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El País: Câmara mantém prisão de bolsonarista Daniel Silveira, que ameaçou STF e defendeu AI-5
Deputados acolhem relatório que entendeu que o parlamentar do PSL cruzou a linha que diferencia a crítica e a liberdade de expressão do ataque às instituições democráticas
Afonso Benites, El País
A Câmara dos Deputados decidiu manter a prisão do deputado federal bolsonarista Daniel Silveira (PSL-RJ). Por 364 votos a 130, os parlamentares concordaram com a decisão unânime do Supremo Tribunal Federal que decretou sua detenção sob acusação de ter cometido os crimes de coação e ofensas à Corte e ao Estado Democrático de Direito. Houve ainda 3 abstenções. Silveira está preso desde a última terça-feira. O relator do processo no STF, ministro Alexandre Moraes, justificou a detenção sob o guarda-chuva da lei de segurança nacional e de que o crime cometido teria ocorrido em flagrante ―única condição para a prisão de um parlamentar―, pois foi feito em vídeo publicado em suas redes sociais, agora deletadas por decisão judicial.
Com a decisão, o Legislativo segue o script de não entrar em confronto com a cúpula do Judiciário em um momento em que os Poderes desfrutavam de uma trégua após passarem um ano de 2020 de extrema tensão, muito por conta das atitudes e ataques do presidente Jair Bolsonaro e de seu séquito. Nesse cenário, a Câmara sinalizou que não quer comprar brigas com os Poderes em nome da radicalização da base bolsonarista, ainda que o presidente esteja adotando uma conduta de cautela após os acordos que o aproximaram dos fisiológicos parlamentares do Centrão. A votação desta sexta-feira foi simbólica. Na ponta do lápis, houve mais votos a favor da prisão de Silveira do que apoios a Lira na eleição de 2 de fevereiro. Naquela ocasião, o parlamentar do Progressistas recebeu 302 votos.
Pesou contra Daniel Silveira seu histórico de extremista e de quem tem poucas relações políticas com o atual establishment. Os parlamentares ignoraram os apelos da defesa do colega bolsonarista que alegava irregularidades na prisão por entender que não havia flagrante no suposto crime e que as falas em que Silveira ameaçava os magistrados deveriam ser analisadas pelo Conselho de Ética da Casa, sem que resultasse em sua prisão. A maioria dos que seguiram em suas fileiras são bolsonaristas do PSL, filiados ao NOVO, membros da bancada da bala e representantes do PTB – partido que ainda busca seduzir Bolsonaro a se filiar na legenda.
Processos no Conselho de Ética
Mesmo preso, Silveira ainda enfrentará dois processos no Conselho de Ética da Câmara que podem resultar na cassação de seu mandato parlamentar. Uma representação nesse colegiado, no entanto, não significa quer necessariamente haverá punições. Outros parlamentares de seu grupo político, como Eduardo Bolsonaro ou o próprio presidente Jair Bolsonaro, quando era deputado, já responderam a processos fazendo discursos semelhantes exaltando o AI-5 ou torturadores da ditadura militar. Nenhum deles foi punido.
No último dia 16, Silveira publicou um vídeo no qual chamou o ministro Edson Fachin, do STF, de filho da puta e disse que imaginava ele e outros magistrados da Corte levando uma surra nas ruas. Também falou a favor do Ato Institucional número 5, principal instrumento de repressão da ditadura militar brasileira (1964-1985).
“O que acontece, Fachin, é que todo mundo tá cansado dessa tua cara de filha da puta, que tu tem, essa cara de vagabundo”, afirmou o deputado Silveira. Na sequência, disse: “Quantas vezes eu imaginei você [Fachin] e todos os integrantes dessa corte aí. Quantas vezes eu imaginei você na rua levando uma surra. O que você vai falar, que estou fomentando a violência? Não, só imaginei. Ainda que eu premeditasse, ainda assim não seria crime, você sabe que não seria crime. Você é um jurista pífio, mas sabe que esse mínimo é previsível. Então, qualquer cidadão que conjecturar uma surra bem dada com gato morto até ele miar, de preferência após cada refeição, não é crime”.
Em seu relatório para a votação desta sexta na Câmara, a deputada Magda Mofatto (PL-GO) entendeu que o parlamentar atacou as instituições democráticas e que viu clara intenção de seu colega de intimidar os ministros do STF. “É preciso traçar uma linha e deixar clara a diferença entre a crítica e o verdadeiro ataque às instituições democráticas. Temos entre nós um deputado que vive a atacar a democracia e as instituições e transformou o exercício de seu mandato em uma plataforma para a propagação do discurso do ódio, de ataques a minorias, defesa de golpes de Estado e de incitação à violência contra as autoridades públicas.”
No documento que defendeu a manutenção da prisão, Mofatto ainda disse que fala de Silveira não foi uma suposição qualquer. “O parlamentar não fazia meras conjecturas, mas faz entender que existia um risco concreto aos integrantes do STF”.
Em sua defesa, Daniel Silveira disse que se arrependeu de suas palavras, pediu desculpas ao povo brasileiro que tenha se sentido ofendido e citou que sua detenção era ilegal, pois infringia a imunidade de palavra que todo o parlamentar tem. Diz que pode ter agido por meio da pressão popular. “Às vezes vem aquele diabinho que vem no ouvido e diz: faz isso, e você vai lá e faz.” Ele reclamou que foi perseguido pela imprensa e de ter suas redes sociais suspensas. Seus perfis no Facebook e no Instagram foram apagados por ordem judicial de Alexandre de Moraes. “Todas as minhas redes foram deletadas, sumariamente. E não há nada mais grave que isso”, afirmou.
Apesar de ter elogiado e defendido o Ato Institucional número 5, instrumento de repressão da ditadura militar, Daniel Silveira negou que o tenha feito. “Nunca defendi o Ato Institucional número 5. Tampouco admiro ou quero um regime ditatorial. Acho isso tudo jurássico. A arbitrariedade do Estado é desnecessária”.
Logo na abertura da sessão, o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), afirmou que o caso Silveira servirá como um ponto de inflexão na Câmara e anunciou que criará uma comissão pluripartidária para regular o artigo constitucional que trata da imunidade parlamentar. O artigo 53 aborda a inviolabilidade de congressistas, civil e penalmente, “por quaisquer de suas opiniões, palavras e votos”. De acordo com esse dispositivo, os legisladores federais só podem ser presos em flagrante se crime for inafiançável. “A inviolabilidade do mandato foi inscrita de forma cabal no mesmo texto magno, no mesmo, pelos mesmos constituintes que definiram o papel do Poder Judiciário”, disse. “Respeitar a Constituição é respeitá-la por inteiro. E vamos zelar por isso”, afirmou Lira.
Antes mesmo do fim da votação, quando 17 partidos orientaram pela manutenção da prisão (4 contra e 3 liberaram as bancadas), defensores de Silveira reclamaram da derrota iminente. “Não se trata de defesa corporativa. Trata-se de defesa da democracia, do Estado de direito, da defesa de que não nos submetamos como vassalos, humilhados, ao Supremo Tribunal Federal”, declarou Marcel Van Hattem (NOVO-RS). Para ele, a detenção do colega era uma espécie de AI-5 do Judiciário.
Luiz Werneck Vianna: O imprevisto, o Centrão e a política
Quando algo é natural, se for banido da sala, ele volta com força redobrada pela janela, clássico aforismo que serve como uma luva para retratar a nossa situação atual, quando se constata o retorno de instituições e de tradições que dois anos de governo Bolsonaro se empenharam em destruir como projeto político, tal como nos casos das suas arremetidas contra os poderes legislativos, e, principalmente, o judiciário. Esse tipo de experiência é uma velha conhecida, praticada com sucesso nos anos 1930 pela ditadura estadonovista, que fechou o Congresso e emasculou o Supremo Tribunal Federal, e foi reiterada pelo regime militar do AI-5, com as cassações de mandatos parlamentares e o expurgo de juízes da nossa mais alta corte. Nos dois casos, como sabido, frustraram-se os desígnios autocráticos e essas duas instituições renasceram com maior vigor.
Países, tal como os indivíduos, observava Tocqueville em “Democracia na América”, têm sua história marcada pela forma com que vieram ao mundo, na linguagem dos contemporâneos o DNA que trazem de suas origens marcam suas trajetórias futuras. Nosso estado-nação recebeu sua primeira configuração de uma assembleia parlamentar, e o parlamento foi a instituição-chave com que se edificou as estruturas do Estado, o modo de inscrição do país no cenário internacional e a preservação num imenso território da unidade nacional. Para esse último fim, foi determinante o papel desempenhado pelas instituições judiciais, em particular pelos magistrados, disseminados em rede capilar que atava regiões e rincões remotos aos desígnios do Estado.A mesma corporação cumprirá papel igualmente estratégico a partir do processo de modernização que se inicia com a revolução de 1930 que desloca o eixo agrário, até então dominante, para o urbano sob a condução do Estado e de suas políticas de indução da industrialização. Por meio da criação da CLT, da Justiça Trabalhista e do Ministério do Trabalho, o “ministério da Revolução”, se cria um mercado nacional de trabalho, regulado pelo direito e pelos novos agentes que emergem nesse processo, entre os quais, destacadamente, os juízes trabalhistas.
Aqui, não se chegará ao moderno e à industrialização pelas mãos do mercado, mas pelas do Estado, e será por essa via, que nosso longo processo de modernização, variando os regimes políticos, terá seu curso. Daí que, entre nós, o “natural” conheça essas marcas de origem, refratárias às intervenções que visem erradicá-las, propósitos declarados do governo que aí está. Não por acaso o governo de orientação neoliberal de Bolsonaro, cultor do trumpismo, tenha como projeto a submissão do Poder Judiciário e do Legislativo que impõem freios, ainda que débeis, à realização de suas agendas programáticas liberticidas.
Não é que a política seja o reino do imprevisto, mas é certo que ele atua nela, como agora testemunha a crise institucional que se avizinha, provocada por um obscuro parlamentar bolsonarista, marginal em sua grei, que numa ação solitária (tudo indica), investiu pesadamente contra o Poder Judiciário e a ordem constitucional, obrigando o STF a uma resposta à altura com a ordem da sua prisão. Com P. Bourdieu aprende-se que as instituições “pensam”, logo que criadas e institucionalizadas elas se investem de uma lógica própria de difícil erradicação, como o caso brasileiro é mais um exemplo na forte reação às atuais investidas contra elas.
Assim, um episódio provocado para agredi-las suscitou um movimento que as reforça e tende a devolver o andamento da política ao seu leito natural da democracia representativa, pois é na Câmara dos Deputados, sob uma maioria alinhada ao Centrão, agrupamento de políticos em geral pouco afeitos a convicções democráticas, que se encontrou a fórmula de superação de uma grave ameaça ao ordenamento constitucional. Tal feliz solução não se esgota topicamente com a recusa a afrontar o STF suspendendo a prisão do agente agressor, na medida em que deixa como lastro o isolamento das forças que tramam em favor da interrupção da vida democrática no país, a ser certificada pela sua punição exemplar no próprio âmbito do Parlamento.
O mundo gira e a Lusitana roda, e está aí o Centrão em papel propositivo, inédito em sua história de comportamentos meramente reativos, não por que o tenha procurado e sim em razão da trama profunda tecida ao longo da nossa vida institucional que o obrigou, em ato de legítima defesa, a superar suas limitações e agir em favor do interesse geral. Ele também não teria como escapar do naufrágio do nosso Titanic.
Nesses dois anos de governo Bolsonaro a democracia e suas instituições têm experimentado sobressaltos, já naturalizados em nosso cotidiano, e sob esse signo perturbador, em meio a uma cruel pandemia, contavam-se os dias que nos aproximam da decisiva eleição de 22. A pandemia continua, mas, ao menos, pudemos exorcizar as ameaças malévolas de retorno dos anos sombrios do AI-5. Ditadura nunca mais, bradou um ministro do STF no auge da recente crise, sem que fosse replicado.
Deve-se sempre se manter em guarda com as ilusões que podem nos toldar a vista, mas a essa altura é inevitável nosso encontro marcado com o destino na próxima sucessão presidencial. Temos tempo para nos preparar para ele, e devemos aprender com os recentes acontecimentos que, no mundo da política, o melhor ator é o que se guia pelas variações da fortuna e não aspira a lhe impor sua vontade. O imprevisto faz parte da sua lógica, aí está o Centrão não como mero coadjuvante, mas com fumaças de protagonismo, mais uma peça no tabuleiro a ser considerada pela esquerda democrática ao conceber seu xeque-mate à aventura golpista que visou atalhar nossa história.
*Luiz Werneck Vianna, sociólogo PUC-Rio
RPD || Reportagem Especial: Uma cicatriz no mercado de trabalho
O impacto da pandemia atinge empregos, expõe as deficiências nas escolas e aprofunda as desigualdades no Brasil. Fim do Auxílio Emergencial e demora das vacinas aumentam as incertezas no país
Por Eumano Silva
Janeiro de 2021 chegou de forma trágica para o Brasil. O número de vítimas da pandemia de covid-19 deu um grande salto, depois das aglomerações de fim de ano, e do surgimento de uma nova cepa do coronavírus, em Manaus. Assim, os índices da catástrofe sanitária voltaram ao patamar dos piores dias de 2020. O colapso em unidades do sistema de saúde, os desacertos do governo federal e a demora na aplicação das vacinas contribuíram para o rebaixamento das perspectivas de uma recuperação consistente da economia do país.
O fim do Auxílio Emergencial no primeiro mês joga mais uma sombra sobre as expectativas para 2021. As restrições decorrentes das medidas contra o avanço do vírus acentuam as dificuldades de acesso ao mercado de trabalho, com especial repercussão nos segmentos com menor grau de instrução ou sem capacitação tecnológica. “Vivemos uma era de desigualdades e com muitas incertezas”, definiu o especialista em políticas sociais Marcelo Neri, economista da Fundação Getúlio Vargas (FGV), em entrevista à Política Democrática.
Em consequência do impacto causado pela pandemia, o desemprego atinge e ameaça, sobretudo, os setores tradicionalmente marginalizados pelas atividades remuneradas formais. Esse fenômeno está ligado a aspectos estruturais como raça, gênero, faixa etária, diferenças regionais, acesso à tecnologia e à educação. Incide com maior rigor sobre negros, pardos, mulheres, jovens e nordestinos, observa Neri.
Por causa da Covid-19, as diferenças entre as escolas tornaram mais extensa a distância entre os pobres e os mais favorecidos. O acesso à tecnologia para aulas on-line, e o número de horas dedicadas ao aprendizado tiveram considerável variação, por exemplo, entre as escolas públicas e privadas. O professor da FGV aponta a interrupção de um período de 40 anos de redução dessa lacuna social. “Antes da pandemia, o Brasil estava rompendo o atraso. Isso se quebra e surge uma cicatriz no mercado de trabalho”, afirmou o economista.
Dados atualizados
Essas faixas mais vulneráveis da população atravessaram o primeiro ano da pandemia com a proteção do Auxílio Emergencial. Mais de 60 milhões de pessoas receberam a ajuda aprovada pelo Congresso Nacional para amparar as famílias e a economia do país.
Dados oficiais atualizados, em 2021, revelam a dimensão da calamidade no mercado de trabalho. Antes das restrições decorrentes da pandemia, no trimestre encerrado em março do ano passado, o índice de desemprego medido pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) estava em 12,2%. Entre setembro e novembro de 2020, a taxa chegou a 14,1%, pouco abaixo dos 14,3% divulgados no mês anterior. Foi a segunda queda, depois do pico de 14,6% registrado em julho.
Os números fazem parte da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), do IBGE, divulgada no dia 28 de janeiro. O indicador manteve o número de brasileiros à procura de trabalho, acima do patamar de 14 milhões. Chega-se a um contingente de 32,2 milhões de pessoas subutilizadas no país quando se leva em conta os subocupados, os que desistiram de procurar trabalho e as pessoas que por alguma razão estão impedidas de exercer atividades laborais.
Também no dia 28 de janeiro, o Ministério da Economia informou que em 2020 o Brasil abriu 142.690 novas vagas com carteira assinada, segundo o Cadastro Geral de Empregados e Desempregados (CAGED). Apesar do aumento de postos criados ao longo do ano, a tendência se inverteu em dezembro, com déficit de 67.906 na relação entre contratações e demissões.
O resultado anual positivo se deve, principalmente, ao socorro do governo. Como o Auxílio Emergencial acabou em janeiro, a pressão por empregos tende a aumentar ao longo do semestre. Simultaneamente, o Congresso Nacional discute formas de compensar o fim da ajuda oficial.
A implementação de novas medidas depende, entretanto, da negociação dos interesses do governo e dos parlamentares em um ambiente de reacomodação dos grupos internos, deslocados com os movimentos provocados pela sucessão nas Mesas Diretoras da Câmara e do Senado.
Desde meados de 2020, especialistas alertam para a deterioração do mercado de trabalho – formal e informal – em decorrência da Covid-19. Um estudo publicado em setembro de 2020, pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), apresentou os primeiros efeitos da doença nos empregos. Assinado pelos pesquisadores Sandro Sacchet de Carvalho e Mauro Oddo Nogueira, o artigo “O trabalho precário e a pandemia: os grupos de risco na economia do trabalho” usou números coletados até julho de 2020. O estudo identificou perda na “segurança laboral” tanto no setor informal quanto no formal.
Renda interrompida
Ex-funcionária de um hotel em Brasília, Sandra Maria Rodrigues da Silva, 47 anos, enquadra-se no perfil dos que deixaram a formalidade. Trabalhava em um hotel, com carteira assinada, e tinha salário de R$ 1.400,00. Demitida no início da pandemia, teve a vida familiar abalada pela interrupção da renda. Com seis filhos para sustentar, passou por dificuldades e chegou a faltar comida em casa.
Sandra recebeu seguro-desemprego e não obteve o Auxílio Emergencial. Para suprir as necessidades, passou a fazer e vender bolos e marmitas. Também trabalha com faxina. “Não trabalho todos os dias, mas dá para manter as coisas”, afirmou a trabalhadora à reportagem. Nos últimos meses distribuiu currículo, no entanto, não teve retorno. Afrodescendente, Sandra não sente discriminação por causa da sua cor. Mas nota mais dificuldade em encontrar um novo emprego por causa da idade.
A reportagem procurou Oddo Nogueira, um dos autores do trabalho do Ipea, para analisar os dados atualizados do CAGED e da PNAD em comparação com as percepções registradas no artigo do ano passado. “O cenário está melhor por causa do Auxílio Emergencial, que segurou a demanda. As pessoas continuaram comprando, comendo, teve uma sobrevida, especialmente, das pequenas empresas”, avaliou o técnico do Ipea.
A concessão do benefício pelo governo permitiu a abertura de lojas em espaços fechados no início da pandemia e, com isso, reduziu a procura por vagas. “Se o auxílio não for prorrogado, vai ser outra pancada, fecha tudo de novo”, explicou Oddo Nogueira.
Mesmo com todo o impacto positivo, o alívio proporcionado pela verba federal foi insuficiente para derrubar a alta taxa de desemprego, mantida acima de 14%. Oddo Nogueira ressalta, ainda, que esse indicador não inclui cerca de 4 milhões de pessoas afetadas por um fenômeno chamado, pelos economistas, de “desalento imediato” – quando o trabalhador perde o emprego e não toma a iniciativa de procurar outro.
Industrialização e qualificação, males antigos do mercado de trabalho brasileiro
Ao mesmo tempo que sente o peso da pandemia, o mercado de trabalho, no Brasil, sofre de males antigos, como a falta de qualificação das empresas e dos empregados. Isso se verifica fortemente em função da desindustrialização do país, observa o Sociólogo Glauco Arbix, Coordenador do Observatório da Inovação da Universidade de São Paulo (USP). Nestas circunstâncias, prevê, haverá uma queda brutal da participação na renda dos trabalhadores do meio e da base da pirâmide.
“Vamos ter um Brasil com desigualdade, no mercado de trabalho, cada vez maior. Isso é um problema da estrutura da economia que é difícil resolver”, afirmou Arbix em entrevista publicada pelo jornal O Estado de S. Paulo, no dia 17 de janeiro. “Pode-se tentar resolver com sistema de educação e qualificação e, com isso, oferecer oportunidades, mas não há garantias de que esse pessoal vai encontrar uma posição melhor”, acrescentou.
Na análise do sociólogo, o Brasil passa por um fenômeno chamado pelos economistas de “desindustrialização prematura”, um processo rápido e intenso de mudança no setor. “Europa e EUA demoraram muito tempo para ter a transferência da manufatura para a área de serviços. Aqui, ela ocorre rapidamente, não há condições boas para requalificar empresas e trabalhadores e cria-se uma economia disfuncional. Parte das empresas e dos trabalhadores é qualificada; outra, não”, explicou o professor da USP.
As mudanças provocadas pelo isolamento social prejudicaram algumas áreas de forma mais dramática, caso da educação. Psicopedagoga e Professora de Língua Portuguesa, Jordana de Souza Rodrigues, 36 anos, foi demitida em julho de uma escola particular de ensino fundamental, no Distrito Federal. A queda na receita levou a empresa a reduzir as despesas com o quadro docente.
Com sete anos de empresa, Jordana teve uma carreira estável até a demissão no ano passado. Começou a trabalhar em sala de aula aos 21 anos, qualificou-se, trocou de emprego algumas vezes e, assim, obteve ganhos nos salários e melhores condições para lecionar. Ganhava R$ 3.500,00 na última escola, onde chegou sete anos antes. No início da pandemia, assim como os colegas, teve o salário reduzido. “Eu me dedicava ao máximo, gravava as aulas em casa, com dificuldade. Depois de dois meses voltaram com nosso salário normal e, logo, demitiram todo mundo”, conta a professora.
Jordana recebeu seguro-desemprego, mas o benefício acabou. O marido mantém a casa, enquanto ela aguarda o chamado para uma vaga de secretária escolar, o prazo de validade vai até o final de 2022. Também fez algumas entrevistas em escolas privadas, mas percebe a retração do mercado, ocupado por novos contratados. “Aguardo o dia de amanhã, esperando o que Deus proverá”, conforma-se.
Incógnitas afetam o destino de milhões de brasileiros
Dúvidas quanto ao futuro dos empregos, como ao da professora do Distrito Federal, inquietam habitantes do mundo todo, nestes tempos de pandemia. No Brasil, em particular, o horizonte da economia depende, em grande parte, do desempenho dos governos no enfrentamento do coronavírus.
Nesse sentido, como tratado acima, a pressão sobre os postos de trabalho está diretamente atrelada a alguns fatores ainda indefinidos. São incógnitas que, quando resolvidas, terão influência decisiva no destino de dezenas de milhões de brasileiros.
Uma das condicionantes é o Auxílio Emergencial. Se a ajuda oficial for prorrogada, segura, pelo menos em parte, a demanda por postos de trabalho, como ocorreu no ano passado. No início de fevereiro, o ministro da Economia, Paulo Guedes, declarou a intenção de retomar o benefício para cerca de 30 milhões de pessoas, metade do número alcançado em 2020. A possiblidade de postergação de regras de flexibilização dos contratos de trabalho também vai influir na capacidade das empresas de preservar o quadro de pessoal.
Por fim, todas as expectativas se voltam para a capacidade do Brasil de assegurar a imunização da população em ritmo mais célere. O país entrou atrasado na corrida por vacinas e, com isso, distanciou-se das nações desenvolvidas – condição que prejudica o reerguimento da economia nacional e, por causar impactos distintos na sociedade, aprofunda as desigualdades internas.
Quadro sem precedentes
Um relatório divulgado em janeiro pela Oxfam, entidade que reúne organizações governamentais de diferentes regiões do planeta, constata que a pandemia provocou aumento da desigualdade em praticamente todos os países do mundo – situação sem precedentes desde o início dos registros, há um século.
O agravamento do quadro se manifesta na rápida recuperação das fortunas perdidas por milionários no início da propagação da Covid-19, ao passo que entre os mais pobres o retorno à condição anterior pode levar mais de uma década. “A crise expôs nossa fragilidade coletiva e a incapacidade de nossa economia profundamente desigual trabalhar para todos. No entanto, também nos mostrou a importância vital da ação governamental para proteger nossa saúde e meios de subsistência”, afirma o documento da Oxfam.
No Brasil, como sabemos, estes sintomas são antigos e persistem na terceira década do século. A pandemia apenas tornou a injustiça mais evidente.
RPD || Entrevista Especial - Arminio Fraga: ‘O Brasil está dando um mergulho no passado e sem liderança’
Por Raul Jungmann e Caetano Araújo
Defensor do auxílio emergencial desde o início da pandemia diante de uma situação que não é típica do ciclo econômico, Armínio Fraga, ex-presidente do Banco Central (1999-2003) durante o segundo mandato do Governo FHC é o entrevistado especial desta 28ª edição da Revista Política Democrática Online. Para 2021, o sócio fundador da Gávea Investimentos e um dos mais notórios economistas liberais do país avalia que um novo auxílio seja necessário para ajudar a sustentar a economia. "Há consenso a esse respeito, mas o governo enfrenta limites na sua capacidade de financiamento. Terá de ser, portanto, muito bem pensado", acredita.
Armínio Fraga também faz um alerta sobre a ideia de que o governo brasileiro vai continuar se endividando, na expectativa de que isso vai gerar um futuro melhor. “É um perigo monumental”, completa. Para ele, o governo Bolsonaro não está discutindo os problemas centrais da economia brasileiro. "Nossa taxa de investimento em torno 15%, 16% do PIB é muito baixa para sustentar o crescimento. Espelha enorme incerteza", acredita. Associado fundador do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps), Fraga também considera a derrota de Trump como muito importante para o Brasil e o mundo. "Se o Biden for na direção de Clinton, de Obama, será um espetáculo", avalia. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista à RPD Online.
Revista Política Democrática Online (RPD): Alguns analistas avaliam que, a partir de suas declarações e artigos mais recentes, você poderia considerado como uma ponte autorizada entre os setores liberais e a esquerda democrática. O que pensa a respeito?
Armínio Fraga (AF): É mais uma torcida do que uma análise. Eu vejo a necessidade de esquecer um pouco os rótulos e pensar nas propostas concretas. Estou convencido – e não digo que seja um teorema – da ideia de que no Brasil, como em muitos outros países, alguns grandes temas têm que andar juntos, eles se reforçam. Na economia são três. Macroeconomia saudável, para organizar um pouco a casa e impedir que haja uma crise a cada cinco, 10 anos. No plano do crescimento, importa cuidar da produtividade para o país crescer. Há décadas que crescemos muito pouco. Houve momentos de luz, mas sempre mais do que compensados por trevas, colapsos, uma desgraça.
Outro ponto não menos importante refere-se ao tema da desigualdade, que, embora não seja monopólio da esquerda, é sua essência. É fundamental olhar para a desigualdade de uma maneira ampla, completa. A pobreza é inaceitável, mas nós temos que ir muito além do combate à pobreza extrema. Temos que criar condições para que as pessoas tenham capacidade de se empregar, ter sua renda, seu espaço, portanto, de oportunidade e mobilidade, e por aí vai. Essa agenda, a meu ver, é de fato uma combinação liberal, social, que não difere muito da agenda do Fernando Henrique Cardoso, tampouco da do Lula em seu primeiro mandato. Naquele momento, parecia que o Brasil político fosse oscilar dentro de um espaço pequeno, um pêndulo que não se tornaria uma bola de demolição, como acho que acabou acontecendo.
Eu me vejo nessa posição. Não sou político, não tenho ambições eleitorais, mas tenho, sim, participado do debate público. Como me dão espaço, procuro aproveitar. E essa ponte, a meu ver, precisa ocorrer mais para o centro, algo mais equilibrado, e não essa loucura que temos hoje, de costumes e ameaças autoritárias, de comportamento truculento, nem tampouco de uma esquerda velha, sonho compreensível, mas que avalio nunca ter dado certo. Menos ainda uma esquerda, entre aspas, que produziu o bolsa-empresário de sete pontos do PIB, quando o Bolsa Família consome meio ponto do PIB. Isso não é esquerda, nem sei muito bem o que era. Embarcou-se numa canoa furada, abraçaram ideias equivocadas e, infelizmente, também a corrupção e tudo mais. Então, se é esse espaço de ponte que querem me atribuir, fico muito feliz, é onde eu gostaria de estar mesmo.
RPD: Você não estaria apostando muito na convicção das pessoas, na capacidade de elas reagirem da maneira descrita? Não faltaria um orquestrador, uma liderança que lhes abrisse o caminho e as conduzisse na aproximação entre o liberalismo e a esquerda?
AF: Não vejo o que eu faço como sendo uma tentativa política completa, sou apenas uma pessoa que disputa um espaço de opinião. Trata-se de uma tese a ser construída, o que será, em muitos aspectos, difícil. O lado liberal não é muito intuitivo, isso já vem desde Adam Smith. São receitas que, às vezes, levam as pessoas a se sentirem desprotegidas. Penso, assim, que caberia uma campanha de informação, mas isso me faria sair um pouco do meu quadrado.
Há muito tempo venho tentando entender a narrativa da história, por assim dizer. Tentei quando estive no governo. Depois, prossegui conversando com muita gente, inclusive com o próprio presidente Fernando Henrique. Mas como se faz, por exemplo, para lograr vencer o populismo? Muito difícil. Com meu chapéu de economista, diria que é quase impossível. Um dia, ele pode quebrar, mas, até lá, é imbatível, prometendo mundos e fundos, ninguém fazendo contas, ninguém entendendo coisa alguma e, num belo dia, quebramos de novo. Esse é um desafio político de primeira ordem.
Muito francamente, penso que acabaremos reinventando a socialdemocracia. Adaptada às coisas ao século 21. Ótimo: meio ambiente e tecnologia. Eu, por exemplo, sou bem verde. Mas acho que precisamos mais de ideias do que liderança. O Brasil tem de repensar o espaço partidário. Os partidos e suas siglas de hoje não valem nada. Escrevi recentemente na Folha artigo em que mencionei esse ponto. Precisamos evoluir nessa área. Entendo que o número de partidos tende a cair com as cláusulas de barreira e a proibição das coligações, mas, além de uma redução no número de partidos, acho que falta clareza programática, ideológica. Não é suficiente fazer, por exemplo, como tenta fazer o partido Novo que declarou “nós queremos honestidade e eficiência”. Todo partido deveria defender honestidade e eficiência. Falta ir muito mais longe. É necessário mais do que uma pessoa, embora isso sempre ajude. No mundo de redes e de comunicação direta com o eleitorado, o peso da candidata ou do candidato numa eleição presidencial é altamente relevante. Mas, se isso vier sem uma estrutura de valores, de propostas, inclusive no plano partidário, ainda que seja alguma coligação, desde que construída em cima de ideias, temo que o Brasil seguirá patinando.
RPD: Para a retomada do crescimento, o auxílio emergencial poderá ajudar? Qual é o dever de casa que o Guedes deve seguir?
AF: Guedes se define como um liberal. Ao tomar posse, disse que era um liberal político também, um defensor da democracia. Nada disso se revelou evidente. Há que se distinguir crescimento, que, para mim é algo mais sustentado, de recuperação, esta, mais cíclica, de curto prazo, basicamente o que ocorre na esteira de uma recessão, do que já tivemos dois exemplos gigantes nos últimos sete anos. Na primeira, a recuperação foi tímida, pífia, é um momento ainda muito complicado, mesmo que Temer tenha apresentado boa agenda de reformas. Mas, depois, tudo se complicou, como se sabe, e aí veio o que veio.
Para fazer o país crescer, é outra estória. Temos de incluir na política econômica a educação, a saúde. Depende também de confiança, estando tudo interligado. Uma empresa, quando explora a possibilidade de investir, tem que trabalhar com um horizonte de tempo que vá além da recessão.
Defendi o auxílio emergencial desde o início da pandemia diante de uma situação que não é típica do ciclo econômico; antes, uma calamidade colossal, agravada pela não resposta pronta do governo federal. Cabia, pois, um auxílio. Depois ocorreu, e forte, só que veio mal calibrado, talvez por razões meio populistas, talvez por uma expectativa de que o negócio não fosse tão sério ou duradouro assim. Não dá, portanto, para repetir o esforço do ano passado. Algum auxílio tem, porém, que acontecer, para ajudar a sustentar a economia. Há consenso a esse respeito, mas o governo enfrenta limites na sua capacidade de financiamento. Terá de ser, portanto, muito bem pensado.
Não acredito que se estejam discutindo os problemas centrais da economia brasileiro. Nossa taxa de investimento em torno 15%, 16% do PIB é muito baixa para sustentar o crescimento. É um nível que espelha enorme incerteza, grande falta de confiança. Em entrevista live recente, Larry Summers, indicou que, se tivesse de escolher um único indicador para entender o que está acontecendo num país, olharia para o que os investidores locais estão fazendo com o dinheiro deles. No nosso caso, a coisa complica.
Estamos tendo essa conversa logo após as votações do Congresso, e nada sugere uma situação que nos vá encher os olhos, com o Brasil embarcando num outro modelo. Ao contrário: acho que a gente está dando um mergulho no passado e sem liderança.
RPD: O enfrentamento da crise sanitária justificaria o abandono de toda preocupação relativa ao equilíbrio das contas públicas?
AF: Um governo pode se endividar, um governo que não seja um estado falido, mas isso obedece a várias restrições. Mas a restrição mais básica é ter alguém disposto a emprestar esse dinheiro para o governo. Começando por baixo, a ideia de que emitir moeda, emitir dívida na sua própria moeda, é uma garantia de que não há limite para seguir se endividando é um nonsense completo. Imagine se as pessoas seguirão comprando papel do governo, se entupindo de papel do governo, de um governo que não mostra um rumo, que repetir nossa própria história, a história de nossos vizinhos, de vários países, da própria Alemanha no passado? Acho surpreendente que alguém acredite nisso. Escrevi isso num dos meus artigos na Folha que essa ideia de que um governo, que pode emitir sua própria moeda, siga emitindo dívida sem limite é para mim na verdade uma ameaça. Não é à toa que o dólar está tão alto aqui.
Vamos aos fatos. A política fiscal no Brasil, desde a Dilma (2014), virou uma das políticas fiscais mais gastadoras do mundo. Essa política, que foi um total colapso fiscal, alguém pode defendê-la? Eu não sei como as pessoas falam em austeridade, num país que está com déficit primário e acumulando muita dívida desde 2014. Alguns alegam que valeria a pena se endividar para investir.
Os programas de investimento do governo são difíceis de administrar. Defendo mais investimento público, há muito tempo. Defendo mais eficiência do estado, mas isso não resolve, inclusive porque o investimento público é lento, e nós estamos precisando de uma resposta, do ponto de vista conjuntural, imediata.
Acho que é preciso separar. Reconheço alguns passos, mas a ideia de que o governo brasileiro vai continuar se endividando, na expectativa de que isso vai gerar um futuro melhor, é um perigo monumental. O investimento público cair de 5% do PIB para menos do que 1% é um problema. Mas isso é porque, do outro lado, vários outros gastos aumentaram muito e ocuparam o espaço. Vejamos. A folha de pagamento do governo como um todo cresceu imensamente, a previdência brasileira é extravagante dada nossa relativamente jovem estrutura etária, que vem mudando rapidamente, e, sobretudo a partir da gestão Dilma, o Brasil gastou uma fortuna em subsídios. Segundo relatórios muito bem feitos pelo tesouro nacional, a tal da bolsa empresário, se quiser, os gastos tributários, chegaram a 7% do PIB, inclusive os subsídios do BNDES. O Bolsa Família, só para comparar, é 0,5%.
É evidente que o Brasil precisa reorganizar seus gastos, redirecioná-los na direção de mais produtividade e menos desigualdade, esse é o jogo. De onde vem o dinheiro? Dos gastos e subsídios que mencionei há pouco. Ao contrário dos países avançados, no Brasil, com juros de longo prazos ainda altos, e pouco crescimento e credibilidade, a opção de financiar com mais dívida seria muito arriscada.
RPD: A crise do estado de bem-estar social, na década de 1970, foi seguida, a partir de 2008, pela crise do modelo de auto regulação dos mercados mundiais. Está aberto o caminho para estratégias intermediárias de desenvolvimento?
AF: A pergunta remete a um mundo que desembarcou do “fim da história” do Fukuyama, onde se supunha a vitória de um modelo liberal-democrático. Mas nada disso aconteceu. O estado-nação está mais forte do que nunca. Estou falando de China, Índia, Turquia, os Estados Unidos sob Trump e de outros casos menores, mas não irrelevantes, como Filipinas e o Leste Europeu, para não mencionar um número de combinações entre modelos econômicos e políticos.
Não bastasse a disseminação de um viés autoritário em muitos países, preocupa ainda mais o modelo econômico chinês. Eles abraçaram o mercado, mas com um controle quase que absoluto do partido, com a presença obrigatória de um membro do partido em todos os conselhos das principais empresas. Quanto ao tratamento da informação, o sentido de privacidade sob o comando do Xi Jinping meio que deu um cavalo de pau. No que parecia ser uma suave caminhada para algum grau de abertura, a partir das bases, ele pisou no freio. Pisou no freio também na internacionalização da moeda chinesa. Várias dessas ideias foram deixadas de lado, ante a introdução do controle de câmbio e de outras medidas duras. É um modelo que assusta, como o foi, no passado, o modelo soviético. Mas o chinês, por estar mais adaptado às realidades do mercado, representa talvez desafio maior para a construção de um mundo livre, aberto e pacífico, bom de se viver.
Representa, no fundo, um desafio para a socialdemocracia, para o liberalismo também, e, embora não me sinta qualificado para dar grandes respostas, arrisco supor um repensar do modelo social-democrático, vale dizer, da ideia de um liberalismo progressista e da própria socialdemocracia, conceitos que considero muito parecidos e que estão em crise. Bastaria mencionar o descontentamento das classes médias, em especial nos países desenvolvidos, diante da concorrência global, de um lado, e dos avanços da tecnologia, de outro. É um quadro que requer respostas urgentes, entre as quais se destaca um desafio existencial, que é a questão da mudança climática. Espero que chegada do Biden force maior coordenação no mundo ocidental e que o chamado soft power, não só americano, mas também europeu, cada um do seu jeito, volte a prevalecer.
Quero dizer que a chance de o mundo se desenvolver de uma forma tranquila depende muito do êxito do modelo ocidental. Mas não só. As pessoas que vivem sob regimes autoritários têm que saber que existe um modelo melhor, na linha do que os americanos oferecem, por ser um lugar aberto.
Para o Brasil e o mundo, vejo como muito importante a derrota do Trump. Em que medida essa adaptação política vai acontecer, não saberia dizer. Imagino para o Brasil uma visão que seja solidária e capaz, ao mesmo tempo, de gerar crescimento. Incluiria também o uso de tecnologia para queimar etapas, desde que seja complementar às pessoas e não substitutiva, distinção nada trivial. Recomendaria também – e com ênfase especial – a ideia, que, aliás, tem nossa cara, de um Brasil Verde, que caiba no seu espaço, com qualidade de vida para as pessoas, isto é, a qualidade do ar, da água, da alimentação, comentário autorizado para quem, como eu, mora no Rio.
O Brasil tem tudo para num período de uma ou duas décadas transformar-se transformar num espaço verde extraordinário. Olhem a Nova Zelândia, a Costa Rica. Não importa o tamanho, o modelo é que tem de ser bom. Acho que nossa adaptação ter de ser nessa linha.
RPD: O governo Biden pode influir nessa adaptação?
AF: Indiretamente, sim, dando o exemplo. Só remover o exemplo péssimo do Trump já é bom. Se o Biden for na direção de Clinton, Obama, será um espetáculo. Mesmo que seja inevitável que os Estados Unidos, junto com os europeus, nos apertem um pouco. Podem até estender a pressão para outros temas, como Amazônia, direitos humanos, respeito à imprensa, respeito à própria democracia. Não dá para viver sem isso. Acho até bom para nós também. Talvez uma pressão externa não chegue a modificar muito o comportamento de nossas lideranças, mas a pressão do mercado pode: a pressão econômica eventualmente vai morder.
RPD: Executivo da BlackRock e Jorge Caldeira, em seu livro, Paraíso sustentável, defendem que a questão ambiental, a questão climática, tem influência direta nas finanças, na produtividade, nos lucros das empresas. Qual sua visão a respeito?
AF: Considero procedente essa visão. A BlackRock está certa em defender essas causas e trazê-las para o dia a dia das empresas, das pessoas, acho super saudável. Mas nada disso substitui o governo. Acredito em autorregulação, mas ela só funciona, se acima da autorregulação, tiver a regulação do Estado. E, claro, estou pressupondo um Estado de boa qualidade, sem a qual país algum se desenvolve. Essa é a estrutura básica. Vejo como muito positiva as opiniões acima indicadas. Esse movimento, que se identifica como ESG, a meu ver, é saudável, porque toca num nervo sensível das pessoas, uma alma solidária. E essa é uma crítica, inclusive uma autocrítica, que muitos economistas mundo afora vêm fazendo e que, a meu ver, faz todo sentido. Entendo que esse assunto vai longe. Não até onde precisa chegar, no entanto, sem uma participação concreta do Estado. As boas intenções do setor privado têm de ser complementadas por um Estado que também cumpra com o seu papel.
Venho refletindo muito sobre o tema ESG, em geral. O G, de governança, no Brasil tem avançado bastante. O que aconteceu com a Petrobras foi um enorme acidente de percurso, mas foi apenas isso, porque, no mundo privado, as empresas vêm evoluindo muito bem nessa direção, já não é de hoje. Foi um movimento que nasceu dentro do setor privado, na bolsa de valores em particular, no Instituto Brasileiro de Governança Corporativa. É, sem dúvida, uma revolução, o que aconteceu aqui no Brasil, está dando muito certo.
O S de social é carente no Brasil, a despeito de governos socialdemocratas e do próprio PT. Ainda há muito a faze. Mas também penso que há alguma consciência, não no momento, mas há. E o A de ambiental é o que estamos discutindo. É indispensável, essencial, é uma questão de sobrevivência do planeta, que se faça a transição. Ela está acontecendo de forma lenta e perigosa. O governo Trump deu, na verdade, duro golpe nesse projeto, ao se afastar do acordo de Paris. Mas agora, com o Biden, pode voltar aos trilhos. Vejo, de novo, o Brasil numa posição muito boa para ocupar esse espaço e de uma forma que projete para o mundo a consciência de que essa é uma questão planetária, e boa para nós também.
*Arminio Fraga
Sócio fundador da Gávea Investimentos e presidente do conselho do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde. Membro do Group of Thirty e do Council on Foreign Relations. Foi presidente do Banco Central (1999-2003), presidente do conselho da B3, diretor do Soros Fund Management e trustee da Princeton University (EUA), onde obteve seu Ph.D.. Foi professor da PUC-Rio, da EPGE-FGV, da SIPA-Columbia (Nova York) e da Wharton School (Pensilvânia).
*Raul Jungmann
Ex-deputado federal, foi Ministro do Desenvolvimento Agrário e Ministro Extraordinário de Política Fundiária do governo FHC, Ministro da Defesa e Ministro Extraordinário da Segurança Pública do governo Michel Temer.
*Caetano Araújo
Consultor legislativo do Senado Federal, sociólogo. É diretor da Fundação Astrojildo Pereira (FAP)
RPD || Editorial: Congresso Nacional sob nova direção
O calendário político de fevereiro começou com a eleição dos novos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado Federal e a vitória folgada, em ambos os casos, dos candidatos mais próximos ao Executivo. Difícil subestimar as consequências dessas trocas de comando. Afinal, ao longo dos dois primeiros anos do atual governo, Rodrigo Maia desempenhou papel relevante na contenção das iniciativas governistas de confronto com o ordenamento democrático vigente. Seu sucessor, ao que tudo indica, terá como prioridade, na direção oposta, acelerar a tramitação das pautas consideradas relevantes pelo governo.
Diversas lições podem ser extraídas desses acontecimentos. Em primeiro lugar, mais uma volta foi dada no parafuso que mantém juntos o governo e o grupo parlamentar conhecido como Centrão. É de se prever que diferenças remanescentes serão aparadas e nomes do primeiro escalão substituídos, sempre no sentido de aumentar a participação dos políticos pragmáticos que se reuniram no apoio à eleição da nova Mesa da Câmara.
Em segundo lugar, o decorrer do processo escancarou as fragilidades das oposições, em particular a dificuldade de cooperação em torno de um objetivo comum. Num primeiro momento, pareceu que o candidato da continuidade havia conseguido sucesso na construção de uma improvável frente em seu apoio, com partidos da esquerda, do centro e da direita.
Especulava-se, então, se as decisões coletivas tomadas por esses partidos viriam a prevalecer sobre o trabalho personalizado de convencimento e barganha desenvolvido pelo candidato do governo. O resultado da apuração, contudo, excedeu às previsões mais pessimistas da oposição. Não só houve defecções em grande número, mas siglas importantes migraram, na última hora, da posição de apoio ao candidato Baleia Rossi para uma neutralidade aberta e militante.
Ficou claro que, nas fileiras da oposição, prosperam, ao mesmo tempo, problemas de prioridade, uma vez que muitos decidiram seus votos em função da perspectiva de ganhos menores, e outros, mais profundos, de identidade, dado que, para vários eleitores, não houve razões claras e convincentes para negar o voto ao candidato governista.
A recomposição possível, o esclarecimento em torno das diferenças entre o relevante e o acessório, entre governo e oposição, será um processo complexo e demorado. Ao que tudo indica, o terreno da batalha será o debate e a votação em torno de cada um dos projetos prioritários do governo.
RPD || Paulo Fábio Dantas Neto: Crônica de um revés parcial - Duas arenas e a política de resistência democrática
Vitória com a eleição de Arthur Lira (PP-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG) para as presidências da Câmara dos Deputados e do Senado, respectivamente, não é garantia de que Jair Bolsonaro vai ter sucesso na disputa eleitoral em 2022
Na análise das eleições às presidências e mesas diretoras do Congresso não se deve subestimar, ou exagerar, suas implicações sobre a política brasileira. Em especial na Câmara, houve vitória importante do governo federal, mas esteve longe de ser decisiva. É preciso cautela antes de tratá-la como prenúncio do que ocorrerá com o Executivo, a partir de 2022, ou antes. A dinâmica do Congresso é uma, a da disputa presidencial, outra. Na primeira arena, decidem deputados; na segunda, o povo, e inexiste coerência entre suas lógicas. Bolsonaro (sem partido) pode manter sua base na Câmara e perder a eleição apesar disso. Pode perder a base e ganhar a eleição apesar disso, ou justamente por isso.
Na Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) foi o foco de uma disputa politizada pela candidatura da frente partidária que liderou. A frente evoluiu da defesa da independência do Legislativo à oposição ao governo, entrelaçando lógicas das duas arenas. O adversário largara na frente e, pela lógica da arena interna, fez-se elo entre o governo e deputados, individualmente. A campanha de Baleia Rossi (MDB-SP), com discurso democrático, para fora da Câmara, vendo-se em desvantagem, jogou pedras nos votantes. Denunciar fisiologismo esmaeceu a valorização, pelo próprio Baleia, de serviços prestados pela Câmara ao país, sob a gestão de Maia. No contexto de pandemia, a “política dos políticos” tem dado mais do que recebe. Foi seu adversário quem disse isso sem ressalvas, com sotaque corporativo. Todavia, não foi o tom da campanha que derrotou a frente. Maia expressava um centro político contestado, com êxito, pela base governista, usando, em escala inabitual, recursos políticos habituais.
Num quadro de polarização entre governo e oposição, um centro independente, sob forte pressão, tende a ser sufocado se não adernar para um dos lados. A opção de olhar à direita e tentar dividi-la desvaneceu quando a base governista se organizou. Maia fez o que podia, isto é, olhou à esquerda e acenou à sociedade civil. Não bastou. Pode-se arguir que, ciente da inviabilidade eleitoral desse caminho, poderia assimilar a derrota e tentar confiná-la à Câmara, para manter a frente partidária de pé. As eleições presidenciais estão logo ali, caberia cuidar para que a derrota não contaminasse a outra arena.
O resultado da eleição no Senado dispensa resenha. O desfecho considerou a especificidade da arena parlamentar, mantendo teso o arco da promessa de frente democrática. A articulação incluiu partidos que formaram com Baleia na Câmara, ajudou a dissolver a polarização e mitigou a vitória governista. Pela agenda e perfil de Rodrigo Pacheco, o Senado pode ser âncora da resistência democrática, conter crises e construir governabilidade, papéis análogos aos que a Câmara vinha tendo e, por ora, não terá.
A postura de Arthur Lira assusta pelo tipo de populismo de plenário que pode levar a Câmara, sem freios, a votar com violência plebiscitaria. Uma casa como aquela, se não tiver um comando centralizado, é fonte de instabilidade e de pautas polarizadoras da sociedade. Lira prometeu previsibilidade só a seus pares. Se cumprir, a sociedade pode se deparar com um Nero, e Bolsonaro, talvez, com seu Eduardo Cunha.
A Câmara pode colidir com o STF e com o Senado, em autofagia institucional. E, encoberta pelo biombo ruidoso das pautas de costumes, prospera, com a vitória de Lira, uma discreta e concreta estratégia de solapa da Constituição. Ricardo Barros, líder do governo, parece ser o político selecionado para a missão da reforma constitucional que, por atacado ou a varejo, atenda ao continuísmo por três vias, não excludentes entre si: derrubar freios institucionais para que o Executivo se aproprie de joias eleitorais como vacina e auxílios emergenciais a pobres e distribua benesses a setores econômicos; alterar regras eleitorais para facilitar a reeleição de Bolsonaro, hoje dificultada pela regra dos dois turnos; e a “via russa”, da governabilidade semiautoritária à investidura do Gal. Mourão, tecida pelo centrão e militares do palácio, em caso da popularidade do presidente desabar.
Com ameaças de tal monta, que papel pode ter um centro político? Fazer intransigente oposição a desmandos e crimes. Valem manifestos, artigos, panelaços, processos judiciais e resistência parlamentar em defesa da Carta, com articulação entre oposição política e sociedade civil. De outro lado, diálogo constante com elos mais tênues da cadeia governista para bloquear a via russa, no que terão papel o Presidente do Congresso e a ambivalência estratégica de seu partido, o DEM. Assim, a derrota na Câmara será parcial.
Frente ampla ainda pode haver na arena congressual, mas é irrealismo vê-la na eleitoral. Se houver frentes no primeiro turno, tendem a ser duas. Mas há condição de derrotar Bolsonaro, fugindo da Rússia e caminhando, até 2022, colado à via agregadora que livrou o mundo de Trump. Uma sociedade civil que o rejeita, organizações e instituições que podem contestar cada passo extremista e, entre opções ao centro, é possível achar um candidato que fale de vacina, emprego e renda, democracia e pacificação política. Na esquerda, há gente capaz de fazê-la agir no segundo turno como Sanders nas eleições americanas. Desde que, no centro, haja análoga disposição, se a esquerda chegar lá.
Celso Rocha de Barros: O centro democrático existe?
Como no caso da crise do DEM, a crise do PSDB é mais uma vitória de Jair Bolsonaro
Na semana passada, o PSDB resolveu fazer uma dessas coisas que tucano faz e isolou João Doria. Isso, o cara que comprou a vacina, o único tucano com um trunfo eleitoral para 2022.
Como resultado desse isolamento, Doria pode ficar sem a legenda do PSDB para concorrer em 2022. Se isso acontecer, o único sucesso de políticas públicas do Brasil desde a eleição de Bolsonaro —a compra das vacinas pelo estado de São Paulo— pode não ter qualquer peso na eleição presidencial de 2022.
Um dos fatores que parecem ter precipitado a briga foi a tentativa de Doria expulsar Aécio Neves, aquele do Joesley. Doria queria expulsá-lo porque Aécio seria um dos incentivadores dos tucanos que traíram a candidatura de Baleia Rossi na eleição da Câmara. Perdeu a briga. Aécio ainda controla uma máquina fisiológica em Minas Gerais, e, neste caso específico, estava defendendo o direito de os deputados se venderem, algo que a turma leva bastante a sério.
Além disso, uma ala do PSDB lançou o governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite, para disputar com Doria a candidatura de 2022. Leite começou a disputa afirmando que o PSDB não deve fazer oposição “sistemática” a Bolsonaro.
Foi uma declaração desastrosa. Ninguém discute que os tucanos podem apoiar as propostas de Guedes, mas abster-se de fazer oposição dura a Bolsonaro é perdoar o autogolpe, é perdoar as mortes da pandemia, é defender uma impunidade muito pior do que a que foi negociada no acordão que encerrou a Lava Jato. Leite, um político jovem, não precisava dessa declaração no currículo.
Como no caso da crise do DEM, a crise do PSDB é mais uma vitória que Jair Bolsonaro conquistou por ter ganho o Congresso para Arthur Lira. Mas a cabeça de Doria é um prêmio muito maior do que a de Rodrigo Maia.
O governador de São Paulo é o principal desafiante de Bolsonaro já no ringue. Tinha o trunfo da vacina, que, vamos repetir, é o trunfo que todo mundo queria ter: a vacina salva vidas. Só a vacina vai trazer a normalidade de volta, só com normalidade teremos crescimento econômico de novo. E todos sabemos que Bolsonaro só começou a comprar vacinas para competir com Doria.
Enfim, morreu de vez o argumento dos tucanos que dizem que votaram no Bolsonaro porque do outro lado era o PT. Não foram capazes de tomar uma posição clara contra Bolsonaro nem quando do outro lado eram eles mesmos.
Primeiro o DEM, depois o PSDB, o que sobrou do tal centro democrático? Ele existe? Talvez não. Talvez ele sempre tenha sido a direita incomodada com o fato de que Bolsonaro não havia lhe entregue nacos suficientemente grandes do governo, do orçamento, do poder.
Acho cedo para cravar esse diagnóstico. A popularidade de Bolsonaro é baixa para o padrão histórico de presidentes nesta altura do primeiro mandato. Se toda a rejeição a Bolsonaro fosse de esquerda, o segundo turno de 2022 seria entre Ciro e Haddad. Como isso não parece provável, imagino que haja, sim, um setor do eleitorado que é mais ou menos de centro e é contra Bolsonaro.
Se esse eleitorado existir, Luciano Huck pode herdá-lo sozinho. Não seria surpresa, aliás, se descobríssemos que os partidários de Huck no PSDB estavam entre os que manobraram para neutralizar Doria. Se não manobraram, certamente lucraram com a manobra.
El País: Decretos para aumento de venda de armas elevam insegurança com Bolsonaro. Tema pode chegar ao STF
Presidente assinou medidas na sexta, 12, para facilitar comércio de armas e afrouxar fiscalização. Entidades e lideranças políticas reagem para o que já é considerado um risco democrático, especialmente depois da invasão do Capitólio, que não foi condenada pelo mandatário brasileiro
Carla Jiménez e Regiane Oliveira, El País
O presidente Jair Bolsonaro aproveitou a sexta-feira, véspera de um quase Carnaval no Brasil, para assinar quatro decretos que facilitam ainda mais a venda de armas e reduzem a fiscalização pelos órgãos competentes. É o trigésimo ato normativo publicado nos últimos dois anos por Bolsonaro, dentro de uma política que ajudou a aumentar as armas em circulação no Brasil. O anúncio, feito pelo twitter do mandatário, gerou reações imediatas entre entidades ligadas a direitos humanos e lideranças políticas. “O populismo armamentista de Bolsonaro, além de agravar o problema [de violência], é uma cortina de fumaça para suas aspirações golpistas”, escreveu Marcelo Freixo, deputado do PSOL no Rio. Freixo anunciou um projeto para anular os últimos decretos de Bolsonaro e protocolou uma Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal. “O presidente não pode legislar sobre armas via decreto”, reclamou o deputado.
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Um levantamento do jornal O Globo mostra que só a posse de armas nas mãos de civis deu um salto de 65% no país desde dezembro de 2018, pouco antes de Bolsonaro assumir o poder no dia 1 de janeiro. No final de janeiro eram mais de 1,1 milhão de armas nas mãos de cidadãos, número que deve subir facilmente caso os decretos do presidente não forem derrubados na Justiça, como esperam os especialistas em segurança pública. Dentre as normas previstas pelo Governo, estão o aumento de limite de compra de armas para cidadão, que passam de 4 para 6 armas. O número pode chegar a 8 para membros da magistratura, do Ministério Público e os integrantes de polícia e agentes e guardas prisionais.
Outras medidas preveem a redução de controle e rastreamento de armas e munições, um risco que coloca os armamentos mais próximos do crime organizado. Há facilidade para que atiradores e caçadores, por exemplo, comprem entre 30 e 60 armas, sem necessidade de autorização expressa do Exército. Projeteis e máquinas para recarga de munições e carregadores também deixam de ser controlados pelo Exército. Facilitação de acesso armas mais restritas, que interessam às milícias. “O aumento da venda de armas de maior potencial circulando inevitavelmente acaba inevitavelmente abastecendo o crime”, diz Carolina Ricardo, diretora do Instituto Sou da Paz. “Uma arma de um acervo de um atirador ou caçador pode ser roubada ou desviada e abastecer o mercado ilegal”, alerta ela, lembrando que a inexistência de rastreamento dificulta a investigação de crimes. No ano passado, uma portaria do Exército revogou regras sobre rastreamento de armas e munições, dispositivos de segurança e marcação de armas de fogo e munição no Brasil.
A política ostensiva de liberação de armas do Governo Bolsonaro tem gerado insegurança na sociedade, especialmente depois da invasão do Capitólio nos Estados Unidos, no dia 6 de janeiro. O presidente ultradireitista não condenou até hoje a invasão dos eleitores de Trump que não aceitaram o resultado da eleição. Bolsonaro também não perde uma oportunidade para reforçar o discurso de desconfiança sobre as urnas eletrônicas – sem evidências para tal — e de dizer que quer ver a população armada, antecipando uma crise que ele pode abrir no ano que vem, caso não seja reeleito nas presidenciais.
Em nota, o Instituto Igarapé, think tank que estuda a segurança pública, afirmou que o pacote de decretos “não só tem efeitos letais para o país que mais mata com armas de fogo no mundo, como reforça possíveis ameaças à democracia e à segurança da coletividade”. Segundo Michele dos Ramos, assessora especial Igarapé, “há muitas perguntas a serem respondidas pelas autoridades federais sobre as motivações políticas do descontrole de armas no país, uma vez que não há qualquer justificativa ou conhecimento técnico que embase as perigosas mudanças”.
Após divulgar a nota técnica, Ilona Szabó, cofundadora e presidente do Instituto Igarapé, foi bloqueada pelo presidente no Twitter. “Impressionante ver como a máquina do ódio é eficiente e está aparelhada para bloquear qualquer contestação à narrativa oficial. Isso só acontece em ditaduras. Já vivemos tempos de exceção”, disse.
O vice-presidente da Câmara dos Deputados Marcelo Ramos (PL-AM), aliado de Bolsonaro, criticou as novas medidas. “Mais grave que o conteúdo dos decretos relacionados a armas editados pelo presidente é o fato de ele exacerbar do seu poder regulamentar e adentrar numa competência que é exclusiva do Poder Legislativo. O presidente pode discutir sua pretensão, mas encaminhando PL a Câmara”, escreveu no Twitter.
Bolsonaro ignorou as críticas e ironizou que “o povo está vibrando” com as novas medidas. Ele publicou um vídeo em que comenta os decretos com um pequeno grupo de pessoas no sul do país. O deputado federal Rodrigo Maia (DEM-RJ), ex-presidente da Câmara, reagiu “Bolsonaro considera a parte pelo todo. Acha que seu mundo extremo representa o país. O povo não está vibrando. O povo não quer armas. A população anseia pelas vacinas”.
A crise de saúde pública da pandemia do coronavírus parece ter criado um cenário propício para o desmonte da política pública de combate às armas, uma promessa eleitoral que Bolsonaro tem se empenhado em cumprir com sua política de decretos pró-armamentista, que já conseguiu desconfigurar o Estatuto do Desarmamento, conjunto de leis voltadas ao controle de armas e responsável por salvar mais de 160.000 vidas, segundo estudos.
O Governo chegou até mesmo a zerar a alíquota de importação de armas com argumento de que isso iria estimular o comércio. O caso foi parar no Supremo, após um pedido do PSB, e o ministro Edson Fachin suspendeu a decisão. Ele considerou que, embora o presidente da República tenha prerrogativa para conceder isenção tributária, a opção de fomento à aquisição de armas por meio de incentivos fiscais colide com o direito à vida e à segurança, que são garantidos constitucionalmente.
A política armamentista de Bolsonaro vai na contramão da política pública que será adotada nos Estados Unidos no Governo de Joe Biden. O presidente norte-americano pediu neste domingo (14) que o Congresso aja “imediatamente” para limitar a circulação de armas de fogo em um comunicado que marca os três anos do ataque a escola de ensino médio em Parkland, Flórida, onde 14 estudantes e três professores morreram. “Este Governo não vai esperar pelo próximo tiroteio em massa para ouvir os apelos à ação”, afirmou Biden no comunicado.
Ricardo Noblat: O general Villas Bôas e o labirinto em que se meteu
Nota para intimidar o Supremo Tribunal Federal era mais incendiária do que foi
Reverenciado pela oposição e a mídia como um líder moderado e defensor da democracia à sua época de comandante do Exército, o general Eduardo Villas Bôas conta em livro de memórias que a nota que divulgou em abril de 2018 para coagir o Supremo Tribunal Federal a não beneficiar Lula era mais incendiária na versão original. Deixou de ser por pressão de seus colegas.Três ministros do governo Bolsonaro, todos, hoje, generais da reserva, foram consultados sobre a nota e, segundo Villas Bôas, o aconselharam a amenizá-la: Joaquim Silva e Luna, atual diretor-geral de Itaipu; Fernando Azevedo, então chefe do Estado Maior e agora ministro da Defesa, e Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria do Governo. Ramos respondia pelo Comando Militar do Leste.
No dia 4 de abril daquele ano, a seis meses do primeiro turno da eleição presidencial, o Supremo julgaria uma ação que, se aceita, revogava a possibilidade de prisão de condenado em segundo instância. Lula já fora condenado em segunda instância no processo do tríplex do Guarujá. Se o Supremo recusasse a ação, ele poderia ser preso e ficar impedido de concorrer com Bolsonaro.
A versão suavizada da nota de Villas Bôas, postada no Twitter na véspera do dia do julgamento, foi uma clara advertência aos ministros do Supremo: “Nessa situação que vive o Brasil, resta perguntar às instituições e ao povo quem realmente está pensando no bem do País e das gerações futuras e quem está preocupado apenas com interesses pessoais?”
E concluía sem ter o cuidado de disfarçar a intenção golpista do seu autor: “Asseguro à Nação que o Exército Brasileiro julga compartilhar o anseio de todos os cidadãos de bem de repúdio à impunidade e de respeito à Constituição, à paz social e à democracia, bem como se mantém atento às suas missões institucionais”. Imagine a versão abortada da nota original…
Uma vez que o Supremo, por 6 votos contra 5, manteve a prisão de condenado em segunda instância, Lula foi preso e levado para Curitiba em 7 de abril, ali permanecendo por 580 dias. Liderou as pesquisas de intenção de voto até meados de agosto. Apoiou então a candidatura de Fernando Haddad. Bolsonaro venceu Haddad no segundo turno. Villas Bôas e os generais celebraram a vitória.
Missão que se propuseram (evitar que a esquerda voltasse ao poder), missão cumprida com êxito! Villas Bôas reconhece que Lula como presidente foi generoso com as Forças Armadas dando-lhes dinheiro para a compra de equipamentos. Critica Dilma por ter instalado a Comissão Nacional da Verdade que investigou casos de tortura e de mortos pela ditadura militar de 64.
A ojeriza dos militares brasileiros à esquerda é uma questão ideológica que data do início do século passado. A revolução comunista russa foi em 1917. O Partido Comunista do Brasil é de 1922. Em 1935, uma intentona comunista tentou depor o governo de Getúlio Vargas, mas fracassou. Na 2ª Guerra Mundial, militares brasileiros e comunistas russos lutaram contra Hitler.
Logo depois começou a chamada Guerra Fria entre os Estados Unidos e seus aliados, um deles o Brasil, e a União Soviética e seus aliados. Capitalismo x comunismo. A União Soviética desmoronou em 1991. O mundo tornou-se unipolar. A China se diz comunista, mas é tão capitalista quanto os Estados Unidos e, em breve, sua economia será a maior do planeta.
O comunismo, hoje, resiste em Cuba, na Coreia do Norte e onde mais? Serve de espantalho a governantes autoritários que querem se perpetuar no poder, e aos seus apoiadores, fardados ou não. Serve também de aríete para corroer a democracia mundo afora.
O Globo: Huck conversa com seis partidos para eleição em 2022
Apresentador avalia cenário, cercado de experientes interlocutores, mas só decide se concorrerá ao Planalto em setembro
Thiago Prado, O Globo
RIO — No domingo, dia 7, o ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ) desembarcou no Rio para um encontro com o apresentador Luciano Huck. Ao deputado, interessava alinhar os seus rumos após a eleição do deputado Arthur Lira (PP-AL) para sucedê-lo e a briga pública com o ex-prefeito de Salvador ACM Neto (DEM-BA). A Huck, era importante ouvir um dos muitos interlocutores que passou a ter na política nos últimos tempos devido às articulações para se lançar candidato ao Planalto no ano que vem.
Desde 2018, quando seu nome já havia sido especulado para a disputa que elegeu Jair Bolsonaro, o apresentador tem relações explícitas com PSDB, DEM e Cidadania (na época chamado de PPS). O GLOBO apurou que, nos últimos meses, o apresentador também já abriu canal com PSB, Podemos e PSD como possibilidades para 2022. Ele até agora não indicou, entretanto, se de fato entrará na política e se adotará um perfil de centro-esquerda ou centro-direita.
Na conversa com Maia, Huck ouviu que o DEM não poderia mais hospedar um projeto antibolsonarista diante do alinhamento da bancada baiana na vitória de Lira na Câmara — dias depois, ACM Neto telefonou para o apresentador negando a informação. Naquela noite, o ex-presidente da Câmara queria saber dos planos de Huck e contou ao apresentador as suas duas principais hipóteses quando deixar o DEM: filiar-se ao PSL, dono de milionário fundo partidário; ou migrar para o PSDB de João Doria. Liderar uma fusão de Cidadania, Rede e PV, noticiado como possibilidade durante a semana, está em segundo plano para Maia. A ex-senadora Marina Silva resiste a dar fim ao Rede; já o PV vive uma crise interna com parte da sigla tentando desalojar do poder o presidente José Luiz Penna.
Huck mais uma vez não se comprometeu com respostas concretas a Maia. Tem sido este o conselho dado pelo seu principal consultor político, o ex-governador do Espírito Santo, Paulo Hartung. O ex-presidente do Banco Central, Arminio Fraga, exerce o mesmo papel na área econômica. O apresentador considera que haverá dois momentos de tomada de decisão: a entrada na política, por volta de setembro deste ano, quando o cenário econômico e social estará mais claro; e a filiação partidária no primeiro semestre de 2022 apenas.
Projeção de cenários
Hartung e Huck têm olhado com lupa todas as pesquisas recentes para decidir os próximos passos. O ramo das sondagens interessa tanto ao apresentador que ele abriu sua agenda em 5 de fevereiro para uma conversa com Murilo Hidalgo, dono do Paraná Pesquisas. Diante dos dados, o ex-governador do Espírito Santo projeta o seguinte cenário para Huck organizar o futuro: Bolsonaro perderá popularidade ao longo do ano. Mesmo criando um novo auxílio, o valor jamais será próximo aos R$ 600 pagos em 2020, o que alimentará a frustração de parte do eleitorado. Com o poder da máquina, Hartung imagina, contudo, que o piso da avaliação ótimo e bom do presidente não cairá de 25%, o que o tornará competitivo para estar no segundo turno em 2022.
A despeito da força do Planalto, pesquisas divulgadas neste início de ano, especialmente uma do Datafolha de janeiro, animaram Huck e o seu entorno. Em um índice de confiabilidade de figuras públicas brasileiras, o apresentador apareceu na frente do governador de São Paulo, João Doria, com ativos eleitorais que há tempos os tucanos encontram dificuldades de ter: entrada no Nordeste e na população de baixa instrução.
Baixos índices
Hartung chegou a fazer uma análise para Huck no fim do ano passado: a vacina Coronavac, do Instituto Butantã, poderia equivaler ao Plano Real para FH em 1994. Quase um mês depois do início da imunização no país, os índices de popularidade de Doria pelo Brasil profundo patinam. Os baixos números do governador de São Paulo coincidem com o movimento que ocorreu na semana passada no PSDB, de lançamento da pré-candidatura presidencial do governador do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite.
No campo do que se convencionou chamar de centro na política brasileira, uma análise de Huck e seu entorno é diferente de praticamente todo o mundo político: o ex-juiz Sergio Moro ainda pode, sim, ser candidato devido aos seus altos e resilientes (embora em queda) índices de popularidade. Com Moro na urna, Huck estará fora do jogo de 2022.
Fernando Gabeira: O precoce começo de 22
Algumas religiões desaconselham explicar muito sua fé. O zen-budismo, por exemplo, costuma alertar: quem sabe não fala, quem não sabe é quem fala.
O grande viajante inglês Richard Francis Burton converteu-se ao sufismo e adotou, simultaneamente, uma tática chamada taquia, que consiste em esconder sua fé. A política é uma esfera muito diferente, mas também nela é preciso cuidado para não falar muito ou dar a falsa impressão de que sabe mais que os outros.
Lembro-me de que, em Brasília, os que caíam nessa tentação eram discretamente rejeitados e, quase sempre, chamados de professor de Deus. Conheci vários professores de Deus e, confesso, que sabiam realmente muito menos do que imaginavam saber.
Dito isso, é com humildade que meto a colher nesse debate sobre a oposição a Bolsonaro e as alternativas para derrotá-lo em 2022. Talvez, no chamado centro democrático, seja necessário superar o clima de lamentos, acusações mútuas e desencanto.
Não há nada de extraordinário na adesão de quadros do DEM e do PSDB a Bolsonaro. Durante a ditadura, o MDB se dividiu, e os que faziam oposição eram chamados de autênticos.
Sempre sobra um pequeno núcleo com visão nacional, e sua tarefa é levar o trabalho adiante, tratando de unificar a partir das lutas cotidianas, das quais não se pode fugir. Coisas simples e decisivas, como vacinação em massa, ajuda emergencial.
No campo da esquerda, houve também uma certa surpresa, no meu entender exagerada, com o lançamento de um candidato do PT, Fernando Haddad. O partido ocupou o poder durante muito tempo, tem uma grande bancada no Congresso, disputou com Bolsonaro o segundo turno.
Todos sabem que lançará candidato próprio. Mesmo nas eleições municipais de São Paulo, com poucas chances segundo as pesquisas, disputou o primeiro turno.
Já defendi a ideia de que é indispensável uma grande frente. No entanto as próprias eleições municipais mostraram possibilidades diferentes.
O candidato de Bolsonaro perdeu tanta consistência em São Paulo que nem chegou ao segundo turno. No Rio, o aliado do presidente chegou ao segundo turno tão combalido que seria derrotado pelo próprio índice de rejeição.
Alguma dessas hipóteses pode acontecer com Bolsonaro, uma vez que ainda não foi metabolizado pela população seu fracasso ao tratar da pandemia, muito menos sua irresponsabilidade em defender e produzir remédios ineficazes contra o coronavírus. E nem foi revelado amplamente à juventude do país seu trabalho de destruição da natureza.
O caminho pela frente, de um lado, é de crise social; de outro, uma aliança entre Bolsonaro e o Centrão, que pode até esboçar algumas respostas, mas, ao longo da história, tem se mostrado um tipo de aliança que cava um abismo entre política e sociedade.
Os que defendem a frente falam também de um projeto nacional, uma visão de como e para onde conduzir o Brasil, sua inserção internacional. É inegável a importância do argumento. No entanto a experiência tem mostrado também que muitos eleitores se definem por algum tema que lhes interessa e avaliam também a trajetória e a personalidade do candidato.
Por isso, talvez, em vez de estarmos vendo apenas a fragmentação de uma potencial frente única, estejamos assistindo às cotoveladas e artimanhas que antecedem o lançamento das candidaturas.
É importante que se lancem e comecem a trabalhar seriamente. Não existe uma certeza de que a eleição que virá repetirá os protagonistas da eleição de 2018. Muito menos a certeza de que, repetindo os protagonistas, repita o resultado.
Tenho dúvidas se conseguiremos deter satisfatoriamente a pandemia antes de 2022. Isso torna o caminho mais complicado, mas não impede a existência de um caminho aberto, ainda não fatalisticamente desenhado; enfim, um que depende daqueles que vão desbravá-lo.