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RPD || Juliana Magalhães: Polêmica marca anulação das condenações de Lula

A advogada e consultora legislativa do Senado Juliana Magalhães analisa, em seu artigo, os aspectos processuais da decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal Edson Fachin no habeas corpus 193.726 PR 

Como já é de conhecimento geral, o ministro Edson Fachin do Supremo Tribunal Federal (STF), em sede de habeas corpus impetrado por Luiz Inácio Lula da Silva, declarou a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para o julgamento de ações penais (Triplex de Guarujá, sítio de Atibaia, sede do instituto Lula e doações ao mesmo instituto) em desfavor do ex-Presidente, determinando a remessa daqueles autos ao Distrito Federal.   

O ministro declarou a nulidade dos atos decisórios praticados nas ações penais, inclusive os recebimentos das denúncias, devendo o juízo competente decidir acerca da possibilidade da convalidação dos atos instrutórios. A decisão, contudo, resta por hora em um “limbo jurídico” em razão do julgamento ulterior, pela 2ª Turma do STF, da suspeição do ex-juiz Sérgio Moro para processar as ações mencionadas.  

A decisão do ministro, tal como se tornou comum na comunidade jurídica, causou estranhamento. Não em razão da matéria de fundo, isto é, se, de fato, não há correlação entre os fatos narrados naquelas ações e os diversos episódios de corrupção em desfavor da Petrobrás, cujo mérito não será objeto do artigo. Mas o busílis da questão são as sucessivas manifestações de menoscabo em relação às normas processuais penais pela justiça brasileira, especialmente pelo seu mais importante Tribunal, o STF.  

O Estado Democrático de Direito deve estar baseado no devido processo legal, conquista da civilização moderna que sabe, com razoável previsibilidade, a sequência dos atos processuais e suas consequências. A segurança jurídica é um elemento de importância quase espiritual para as nações, pois o homem toma decisões diuturnas com base no seu resultado futuro dessas decisões.   

Assim, ainda quando estudantes de Direito, aprendemos as noções básicas sobre o direito processual. Uma delas é que há instâncias ordinárias (primeiro grau, o juiz singular; e segundo graus, os Tribunais de Justiça) e extraordinárias (Tribunais Superiores), devendo esses últimos não revolver provas e fatos na seara recursal, mas decidir questões sobre o direito em tese. Para não existir uma eternização dos litígios, a Constituição criou um modelo em que os Tribunais terão amplíssimo âmbito de cognição (efeito devolutivo da apelação), mas as instâncias extraordinárias se limitariam a analisar o amoldamento dos fatos (tal como decididos pelas instâncias inferiores) em relação ao direito.   

Mas, a regra da cognição limitada desses Tribunais foi ignorada pelo Ministro Fachin quando, em sede de habeas corpus, revisitou provas e reapreciou os fatos. Saber se “as condutas atribuídas ao paciente não foram diretamente direcionadas a contratos específicos celebrados entre o Grupo OAS e a Petrobras S/A” é matéria de fato, cuja afirmação ou negação se inseriu no âmbito de cognição das instâncias ordinárias. Revisitar tal tema agora desrespeita a lógica de um sistema processual que deve estar voltado à estabilização de conflitos.   

Do mesmo modo, o Tribunal habitualmente deturpa o papel de cada recurso previsto em Lei, provocando a eternização dos litígios, concentrando em si um poder absoluto e quase sempre monocrático. Veja-se que a declaração de incompetência ocorreu no âmbito de um habeas corpus impetrado contra decisão do STJ nos autos do Agravo Regimental no Recurso Especial nº 1.765.139, no ponto em que refutou as alegações de incompetência da 13ª Vara Federal. Cada habeas corpus – e observe-se que HC não é um recurso, mas, um remédio excepcional – impetrado pela defesa do ex-presidente Lula contra uma decisão do STJ, se revela como uma nova possibilidade de o STF modificar integralmente o conteúdo de suas decisões.  

Além disso, o sistema de preclusões processuais – elemento central para o funcionamento racional dos Tribunais – foi ignorado pela decisão, ao não observar que a incompetência relativa deve ser mencionada pela parte em sede de exceção de incompetência e, ao ser decidida pelo Tribunal de segundo grau, se torna tese jurídica rejeitada. Se assim não fosse, a marcha processual estaria sujeita a diversos atos de retorno. 

Por fim, alerta-se que não se tratou aqui de advogar pela inocência ou culpa do ex-Presidente com relação aos fatos julgados pela 13ª Vara Federal de Curitiba. Como dito, o artigo disso não se ocupou. Cremos, contudo, que os processualistas não devem naturalizar episódios de ofensa ao devido processo legal pelo Tribunal Constitucional do país. Vivemos tempos difíceis e nossa democracia não caminha a passos largos, mas, sempre teremos no devido processo uma das mais importantes armas contra o arbítrio.   

*Juliana Magalhães é sócia do escritório Trindade Camara Advogados e consultora legislativa do Senado Federal em direito penal e processo penal. Mestre em direito e políticas públicas. Especialista em direito processual.  

  • ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
  • *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

RPD || Leandro Consentino: O ideologismo irresponsável

Brasil corre o risco de ficar de fora das principais mesas de negociações por conta da política externa do Governo Bolsonaro, isolando-se da futura governança global. Estados devem reconstruir os organismos internacionais  quando a pandemia tiver fim

O breve governo de Jânio Quadros, inaugurado e concluído em 1961, não costuma trazer grandes lembranças sobre suas iniciativas políticas internas para além das folclóricas proibições do uso de biquinis, lança-perfumes e rinhas de galos. No flanco externo, contudo, o legado é evidente, com a emergência da chamada Política Externa Independente. 

Buscando diversificar os contatos externos e não se alinhar a nenhum dos dois lados da Guerra Fria, evitando a bipolaridade reinante por meio de princípios como a não-intervenção e a auto-determinação dos povos, o novo paradigma de política externa brasileira foi conduzido brilhantemente por nomes como Afonso Arinos de Melo Franco e San Tiago Dantas, durante os governos de Quadros e de seu vice, João Goulart.    

Com a ruptura democrática e a ascensão do Regime Militar, a Política Externa Independente foi brevemente substituída por um alinhamento automático aos Estados Unidos e, consequentemente, ao bloco capitalista. O interesse nacional acabou, então, subordinado ao interesse norte-americano, o que ficou patente pelas palavras do então embaixador brasileiro em Washington, Juraci Magalhães: “O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”.  

O alinhamento, contudo, não durou muito tempo e, na década seguinte, esta postura subserviente cedeu espaço, paulatinamente, para uma espécie de reedição da Política Externa Independente, cujo ápice ocorreria em pleno governo do general Ernesto Geisel. Sob a batuta do então chanceler Antônio Francisco Azeredo da Silveira, o novo modelo foi batizado de Pragmatismo Ecumênico e Responsável, apontando exatamente para uma política exterior pautada em uma postura realista e pouco afeita a constrangimentos de natureza ideológica, sobretudo no que diz respeito às negociações econômicas e comerciais. 

O pragmatismo responsável, como ficou mais conhecido, orientava-se pelo significado semântico de seu título e buscava assegurar, sem maiores preocupações com a orientação política dos governos com quem travava acordos, a primazia de nosso interesse, sobretudo em um ambiente internacional desfavorável, atingido pela escalada da Guerra Fria e pelo primeiro choque do petróleo. Os resultados não tardaram e aprofundaram nossos laços com regiões e países bastante diversos, com especial destaque para a África, o Leste Europeu e o Oriente Médio, além de nos garantir importante participação e até protagonismo em organismos internacionais. 

Com o fim do governo Geisel e posteriormente do próprio regime ditatorial, o advento da Nova República não abandonou tais princípios universalistas e legitimou, ao longo dos sucessivos governos democráticos, a inserção do país nos regimes internacionais, sempre pautado pela autonomia quanto às superpotências, em especial os Estados Unidos da América. 

Não obstante seus diversos problemas internos, o Brasil logrou posição de destaque na esfera multilateral, principalmente marcada pela continuidade de sua política externa, independente da disputa entre as forças políticas. As conquistas consolidadas por um governo – seja na esfera econômica, comercial, ambiental ou de direitos humanos - alicerçariam as bases para as conquistas posteriores, ainda que o presidente seguinte fosse de oposição ao anterior.  

Este círculo virtuoso foi bruscamente interrompido com a vitória de Jair Messias Bolsonaro, em outubro de 2018, e a subsequente nomeação de Ernesto Araújo para o cargo de Ministro das Relações Exteriores. Com uma visão que preconizava completo alinhamento com os Estados Unidos, à época governados por Donald Trump, e outros países governados por populistas conservadores, a política externa brasileira esposou a antítese do paradigma de Azeredo da Silveira, pautando-se por um ideologismo irresponsável.  

De maneira cada vez mais alheia aos anseios brasileiros, o governo de turno prefere privilegiar suas convicções políticas e ideológicas em detrimento do interesse nacional, colocando em risco os esforços de política externa, conquistados nas últimas décadas e prejudicando a economia e a sociedade brasileira em um momento tão grave como o atual. Foi dessa forma que ficamos para trás na corrida pelas vacinas e que tivemos os insumos atrasados por algumas semanas, perdendo centenas de vidas pelo caminho. 

Assim sendo, quando a pandemia tiver fim e os Estados decidirem a reconstrução de organismos internacionais pautados na questão sanitária e na recuperação da economia, o Brasil pode não ser convidado às principais mesas de negociações, isolando-se da futura governança global. Eis o risco que ora enfrentamos e que precisamos evitar a todo custo.  

Como disse o próprio Azeredo da Silveira: “a melhor tradição do Itamaraty é saber renovar-se”. Ainda que sem grandes esperanças para o curto prazo, esperemos que essa renovação venha em breve, retirando a viseira ideológica que nos tolda a visão para buscar os reais interesses de nosso país.  

* Leandro Consetino é bacharel em Relações Internacionais, Mestre e Doutor em Ciência Política pela Universidade de São Paulo (USP). Atualmente, é professor no Insper e na Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo. 

  • ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
  • *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

 


RPD || Mauro Oddo Nogueira: Auxílio Emergencial - A boia no meio da tormenta

Benefício manteve acesa parte da demanda, evitando uma queda ainda maior do PIB em 2020 e permitiu que mais de 50 milhões de brasileiros e seus familiares não se vissem privados de qualquer fonte de renda

O cenário brasileiro das últimas semanas foi marcado por tal quantidade de fatos relevantes que chega a ser difícil acompanhá-los, digeri-los, analisá-los. Dentre eles, sublinho a renovação do Auxílio Emergencial, com início programado para a primeira semana de abril. Acredito, porém, que o destaque não tenha sido o merecido. Digo isso por conta da dimensão dos impactos do programa na economia nacional. A rigor, não há como se fazerem avaliações precisas desses impactos, uma vez que ainda não se produziram os dados estatísticos que o permitirão. Uma dose de bom senso, contudo, somada a um olhar atencioso para a realidade, permite uma estimativa razoável. 

O número mais esclarecedor é o do PIB. As estimativas para o PIB de 2020 quando do início da pandemia variavam, dependendo do otimismo de quem as fazia, entre uma queda de 6% até mais de 9%. Mas o resultado final foi de “apenas” 4,1%. E, por óbvio, isso não se deveu à pandemia ter sido menos virulenta ou duradoura do que se supunha. Muito pelo contrário. 

O que impediu, então, que o PIB desmoronasse em um grau ainda maior do que o dessas previsões? A explicação que parece fazer sentido – principalmente cotejando-se o PIB com os índices de desemprego e desalento – é a de que o Auxílio Emergencial manteve acesa parte da demanda. Lembremo-nos de que os principais atingidos pelos fakedowns(modalidade tupiniquim de lockdown) são exatamente os autônomos e os informais. Ou seja, os que não têm reserva de capital, não conseguem mecanismos outros para se manterem de algum modo operando e atuam majoritariamente nos segmentos mais impactados. O Auxílio permitiu que mais de 50 milhões de brasileiros e seus familiares não se vissem privados de qualquer fonte de renda. Isso certamente evitou uma convulsão social – inclusive com a possibilidade de distúrbios de massa e saques – que se chegou a ver desenhada no horizonte. 

Para a felicidade de quase todos, a pífia proposta de Auxílio inicialmente elaborada pelo governo foi ampliada pelo Congresso por pressão da sociedade. Não fosse isso, por render graças à Sua Majestade o Equilíbrio Fiscal (dogma abandonado desde o início da pandemia pelas economias mais liberais do planeta, como os EUA, Alemanha e Reino Unido), suas condições não teriam evitado a catástrofe. 

Acontece que, para além dos impactos econômicos, há ainda três impactos de ordem moral. 

O primeiro foi tornar visíveis os invisíveis. Houve susto generalizado quando cerca de 60 milhões de pessoas se apresentaram para receber o Auxílio. A despeito desse contingente de concidadãos aparecer claramente nas bases estatísticas – como a Pnad Contínua do IBGE, por exemplo – e ser objeto de numerosos estudos e publicações científicas, parece que os gestores públicos e a mídia em geral os desconheciam. 

O segundo está condicionado a se admitir como verdadeira a hipótese que muitos economistas têm defendido, a de que parte da inflação – especialmente dos gêneros alimentícios – é consequência da elevação do dólar. E que parte decorre da pressão de demanda sobre esses itens de consumo (leite, arroz, feijão etc.), resultado dos efeitos positivos do auxílio emergencial sobre a renda das pessoas.  Ocorre que tais produtos são classificados como bens com elasticidade-renda da demanda menor ou igual a zero. Trocando em miúdos, trata-se daquelas coisas que as pessoas não compram mais porque estão ganhando mais. Trocando mais em miúdos ainda, ninguém se empanturra de arroz e feijão porque teve um aumento salarial.  Em alguns casos, até se compra menos desses produtos porque os substitui por outros mais caros. Esse comportamento da elasticidade só não se verifica em uma situação: quando a renda anterior do indivíduo não era suficiente para que adquirisse esses tais alimentos “básicos”. Portanto, admitir a veracidade desse componente inflacionário é reconhecer o nível de miséria a que estão submetidos milhões de brasileiros e que se traduz em uma amarga palavra de quatro letras: fome. 

O terceiro, por fim, tem origem nas indefinições que se arrastaram por semanas. Nas idas e vindas em relação à sua renovação, valores que serão concedidos, critérios de elegibilidade, data de início e duração. Esse impacto moral é bem mais simples de se compreender. Basta que a gente se coloque no lugar de quem depende desse dinheiro para colocar comida nos pratos de seus filhos. 

*Doutor pela Coppe/UFRJ e pesquisador do Ipea. É autor do livro Um pirilampo no porão: um pouco de luz nos dilemas da produtividade das pequenas empresas e da informalidade no Brasil. 

  • ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
  • *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

RPD || Vinícius Müller: A pedagogia do centro

Vinícius Müller avalia que, se não houver um passado que dê substância à formação de um centro político, este espaço será ocupado por candidatos polares como Lula e Bolsonaro, que o usam apenas de modo instrumental

Há uma expressão, comum e ingênua, que revela um modo particular de nosso entendimento sobre a História: ‘o problema é que nunca tivemos uma guerra para, de fato, resolvermos nossas feridas mais profundas’. Ou, especificamente, ‘se tivéssemos feito uma guerra de independência ou uma revolução contra escravidão teríamos um país mais justo e desenvolvido’.  

A ingenuidade desta premissa reside na própria História. Os EUA, por exemplo, fizeram uma guerra para acabar com a escravidão e nem por isso resolveram a desigualdade racial que até hoje revela que esta ferida é muito maior do que uma guerra pode ser.  

Contudo, esta premissa revela uma pedagogia, e sua instrumentalização resulta na condenação moral de qualquer tipo de ajustamentos ou negociações que porventura tenham sido feitos no passado ou que possam se efetivar no futuro. 

É assim que há muito tempo temos oferecido nossa história pública: uma soma de arranjos feitos por quem, no fundo, não quer mudar nada. E se há – e certamente há – alguma verdade nisso, não parece razoável que essa seja a única versão da História. O outro lado é a glorificação, tão justa quanto supervalorizada, da ideia de que por seu ‘passado de luta’, por si só, alguém deva nos servir como referência. Muitas vezes, e pelo contrário, é o ‘passado de negociações e capacidade de fazer acordos’ que deve, por ser tão ou mais relevante à nossa trajetória, servir-nos de referência.   

Pensar sobre isso nos ajuda a superar alguns de nossos atuais desafios: como criar uma outra pedagogia que rompa com esse modo parcial de contar a História? Como criar uma narrativa que envolva, primordialmente, os arranjos e acordos? E como fazer isso sem parecer oportunista? 

Estas são barreiras na medida em que a declaração conjunta feita por possíveis candidatos de centro à presidência da República (Ciro, Doria, Amoedo, Huck, Mandetta e Leite) pode ser esvaziada se duas lacunas não forem rapidamente preenchidas. A primeira é a fragilidade da proposição que vê o problema apenas na inexistência de um projeto comum entre eles. Não é o futuro que conta, e sim o passado. Ou seja, o que precisam fazer é, antes de um projeto comum, encontrar um passado que os una ou que, no mínimo, justifique este ensaio de aproximação. A segunda é que, sem isto, os laços serão frágeis e, consequentemente, o fortalecimento do centro não significará nada de muito diferente do que é para os candidatos polares, Lula (PT) e Bolsonaro (Sempartido). Ou seja, se não houver um passado que dê substância à formação de um centro político, este espaço será ocupado por aqueles que o usam apenas de modo instrumental. 

Para tanto, é necessária a criação de uma pedagogia do centro, que não só repudie a narrativa histórica da ’luta’ - característica daqueles que atiçam a polarização e usam o centro apenas como ferramenta -, mas também identifique os valores que são vistos no passado e transferíveis ao futuro. E esta pedagogia pode seguir alguns passos: a) leitura do contexto não pode ser capturada pela tentação da polarização. O esforço é achar, no contexto, os elementos que engrandecem a narrativa do ‘acordo’ e condenam a viciada e, hoje irresponsável, narrativa da ‘luta’; b) exaltar em nossa trajetória exemplos de arranjos e acordos que nos ajudaram a avançar e, ao mesmo tempo, enfrentar a narrativa que encontra em nossa trajetória apenas os acordos e arranjos que nos atrasaram; c) nomear os riscos e problemas criados em nossa trajetória pela ética da ‘luta’. Ela não pode, porque efetivamente não é, ser vista como moralmente superior à ética do ‘acordo’; e d) encontrar uma linguagem que facilite o entendimento de que ser do centro é a definição de um valor enraizado em nossa trajetória e que, mesmo responsável por alguns resultados ruins, também foi elemento fundamental para grandes avanços. 

 São esses os passos, em resumo, que criarão um ambiente favorável para que o centro deixe de se posicionar como o ‘negativo’ à polarização e seja o ‘positivo’ de nossa trajetória e de nosso futuro.  Ou seja, aquele que carrega - porque identifica, valoriza e comunica -  os avanços que tivemos em nossa história quando conseguimos anular a retórica da ‘luta’; e não o refúgio daqueles que só querem reproduzir nossos males.  

Assim não seremos engolidos por aqueles que fazem do centro um instrumento oportunista. Ou alguém tem dúvida de que Bolsonaro acena ao centro apenas por uma lógica tática e de curto prazo? Ou de que o discurso de que Lula é o verdadeiro centro é só oportunismo?  

*Vinícius Müller é doutor em História Econômica, professor do Insper e do CLP (Centro de Liderança Pública)

  • ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
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RPD || Entrevista Especial - José Gomes Temporão: ‘Pandemia terá impacto central no futuro da Nação’

Ausência de medidas e negacionismo do presidente Jair Bolsonaro contribuíram drasticamente para a situação crítica que o país enfrenta atualmente no combate à pandemia do novo coronavírus, acredita Temporão

Por Caetano Araújo, Luiz Santini e Renato Ferraz

O número de crimes tipificados no Código Penal e na Constituição brasileira que o presidente e seu governo cometeram contra a população brasileira em relação ao combate contra a pandemia do novo coronavírus são inúmeros, incontáveis, avalia o ex-ministro da Saúde  José Gomes Temporão, entrevistado especial desta 30ª edição da Revista Política Democrática Online.

Temporão aponta três medidas que deveriam ter sido feitas pelo Governo Bolsonaro para evitar a situação em que o país se encontra atualmente: 1) Deveria ter liderado articulação entre Butantan, FIOCRUZ e os laboratórios estrangeiros que estavam desenvolvendo novas vacinas e fechado acordos de compra ainda em meados de 2020. 2) Optou apenas pelo número mínimo de doses do mecanismo Covax, administrado pela Organização Mundial da Saúde, que é de 10% da população. O Brasil vai receber, assim, 20 milhões de doses, suficientes para vacinar 10 milhões de pessoas. País tinha direito de pleitear até 80 milhões de doses, em benefício de 40 milhões de brasileiros.   3) Se tivesse fechado acordos compra com Pfizer, Moderna, Sputinik V e outros produtores lá atrás, teríamos tido vacinas a partir de janeiro e já poderíamos estar com 100 milhões de pessoas vacinadas.

“A sociedade brasileira, o povo brasileiro, foi objeto de um ataque criminoso organizado do governo federal, que destruiu a capacidade brasileira de enfrentar adequadamente essa pandemia”, critica Temporão. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista concedida à Revista Política Democrática Online.  

Revista Política Democrática Online (RPD): A pandemia está tendo o impacto de uma tragédia social, sanitária, emocional. Mas pode ter favorecido o reconhecimento da importância do Sistema Único de Saúde para a saúde dos brasileiros por parte de toda a sociedade, independentemente de níveis sócioeconômicos, tanto quanto a percepção da relevância do papel da ciência e da qualidade dos pesquisadores e cientistas nacionais na condução das graves questões sanitárias que vêm ameaçando o país. Como valorizar esses sentimentos de forma permanente?  

José Gomes Temporão (JGT): Que bom começarmos a conversa falando de coisas boas também. A situação difícil, dramática e trágica que nosso país vive nesse último ano tem e seguirá tendo impacto central no futuro da nação. Importa destacar, no entanto, que, ao longo desse período pandêmico, o SUS ganhou novo contexto, um novo olhar da sociedade. Está lá na Constituição de 1988, no Artigo 196: “a saúde é um direito de todos e dever do Estado, alcançando através de políticas econômicas e sociais”. Quer dizer, uma visão bastante abrangente da questão da saúde. Nós também sabemos que, no curso dessas três décadas, se de um lado o SUS conseguiu se estruturar, ampliou cobertura, reduziu desigualdades entre classes sociais e regiões e teve um impacto nos indicadores sanitários extremamente importante, por outro lado se fragilizou do ponto de vista do financiamento, da gestão, do modelo assistencial. E através de uma política deliberada de subsídio ao mercado, o que nós assistimos foi um crescimento proporcional muito importante do percentual da população brasileira que dispõe de um plano seguro de saúde para o atendimento de suas necessidades corriqueiras de exames, consultas e internações – maior parte, provida pelo empregador. Ou seja, é uma cobertura privada financiada majoritariamente pelo empregador e ligada, portanto, ao vínculo laboral. Então essa visão do SUS ao longo dessas décadas sofreu, digamos assim, algumas fragilizações.   

A primeira para a qual eu queria chamar a atenção é uma certa visão que se consolidou na sociedade do SUS como muito importante para as pessoas pobres, para os mais pobres. Trata-se de um desvio, uma visão equivocada. Porque, na verdade, o SUS prescrito na Constituição reflete a visão da construção de um sistema universal para todos os brasileiros.   

A segunda, que também se difundiu de maneira muito forte na sociedade, é essa visão de que ter um plano de saúde faz parte do processo de ascensão social, e de que a medicina privada, portanto, terá um padrão de qualidade superior à da medicina pública – o que, aliás, não se sustenta em nenhum ponto de vista analítico. Temos hospitais, instituições, programas e políticas de excepcional qualidade no SUS e no setor privado. Temos problemas dramáticos de qualidade no SUS e no setor privado. A discussão está equivocada, porque, quando a pandemia começa e o impacto dela na sociedade se expressa dessa maneira tão pungente, real e concreta, uma série de setores da sociedade que, antes via o SUS um pouco assim à distância – como “uma coisa que não faz parte do meu cotidiano, do meu dia a dia, talvez tenha muito peso para os meus empregados, ou para as pessoas que trabalham na minha casa” – passou a avaliá-lo em uma dimensão distinta. Basta imaginar, como mera hipótese, o que seria dos praticamente 50 milhões de brasileiros que não têm nenhum tipo de proteção social estruturada, subempregados, que trabalham por conta própria, e os 15, 16 milhões de desempregados, portanto a grande maioria da população brasileira, sem o SUS?   

"TIVEMOS UMA FRAGMENTAÇÃO DA FEDERAÇÃO BRASILEIRA. O GOVERNO FEDERAL, NA VERDADE, SE TRANSFORMOU EM UM POLO DE RESISTÊNCIA ÀS MEDIDAS PRESCRITAS PELA CIÊNCIA E PELA SAÚDE PÚBLICA"

Felizmente, essa avaliação de senso comum da sociedade se expressou também na grande mídia. Nunca se falou tanto nos jornalões, nas TVs abertas e nos programas de TV fechada sobre o SUS, sobre suas dificuldades, suas qualidades, um reconhecimento do trabalho importantíssimo dos profissionais que ali labutam todos os dias. Atingiu inclusive setores com uma visão desenvolvimentista, progressista, mas que viam também o SUS um pouco distante. Registrou-se todo um movimento da área da ciência brasileira de aproximação com o SUS. Multiplicaram-se as experiências de articulação, integração e de reflexão conjuntas entre instituições e entidades do campo da saúde pública, da medicina, da ciência brasileiras no sentido de buscar orientar a população, esclarecer a sociedade, reivindicar, criticar o governo.   

Estou seguro, assim, de que, apesar das dificuldades estruturais que o SUS enfrenta, ganhamos espaço político e temos de saber como aproveitar isso para fortalecê-lo no futuro. Essa questão do SUS e do que eu chamo da construção de uma consciência política, de uma consciência coletiva, de uma consciência social do valor dos sistemas universais e do SUS, é uma questão central da nossa agenda nos próximos tempos.   

Isso vem junto com a questão da ciência. Em maio do ano passado, já ressaltávamos em debates que só conseguiríamos sair dessa situação quando tivéssemos uma ou mais vacinas que funcionassem. Mas ouvíamos: “vacina?, esquece. Vacina, só em 2021, 2022. É coisa para um ano e meio, dois anos”. Citava-se o caso anterior do período mais curto de desenvolvimento de uma vacina, a da caxumba, que levou quatro anos para chegar ao mercado. E a ciência nos colocou não uma, mas várias vacinas antes de um ano do início da pandemia.   

A ciência mostrou seu valor, sua importância. No caso brasileiro, com algumas singularidades. Fomos o terceiro país do mundo a fazer o sequenciamento genético do vírus; cinco dessas vacinas, que já estão no mercado, foram testadas na população brasileira, em que foram realizados ensaios clínicos. Nós sabemos que, para fazer ensaio clínico, você tem de ter uma estrutura de ciência e de hospitais de ensino e pesquisa; uma estrutura regulatória – nós temos uma das melhores agências reguladoras do mundo, a ANVISA. E os brasileiros publicaram inúmeros artigos, e participaram de inúmeras iniciativas no campo da ciência extremamente importantes no enfrentamento dessa doença.   

Outra dimensão que tem muito a ver com ciência, embora não se limite a ela, na verdade a transcende, é a questão do desenvolvimento tecnológico que depende da ciência e que entrou de novo na agenda. Todos nos lembramos do que aconteceu em março do ano passado: não tínhamos testes, não tínhamos respiradores, nem equipamentos de proteção individual, e a nação perplexa chegou à seguinte conclusão: a gente compra tudo da China. Ora, por que não fazemos aqui? Existiriam barreiras tecnológicas ou de conhecimento intransponíveis? De maneira alguma. Isso é reflexo de décadas de uma visão totalmente equivocada do que deva ser o processo de desenvolvimento brasileiro, o que se repetiu no início deste ano, quando se tentou justificar a falta de vacinas pela dependência da importação da China dos princípios ativos para produzi-las.   


"Temos hospitais, instituições, programas e
políticas de excepcional qualidade no SUS e no
setor privado. Temos problemas dramáticos de
qualidade no SUS e no setor privado"

Foto: Antonio Cruz/Agência Brasil


Espero que se recoloque de vez na agenda a visão da ciência como questão central e se discuta a necessidade de um projeto nacional de redução da dependência tecnológica brasileira no campo da saúde. Quando eu estava no ministério, entre 2007 e 2010, implementamos, de maneira pioneira, durante o segundo mandato do presidente Lula, uma política voltada exatamente para essa prioridade: como internalizar e aumentar a capacidade brasileira de produzir aqui tecnologias que até então importávamos. Fizemos isso no campo das vacinas, de medicamentos para transplante, de medicamentos para distúrbios psíquicos, de medicamentos para doenças reumatológicas, de testes para diagnóstico. Chegamos a desenvolver cerca de 80 projetos de parcerias entre laboratórios de capital nacional, multinacionais e laboratórios públicos. Mas, a partir de 2016, tudo se interrompeu, e agora no governo Bolsonaro, simplesmente não temos a menor perspectiva de que esse projeto possa seguir adiante. Em resumo: SUS na agenda, ciência na agenda e a redução da vulnerabilidade tecnológica da saúde brasileira na agenda dos próximos anos.   

RPD: Para quem não é da área, é grande a influência das versões difundidas pela imprensa e redes sociais, essencialmente que estamos em uma situação catastrófica e que vamos bater todas as marcas negativas em relação a essa pandemia. É procedente essa visão? Como chegamos a esse quadro? Onde erramos? Onde o governo federal, os governos subnacionais, a sociedade civil, enfim, erraram? E o que fazer para superar isso no curto prazo, para, senão superar, pelo menos minimizar os estragos que se anunciam?  

JGT: Havia, no início do ano passado, uma expectativa nacional e internacional sobre o desempenho do Brasil no contexto da pandemia, que eu qualificaria de positiva. Baseava-se na existência do SUS, um sistema universal que ampliou muito o acesso da população aos serviços – claro, com todas as dificuldades que conhecemos. Incorporava, também, a percepção internacional, construída ao longo de muitas décadas, da liderança que o Brasil exercera em alguns foros multilaterais, na área da saúde global. A Organização Panamericana da Saúde foi dirigida ao longo de décadas por brasileiros. O primeiro diretor geral da Organização Mundial da Saúde foi brasileiro, o Marcolino Candau, que ficou lá mais de dez anos. O Brasil teve papel importantíssimo na aprovação da legislação de TRIPs, na OMC, que regula a proteção patentária em medicamentos e produtos de saúde. O Brasil foi líder na aprovação da Convenção-quadro para o controle do tabagismo, o primeiro tratado de saúde pública internacional. Ou seja, o Brasil era visto como país dotado das ferramentas e as condições necessárias para enfrentar a pandemia.  

Faltou nessa análise, porém, considerar um componente que terminaria por evidenciar a grande vulnerabilidade brasileira. É bem distinto mobilizar o sistema de saúde, mobilizar a ciência e ter um governo que enfrente uma situação como essa de maneira competente ouvindo a ciência e saúde públicas se você tem uma grande homogeneidade social – caso da Europa. Mas, em um país estruturalmente desigual, como o Brasil, a complexidade das ações requeridas é bem maior. Teríamos de ter tido algumas iniciativas, decisões, o que não ocorreu.   

"O número de crimes tipificados no Código Penal e na Constituição brasileira que o presidente e seu governo cometeram contra a população brasileira são inúmeros, incontáveis"

Por exemplo: desde o início, uma política econômica a serviço da saúde e a serviço da defesa da vida. Contamos, na verdade, única e exclusivamente com o benefício emergencial de R$ 600, graças ao Congresso Nacional, e que foi interrompido em dezembro. Isso foi pouco. Houve muitas iniciativas da sociedade civil, organizações não governamentais, movimentos culturais, movimentos de mulheres, população negra e jovens, para tentar enfrentar de alguma maneira, minimizar o impacto dramático dessa doença e, inclusive, de viabilizar que esses estratos mais vulneráveis da população pudessem manter distanciamento e permanecer em casa. Mas foram claramente insuficientes. O setor privado também ensaiou um apoio, em situações localizadas, desestruturado, desorganizado.   

Além disso, deveríamos ter tido, também desde o começo da pandemia, como implementei quando dirigi o ministério da saúde em 2009 e 2010 ante o surto do H1N1, a liderança do governo federal para coordenar e elaborar um plano de ação, elaborado por um comitê permanente onde o governo federal, os estados e os municípios juntos com a ciência e a saúde pública, construíssem as estratégias. O objetivo seria mobilizar a sociedade, com base em um projeto de comunicação pesado, para orientar, informar, educar, segundo as prescrições da saúde pública e da ciência, vale dizer: evitar aglomerações, manter o distanciamento, uso universal de máscaras, higiene das mãos, e agora as vacinas.   

E o que tivemos? Tivemos uma fragmentação da federação brasileira. O governo federal, na verdade, se transformou em um polo de resistência às medidas prescritas pela ciência e pela saúde pública. O presidente liderou esse processo criminoso repetidas vezes, como o atestam dezenas de exemplos, fatos, declarações e comportamentos públicos.  

Somente em dezembro último, o presidente aceitou, a contragosto, a inclusão da vacina do Butantan no PNI e nunca cessou de prescrever falsos tratamentos, estimulando as pessoas a um comportamento irresponsável. Minimizou a gravidade da pandemia e apostou na curta duração de seus efeitos, para fortalecer sua oposição ao isolamento social e abrir espaço à difusão de fake news. Debilitou o comando as operações do governo no campo da saúde pública ao militarizar o ministério da Saúde, comprometendo sua capacidade técnica, sua respeitabilidade e credibilidade. Deixou o país um ano à deriva, sem ministro e sem ministério. Construiu, na prática, uma autoridade sanitária paralela informal. Quebrou uma das pernas centrais da nossa capacidade de enfrentamento, ao debilitar o pacto federativo, jogando a responsabilidade sobre os governadores e prefeitos. Não orientou nem cobrou uma política econômica que estivesse em total sintonia com a política de saúde.   

Esse comportamento do presidente não deve ser julgado de maneira isolada. Juntam-se, cúmplices, o ministro da saúde, o ministro da economia e o conjunto do governo como um todo, que devem também solidariamente ser responsabilizados pela tragédia que nos levou a mais de 330 mil óbitos, em começos de abril (País superou a marca de 350 mil mortes em 12/04/2021). É o epílogo sangrento, dramático, pungente de um ano de negação, de mentiras, de quebra da federação, de ataque à ciência, à saúde pública e a Organização Mundial da Saúde.   

RPD: Como vê o horizonte da vacinação no Brasil?  

JGT: Tivemos as primeiras vacinas chegando ao mercado internacional em dezembro do ano passado, e o Brasil tem dois dos maiores produtores de vacinas do mundo, resultado, inclusive, de décadas de investimento na Fundação Oswaldo Cruz e no Butantan. O Butantan por conta própria, e em uma luta incrível, insana, contra o presidente da República, fechou acordo com os chineses e desenvolveu sua vacina usando plataforma que o Butantan já domina há muito tempo, a mesma plataforma tecnológica da vacina da gripe que usamos todos os anos, a vacina da influenza. E a FIOCRUZ optou por algo mais ousado: fez um acordo de transferência de tecnologia com a AstraZeneca e a Universidade de Oxford de uma plataforma tecnológica nova: é a primeira vacina no mundo que usa essa plataforma tecnológica, que usa o veículo adenovírus de chimpanzé, que coloca a proteína da espícula do vírus no nosso organismo, e, a partir daí, a gente desenvolve os anticorpos. Dispomos, assim, de duas grandes fábricas de vacinas, mas uma limitação: ainda dependemos da importação dos princípios ativos.   

"A ciência mostrou seu valor, sua importância. No caso brasileiro, com algumas singularidades. Fomos o terceiro país do mundo a fazer o sequenciamento genético do vírus"

Considerando esse contexto, o que deveríamos ter feito? Erramos onde não poderíamos ter errado, para além dos erros que já listei aqui, mas no campo das vacinas, especificamente. Sabedores de que tanto o Butantan como FIOCRUZ teriam dificuldades no início do ano de produzir em larga escala por essa dependência de insumos, e também porque o processo de transferência de tecnologia é complexo – é normal não se cumprirem prazos restritos do cronograma –, deveríamos ter feito três coisas que não fizemos:  

- Desde abril do ano passado, o PNI – considerado como um dos melhores do mundo, que vacinou, em 2010, 90 milhões de brasileiros contra o H1N1 em três meses – deveria ter liderado articulação entre Butantan, FIOCRUZ e os laboratórios estrangeiros que estavam desenvolvendo novas vacinas e fechado acordos de compra ainda em meados de 2020. Não só não fizemos isso, mas também rejeitamos a oferta da Pfizer de 70 milhões de doses. Isso ocorreu no tempo em que o presidente atacava as vacinas o tempo todo.   

- O mecanismo Covax, administrado pela Organização Mundial da Saúde, constituído por um pool de produtores, um fundo financiado por doações e com recursos de países desenvolvidos, foi de início rechaçado pelo Brasil. Quando o governo aderiu, optou apenas pelo número mínimo de doses, que é de 10% da população. Receberemos, assim, 20 milhões de doses, suficientes para vacinar 10 milhões de pessoas. Só que teríamos direito, e não exercemos, de pleitear até 80 milhões de doses, em benefício de 40 milhões de brasileiros.   

- Tivéssemos fechado acordos de compra com Pfizer, Moderna, Sputinik V e outros produtores lá atrás e garantido um volume de doses que se somariam a ainda incipiente capacidade brasileira do Butantan e FIOCRUZ, neste momento praticamente 10% da população brasileira receberiam a primeira dose, isto é, de 19 a 20 milhões de pessoas. Tivéssemos vacinas a partir de janeiro, já poderíamos estar com 100 milhões de pessoas vacinadas. E o impacto disso na redução da circulação do vírus, das pessoas infectadas, internadas, mortas teria sido dramática. Por isso, afirmo: a sociedade brasileira, o povo brasileiro foi objeto de um ataque criminoso organizado do governo federal, que destruiu a capacidade brasileira de enfrentar adequadamente essa pandeia.  

RPD: Diante disso tudo, da má gestão política, sanitária, diplomática e econômica, como responsabilizar a quem de direito e evitar que esses crimes fiquem impunes?  

JGT: Já são inúmeras as iniciativas, dentro e fora do país. Eu, mesmo, ao lado de vários outros ilustres sanitaristas e cientistas, subscrevi um pedido de impeachment do presidente da República, pedido que se adiciona a mais de uma centena de outros ora hibernando na gaveta do presidente da Câmara dos Deputados, para não mencionar a representação de ex-ministros da saúde, ex-juristas, juristas advogados, apresentada ao Tribunal de Haia contra o presidente Jair Bolsonaro. O número de crimes tipificados no Código Penal e na Constituição brasileira que o presidente e seu governo cometeram contra a população brasileira são inúmeros, incontáveis.   

Mas o governo federal cooptou, para usar um termo educado, o chamado Centrão para impedir que esses processos avancem. Por isso, não conseguimos garantir que essas iniciativas conduzam à abertura de um processo de impedimento do presidente, o principal obstáculo a um adequado, responsável e sério manejo do enfrentamento da pandemia, onde a ciência e a saúde pública têm que prevalecer. Não conseguimos até o momento transformar esse conjunto de denúncias inclusive junto ao Ministério Público, a Advocacia Geral da União e ao Supremo, em fatos que transcendam a decisão política da denúncia em si. Não conseguimos sequer abrir o processo de impedimento, porque, segundo nossa Constituição, cabe ao presidente da Câmara a decisão monocrática de submeter a matéria à apreciação de seus pares no plenário, o que não ocorreu na gestão do Rodrigo Maia nem parece vir a ocorrer na da Artur Lira. O Ministério Público tem sido omisso diante das dezenas denúncias recebidas não se manifestando. No âmbito do Tribunal de Haia, ainda não se decidiu sobre o acolhimento da representação.  

"Espero que se recoloque de vez na agenda a visão da ciência como questão central e se discuta a necessidade de um projeto nacional de redução da dependência tecnológica brasileira no campo da saúde"

Não tenho dúvida, porém, de que as evidências são muito contundentes: os crimes estão aí, os números estão aí, os vídeos estão aí, as manifestações estão aí; a tipificação de crimes contra a Constituição e o Código Penal está aí. E todos esses senhores e senhoras serão responsabilizados pelos crimes cometidos contra a população brasileira, contra a segurança nacional. Inclusive, contra o próprio desenvolvimento da nação e a frustração no campo da educação; a fome voltou; a mortalidade por doenças que tinham sido reduzidas, aumentou. Os responsáveis terão de ser punidos. Não apenas nas urnas em 2022: punidos criminalmente por cometimento de crimes contra a vida e a saúde da população.  

RPD: É muito preocupante quando se fala da perda da liderança do Brasil no sistema de saúde global. Mas também é possível dizer que o sistema global também está muito frágil, mesmo com as declarações quase diárias e emocionais, dramáticas, muitas vezes, do diretor geral da OMS. Falta uma coordenação global. Tudo indica que esta não será a última pandemia. Outras virão, no rastro de novos desastres sanitários e sociais, no rastro da questão da migração e do desrespeito à questão ambiental. Tudo isso prenuncia novas pandemias. Para que não sejam tão devastadores como o atual, será necessária uma coordenação sob uma liderança global. O que pensa a esse respeito?   

JPT: Essa é uma questão fundamental para nosso futuro. Começo com o que Brasil conseguiu fazer no exterior no cenário da saúde global. Estive há dois anos em Maputo, em Moçambique, e visitei um projeto desenvolvido pela FIOCRUZ, no âmbito de ações semelhantes lançadas para os países portugueses africanos lusófonos. Era o Instituto de Saúde Pública local, um prédio imponente, construído pelos Estados Unidos, cheio de equipamentos de última geração, fornecidos pela China, e operado por mestres, doutores e especialistas, treinados no Brasil. A importância do projeto refletia a diferença da abordagem da ajuda prestada pelos Estados Unidos e pelo Brasil na capacitação do sistema de saúde. Enquanto os Estados Unidos priorizaram doações para a montagem de programas verticais de combate a doenças escolhidas, como malária, chagas ou tuberculose, o Brasil privilegiava um olhar da cooperação em saúde estruturante, vale dizer, ajudando os países a organizar seu sistema de saúde, suas instituições permanentes de saúde.  

Isso foi alcançado pela associação entre o Ministério da Saúde, pelo menos de 2000 à gestão do ex-ministro Serra até 2016, e do Itamarati, por intermédio da ABC – Agência Brasileira de Cooperação. E nós perdemos tudo isso quando o Michel Temer entra, e principalmente agora com o Bolsonaro. O ministro das Relações Exteriores virou motivo de chacota nos corredores do Itamarati e acabou saindo, não sem antes contribuir para destruir a projeção visão internacional do Brasil, também no campo da saúde. Teríamos podido ajudar muito mais os países em desenvolvimento.  

Não devemos esquecer, por outro lado, que, a reboque da visão de Trump, Bolsonaro atacou frontalmente a OMS justo quando o mundo precisava de uma agência forte, nos planos técnico, financeiro e político. Falando em coordenação internacional, a OMS é absolutamente fundamental, haja vista a realidade nua e crua das vacinas. Atualmente, a questão da distribuição e consumo, a disponibilização de vacinas em termos globais, repete o mesmo padrão de desigualdade das outras tecnologias da saúde ao longo de décadas. Mais de 60% de todas as doses de vacinas destinam-se a atender cerca de 15 países, os países ricos.   

Tudo isso clama por uma OMS fortalecida. Fortalecida, inclusive para começar a discutir outros temas: a questão de patentes. A proteção patentária está na OMC, mas deveria estar na agenda de discussão e trabalho da OMS. Não há dúvida de que teremos situações de vulnerabilidade sanitária e outras pandemias no futuro. Impõe-se, portanto, uma OMS cada vez mais forte. E que o Brasil reocupe o papel tão importante que ocupou ao longo das últimas décadas, infelizmente, conspurcado, apagado pelo governo Bolsonaro.  

Saiba mais:

*José Gomes Temporão é médico sanitarista, membro da Academia Nacional de Medicina, ex-ministro da Saúde e pesquisador da Fiocruz.

*Luiz Antonio Santini é médico, professor da UFF de Cirurgia e de Saúde Pública, ex-diretor do INCA e pesquisador associado da Fiocruz.

*Caetano Araújo é consultor legislativo do Senado Federal, sociólogo. É diretor da Fundação Astrojildo Pereira (FAP).

*Renato Ferraz é jornalista profissional desde 1988. Trabalhou em veículos como Veja, Correio Braziliense, Congresso em Foco e outros. É pós-graduado pelo UniCeub e pela ISE Business School/Universidad de Navarra.

  • ** Entrtevista realizada para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
  • *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.

Bruno Boghossian: Guedes perdeu a chave do cofre

Ministro acumulou adversários e aprofundou processo de esvaziamento político

Paulo Guedes nunca foi conhecido pela habilidade política. Antes de tomar posse, o ministro despertou a má vontade dos parlamentares ao sugerir que daria "uma prensa" no Congresso para aprovar suas propostas. Já no cargo, ampliou esses atritos e passou a sofrer oposição de outros integrantes do próprio governo. Agora, ele também parece ter perdido a chave do cofre.

A disputa pelo controle do Orçamento é o capítulo mais recente do processo de esvaziamento político de Guedes. Na competição por recursos e emendas, o ministro acumulou adversários dentro e fora do governo. Até aqui, a maior parte desses rivais obteve mais sucesso do que o chefe da equipe econômica.

Dependente do Congresso, o governo fez concessões aos parlamentares na distribuição da verba deste ano. Mas tudo indica que Guedes prometeu mais do que estava disposto a cumprir. O ministro abriu mão do controle de uma fatia adicional de R$ 16,5 bilhões no Orçamento, mas os deputados e senadores aumentaram esse valor para R$ 26,5 bilhões.

Emparedado, o ministro fez uma cobrança ao Congresso. Os parlamentares aceitaram recuar para os R$ 16,5 bilhões originais, mas Guedes pediu mais, sob o argumento de que o valor não cabia nas contas. Ninguém engoliu a manobra. O presidente da Câmara afirmou que o ministro "se excedeu no seu acordo".

Além de ter criado um impasse com o Legislativo, Guedes também foi obrigado a assistir ao fortalecimento de um de seus principais desafetos. Em dobradinha com o Congresso, o ministro Rogério Marinho (Desenvolvimento Regional) triplicou a previsão de despesas de sua pasta. O chefe da equipe econômica quer cortar parte desse ganho.

Agora, Guedes precisa convencer Jair Bolsonaro a vetar os aumentos. Ainda que consiga, o chefe da equipe econômica sai desgastado dessa novela. Depois de contratar brigas com o presidente da Câmara, o presidente do Senado, caciques do Congresso e outros ministros, ele já deve ter percebido que está em minoria.


Ricardo Noblat: Bolsonaro está no limite de suas forças

 O presidente dá sinais de esgotamento

Bolsonaro disse que não nasceu para ser presidente da República. Ninguém nasce. Presidência da República é destino. Até levar a facada em Juiz de Fora, ele ainda duvidava que se elegesse. Na noite da sua vitória, depois dos discursos de praxe, da confraternização com assessores e coisa e tal, na presença apenas dos filhos e de um amigo, ele chorou copiosamente.

Seu projeto inicial, uma vez cansado de quase 30 anos como deputado federal, era concorrer à presidência para alavancar a carreira política dos três filhos zero – Flávio, então deputado estadual no Rio, Carlos, vereador e Eduardo, deputado federal por São Paulo. Derrotado, iria curtir a vida com sua mulher, Michelle, e a filha. Não lhe faltaria dinheiro para isso.

Dois anos e pouco depois e em meio a uma pandemia que não soube combater, ou que apostou que passaria se morressem os que tivessem de morrer, está à beira da exaustão e não esconde os sinais disso. Era evidente o prazer que sentia nos encontros diários com grupos de devotos à saída do Palácio da Alvorada para ir trabalhar e à chegada. Nos últimos dias, não disfarça sua irritação.

Reclamou de perguntas que lhe fizeram. Reclamou de uma mulher que interrompeu a sua fala e de outra que lhe pediu uma foto. Reclamou de um homem que quis saber o que ele poderia fazer para tirar seu Estado, o Rio de Janeiro, da pobreza. Ontem, sem que ninguém o tivesse provocado para isso, renovou as ameaças que costuma fazer com as mesmas palavras de sempre.

“O Brasil está no limite. O pessoal fala que eu devo tomar providência, eu estou aguardando o povo dar uma sinalização. Porque a fome, a miséria e o desemprego estão aí”, afirmou. “Tem um barril de pólvora aí e tem gente de paletó e gravata que não quer enxergar. Acho que em breve teremos um problema sério no Brasil.” E voltou a se queixar do Supremo Tribunal Federal.

Quem parece estar no limite é ele. Embora não admita, e jamais admitirá, é suficientemente inteligente para ver que seu governo é um fracasso, e que seu poder de mando só diminui. Montou um comitê para cuidar da pandemia, mas hoje é o ministro Ricardo Lewandowski quem dá as cartas como relator das ações sobre a crise sanitária que dão entrada no Supremo.

O ministro Luís Roberto Barroso empurrou por sua goela abaixo a CPI da Covid. Bolsonaro ainda luta para não digeri-la, mas pouco tem a fazer, salvo abrir os cofres para a compra futura de votos que se disponham a socorrê-lo. Os bolsonaristas radicais, esses continuam sob o jugo do ministro Alexandre de Moraes, presidente do inquérito que investiga seu mau comportamento.

O país segue sem Orçamento, o ministro Paulo Guedes, da Economia, capenga sob fogo amigo, e o Centrão não abre mão dos bilhões de reais reservados para o pagamento de emendas parlamentares e construção de obras em redutos eleitorais de deputados e senadores. O que Bolsonaro pode fazer? Pedalar a Lei de Responsabilidade Fiscal? Arriscar-se a ser pedalado?

Algo como um terço dos brasileiros eleitores ainda se dizem fiéis a ele, mas segundo a mais recente pesquisa do Poder Data, se o segundo turno da próxima eleição presidencial fosse agora, Lula derrotaria Bolsonaro por 52% dos votos a 34%, e ele também perderia para Luciano Huck por 48% a 35%. Contra João Doria, Ciro Gomes e Sérgio Moro, empataria.

O Supremo, logo mais à tarde, julgará ações que definirão o futuro de Lula. É certo que confirmará a suspensão de suas condenações, o que lhe assegura o direito de candidatar-se no ano que vem. É provável, apenas provável, que mantenha a decisão da Segunda Turma que considerou Moro suspeito na condução dos processos que envolveram o ex-presidente. A conferir.

A certa altura do ano passado, Bolsonaro torcia em silêncio para enfrentar Lula em 2022. Nos seus cálculos, seria reeleito com a ajuda do antipetismo. O agravamento da pandemia e da crise econômica obrigou Bolsonaro a refazer os cálculos. Lula é seu mais poderoso adversário. O antipetismo perdeu fôlego. E o centro está fragmentado, o que facilitará a vida de Lula.

Um prato cheio para empurrar o governo contra as cordas

Chovem contribuições à CPI da Covid

Salivam os senadores dispostos a acuar o governo tão logo a CPI da Covid seja instalada. De todos os lados, voluntariamente ou não, lhes chegam contribuições preciosas.

Procuradores da República do Amazonas apontam a omissão do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello na escalada da pandemia naquele Estado, e se preparam para processá-lo.

Segundo eles, no final de dezembro último, Pazuello foi informado da gravidade da situação, e nada fez, salvo recomendar o tratamento precoce da doença.

O ministro Benjamin Zymler, relator no Tribunal de Contas da União do processo sobre a conduta do Ministério da Saúde durante a pandemia, se diz convencido de que ocorreram muitos erros.

Do mesmo tribunal, o ministro Bruno Dantas admitiu que há provas para “impor condenações severas” a Pazuello. Ainda não foram porque ministros governistas pediram vista do processo.

Dos 11 titulares da CPI, seis são de partidos da oposição ou que se dizem independentes. Os independentes serão alvo de assédio financeiro por parte do governo.

Mesmo assim, quanto mais mortes colecione o vírus por falta de vacinas, mais se agravará o estado do governo. O loteamento de cargos seguirá a pleno vapor.


William Waack: Mentalidade do cercadinho

Mesmo as ameaças do presidente estão perdendo credibilidade

Por ser o STF uma instância política, preocupada com política, e tomando decisões políticas, não é surpresa que esteja dando aulas de política para Jair Bolsonaro, aquele que assumiu recusando-se a fazer política. O próprio Bolsonaro acha que não, que está fazendo política, atividade que ele confunde com esbravejar declarações desconexas para grupelhos de apoiadores, proferir bobagens em lives e postar falsidades em redes sociais, além de vociferar ao telefone com senadores.

Algumas decisões do STF são para lá de exóticas (para se usar linguagem diplomática) e geram enorme insegurança jurídica, mas o ponto principal é que o conjunto da Suprema Corte tem um entendimento mais apurado do que Bolsonaro do que é o jogo institucional, o papel dos seus atores, seus limites políticos e legais. É esse jogo que o voluntarioso Jair disse que ia liquidar no gogó. Não conseguiu, e está perdendo de lavada do STF, mas não só.

Alguns feitos políticos de Bolsonaro são notáveis – pela ironia dos fatos. Ao seguir adiante com um Orçamento inexequível, mas que negociara com o Congresso, pois precisa gastar para se reeleger, acabou permitindo que os profissionais do Centrão carimbassem na testa do ministro que já foi estrela, Paulo Guedes, a expressão “fura-teto”. Outra ex-estrela, Sérgio Moro, o paladino da luta anticorrupção, Bolsonaro já tinha empurrado para uma espécie de vala comum de malfeitores (sob aplausos de ministros do STF, no único elogio que destinam a Bolsonaro).

Há dúvidas se Bolsonaro se deu conta do “golpe” que o Centrão lhe aplicou na esteira dessa ainda não resolvida confusão do Orçamento. O Centrão se recusou a votar uma PEC que, para acomodar interesses, declararia algumas despesas como fora dos limites hoje vigentes. O Centrão declarou que não aprova medidas “fura-teto”. Mas o motivo principal para a recusa é outro, e se constitui em mais uma aula de política: o Centrão não quer abrir mão de suas prerrogativas de determinar alocação de recursos via Orçamento, um clássico instrumento de poder que o presidente cedeu.

A dor de cabeça de uma CPI no Senado é real, porém pequena se comparada à dor de cabeça de uma economia que teima em não deslanchar. O problema para o governo é que não adianta dizer, como Guedes insiste, que o “Brasil estava decolando” e a economia “se recuperava em V” quando ocorreu uma segunda onda do vírus. Os fatos na cabeça das pessoas são preços em subida, inflação voltando, desemprego persistente, e economia andando devagar.

Nem todos os acontecimentos da economia são negativos para os planos do governo e o País, conforme atesta o sucesso dos leilões de concessão de portos, ferrovias e aeroportos. Porém, a inequívoca aposta de investidores na obtenção de bons retornos via concessões é coisa de longo prazo, e as questões emergenciais de pandemia e economia são no curtíssimo – as consequências políticas idem. A confiança de varejo, indústria e setor financeiro está sendo demolida pelo cenário político de instabilidade e imprevisibilidade.

Dedicado dia e noite a acelerar e piorar o que sozinha já seria uma tempestade perfeita, Jair Bolsonaro está perdendo a credibilidade até quando faz ameaças do tipo “aguardo sinal do povo para tomar providências”. O PT foi apeado do poder quando achava que era dono das ruas, mas não era. Vivendo na bolha peculiar de sites, portais e redes sociais amigas, Bolsonaro confunde esse tipo de espuma em meios digitais com “povo”. 

A expressão “mentalidade do bunker” se consagrou para descrever o governante que perde a noção da realidade, pois vive distante dela. No caso de Bolsonaro, deveria ser trocada por “mentalidade do cercadinho”. Fica do mesmo jeito em um outro universo, paralelo.


Merval Pereira: O pleno se pronuncia

O resultado de 9 a 2 no julgamento de ontem, confirmando que o plenário do Supremo Tribunal Federal pode julgar a decisão do ministro Edson Fachin de enviar à Justiça do Distrito Federal os processos contra o ex-presidente Lula não relativos à Petrobras, não reflete necessariamente a posição da maioria quanto à suspeição do ex-ministro Sergio Moro, decidida pela Segunda Turma. Embora possa indicar que a mudança de foro de Curitiba para o Distrito Federal será aprovada.

A figura política do ex-presidente Lula pairou sobre os votos de ontem, embora muitas vezes não tenha sido citado. O ministro Ricardo Lewandowski, que mencionou o ex-presidente diversas vezes em seu voto e em suas intervenções, chegou a afirmar que o tema só estava sendo discutido no plenário porque se tratava de Lula. Foi rebatido pelo presidente Luiz Fux, que lembrou que é inegável que o julgamento é importante porque diz respeito à Operação Lava-Jato e ao combate à corrupção no país.

Lewandowski foi o que mais politizou o tema, chegando a dizer que julgamentos do Supremo levaram a que Lula não pudesse concorrer à disputa em 2018, o que, segundo ele, poderia ter mudado para melhor o futuro do país.

O resultado de ontem foi uma derrota dos advogados da defesa do ex-presidente Lula, que queriam que o recurso da Procuradoria-Geral da República fosse tratado na mesma Segunda Turma. No plenário, a possibilidade de derrota é maior, embora possa não se confirmar.

A mudança de foro dos processos de Lula, de Curitiba para o Distrito Federal, decretada pelo ministro Edson Fachin, deve ser mantida pela vasta maioria do plenário, mas suas consequências em relação ao ex-juiz Moro ainda dependem do tamanho da divisão do plenário.

Os três ministros que votaram pela suspeição de Moro na Segunda Turma — Cármen Lúcia, Gilmar Mendes e Lewandowski — já reafirmaram seus votos no julgamento de ontem, em comentários paralelos. A discussão de hoje será em torno de um paradoxo jurídico: um juiz pode ser considerado incompetente para julgar um caso e, ao mesmo tempo, suspeito?

A decisão da maioria de admitir julgar o caso no plenário pode significar que, aprovando a tese de Fachin, o julgamento da isenção de Moro fica prejudicado. No entanto, para explicitar que seu voto não significa a análise do mérito, a ministra Cármen Lúcia reiterou que o plenário do Supremo não é órgão revisor da decisão das turmas e, portanto, não tem poderes para alterá-la.

Essa tese parece ter boa aceitação, sem que seja possível, no entanto, definir qual será a decisão final. Relator da Lava-Jato no Supremo, Fachin considera que o julgamento da suspeição perdeu sentido com a mudança de foro, e tem adeptos dessa tese.

O que estará sendo julgado, subjacente à suspeição, é o destino dos processos da Operação Lava-Jato. Caso Moro seja considerado suspeito no caso do triplex do Guarujá, todas as operações e investigações já ocorridas durante a tramitação desse processo em Curitiba serão anuladas, e ele terá que ser iniciado da estaca zero, o que poderá garantir sua prescrição.

A derrubada da suspeição manterá a elegibilidade do ex-presidente Lula, mas dará ensejo a que os novos juízes utilizem, em parte ou no todo, o material colhido pela força-tarefa de Curitiba em todos os processos, o que, em tese, faria com que Lula ficasse com uma espada de Dâmocles sobre sua candidatura à Presidência da República.

O ministro Marco Aurélio, ontem um dos dois votos contrários a que o plenário examinasse o recurso da Procuradoria-Geral da República, ironizou o fato de o ex-juiz Moro ter passado de herói nacional a bandido, indicando talvez que vote contra a decisão de suspeição tomada na Segunda Turma. Mas a tese de Cármen de que a decisão da Turma não pode ser revista tem seu peso. A grande questão é que a suspeição de um processo pode levar a que outros julgados por Moro venham a ser considerados nulos também pela Turma, o que prejudicaria toda a operação Lava-Jato e proporcionaria a revisão de todos os julgamentos do ex-juiz Moro.


Alon Feuerwerker: A CPI

E ao final a Comissão Parlamentar de Inquérito da Covid-19 foi lida em plenário no Senado e tornou-se um dado da realidade. A reunião do pleno do Supremo Tribunal Federal para decidir sobre o antes decidido monocráticamente acabou sendo quase protocolar.

Mas teve pelo menos uma função. Doravante os presidentes do Congresso Nacional estarão de mãos amarradas. Juntadas as assinaturas necessárias, instala-se automaticamente a comissão inqusidora. Ou seja, qualquer governo precisará doravante ter dois terços (mais um) de ultrafiéis na Câmara e no Senado.

Mas já era meio que assim.

A medição preliminar da correlação de forças na CPI da Covid-19 aponta o governo em desvantagem. Na teoria, o fiel da balança serão os senadores chamados de "independentes". Ocorre que na política, e especialmente no Legislativo, independência rima bem mais com oposição do que com situação.

A operação política do Planalto precisará funcionar muito bem para evitar que a CPI se transforme numa máquina de moer, num foco apenas de desgaste para o governo federal. Mesmo a inclusão das verbas a estados e municípios não é garantia de nada.

Porque é perfeitamente possível senadores e governadores articularem-se para colocar o foco no presidente e proteger o resto.

*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação


Míriam Leitão: Um país sem um dia de calmaria

"Quando eu terei um dia de calmaria para falar com os investidores? Preciso trabalhar notícias boas, mas é preciso encontrar uma fórmula de governar com menos ruídos.” Esse desabafo eu ouvi dentro do próprio governo, de uma autoridade que está convencida de que há, na economia, alguns dados positivos para comunicar. Mesmo quem não vê essas notícias boas concordaria com esse integrante do governo que o Brasil tem excesso de ruídos, tumultos, conflitos, como se já não bastasse o que a população vive na pior pandemia em um século.

A avaliação que essa autoridade faz é que o Congresso aprovou algumas medidas importantes no começo deste ano, como o marco do gás e do saneamento. Acha que o país pode ter um segundo semestre de recuperação, se conseguir vacinar parte importante da população neste primeiro semestre. No mundo, as economias em crescimento, como a China, estão valorizando as commodities exportadas pelo Brasil. O mercado global está melhorando, a bolsa americana está batendo recordes, tudo isso ajudaria a amenizar a crise interna. “Mas o Brasil continua prisioneiro da sua história.”

A questão é que a maior parte dos tumultos é resultado da própria ação do governo. Hoje, a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2022 tem que chegar ao Congresso, mas o país ainda não tem o Orçamento de 2021. As fórmulas mais estranhas para resolver o problema estão sendo discutidas, mas ninguém quer encarar o que é tecnicamente correto. A solução defendida por integrantes da equipe econômica — e eu já ouvi isso de mais de um — é vetar as emendas parlamentares e mandar um PLN reconstituindo despesas obrigatórias. “O ideal é ter tudo redondo, era vetar tudo, ter um PLN, mas isso não atende ao Congresso, porque seria a desmoralização dos tratados feitos. E o presidente pode ficar fragilizado”, explica essa autoridade que quer um dia de calmaria.

O presidente Bolsonaro sempre foi o principal foco de instabilidade institucional, e isso ele mostrou ontem novamente, quando fez novas ameaças ao país. Ele as faz sempre, de forma deliberadamente vaga para dar a impressão de que tem poderes que não está usando.

“O Brasil está no limite. O pessoal fala que eu devo tomar providência. Eu estou aguardando o povo dar uma sinalização”, disse Bolsonaro, no seu estilo autoritário e populista. E continuou: “Estamos na iminência de ter um problema sério no Brasil. Parece um barril de pólvora que está aí. Eu não estou ameaçando ninguém, mas estou achando que brevemente teremos um problema sério no Brasil”.

Bolsonaro foi assim desde o começo desta pandemia. A cada dia ele levanta um fantasma, joga uma sombra, cria um conflito. Criou, por exemplo, na semana passada, diretamente com o ministro Luís Roberto Barroso, quando ele determinou a abertura da CPI. Ficou claro no rápido julgamento de ontem que Barroso teve todo o apoio do STF para a sua decisão, que apenas determinou o cumprimento da Constituição. CPI é direito das minorias, e cumpridos os requisitos de um terço do Senado e fato determinado não cabe ao presidente do Senado impedir.

Barroso saiu vitorioso e mandou recados educados para responder à truculência do presidente. Elogiou o senador Pacheco, que, mesmo derrotado, reagiu com “elegância, correção e civilidade”, lembrando que são qualidades raras nos tempos atuais. Mas a resposta mais forte de Barroso toca no principal ponto de instabilidade do Brasil. Para os economistas, a fonte de incerteza é de natureza fiscal. Um orçamento confuso, soluções esquisitas, como a que surgiu na tal PEC do fura-teto, elevam os temores de um descontrole nas contas públicas.

Mas o mais eloquente recado veio com o aviso sobre o que está em jogo nos ataques ao STF. “Diversos países do mundo vivem hoje uma onda referida como recessão democrática”. O ministro citou Hungria, Polônia, Turquia, Rússia, Venezuela. Lembrou que todos eles, sem exceção, sofreram processos de esvaziamentos e ataques aos seus tribunais constitucionais. “Quando a cidadania daqueles países despertou, já era tarde. Reafirmar o papel das supremas cortes de proteger a democracia e os direitos fundamentais é imprescindível ato de resistência democrática”. Esse é o ponto. A nossa instabilidade é muito maior do que a questão fiscal. A fonte maior de tumulto institucional é o próprio Bolsonaro.