados do desemprego mostraram 14 milhões de pessoas desocupadas no trimestre setembro-novembro. Nada sugere condições muito melhores nos meses seguintes, até porque o setor de serviços, importante fonte de empregos, entrou muito enfraquecido em 2021.

Mas o governo pareceu desconhecer todos esses dados, como se a continuação da retomada estivesse magicamente garantida. Nada relevante foi feito na política econômica desde o início do ano. Nem os saques da poupança em janeiro, um recorde histórico, pareceram inquietar a equipe econômica. Ninguém parece haver considerado a hipótese temível: quantos terão sacado dinheiro para simplesmente sobreviver?

Sem Orçamento, o governo depende agora de um decreto, assinado na quinta-feira, para realizar gastos inadiáveis. Não há notícia de uma política de sustentação da atividade. Os únicos incentivos são os mantidos pelo Banco Central (BC), com juros baixos e estímulos ao crédito.

Com a aprovação do Orçamento e a liberação do auxílio emergencial, importante para o consumo, o governo poderá aproximar-se de algo parecido com uma gestão normal. Para isso será preciso combinar ajuste fiscal e ativação econômica, tarefa tão complicada quanto indispensável.

Mas até a noção de normalidade parece estranha. Afinal, o presidente e sua equipe só tomaram medidas típicas de governo quando foram forçados, pela pandemia, a iniciar ações parecidas com as implantadas em mais de uma centena de outros países. Mas a pandemia continua e as ações típicas de governo sumiram quase inteiramente.


Eliane Cantanhêde: PSDB ataca Doria, DEM tira o tapete de Huck, Lava Jato engole Moro. E Luiza Trajano?

Quem pode preencher esse vácuo é uma mulher, empresária, colecionadora de êxitos, com o pé no chão e defensora de boas causas

Se parece pato, anda como pato e grasna como pato, pato é. Se o novo ministro da Cidadania, João Roma, fez toda a sua carreira no DEM, colado em ACM Neto e era seu chefe de gabinete, ACM Neto ele é. Jura que foi parar no colo do presidente Jair Bolsonaro pelo Republicanos e por Marcos Pereira, ninguém acredita. Depois de Sérgio Moro, em 2019, o maior troféu de Bolsonaro é ACM Neto, que perde o status de uma das grandes promessas nacionais e arrasta junto o DEM.

Além de, novamente, garantir mais armas e mais balas para civis, Bolsonaro está soltando fogos. O Centrão transformou o Congresso em puxadinho do Planalto e o DEM cala Rodrigo Maia, voz decisiva da resistência ao autoritarismo e ao atraso, imobiliza Luciano Huck, obrigado a procurar outra sigla, e desarticula uma saída da catástrofe pelo centro – que está descambando para a extrema direita.

Num movimento combinado, o PSDB segue o desastre do DEM, como um piloto que, em meio a forte tempestade, entra em estado de desorientação espacial. Trancado na cabine (no caso, na bolha), não enxerga nada à frente, não sabe mais se está subindo ou descendo e acelera até se esborrachar no solo logo ali. É mesmo estonteante o DEM e o PSDB elegerem João Doria e Maia como inimigos prioritários.

É hora de atacar Doria? Goste-se ou não dele, e muita gente não gosta, ele é governador do principal Estado do País, ocupa a mais importante vitrine nacional dos tucanos e merece aplausos pela visão, diligência e decisão ao providenciar as vacinas. Com legitimidade, fazia uma dupla fundamental com Rodrigo Maia para dizer “não” a investidas golpistas e medidas retrógradas.

O que seria do Brasil sem as “vacinas chinesas do Doria”? Em fevereiro, teríamos dois milhões de doses para 210 milhões de habitantes, com 9,8 milhões de contaminados, 238 mil mortos e novas variantes mais ameaçadoras, enquanto o presidente insiste no “e daí?”. E, sem Maia na Câmara e Doria no PSDB de São Paulo, quem dará voz e cara à oposição? Bolsonaro torce para Lula e Fernando Haddad.

O tucano Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul, tem lá suas qualidades, mas não pode ser séria a articulação do seu nome para a Presidência. Muito jovem, está no primeiro mandato relevante, num Estado que se especializou em torrar seus quadros políticos e nunca reelegeu um único governador. Logo, a caravana tucana pode tê-lo convencido, mas a ninguém mais.

Chutar Doria para pôr Leite no lugar tem cara de blefe, para dissimular uma outra jogada: a aproximação com Bolsonaro. Consolida, assim, a análise de que o melhor que pode acontecer ao PSDB é pôr ponto final na sua bela história, antes de um triste fim - que pode estar perto. Depois do ministro de ACM Neto, Bolsonaro busca nomes vistosos do PSDB e do MDB para o governo.

Com PSDB e DEM se autodestroçando, Bolsonaro corre sozinho, cada vez mais lépido, fagueiro, sem noção e sem escrúpulos, sustentado por Forças Armadas, polícias, milícias, os reinos de Deus, Centrão, Congresso e “oposição”. Não pensem o PT e a esquerda que isso é bom para Lula, Haddad ou quem quer que seja. Na implosão do centro, a debandada é para Bolsonaro.

Doria, Huck, Moro e Luiz Henrique Mandetta são torpedeados antes de alçar voo, mas, como não há vácuo em política, quem pode preencher esse vácuo é uma mulher, empresária, colecionadora de êxitos, com o pé no chão e defensora de boas causas, como cotas, vacinas, menos ideologia e mais resultados. Sim, Luiza Trajano, sem partido e sem traquejo político, mas instada a botar o bloco na rua e, num carnaval tão atípico, animar e atrair um grande aliado de Bolsonaro: o eleitor desiludido, ou desesperado, que só vê o buraco aumentando.


Vinicius Torres Freire: A nova lei da gasolina de Bolsonaro e as velhas mentiras sobre combustíveis

Projeto do governo é até razoável, mas não resolve o problema dos preços

O projeto de lei do governo Jair Bolsonaro que propõe mudar o ICMS sobre combustíveis é razoável. Ou melhor, seria razoável em um mundo em que:

1) Bolsonaro não fosse o demagogo Bolsonaro: a lei não mexe necessariamente com o nível do preço dos combustíveis;

2) os estados se dispusessem a perder receita do ICMS sobre combustíveis, o que é politicamente inviável se não houver compensações que, em um futuro remoto, talvez sejam decididas em uma reforma tributária.

O projeto prevê que o ICMS sobre cada tipo de combustível seja idêntico em todos os estados e que o tributo tenha um valor fixo por quantidade (litro ou quilo), em vez de uma porcentagem. Parece inviável.

A alíquota de ICMS varia de 12% a 34% entre os estados. Ninguém vai querer perder receita se não houver alguma compensação. O ICMS sobre combustíveis equivale a quase 15% da arrecadação dos estados, na média.

O ICMS é cobrado como um percentual do preço de referência dos combustíveis. Quanto maior o preço, maior a receita de imposto, pois. Se o imposto fosse fixo por litro, digamos, o preço final de venda subiria menos em caso de aumento do combustível. Em tese, cairia menos também. Tudo depende da inclinação dos estados de mexer periodicamente nesse valor fixo de imposto por quantidade.

É verdade que o projeto de lei pode limitar a sonegação e também acabar com uma outra mutreta. O ICMS é cobrado sobre um valor estadual de referência do combustível, em geral uma média de preços em algum período. A fim de arrecadar mais, alguns estados mexem pouco nessa média (quando esse valor é alto).

Mas não está aí o problema central. Gasolina ou diesel ficam mais caros porque o dólar aqui está caro e porque o preço do petróleo está aumentando. Deve aumentar mais caso a economia mundial saia da lama da epidemia. O dólar está aparentemente caro demais em parte por causa do estado de avacalhação da economia e da política.

O preço nas refinarias é “livre”: nesse setor ainda dominado pela Petrobras, desde 2017 segue o mercado mundial (ou quase isso, pois a petroleira tem atrasado reajustes). Caso o governo tabelasse o preço dos combustíveis, o prejuízo acabaria na conta da Petrobras, como no governo Dilma Rousseff (tudo mais constante, a empresa tem receita menor, dívida relativamente maior, paga juros mais altos e investe menos). Com a venda das refinarias da Petrobras, vai ser difícil controlar preços.

O preço dos combustíveis tem impacto social sério, como no caso do gás de cozinha. É possível subsidiá-lo com verba do Orçamento (mas seria preciso também cortar outra despesa ou aumentar impostos). Subsidiar gasolina e diesel incentiva a poluição e arruinou a indústria do etanol.

É também possível reduzir a variação excessiva de preços cobrando um imposto regulador (como a Cide). Esse imposto aumenta quando os combustíveis estão em baixa e diminui quando estão em alta. Assim, é possível manter o custo do combustível dentro de uma faixa mais estreita de variação (desde que baixas e altas no mercado mundial não sejam muito grandes). O governo não cuidou de implementar tal política.

Essa conversa toda é bem velha. Já foi objeto de muita discussão sob Michel Temer, em 2018. Mas não houve solução alguma para o problema a não ser subsidiar o diesel dos caminhoneiros a fim de evitar um colapso de abastecimento ou coisa pior durante o caminhonaço, tumulto aliás apoiado por Bolsonaro, que volta agora a fazer demagogia.

A gente está cada vez mais rodada, mas não sai do lugar


Afonso Benites: Direita se engalfinha e desfaz alianças enquanto Haddad, Huck e Moro seguem entre apostas para 2022

Eleição de presidente da Câmara expõe guerra interna do DEM e PSDB e embaralha xadrez para próxima eleição. Bolsonaro premia Centrão com ministério da Cidadania enquanto PT testa primeiro nome da esquerda à sucessão presidencial

Sem lideranças políticas naturais, a direita brasileira está esfacelada em compasso de espera pelas eleições de 2022. E a esquerda também, depois que o PT lançou a candidatura de Fernando Haddad como um balão de ensaio para testar o eleitorado. O presidente Jair Bolsonaro foi incapaz de criar sua própria legenda, a Aliança pelo Brasil, mas alcançou a proeza de embaralhar a miríade das outras composições partidárias que pretendem disputar sua sucessão. Com um cenário de candidaturas diluído, a máquina governamental nas mãos e um apoio na casa dos 30% da população já colocariam o presidente em um segundo turno.

Nas últimas semanas, Bolsonaro cooptou com cargos e recursos da União o Centrão, o fisiológico grupo de centro direita que atua no Congresso Nacional, implodiu o direitista Democratas e acabou estimulando um racha na sigla de centro-direita PSDB. Todo o processo tem como pivô a disputa pela Presidência da Câmara dos Deputados no início do mês, que terminou com a vitória do candidato bolsonarista e expoente do Centrão Arthur Lira (PP-AL).

Nesta sexta-feira, Bolsonaro concretizou parte do acordo firmado com o Centrão em troca de seu apoio por Lira. Ele nomeou o deputado federal João Roma, do Republicanos, para o Ministério da Cidadania em substituição a Onyx Lorenzoni (DEM-RS), que foi deslocado para a Secretaria-Geral da Presidência da República. Roma é amigo e ex-assessor de Antônio Carlos Magalhães Neto, o presidente do Democratas que se aproximou do Planalto rompendo com o ex-presidente da Câmara Rodrigo Maia (DEM-RJ). Com o movimento, o mandatário começa a pagar a sua fatura em troca de uma base de sustentação legislativa. Ainda restam entre dois e três ministérios a serem entregues ao Centrão, o que deve ocorrer nas próximas semanas.

Os movimentos no xadrez político de Bolsonaro ocorrem a um ano e 8 meses da eleição. Mas, de pronto, já começaram a minar alianças que estavam sendo planejadas pelo campo autodenominado “direita democrática”. A principal delas foi a articulação feita por DEM, MDB, Cidadania e PSDB. As quatro legendas rascunhavam um acordo para seguirem juntas em 2022. Seu candidato seria João Doria (PSDB), o governador paulista que já foi aliado de Bolsonaro, ou Luciano Huck, o apresentador da maior emissora de TV do Brasil, a Globo, que paquerava uma filiação ao DEM ou ao Cidadania.

Implosão do DEM e racha no PSDB

A implosão do DEM afastou Huck dos democratas, mas há ainda a esperança do Cidadania de tê-lo em suas hostes. Além disso, dos 27 deputados do DEM, 6 disseram que apoiarão a reeleição de Bolsonaro, 14 não descartaram apoiá-lo e apenas dois disseram que não se aliarão ao presidente. Os dados foram levantados pelo jornal O Estado de S. Paulo. “O que o DEM tem dito é que não fechará nenhuma porta, nem mesmo a Bolsonaro. Se o presidente se moderar nos próximos dois anos, o DEM consegue se justificar e seguir com ele, caso contrário, pode tomar outro rumo”, avalia e cientista política Lara Mesquita, que é pesquisadora do Centro de Política e Economia do Setor Público da Fundação Getulio Vargas.

No PSDB, Doria se sentiu forçado a marcar território. Tentou controlar diretamente a Executiva Nacional do partido, atualmente comandada pelo seu então aliado o ex-deputado Bruno Araújo. Mas os figurões da sigla reagiram e estenderam o mandato de Araújo para 2022. De pronto, Doria se enfraqueceu no processo, sinalizou que pode deixar a legenda e viu outro tucano despontar como potencial presidenciável: Eduardo Leite, o governador do Rio Grande do Sul que quer ser uma nova oposição a Bolsonaro. “O Doria é uma liderança de luz própria. Os velhos elefantes do partido não o veem com bons olhos. Ele é uma das pessoas mais pragmáticas da política brasileira. Tanto que se aliou a Bolsonaro para se eleger governador”, diz a cientista política Mariana Borges, pesquisadora em Oxford.

Outra legenda de centro-direita que está em busca de um nome que agregue outros apoios é o Podemos. Os dirigentes esperam que o ex-juiz da operação Lava Jato e ex-ministro da Justiça, Sergio Moro, anuncie sua filiação até o início do próximo ano. As conversas estavam adiantadas. Mas, nas últimas semanas, o que menos Moro tem feito é se preocupar com a política partidária, já que corre o risco de ter sua biografia ainda mais manchada, quando o Supremo Tribunal Federal está em vias de invalidar as decisões que ele tomou contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

Para as duas pesquisadoras consultadas pela reportagem, ainda é cedo para os partidos definirem qualquer cenário. “Tudo ainda depende da economia e de como o Governo vai reagir à pandemia [de coronavírus]. Também tem de ser levado em conta a avaliação da população sobre os processos judiciais contra os filhos do presidente”, diz Lara Mesquita. A narrativa que Bolsonaro empregou na eleição de 2018, de ser um político antissistema também será posta a prova. “Ele está claramente adaptando o seu discurso extremista. Vamos ver até onde isso vai durar”, afirma Mariana Borges.

Da mesma maneira que a direita anti-bolsonaro, a esquerda também enfrenta severas dificuldades de articulação interna. O PT já colocou em prova sua hegemonia nesse campo na última semana, quando o ex-presidente Lula lançou a candidatura do ex-prefeito de São Paulo Haddad e disse para ele percorrer o Brasil em uma espécie de pré-campanha. O PDT se aproxima de uma aliança com o PSB para relançar o ex-governador do Ceará Ciro Gomes. E o PSOL sinaliza que deve seguir com o professor universitário Guilherme Boulos. Ou seja, seria a repetição dos três candidatos que foram derrotados por Bolsonaro na disputa passada. A diferença agora é que Boulos ganhou projeção nacional ao disputar o segundo turno com Bruno Covas pela prefeitura de São Paulo, a maior cidade do Brasil. “Os partidos estão se movimentando porque sabem que se não começarem a se movimentar, eles não terão um candidato do dia para a noite. O Bolsonaro, mesmo, ficou quatro anos fazendo campanha”, diz a pesquisadora Lara Mesquita.

Para Mariana Borges, uma das falhas da esquerda brasileira, especialmente do PT, é manter-se focada no Estado de São Paulo na hora de falar em candidatos, ignorando outras regiões brasileiras. Ela cita que, ao escolher Haddad, Lula deixa de lado lideranças baianas do partido, como o senador Jaques Wagner ou o governador Rui Costa. “Talvez apresentar um nome que não seja tão ligado ao Lula seria a alternativa para atrair os outros partidos de esquerda”, diz.

Outra conta que tem sido feita pelas legendas é a da cláusula de barreira. A partir de 2023, só terá acesso aos fundos públicos eleitoral e partidário quem atingir 2% dos votos válidos para a Câmara em nove Estados ou eleger ao menos 11 deputados. Atualmente, a doação eleitoral privada é proibida no Brasil. E é quase consenso entre os partidos que, sem uma candidatura presidencial como uma vitrine, dificilmente se elegem tantos deputados federais. Como o Brasil tem 33 partidos registrados, sendo que 24 têm representação na Câmara, a tendência é que haja uma disseminação de candidaturas presidenciais.


Ricardo Noblat: Presidente do Senado será testado depois do carnaval da pandemia

CPI é sempre um suplício para qualquer governo

Rodrigo Pacheco, mineiro sem sotaque nascido em Rondônia, há 12 dias presidente do Senado, enfrentará na próxima quinta-feira dois compromissos incômodos. O primeiro: recepcionar seu colega de DEM, o senador Chico Rodrigues, que em outubro passado licenciou-se do mandato por 121 dias. O segundo: decidir se instala ou não a CPI da Pandemia requerida pela oposição.

Será mais fácil para Pacheco riscar de sua agenda o primeiro compromisso do que o segundo. Chico Rodrigues licenciou-se depois de preso pela Polícia Federal escondendo pouco mais de 33 mil reais dentro da cueca – parte deles entre as nádegas, vejam só. A licença serviu para que ele driblasse o risco de ser processado por quebra de decoro parlamentar.

Não era lá um grande risco – os colegas estavam dispostos a protegê-lo e o Conselho de Ética do Senado está desativado há mais de um ano. Mas era aconselhável que ele saísse de cena para esfriar o escândalo. Tudo passa, passará, a memória coletiva é fraca, e são tantos os casos de políticos envolvidos com corrupção que um a mais ou a menos não fará diferença.

Se tivesse dependido unicamente de Rodrigues, não haveria licença. Jurou ser inocente e achou que isso bastava. A haver licença, de início concordou que fosse por 90 dias. Ao descobrir, porém, que o afastamento por até 120 dias dispensa a posse do suplente, licenciou-se por 121 dias – e assim o suplente ocupou seu lugar com direito a salário e tudo mais. O suplente era seu filho.

O segundo compromisso de Pacheco é impostergável. O pedido da CPI da Pandemia foi assinado por 32 senadores – cinco a mais do que o mínimo necessário. Pacheco deu tempo ao governo para convencer quem quisesse a retirar sua assinatura. Aconselhou ao presidente Jair Bolsonaro que mandasse o ministro Eduardo Pazuello, da Saúde, explicar-se em sessão do Senado.

Foi um vexame – para o governo e para o ministro. A sessão durou cinco horas. Pazuello entrou no Senado com um tamanho de médio para baixo e conseguiu sair menor. Em certo momento, chegou a falar grosso como um general a dar ordens a cadetes indisciplinados. Desculpou-se em seguida. Acabou enquadrado por alguns senadores que reduziram a pó suas explicações furadas.

CPI é um caso sério. Políticos experientes costumam repetir que se sabe como começa uma CPI, mas nunca como termina. É por isso que governos de todas as cores pagam caro para abortar CPIs. Pagam pela retirada de assinaturas, pagam para indicar os integrantes da comissão, pagam para que não lhes criem embaraços, pagam por um relatório final que dê em nada.

E mesmo assim, sentem-se inseguros por meses a fio. É um verdadeiro suplício.


Bernardo Mello Franco: CPI do Coronavírus, o primeiro teste de Pacheco no Senado

Depois do Carnaval, Rodrigo Pacheco passará pelo primeiro teste na presidência do Senado. Terá que decidir se abre uma CPI para investigar a omissão do governo federal no combate à pandemia. Há dez dias ele cozinha o requerimento apresentado pelo oposicionista Randolfe Rodrigues. Na próxima quinta-feira, precisará anunciar um veredito.

Pacheco foi ungido numa articulação exótica, que uniu Planalto, centrão e partidos de esquerda. Como as velhas raposas mineiras, negociou com todos e não se comprometeu com ninguém. Agora seu discurso de independência começará a ser confrontado com a prática.

Ao adiar a decisão sobre a CPI, o senador deu tempo ao governo para retirar assinaturas de apoio. Os dias se passaram e o requerimento continua com 32 autógrafos, cinco a mais que o necessário. Na quinta passada, o general Pazuello tentou convencer o Senado a deixar a ideia de lado. Seus argumentos foram considerados toscos até pela bancada bolsonarista.

Se instalada, a CPI do Coronavírus terá farto material de trabalho. O ponto de partida será o colapso dos hospitais em Manaus. O Ministério da Saúde foi avisado de que faltaria oxigênio, mas cruzou os braços e deixou que pacientes morressem sufocados.

Dias antes da tragédia, aliados do capitão festejaram a suspensão de um lockdown que havia sido decretado pelo governo do Amazonas. O deputado Eduardo Bolsonaro foi um dos mais empolgados com o recuo, apontado como uma das causas da tragédia.

Pazuello já prestou depoimento à Polícia Federal sobre a omissão do ministério na crise. No entanto, há forte desconfiança no Congresso sobre a autonomia da PF para investigar o caso.

O Senado também poderá apurar a negligência na negociação de vacinas e o desperdício de dinheiro com a produção de cloroquina, apresentada por Bolsonaro como remédio milagroso. No mês passado, Pazuello lançou um aplicativo oficial que indicava a substância a pacientes desavisados. Agora ele tenta negar sua participação na farsa do “tratamento precoce”, fartamente registrada em áudio e vídeo.

No ritmo atual, o Brasil terminará o mês com mais de 250 mil vítimas do coronavírus. A lista inclui dois senadores: Arolde de Oliveira e José Maranhão. Eles morreram em hospitais de ponta, longe do inferno da rede pública de Manaus.

‘Tem que manter isso, viu?’

Citado na coluna de sexta, o ex-presidente Michel Temer pede para registrar que o TRF-1 formou maioria, em agosto de 2020, para absolvê-lo da denúncia por obstrução de Justiça no caso Joesley Batista.

A Procuradoria-Geral da República acusou o emedebista de participar de uma trama para comprar o silêncio do ex-deputado Eduardo Cunha. Em 2019, Temer já havia sido absolvido em primeira instância.

“Estou limpando a minha área. As ações que foram motivadas por aquele rapaz estão sendo todas derrubadas”,  o ex-presidente, evitando citar o nome do dono da JBS.


El País: Senado absolve Trump em seu segundo ‘impeachment’

O ex-presidente é liberado da acusação de incitamento à insurreição após o ataque ao Capitólio. Democratas, com 57 votos a favor da condenação e 43 contra, não alcançam a maioria de dois terços

Amanda Mars, El País

O Senado absolveu neste sábado Donald Trump da acusação de incitação à insurreição pelo ataque ao Capitólio que uma turba de seus seguidores realizou em 6 de janeiro para boicotar a confirmação da vitória eleitoral de Joe Biden. 57 dos 100 membros da Câmara Alta (os 50 democratas e sete republicanos) votaram no veredito de culpado, mas não chegaram os 67 (dois terços) necessários à condenação. 43 republicanos votaram contra. Nunca um julgamento por impeachment havia causado tanto respaldo entre os membros do partido do acusado. Esse processo deixa a figura de Trump condenado pela história e exibe a fratura que ele criou no Partido Republicano.

Alguns republicanos absolveram Trump apenas no sentido constitucional do impeachment, mas culpando o ex-presidente pelo ataque. O exemplo mais claro dessa dualidade foi Mitch McConnell, líder dos conservadores na Câmara Alta. Depois de votar “inocente”, ele tomou a palavra para denunciar a “escandalosa” falta de respeito da performance de Trump naquele dia fatídico e disse: “Não há dúvida de que o presidente é praticamente e moralmente responsável pelos acontecimentos daquele dia”.

Os Estados Unidos concluíram o impeachment mais incomum dos quatro experimentados até agora, no qual os senadores atuaram como jurados e também como testemunhas e, em grande parte, como vítimas. Essa mesma sala onde o caso foi julgado foi, por sua vez, o objeto do cerco daquele dia, palco do crime. O julgamento deixou o país ainda chocado com o assalto ocorrido há pouco mais de um mês e que deixou o mundo sem palavras e o orgulho americano ferido. Trump se tornou o primeiro presidente a passar por um procedimento como esse duas vezes e o primeiro a fazê-lo fora da Casa Branca.

O julgamento pelo segundo impeachment a Donald Trump chegou neste sábado a sua reta final com mudanças imprevistas de roteiro. A declaração pública de uma congressista republicana na noite de sexta-feira, prejudicial ao ex-presidente, mudou o esquema da acusação democrata, que pediu para que ela testemunhasse, o que iria atrasar o desenlace. Por fim, aceitaram incluir seu comunicado como prova e evitar o depoimento.

As partes passaram então a apresentar suas argumentações finais no Senado e o voto sobre o veredicto era esperado ao longo do dia. “Trump deve ser condenado pela segurança de nosso povo e de nossa democracia”, enfatizou o democrata Jamie Raskin, líder dos chamados gestores do processo de impedimento, o grupo de congressistas da Câmara de Representantes que atuou como promotores no julgamento do Senado. Os republicanos argumentam que o impeachment não faz sentido, além da responsabilidade de Trump no ataque, pois é um mecanismo concebido para presidentes e ele já não está na Casa Branca. A acusação frisa, entretanto, que é preciso levá-lo adiante para evitar que chegue a qualquer cargo no futuro, e alerta que deixar seu comportamento impune deixa um precedente perigoso para qualquer Governo.

O julgamento, que começou na terça-feira, abordou minuciosamente o ataque violento de 6 de janeiro e as palavras de estímulo com as quais Trump encorajou a horda no mesmo dia, mas o quarto impeachment na história dos Estados Unidos julga seu presidente por algo mais que seu papel nesse momento, o julga por ter torpedeado a transição pacífica do poder e por tentar destruir a vontade que os norte-americanos expressaram nas urnas nas eleições presidenciais de 3 de novembro. Durante meses, o republicano agitou o boato de fraude, desmentido pela Justiça, pressionou os legisladores para que não reconhecessem Biden e encorajou a mobilização civil. No dia em que o Congresso deveria certificar a vitória do democrata, após um discurso em que lhes disse para “lutar como o demônio”, a violência explodiu. Cinco pessoas morreram. “Trump nos traiu deliberadamente”, frisou o congressista David Cicilline, outro dos promotores.

Os democratas acentuaram seu comportamento enquanto ocorria o ataque para tentar demonstrar que Trump sabia o que suas falas haviam provocado e as mantinha. Ou seja, que não é válido o principal argumento da defesa, que as palavras do republicano não significaram um chamado literal à violência e a cometer crimes, e sim fazem parte de uma “retórica política habitual” protegida pela Primeira Emenda da Constituição, que consagra a liberdade de expressão. Este é o ângulo do julgamento que ferveu na noite de sexta-feira e que provocou a viagem de ida e volta sobre a citação das testemunhas.

Na sexta-feira, Jaime Herrera Beutler, que é uma das republicanas que votaram a favor do impeachment na Câmara de Representantes (fase inicial do procedimento), confirmou à imprensa por escrito que o líder republicano dessa Câmara, Kevin McCarthy, lhe contou uma conversa entre ele e Trump durante o ataque, em 6 de janeiro, em que o mandatário havia tomado o partido dos vândalos. Segundo a congressista, McCarthy lhe disse que ligou para Trump para pedir-lhe que encorajasse seus seguidores a deter a insurreição e obteve como resposta: “Bom, parece que estão mais irritados com a eleição do que você”. O ex-presidente estava na época furioso com os colegas de partido que não o apoiavam nos boatos sobre uma fraude eleitoral e pretendiam levar adiante a certificação de Biden.

Em que momento Trump soube do ataque e como reagiu a ele são os elementos que também estiveram no centro da sessão do julgamento na tarde de sexta-feira, já que, para a acusação, constituem provas contundentes da possível conivência do à época presidente dos Estados Unidos com os atacantes do Congresso.

Com o assunto sobre a mesa, Raskin pediu neste sábado a oportunidade de chamar Herrera Beutler para depor. O Senado aprovou com uma maioria de 55 a 45, já que cinco senadores republicanos se uniram aos 50 democratas nessa questão. São os quatro críticos a Trump e que deveriam votar para condená-lo (Susan Collins, Mitt Romney, Lisa Murkowski e Ben Sasse) e um dos aliados do ex-presidente, Linsey Graham. Horas depois, entretanto, chegaram a um acordo para evitá-lo.

Sem número para uma condenação

O veredito de culpa se antevia difícil. Ele precisa do apoio de 67 dos 100 senadores, que exercem de júri, o que significa que 17 republicanos deveriam se unir aos democratas para condenar o ex-presidente. Duas votações preliminares, sobre aspectos prévios, indicaram que as contas não batiam. O líder dos republicanos no Senado, Mitch McConnell, comunicou aos seus colegas de partido na manhã de sábado que votaria a exoneração no que definiu como “muito parelha”. McConnell havia responsabilizado Trump pelo ataque, mas no voto final argumentou que o magnata já não é presidente e, se cometeu um crime, pode ser processado na Justiça comum. “A Constituição deixa perfeitamente claro que a conduta criminosa de um presidente pode ser perseguida quando abandonar o cargo”, disse em sua carta.


Tasso Jereissati: 'Partidos foram triturados no Congresso'

Tucano atribui o racha em sua legenda às eleições na Câmara e no Senado, marcadas, segundo ele, pela ‘captação individual de votos’

Julia Lindner, O Globo

BRASÍLIA - O senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) afirmou, em entrevista ao GLOBO, que seu partido, assim como os demais, foi “triturado” durante a eleição para as presidências da Câmara e do Senado e agora tem a oportunidade de se reconstruir.

Para ele, o melhor nome para disputar a eleição de 2022 será aquele que conseguir unir as legendas de centro, da esquerda à direita, a fim de evitar a polarização como a que ocorreu no segundo turno do último pleito, entre Jair Bolsonaro e petista Fernando Haddad.

Como o senhor avalia o cenário atual do PSDB? O partido está rachado?

O PSDB está num momento de transição, de reconstrução, procurando manter os seus princípios iniciais e fundamentais. Ao mesmo tempo, esse período agora é diferente, em que todos os partidos, todos, foram triturados ou tratorados pelo processo eleitoral de Senado e Câmara. Em uma olhada panorâmica, o DEM rachou, PSDB trincou, PSD teve problemas... Isso porque o processo que se instalou nas duas Casas do Congresso foi na base da captação de votos individual.

Sempre teve isso, mas os partidos também tinham um grande peso. Agora os partidos foram ignorados como se não existissem. Isso fez com que pessoas, de bolsonaristas a petistas, votassem nos mesmos candidatos. Essa questão de não haver uma coesão absurda não é privilégio do PSDB, todos os partidos estão vivendo problemas.

É possível encontrar uma saída?

É um bom momento para o PSDB se reconstruir, estávamos vivendo isso... Tínhamos uma candidatura natural (à Presidência da República) do governador de São Paulo (João Doria), que só pelo fato de ser governador de São Paulo já o torna presidenciável, e se abre uma nova perspectiva trazendo ao cenário mais um outro candidato de uma parcela do PSDB, o Eduardo Leite (RS), que traz uma perspectiva extremamente democrática para voltarmos às discussões dos nossos ideais, dos nossos princípios. E vai prevalecer aquele que se identificar mais com esses princípios. Tem que ser um princípio que junte mais os partidos de centro.

Considerando os nomes de Doria e Leite, qual deles tem o melhor perfil hoje para unificar o centro? Avalia que Doria tenderia mais para a direita do que para o centro?

Eu acho que antes de definirmos o nome, temos que definir o que queremos. Estamos vivendo um momento que, além dos partidos, vivemos uma crise de valores, uma crise sanitária, econômica e social. Então, eu acho que aquele que tiver capacidade de unir desde o centro mais à direita até o mais à esquerda, com o propósito de acabar a polarização em que (entre) a extremíssima esquerda e a extremíssima direita, o ódio é que está prevalecendo... Esse que tiver mais capacidade de fazer essa união será o candidato ideal.

Mas ainda não está na hora de definir (um nome), e sim o que queremos e conversar com outros partidos, inclusive com a possibilidade de aparecer outro nome com poder de agregação.

O senhor vê Luciano Huck com uma dessas alternativas?

Tem essa possibilidade. Não estou dizendo que seja ele, estou colocando. É um rapaz novo, não vejo problema no fato de não ser político, existem vantagens e desvantagens. Ele tem feito um esforço enorme de aprender, captar soluções e ideias que estão pairando pelo mundo. É um rapaz de centro.

A situação na Câmara e no Senado mostrou a bancada dividida e em parte apoiando o nome de Bolsonaro à presidência das Casas. Não é um sinal de que é difícil unir o partido e fazer oposição?

Essa definição de oposição em relação ao governo está tomada. É uma definição que está sendo reforçada com a ratificação do nome de Bruno Araújo (ao comando do PSDB). A diferença que houve durante as eleições não é um desafio só nosso, e sim de todos os partidos e democratas. Houve uma manipulação profunda que dizimou a unidade dos partidos.

O PSDB tem um alinhamento na área econômica com o governo. Como fazer essa diferenciação em relação a outras pautas?

Olhando em uma visão geral nós temos, sim, uma identidade muito grande, não total, na área econômica, mas nas outras questões temos uma distância enorme. Se for para falar de política externa, é o oposto da apresentada pelo ministro de Relações Exteriores, que é incompreensível. Se formos falar de tendência ao autoritarismo, somos um partido que nasceu da redemocratização. Enfrentamento da pandemia, coronavírus e Ministério da Saúde... É um desastre que chega a ser quase criminoso. As coisas que aconteceram e estão acontecendo beiram a irresponsabilidade total.

A nossa identidade é nessa questão da pauta econômica mais liberal, porém não é 100%. Nada nos impede quando as pautas econômicas chegam no Congresso de apoiarmos o governo. Fomos oposição ao (ex-presidente) Lula e à (ex-presidente) Dilma e nunca fizemos o quanto pior melhor. Se vier, por exemplo, uma proposta muito boa para a Saúde vamos aprovar.

Pensando em 2022, o senhor teme um cenário como o da última eleição, com Bolsonaro e o candidato do PT no segundo turno? Isso colocaria o PSDB numa situação difícil?

O Bolsonaro ganhou as eleições porque havia um forte sentimento antipetista na população brasileira. Eu costumo dizer que o Bolsonaro nasceu do PT. Quando o PT começou a dividir o Brasil entre nós e eles, dividiu o Brasil e acabou levando para a radicalização. Isso se transformou na extrema direita. Isso (cenário de 2018) só vai se repetir se nós, do centro, centro-direita, centro-esquerda, formos muito divididos novamente para a eleição. Porque você tem um nicho certo de eleitores na extrema esquerda e na extrema direita.

Se esse centro que é a maioria ficar todo subdividido, pode ser, como aconteceu, que a subdivisão leve a uma reedição de uma maneira piorada dessa polarização que só gerou ódio, dividiu a população. As pessoas não querem saber de argumentos. Tenho grande esperança de que possamos construir uma candidatura de centro mais sólida.

Como o senhor vê a sinalização, por exemplo, do ACM Neto não descartar um apoio a Bolsonaro lá na frente?

Eu acredito que o Neto disse isso mais como uma figura de linguagem, tipo “não estou descartando algum cenário”. Porque todas as vezes em que eu conversei com ele, além de negar de maneira muito veemente qualquer aproximação com Bolsonaro, não é da índole dele, da criação dele, qualquer aliança maior com um governo com esses defeitos.

O senhor falou do antipetismo. Avalia que a oposição do PSDB ao PT e especialmente a postura na eleição de 2014 de questionar o resultado contribuiu para esse ambiente?

Não foi nem a oposição do PSDB ao PT. Quando o PT fez o ‘nós e eles’ visou principalmente o PSDB, demonizou os nossos governos, neoliberalistas, os nossos candidatos, todo o primeiro governo do Lula tinha o negócio da herança maldita. Tudo era feito para demonizar o PSDB. Isso fez com que os eleitores do PSDB acabassem nas mãos da extrema direita, que criou o Bolsonaro.

Aécio Neves (MG) influênciou na eleição da Câmara no apoio ao candidato de Bolsonaro. A permanência dele atrapalha a imagem do PSDB?

Esse assunto está morto. O Aécio não está influindo, está calado lá. Ele não é mais uma liderança do partido, não tem relevância dentro das discussões. É um assunto morto e não tem por que abrir essa ferida. Temos outros assuntos tão importantes agora que isso seria sair do foco.

O que achou das explicações de Eduardo Pazuello ao Congresso? Ainda vê necessidade da CPI da Covid?

A grande maioria do PSDB assinou a CPI da Pandemia e estamos defendendo principalmente depois do depoimento do ministro da Saúde, que não respondeu as questões fundamentais. Alguém de governo tem que ser responsabilizado para que isso não volte a se repetir.

A situação em Manaus evidenciou mais a crítica que se faz ao governo na pandemia?

Claro. Aquilo foi um caos, um conjunto de crimes em relação à total falta de sensibilidade com o que estava acontecendo em Manaus, pessoas morrendo asfixiadas no meio da rua e o governo distribuindo cloroquina. E não só em Manaus. Cidades estão parando de vacinar por falta de vacina. É um conjunto de crimes, e alguém precisa ser responsável por isso. Não é possível que centenas de milhares venham a falecer e essa negligência fique impune. Até para que não volte a acontecer.