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Afonso Benites: CPI da Covid mira falta de vacinas e promoção de cloroquina para buscar a digital de Bolsonaro
“Não será uma CPI abstrata, mas uma investigação que estará dentro da casa de cada brasileiro, pois todos conhecem alguém que morreu”, diz futuro presidente do colegiado, senador Omar Aziz. Ex-ministros devem ser convocados
“O dia que eu passei e você quer que eu sorria?” A reação nesta semana do presidente Jair Bolsonaro a uma simpatizante que pedia uma foto sintetiza um dos piores momentos de seu Governo. O mau humor do mandatário se deve ao cerco que se fecha em seu entorno e revela um presidente desalentado, em vias de ter a sua digital encontrada nas principais falhas de gerenciamento no país da maior crise sanitária da humanidade. A CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) da Covid deve começar seus trabalhos entre 22 e 29 de abril, e parlamentares trabalham para sejam convocados ex-ministros, funcionários técnicos da Saúde, e que se avaliem investigações já iniciadas no Tribunal de Contas da União (TCU) e no Ministério Público Federal (MPF). O objetivo é já avaliar a compra de vacinas e a promoção por parte do Governo federal de remédios sem eficácia para o tratamento da covid-19, como a cloroquina. Até este sábado, 371.678 pessoas já perderam a vida para o vírus no Brasil, e os contágios continuam em ascensão. Apesar disso, e mesmo sob a ameaça de ser responsabilizado pela tragédia, o presidente promoveu mais uma vez aglomerações neste final de semana, ao visitar Goianópolis (Goiás) no sábado, onde sem máscara cumprimentou pessoas e segurou um bebê.
Ainda que Bolsonaro tenha tentado dividir a responsabilidade da crise com governadores e prefeitos, conseguindo incluir os repasses feitos a Estados e municípios no escopo de investigação da CPI, os trabalhos da comissão instaurada no Senado para apurar as ações e a omissão do Governo durante a pandemia devem jogar holofotes a sua conduta neste um ano de calamidade. Mais do que fustigar e trazer à tona as falhas de Bolsonaro, os parlamentares —a maioria de oposição— arrastarão a imagem de um líder inepto até 2022, quando Bolsonaro pretende concorrer a uma nova eleição presidencial. As últimas pesquisas de popularidade e de intenções de votos não têm sido nada favoráveis ao presidente. Levantamento do PoderData publicada no último dia 14 mostra que ele perderia a disputa em segundo turno para o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), apto novamente a concorrer ao pleito após decisão do Supremo que anulou suas condenações em Curitiba, e para o apresentador Luciano Huck (sem partido). E estaria empatado com outros três concorrentes: Ciro Gomes (PDT), Sergio Moro (sem partido) e João Doria (PSDB).
O futuro presidente da CPI, o senador Omar Aziz (PSD-AM), afirma que por mais que o cidadão brasileiro esteja acostumado a testemunhar esse tipo de investigação política, essa será diferente das outras dezenas que aconteceram desde a redemocratização, em 1988. “Essa não será uma CPI abstrata, na qual a pessoa olha para um político na TV e diz: ‘ah, são todos bandidos’. Essa CPI estará dentro da casa de cada brasileiro. Porque vamos tratar da morte de centenas de milhares de pessoas, não de crimes de corrupção. E todos os brasileiros conhecem alguém que morreu de coronavírus”.
Os 11 senadores titulares que compõem a CPI terão como missão delimitar onde o presidente acertou e onde errou durante a pandemia. Desde março de 2020, Bolsonaro ignorou praticamente todas as recomendações das autoridades de saúde do mundo: desestimulou o distanciamento social e o uso de máscaras de proteção facial, promoveu aglomerações como a deste sábado, incentivou o uso de medicamentos comprovadamente ineficazes no tratamento de covid-19, como cloroquina e ivermectina e negligenciou a compra de vacinas. Os parlamentares também investigarão se o Governo federal ignorou os alertas feitos no início do ano diante de um colapso sanitário de Manaus, quando dezenas de pessoas morreram porque as unidades de saúde onde elas estavam internadas não tinham cilindros de oxigênio.Quem persegue o Bolsonaro é o próprio Bolsonaro.
“O presidente acha que o estamos perseguindo e diz que ele não tem nada a esconder. Mas, quando ele se irrita com a abertura da CPI, é claro que ele veste a carapuça. Ou seja, quem persegue o Bolsonaro é o próprio Bolsonaro. Ele age contra si mesmo, sempre”, disse o senador Otto Alencar (PSD-BA), que presidirá a primeira sessão da comissão por ser o parlamentar mais velho. Nessa reunião, serão oficializados os nomes do presidente, vice e relator da CPI, papéis fundamentais para a condução da investigação, e que prometem ficar com oposicionistas.
Conforme os acordos que foram costurados ao longo da última semana, o MDB, que tem a maior bancada do Senado, ficará com a relatoria, responsável por produzir o relatório final sobre a investigação. O escolhido para esta função é Renan Calheiros (MDB-AL). O PSD, com a segunda maior bancada, ficaria com a presidência, com Aziz. E o vice-presidente será Randolfe Rodrigues (REDE-AP), que foi o autor do requerimento da comissão. Nos próximos dias, o Governo tentará alterar essa configuração. Aliados do presidente entenderam que a composição da cúpula da CPI ficou bastante desfavorável a ele e tentam convencer o PSD a indicar o bolsonarista Marcos Rogério (DEM-RR) para o cargo de relator. Mas dificilmente conseguirão. Cabe apenas ao presidente da CPI designar quem ocupará esta função. “Estamos fechados em um grupo de sete senadores. Temos a maioria e respeitamos a correlação de forças. Se os outros quiserem se somar a nós, serão bem-vindos. Mas não pretendo mudar nada”, disse Aziz.
Se a palavra dada por Aziz aos outros senadores não prevalecer e Bolsonaro conseguir fazê-lo mudar de opinião, marcará o rompimento de um acordo que poderá resultar em revides no plenário do Congresso Nacional, onde ainda devem tramitar temas de interesse do Governo, como o Orçamento Geral da União de 2021, que cortou boa parte das despesas dos ministérios e transferiu os recursos para emendas parlamentares e encurralou o Planalto, que tenta salvá-lo.
Hoje o presidente tem apenas quatro membros em sua tropa de choque na CPI. Além de Marcos Rogério, estariam na linha de defesa de Bolsonaro os senadores Ciro Nogueira (PP-AL), Jorginho Melo (PL-SC) e Eduardo Girão (Podemos-CE). Como estratégia para obter mais apoio na CPI, Bolsonaro estuda entregar cargos de primeiro e segundo escalões na máquina federal aos outros membros considerados independentes da comissão. Os principais alvos seriam Omar Aziz e Eduardo Braga (MDB-AM). Otto Alencar, Tasso Jereissati (PSDB-CE) e Renan Calheiros, os outros nesse campo, pendem mais para a oposição do que para o Governo. A CPI é complementada pelos opositores Randolfe e Humberto Costa (PT-CE).
Primeiros passos
Na CPI, os senadores deverão iniciar os trabalhos ouvindo especialistas da área de saúde para definir o que deveria ter sido feito como planejamento no combate à covid-19. “Queremos ouvir os melhores epidemiologistas, microbiologistas, sanitaristas. Eles terão de dar as primeiras respostas para a sabermos o porquê chegamos até aqui”, disse Randolfe.
Também deverão ser ouvidos servidores e ex-servidores do Ministério da Saúde. Na lista de requerimentos a serem apresentados estarão ainda os três ex-ministros da pasta, o general Eduardo Pazuello, o oncologista Nelson Teich e ortopedista e ex-deputado federal Luiz Henrique Mandetta, além de parte de seus antigos auxiliares. Não está descartada a convocação do atual ministro, Marcelo Queiroga, para falar qual era o cenário encontrado por ele quando assumiu o ministério em março e o que tem sido feito desde então. Outros dois ex-ministros intimamente ligados ao bolsonarismo também deverão ser convocados, segundo a Folha de S.Paulo: Ernesto Araújo (Relações Exteriores), para explicar as tratativas com outros países sobre a compra de vacinas, e Fernando Azevedo (Defesa), para falar sobre o aumento da produção de cloroquina pelo Exército.
“Os fatos irão se sobrepor. Agora, não dá para esperar que a gente passe a mão na cabeça de ninguém, mas também não espere que vamos crucificar A ou B, como se isso bastasse para acabar com a pandemia. Ela não será uma caça às bruxas”, diz Aziz. O senador afirma ainda que caso se encontrem irregularidades, punições serão sugeridas para os órgãos de controle e que os senadores pretendem também criar um protocolo para impedir que os próximos presidentes ajam da maneira que bem entenderem na condução de crises sanitárias. “Se nós definirmos em lei uma série de passos a se seguir, não vai adiantar presidente nenhum ser negacionista, porque a legislação mandará que ele siga um roteiro. Se escapar dele, pode ser punido”.
Blindagem moral
Como uma tentativa de blindar o general Pazuello, o seu fiel aliado que seguiu todas as suas recomendações, Bolsonaro deverá lotá-lo no cargo secretário de Modernização do Estado, na Secretaria-Geral da Presidência da República. Na prática, será uma proteção moral, já que o cargo não tem nenhuma prerrogativa de foro especial. Pazuello esteve ao lado de Bolsonaro neste sábado, durante a visita a Goianópolis.
Paralelamente, enquanto ouvem as testemunhas, os parlamentares deverão requisitar informações aos órgãos que já estão investigando os deslizes do Governo. Há apurações no Tribunal de Contas da União sobre os gastos da Gestão Bolsonaro com cloroquina e sobre os repasses feitos a Estados e Municípios. Também existe uma investigação na Polícia Federal contra Pazuello e uma outra no Ministério Público Federal contra o mesmo general sobre a crise manauara. A interlocutores, Renan afirmou que essas apurações serão uma espécie de roteiro inicial de seus trabalhos.
Mais do que ver seu governo enfraquecido no ano eleitoral, o maior temor de Bolsonaro é o de ser destituído do cargo. Ele sabe que conforme a quantidade de provas levantadas pela CPI mais um pedido de impeachment pode ser apresentado contra ele. Por essa razão, voltou a dizer em uma de suas declarações públicas que nada o tirará do poder antes do fim do mandato. “Só Deus me tira da cadeira presidencial. E me tira, obviamente, tirando a minha vida. Fora isso, o que estamos vendo no Brasil não vai se concretizar. Não vai mesmo! Não vai mesmo!”, esbravejou na sua transmissão ao vivo da última quinta-feira.
Demétrio Magnoli e Elaine Senise Barbosa: ‘Uma morte social mais inquietante’
‘O barulhento Dionísio, convém não esquecer, é ao mesmo tempo o deus do amor e da morte.’ O alerta do sociólogo Michel Maffesoli, em “A sombra de Dionísio”, tornou-se mais atual do que nunca nesta nova Era da Peste. Na madrugada do domingo do carnaval que não houve, 14 de fevereiro, um repórter de São Paulo registrou, caprichando na precisão: “As mais de 237.489 mortes não conseguiram deter realizadores de bailes funk, nos bairros de Itaquera e Guaianases”. Somos os mesmos que nossos ancestrais do século 14.
A Peste chegou à Europa em 1348, junto com embarcações dos comerciantes italianos provenientes do Mar Negro e de Bizâncio. Espalhou-se rapidamente, seguindo as rotas comerciais: cidades do Mediterrâneo, Europa Central e, na sequência, o Norte e as planícies russas. Tudo isso até 1352. As festas da Peste foram documentadas por cronistas da época.
Cerca de um terço da população europeia, algo em torno de 8 milhões de almas, pereceu em apenas uma década. Depois, a epidemia repicou várias vezes, em ondas sucessivas que voltaram a afligir cidades já açoitadas. Os habitantes de Florença logo entenderam os perigos da aglomeração humana, como relata Giovanni Boccaccio (1313-75) no “Decamerão”. Bactérias só foram observadas três séculos mais tarde, mas já se sabia, à época, que a água era fonte de infecções. Tal como na Peste do Vírus dos nossos dias, os ricos fugiram rumo às suas villas, no entorno rural, distanciando-se dos “ares pestilentos”.
Os demais — comerciantes, artesãos e o proletariado original —ficaram, por falta de alternativa. E morreram, às centenas, diariamente. A morte distingue classes, mas, paradoxalmente, opera como grande evento nivelador, que lembra a todos sobre a vanidade da vida. No século da Peste, emergiram, em diferentes pontos da Europa, representações da “Dança Macabra” em que cardeais, príncipes e damas dançam com esqueletos.
Dança e vinho. A festa, celebração da dialética entre vida e morte, acompanhou a pandemia, tanto nas villas do isolamento quanto nas cidades pestilentas. Festejava-se por ainda viver. Rompiam-se as regras para confrontar a morte ou desafiar Deus. Hoje, atribuímos a Covid-19 ao vírus — isto é, às armadilhas da seleção natural. Na peste bubônica, como alguns o fazem ainda agora, creditava-se o horror à vontade de Deus, que castigava os humanos ímpios. Daí, um passo adiante, alguns chegavam à descrença.
Gargalhar na cara do inevitável, do Juízo Final. Dançava-se ao som da música não religiosa, que florescia em formas inovadoras, como o rondó e a balada. Sob o medo da morte, o frenesi da festa resgatava as interações socais que conferem sentido à vida. A música secular difundiu-se justamente no rastro da Peste, rodando as engrenagens do individualismo moderno, com seu “eu lírico”.
Triunfo de Dionísio, o feio e coxo, sobre Apolo, certinho e áureo. Vida e morte: as festas dionisíacas originais, da velha Grécia, terminavam com o sacrifício um tanto violento de um boi, que seria comido por todos num grande ato de restauração e congraçamento. Na festa, “o que importa é a pulsão irreprimível do querer viver que, ao manifestar-se, não mais receia assimilar as ‘pequenas mortes’ sucessivas — ‘sabendo’ que, assim, se protege ritualmente de uma morte social bem mais inquietante” (Maffesoli). Carpe diem.
As autoridades medievais bem que tentaram controlar, mas fracassaram. Os escassos cronistas da época concordam na avaliação de que o comportamento das pessoas ficou pior, não mais piedoso. Dizem, hoje, cenhos carregados, que aglomerar para trabalhar é virtuoso, mas a aglomeração de folguedos atenta, no mínimo, contra um protocolo sanitário e moral. Na Peste, nem todos festejavam. Havia, claro, os que se fechavam nas igrejas, rezando pelo perdão divino — e contribuindo igualmente para os contágios. Os cultos coletivos, antes como agora, não foram proibidos.
Pandemias são continuidade, mais que ruptura. A Grande Peste medieval ajudou a descolar o indivíduo da coletividade, a disseminar a economia monetária e sua riqueza portátil. A festa é parte dessa história, tão antiga e tão próxima.*Sociólogo e conselheiro do Centro Brasileiro de Relações Internacionais;
**Historiadora e editora-executiva do site 1948 – Declaração Universal dos Direitos Humanos
Sergio Lamucci: O cenário negativo para a renda dos mais pobres
O principal fator para a ampliação do número de domicílios mais pobres deve ser a desocupação mais elevada entre os menos escolarizados, mais afetados pela pandemia
O cenário para a renda dos brasileiros mais pobres em 2021 é bastante negativo. Com a piora da pandemia da covid-19 e o avanço lento da vacinação, a atividade econômica foi prejudicada no primeiro semestre, resultando na continuidade da fraqueza do mercado de trabalho, num ano em que o auxílio emergencial será bem menor do que em 2020. A desigualdade de renda, nesse quadro, voltará a crescer.
Um estudo da Tendências Consultoria Integrada estima que haverá neste ano um aumento de 1,2 milhão de domicílios nas classes D e E, definidas como as que têm rendimento mensal domiciliar de até R$ 2,6 mil. Com isso, essas faixas de renda deverão passar a responder por 54,7% do total de residências no país.
“O principal fator para a ampliação do número de domicílios mais pobres deve ser a desocupação mais elevada entre os menos escolarizados”, aponta o trabalho, ressaltando que “o caráter regressivo da pandemia permanece desproporcional” para as pessoas de menor nível de escolaridade.
“A piora do balanço de riscos para a atividade econômica deve restringir o ímpeto de contratações, sobretudo no segmento de serviços, cuja tendência de crescimento deve ser interrompida, à vista do recrudescimento do isolamento social em diversas localidades do Brasil.” A consultoria revisou recentemente a estimativa para a expansão do PIB em 2021 de 2,9% para 2,7%. Ainda que a nova versão do programa que permite a suspensão do contrato de trabalho ou a redução de jornada e de salários (o BEm, a ser reeditado em breve) deva contribuir para sustentar o emprego formal, a renovação do auxílio emergencial não deverá conter a alta dos desempregados, avalia a Tendências.
O auxílio emergencial atingiu um valor total de R$ 293 bilhões em 2020, o equivalente a 4% do PIB. De abril a agosto, o valor médio foi de R$ 600; de setembro a dezembro, de R$ 300. Em alguns meses, alcançou 67,9 milhões de pessoas, equivalente a um terço da população. Neste ano, o Congresso aprovou R$ 44 bilhões para o benefício fora do teto de gastos, a ser pago em quatro parcelas, com um valor médio de R$ 250. Se o benefício em 2020 foi amplo demais, neste ano pode haver o problema oposto - o valor é mais baixo, atenderá a menos pessoas e valerá por um prazo mais curto.
“Diante do menor auxílio emergencial e da perspectiva de recuperação moderada do mercado de trabalho, a massa total de renda deve recuar 3,8% em 2021”, impedindo a manutenção no mesmo nível de 2020, diz a Tendências. Essa é a variação prevista em termos reais, já descontada a inflação. No conceito da consultoria, a massa total considera o rendimento de todos os trabalhos, o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada (BPC, voltado para idosos de baixa renda e pessoas com deficiência), os benefícios previdenciários e outras fontes de renda. No ano passado, o indicador cresceu 5,2%, fortemente impulsionado pelo auxílio emergencial. Neste ano, haverá uma ressaca mais intensa da massa de renda no Norte e Nordeste, após o enxugamento dos repasses emergenciais, aponta a Tendências.
A expectativa dos analistas é que a retomada da economia ocorrerá no segundo semestre. Com o avanço da vacinação, as medidas de restrição à mobilidade tendem a ser relaxadas. Na visão da Tendências, a economia brasileira deve manter trajetória de gradual recuperação em 2021, sem uma melhora plena do mercado de trabalho, devido a fatores como “o agravamento da pandemia, os recentes sinais de fraqueza de grandes setores, a redução do arsenal de políticas anticíclicas e as incertezas da agenda de política econômica”.
Num primeiro momento, a retomada da atividade deve favorecer as classes sociais mais altas, segundo a Tendências. “A elite do funcionalismo público sente menos os efeitos da crise, já que a dinâmica econômica pouco interfere em seus salários e planos de carreira”, aponta o estudo, observando também que a maior concentração de empregadores no topo da pirâmide social propicia um rápido reequilíbrio financeiro das famílias. “Com rendimento atrelado aos ganhos de suas empresas, os donos de negócio buscam recuperar o padrão histórico de lucro, antes de reajustar salários de empregados e recontratar”, diz a Tendências.
Para as classes D e E, as perspectivas são desanimadoras. “A mobilidade social das classes D e E deve ser reduzida nos próximos anos, acompanhando um fenômeno típico de países com alta desigualdade de renda”, avalia a consultoria. “O maior entrave ao crescimento da renda dos estratos sociais mais pobres é a educação não revertida em produtividade. O ingresso no mercado de trabalho é o principal meio de redução da pobreza, mas não é condição suficiente para superá-la.”
A Tendências observa que o mercado de trabalho brasileiro é fortemente caracterizado por baixas remunerações, elevadas desigualdades entre grupos de população ocupada, altas taxas de informalidade e marcante heterogeneidade entre os setores produtivos. “O alto nível de desemprego, a falta de ganho real no salário mínimo, o elevado grau de informalidade e a subutilização dos trabalhadores devem impedir ganhos elevados de renda nas classes D e E.” Nas projeções da Tendências, depois de crescer 23,4% em 2020 em termos reais, na esteira do auxílio emergencial, a massa de renda das classes D e E deve cair 14,4% em 2021, crescendo a uma média de apenas 0,85% de 2022 a 2025, em estimativas que já descontam a inflação. Já a massa de rendimentos da classe A, que subiu 1% em 2020, vai ter aumento real de 2,8% neste ano e de 5,6% no ano que vem, com um avanço próximo a 4,5% nos três anos seguintes, estima a consultoria.
Para escapar desse cenário negativo para a renda, é fundamental primeiro acelerar a vacinação. Isso permitirá afrouxar as medidas de restrição à mobilidade social, beneficiando em especial a recuperação do setor de serviços, o maior empregador da economia. Também é essencial a renovação imediata dos programas de empréstimos a micro e pequenas empresas e de proteção ao emprego, para dar fôlego às companhias de pequeno porte. Se a recuperação da atividade continuar a patinar, uma nova extensão do auxílio emergencial deverá ser necessária, o que será um desafio num quadro de penúria das contas públicas.
Bruno Carazza: Bancarrota blues
Muda discurso sobre Meio-Ambiente, mas não a prática
Tomada ao pé da letra, há uma enorme evolução entre o discurso proferido por Jair Bolsonaro na abertura do Fórum Econômico Mundial, em Davos, bem no início do seu mandato (22/01/2019), e a carta enviada ao presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, na última quarta-feira (14/04), confirmando presença na Cúpula de Líderes sobre o Clima.
Em sua primeira viagem internacional, o novo presidente brasileiro apresentou-se à elite mundial com uma fala de meros 6 minutos e 37 segundos. Na ponta do lápis, foram 741 palavras - pouco mais do que uma página de Word. Já a carta enviada para Biden na semana passada, ao contrário, não economizou no texto; foram sete laudas, e diferentemente da apresentação na Suíça, quando desperdiçou a chance de apresentar os principais planos para o seu governo, Bolsonaro na missiva para o americano tratou de apenas um assunto: o meio ambiente.
Para além do tamanho do texto, houve uma mudança de tom. Em Davos, o presidente brasileiro apresentava o patrimônio natural brasileiro como um ativo a ser negociado. “Temos a maior biodiversidade do mundo e nossas riquezas minerais são abundantes. Queremos parceiros com tecnologia para que esse casamento se traduza em progresso e desenvolvimento para todos. Nossas ações, tenham certeza, os atrairão para grandes negócios”, afirmou, anunciando que o Brasil estava de braços abertos para o mundo.
A carta para Joe Biden é muito mais cautelosa. Começa reiterando “o compromisso do Brasil com os esforços internacionais de proteção ao meio ambiente, combate à mudança do clima e promoção do desenvolvimento sustentável”. Em seguida, faz um retrospecto dos avanços do país na área, frutos dos governos anteriores - embora não deixe isso explícito, não deixa de ser um fato importante para quem sempre criticou seus antecessores na área ambiental.
Por fim, Jair Bolsonaro apresenta planos muito mais elaborados do que simplesmente obter parceiros para explorar as riquezas da floresta: intensificar o combate ao desmatamento ilegal e as queimadas, acelerar a implementação de um mercado de créditos de carbono e estimular o pagamento por serviços ambientais para que proprietários de terra se sintam incentivados a manter a floresta em pé, entre outras medidas.
Comparando os dois textos, seríamos levados a concluir que o presidente brasileiro mudou, finalmente se conscientizando da seriedade da questão ambiental e dos imensos ganhos que o país pode obter ao assumir um maior protagonismo nessa área. Só que não (#sqn, como se diz nas redes sociais).
Quem mudou, na verdade, foi o mundo. E a reunião que começa na próxima quinta-feira (22/04), tendo o presidente dos Estados Unidos como anfitrião num encontro de 40 líderes mundiais, revela isso.
Há cinco anos o Global Risks Report, pesquisa realizada junto a centenas de especialistas do setor privado, governos e sociedade civil, aponta os danos causados pelo aquecimento global como o evento com maior probabilidade de ocorrência no curto prazo. Para 2021, embora a pandemia se apresente, por motivos óbvios, como tendo o maior impacto, a falha na ação climática, a perda de biodiversidade e a escassez de recursos naturais aparecem, junto com as armas de destruição em massa, como os “top-five” riscos medidos pelos seus efeitos potenciais sobre o planeta.
O atual movimento político na direção da antecipação das metas celebradas no Acordo de Paris, contudo, não se deve apenas a uma preocupação crescente com a questão climática. Há uma revolução econômica e tecnológica em curso, e ele traz em seu âmago a questão ambiental - para o bem ou para o mal.
O barateamento da produção de fontes limpas de energia, como eólica e solar, combinado com o desenvolvimento de baterias mais potentes, recarregáveis e leves, prenunciam um futuro próximo menos dependente da queima de derivados do petróleo e do gás natural.
Além disso, o aprimoramento dos mercados de crédito de carbono - que nos últimos meses têm batido recordes sobre recordes - tem sinalizado para as companhias de energia e a indústria pesada que o custo de poluir será cada vez mais salgado. Para completar, fundos de investimentos bilionários estão adotando a sustentabilidade em suas políticas de governança e premiam empresas responsáveis na área ambiental.
Há também o lado sombrio dessa história, que é o protecionismo. Os dados mais recentes da Organização Mundial do Comércio revelam que em 2018 foram apresentadas 663 notificações de práticas desleais de comércio que tinham como pano de fundo questões ambientais. E no âmbito da União Europeia já se discute abertamente uma proposta para proteger empresas locais contra a concorrência de produtos provenientes de países que não descarbonizarem as suas economias.
Voltando à carta de Bolsonaro para Biden, John Kerry, responsável pela ação climática no governo americano, tuitou na sexta que a mudança de tom do presidente brasileiro foi importante, mas é preciso demonstrar “resultados tangíveis”. E quando se vê o que o Palácio do Planalto propõe de concreto, prevalece a velha agenda do que há de mais retrógrado no agronegócio, no garimpo e nas madeireiras.
Basta conferir a pauta prioritária encaminhada pelo governo aos novos presidentes da Câmara e do Senado em fevereiro deste ano: nela constam propostas de mineração em terras indígenas (PL nº 191/2020), regularização fundiária na Amazônia (PL nº 2.633/2020) e flexibilização das regras de licenciamento ambiental (PL nº 3.729/2004).
O discurso pode ter melhorado, mas na prática a visão do governo brasileiro continua sendo aquela demonstrada de forma nua e crua pelo diretor Marcus Vetter no documentário “O Fórum”. Nos bastidores do encontro de Davos em 2019, Bolsonaro responde da seguinte maneira à preocupação do ex vice-presidente americano Al Gore com o desmatamento no Brasil: “A Amazônia não pode ser esquecida. Temos muitas riquezas. E gostaria muito de explorá-la junto com os Estados Unidos”.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Ricardo Noblat: CPI da Covid deverá ter seu prazo de validade prorrogado
Serão 90 dias e talvez mais 90
É pule de dez na CPI da Covid que sequer foi instalada ainda no Senado que seu prazo de validade de 90 dias deverá ser prorrogado – quem sabe? – por mais 90. Se for assim, ela só concluiria os trabalhos no final de outubro, para desespero do governo do presidente Jair Bolsonaro, seu alvo único ou preferencial.
É muito tempo de exposição para um governo que nesse período só espera colher más notícias. A vacinação terá avançado, mas não a ponto de ultrapassar 60% da população. A recuperação econômica continuará rastejando com a inflação em alta e o desemprego também. O auxílio emergencial terá chegado ao fim.
Uma minuta do plano de trabalho da CPI indica que pelo menos 15 ministros de Estado, ex-ministros e ocupantes de pontos de comando no combate ao vírus serão convocados a depor, segundo o jornal O Globo. Bolsonaro será poupado, mas não Paulo Guedes, ministro da Economia. A grande estrela será Eduardo Pazuello.
A CPI tem muito que perguntar ao ex-ministro da Saúde, e aos que o antecederam no cargo. Há, ali, uma vontade enorme de que ele repita a frase que o celebrizou. Foi quando ele afirmou, depois de ter sido desautorizado por Bolsonaro na compra da vacina Coronavac, que “manda quem pode, obedece quem tem juízo”.
O general será instruído a não relembrar a frase para não dizerem que apontou o dedo na direção de Bolsonaro. A essa altura, estará de emprego novo e bem remunerado no governo pelos relevantes serviços prestados ao presidente que lhe deu uma missão e que ele a cumpriu com a obediência de um bom soldado.
Os 11 titulares da CPI atravessam um momento de raro alinhamento entre eles. As divergências que afloram estão sendo limadas. Por ora, deram em nada os esforços do governo para influir nos seus rumos. O que prevalece é o desejo mais ou menos uniforme de investigar tudo até o fim, doa em quem doer.
Do senador Ciro Nogueira (PI), presidente do PP e aliado de Bolsonaro, diz-se que seu amor é pelo poder, não necessariamente por quem o encarna. De Renan Calheiros (MDB-AL), que ocupará o posto de relator da CPI, um dos seus colegas diz que está puxando fumo misturado com veneno de rato.
Renan não perdoa Bolsonaro por tê-lo derrotado quando há dois anos tentou se reeleger presidente do Senado, e perdeu para Davi Alcolumbre (DEM-AP). A hora do troco chegou. E não haverá hora melhor para ele do que essa agora – com Bolsonaro em baixa e Lula, aliado de Renan, em alta.
A propósito: enquanto as atenções políticas estão voltadas para a CPI da Covid, Lula já começou a conversar com quem veste farda.
Carlos Pereira: A justiça (agora) foi feita
A confiança na Justiça é mediada pela congruência entre identidade ideológica e decisão judicial
A decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de considerar a 13.ª vara de Curitiba incompetente para julgar o ex-presidente Lula pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro gerou reações polarizadas. Por um lado, foi fortemente criticada por adversários do petista, que expressaram insatisfação com o sistema de Justiça criminal brasileiro supostamente "disfuncional, casuístico e irracional". Por outro lado, tal decisão foi extremamente celebrada por seus apoiadores como uma "vitória da democracia", reparação de uma "injustiça histórica" e que "restabelece a segurança jurídica e a credibilidade do sistema de Justiça".
Há quase quatro anos, quando foi anunciada a primeira condenação do ex-presidente Lula, as reações foram diametralmente opostas. Seus opositores viram naquela decisão uma sinalização de que "juízes e procuradores brasileiros estariam comprometidos com a lei e com a ideia de que ninguém estaria acima dela". No outro extremo, seus seguidores a interpretaram como “injusta” e como uma "perseguição política contra o ex-presidente".
Em democracias, espera-se que o sistema de Justiça atue de forma imparcial ao investigar e julgar líderes políticos que apresentem comportamentos desviantes. No entanto, com a polarização política - não apenas na sua dimensão ideológica, mas fundamentalmente identitária e afetiva - nas alturas, cidadãos tendem a perceber o sistema de Justiça como parcial dependendo de qual lado penda a decisão do juiz.
Quando a decisão judicial se apresenta de forma congruente com as identidades afetivas e ideológicas das pessoas, espera-se que elas interpretem que a justiça foi feita. Mas quando a Justiça contraria as suas expectativas afetivas, espera-se que elas percebam o sistema de Justiça como injusto.
Mas até que ponto a percepção das pessoas sobre um julgamento de um líder político depende de sua identidade ideológica e afetiva?
Para responder a essa pergunta, eu e meus coautores, André Klevenhusen (doutorando da FGV EBAPE) e Lúcia Barros (professora da FGV EAESP), implementamos, via internet, uma pesquisa de opinião experimental com 829 cidadãos brasileiros entre os dias 26 dezembro de 2020 a 13 de janeiro de 2021.
Os participantes tiveram a oportunidade de escolher, em uma eleição hipotética, seu candidato preferido entre quatro alternativas ideológicas distintas: liberal, libertário, populista e conservador. Distribuímos aleatoriamente uma vinheta na qual um desses quatro candidatos, que estava liderando as pesquisas de opinião, tinha sido condenado pelo Tribunal de Justiça por corrupção. Em seguida, os participantes responderam a perguntas que mediam a sua confiança nas decisões judiciais.
Um resultado até certo ponto positivo para a Justiça brasileira foi o de que a maioria dos respondentes nela confia e o grau de confiança independe do seu perfil ideológico. Este padrão persiste em cenários de congruência (o candidato rejeitado é condenado) e indiferença (nem o candidato preferido nem o rejeitado são condenados) em relação aos veredictos dos juízes.
Porém, quando ocorre incongruência (o candidato preferido é condenado), o grau de confiança na Justiça diminui. Ou seja, a confiança nos tribunais varia apenas quando o candidato preferido recebe um veredicto condenatório. Curiosamente, o grau de confiança na Justiça não aumenta quando o candidato rejeitado é condenado.
Embora não tenhamos ainda pesquisado o impacto da absolvição de políticos ideologicamente congruentes na confiança na Justiça, é plausível supor que os eleitores do ex-presidente Lula, que até então cultivavam uma percepção derrogatória da Justiça brasileira, passem, a partir da nova decisão do STF, a avaliar positivamente a Justiça, ainda que ele não tenha sido absolvido.
* É professor titular, FGV EBAPE, Rio de Janeiro
Fernando Gabeira: Bem-vindos à Neverlândia
A França cortou os voos com o Brasil, e o primeiro-ministro Jean Castex provocou risos no Parlamento ao falar do uso da hidroxicloroquina por aqui.
Isso que chamam de Brasil soa cada vez mais distante para mim. Guardo um país no escaninho da memória, mas o lugar onde vivo hoje costumo chamar de Neverlândia.
É um lugar realmente estapafúrdio, onde um Bolsonaro presidente troca ideias ao telefone com um senador Kajuru e ameaça dar porradas num quadro da oposição.
No final de tudo, o senador Kajuru está sendo processado por uma apresentadora de TV que ele ofendeu em entrevista, após a conversa com o presidente. Tudo na verdade parece um enredo televisivo, filmado com a luz de padaria e um cenário com cores berrantes.
Em Neverlândia, o presidente incorpora um personagem do programa “Casseta & Planeta”, chamado Maçaranduba, obcecado por dar porradas.
Em Neverlândia , o ministro do Meio Ambiente é acusado pela polícia de se associar a desmatadores para protegê-los da investigação e processo criminal. Isso jamais aconteceu no país chamado Brasil, agora envolto em névoa, pairando sobre meus cansados neurônios.
Em Neverlândia, políticos ainda hesitam em apurar o que acontece, apesar de mais de 370 mil mortos, de a maioria da população ter fome e de alguns doentes amarrados na cama, por falta de sedativos e relaxantes musculares.
Em Neverlândia, um vereador mata um menino a pancadas, e a mãe marca hora com a manicure.
Aquele país chamado Brasil nunca foi perfeito. Seus orçamentos eram irreais. Mas, depois que se transformou, surgem ideias como mandar o líder da Neverlândia para o exterior, para que não o punam pelos crimes fiscais.
A ideia não vingou, não porque era absurda, mas pelo fato de não ter para onde ir: as portas do mundo estão fechadas. Não há saída para quem vive na Neverlândia. A única possibilidade real é buscar de novo aquele país chamado Brasil, que escapou entre os dedos até se tornar isso que está aí.
Será um reencontro difícil. Há muitos Maçarandubas por aí, querendo dar pancadas. Apenas pelos músculos, não são assim tão perigosos. O problema é o crescimento do número de armas, um dos pontos básicos na transição para a Neverlândia.
Para reencontrar o Brasil, é preciso admitir que a Neverlândia sempre esteve por aqui, como uma espécie de mais um estado, não um espaço físico da Federação, mas um estado de espírito.
Nunca conseguiremos mandá-lo integralmente para as terras do nunca mais. O que não é possível é deixar que substitua o Brasil.
Éramos um país feliz, lembram? Havia energia, criatividade no ar. Era o que sentiam os que nos visitavam nos tempos de Brasil. A felicidade era, indiretamente, uma atração turística.
A pandemia revelou o que sabíamos, mas jamais encaramos de frente, que são nossas desigualdades. Ao explodir num momento de trevas num governo de obtusos negacionistas, ela provocou uma tempestade perfeita.
A sobrevivência de países em momentos históricos excepcionais depende da capacidade de unir forças, conjugar talentos e vontades.
Quando se trata de um inimigo externo e visível com o estrago de suas bombas, o trabalho de unir é mais fácil.
Estamos diante de um inimigo invisível, o vírus, e de um adversário interno: a extrema-direita, que sempre existirá, mas jamais nos representará, pois a soma dos seus erros e iniquidades nos transfigurou em Neverlândia.
Diante de tudo isso, a tarefa essencial é recuperar o país chamado Brasil, com o menor número de mortos. Os lideres de Neverlândia eleitoralmente se desmancham com sua própria incompetência.
Mas e os mortos? Na Neverlândia morre mais gente do que nasce. Como estancar a mortandade e chegar vivo a 2022? É uma pergunta que deveria ofuscar todas as pequenas questões políticas, ciúmes e rancores que acabam sendo também uma forma de interiorizar a morte.
O Estado de S. Paulo: CPI da Covid põe militares no foco das investigações
Já na mira do TCU, os generais Eduardo Pazuello e Walter Braga Netto devem estar entre os primeiros a serem ouvidos pela comissão parlamentar no Senado
Mateus Vargas e Vinícius Valfré, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - Nem o presidente Jair Bolsonaro nem os governadores. A Comissão Parlamentar de Inquérito aberta no Senado para investigar a atuação do governo na pandemia deve mirar primeiro nos militares. Os generais Eduardo Pazuello, ex-ministro da Saúde, e Walter Braga Netto, atual ministro da Defesa, que comandou um comitê de crise quando estava na chefia da Casa Civil, entre outros oficiais, devem ir a um incômodo “banco dos réus”. Ambos os generais entraram na mira do Tribunal de Contas da União (TCU) e de membros da CPI.
A convocação de Pazuello já era certa, mas ontem senadores da CPI combinaram de incluir entre os primeiros a serem ouvidos também o atual ministro da Defesa. A decisão ocorre após o Estadão revelar que técnicos do TCU consideraram que Braga Netto não atuou de forma a “preservar vidas” quando comandou o comitê da crise. O general teria entrado em contato ontem com ministros da Corte para se defender e tentar sair da mira do tribunal, cujos relatórios costumam pautar as CPIs. Ao Estadão, o Ministério da Defesa negou que o comitê tenha sido omisso com a crise.
Membro da CPI, o senador Otto Alencar (PSD-BA) disse que as apurações não podem ficar restritas à conduta do ex-ministro Pazuello. “O Ministério da Saúde não é só Pazuello. Existe uma estrutura organizacional de cargos, com responsabilidades. Quando o Pazuello foi ao Senado, por exemplo, o secretário executivo dele (o coronel da reserva Elcio Franco) estava do lado”, disse. Sobre a conduta de Braga Netto, afirmou: “Vamos averiguar, pedir informações ao TCU. A investigação vai ditar os requerimentos de informações e as convocações”.
“Não tenha dúvida que vamos discutir a convocação de Braga Netto. Acompanhamos tudo dos relatórios do TCU, do MPF e denúncias. Vamos atrás de cada uma. O relatório do TCU é muito rico, vai ser uma base importante para os trabalhos”, reforçou o senador Humberto Costa (PT-PE), que também integra a comissão.
“Na medida em que a CPI busca fazer uma radiografia completa da atuação do governo federal no combate à pandemia, avaliar a atuação do comitê presidido pelo ministro Braga Netto será provavelmente indispensável”, complementou o senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), um dos autores da CPI.
Diante dos novos fatos envolvendo militares, interlocutores do Planalto já avaliam que o governo estará no lucro se os debates da comissão se limitarem a Eduardo Pazuello. Sua equipe mais próxima na Saúde era formada por cerca de 20 nomes da ativa e reserva.
A disposição dos senadores, contudo, é convocar todos a depor em sessões transmitidas ao vivo. Eles não costumam ter parcimônia com seus investigados e a história registra episódios em que depoentes saíram presos de comissões. Razão pela qual é cada vez mais frequente que depoentes acionem o Supremo Tribunal Federal (STF) para não serem obrigados a dar as caras e prestar depoimentos. Uma CPI também tem poderes para quebrar sigilos fiscal, telefônico e bancário.
“Estão fazendo prejulgamento antes de instalar a CPI. Não é um tribunal de inquisição, temos que ter calma. Já estão condenando, isso não funciona. Primeiro, temos que ver o que está acontecendo”, disse o senador Jorginho Mello (PL-SC), um dos dois governistas na CPI, que tem 11 membros.
Alertas
Sob comando de Pazuello na Saúde, o Brasil saltou de cerca de 15 mil óbitos para 300 mil vítimas da pandemia e tornou-se uma ameaça global. Na quarta-feira passada, o TCU acusou o general de alterar o plano de contingência da Saúde na pandemia para livrar o governo de responsabilidades no monitoramento de estoques de medicamentos, insumos e testes.
A obediência de Pazuello ao presidente ficou nítida em outubro de 2020, quando cancelou uma compra de 46 milhões de doses da Coronavac. “É simples assim. Um manda e outro obedece”, disse na ocasião. A promessa de aquisição da vacina havia enfurecido Bolsonaro, pois os dividendos políticos iriam para o governador de São Paulo, João Doria (PSDB).
Ainda em fevereiro, um ministro do STF demonstrava, em conversa reservada com o Estadão, a preocupação diante da possibilidade de os militares serem alvo de uma CPI. Mesmo a Comissão Nacional da Verdade, que mirou agentes da reserva e questões da história, havia criado uma crise na cúpula militar e um estranhamento entre o governo Dilma Rousseff e a caserna.
Nesta semana, o ministro Gilmar Mendes disse ao Estadão não temer problemas institucionais. Ele observou que os militares foram “reprovados” na gestão pública e defendeu o direito da CPI de investigá-los. Em julho de 2020, o ministro já havia afirmado que o Exército estava se associando a um “genocídio”.
Enquanto Bolsonaro atacava a vacina, as Forças Armadas foram vitais para turbinar a produção da cloroquina, sem eficácia comprovada contra a covid-19. O Laboratório do Exército fez 3,2 milhões de comprimidos na pandemia. O lote anterior, de 2017, foi de 256 mil. A passagem de Pazuello na Saúde ainda ficou marcada por críticas sobre a omissão do governo no colapso no Amazonas.
O Ministério da Saúde afirmou que “desde o início da pandemia tem trabalhado incansavelmente para salvar vidas”. Braga Netto não quis comentar.
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Janio de Freitas: Fissura em relação com Exército é o pior enfraquecimento que Bolsonaro pode sofrer
A importância dessa reversão é grande e pode ser decisiva na CPI do genocídio
A perda de Bolsonaro com a encrencada substituição de comandos militares encontrou rápido meio de aferição. Em resposta à aprovação da CPI, no meio da semana voltou à insinuação ameaçadora: “O pessoal fala que eu tenho que tomar providências, eu estou aguardando o povo dar uma sinalização”. Para depois dizer que faz, ou fará, “o que o povo quer”. Nenhuma repercussão.
A interpretação geral daquele episódio, com o pedido de demissão conjunta decidido pelos comandantes do Exército, da Marinha e da Força Aérea, foi a de demonstrar o surgimento de uma distância, no mínimo uma fissura, que rompe a conexão do Exército com Bolsonaro tal como induzida ainda na campanha eleitoral. Esse é o pior enfraquecimento que Bolsonaro pode sofrer nos seus recursos para ver-se sustentado a despeito do que faz e diz.
A importância da reversão é grande e pode ser decisiva na CPI do genocídio. Antes, o Exército não precisaria explicitar insatisfação com a CPI para inibir-lhe a criação ou a atividade. Sua identificação com Bolsonaro o faria, por si só. A maneira distensionada como os senadores procederam nas preliminares para a CPI já foi claro fruto do novo ambiente sem cautelas e temores. O grau em que os senadores se sentiram desamarrados mostra-se ainda maior por terem um general da ativa, Eduardo Pazuello, entre os itens mais visados pelo inquérito.
Estudos recentes, publicados nas revistas científicas Science e Lancet, juntam-se agora a estudos científicos brasileiros e proporcionam levantamentos e análises primorosos para poupar à CPI muitas pesquisas e apressá-la. Ainda que não seja a ideal, sua composição é satisfatória; não será presidida por Tasso Jereissati, como deveria, mas conta com sua autoridade; e Renan Calheiros, se agir a sério, tem competência como poucos para um trabalho relatorial de primeira.
Bolsonaro tange o Brasil para os 400 mil mortos. Tem sido o seu matadouro. Estudo do neurocientista Miguel Nicolelis conclui que ao menos três em cada cinco mortos não precisariam ter morrido, no entanto foram vitimados pela incúria, a má-fé e os interesses com que Bolsonaro e seus acólitos têm reprimido a ação da ciência. Uma torrente de homicídios que não podem ficar esquecidos e impunes. Do contrário, este país não seria mais do que uma população de Bolsonaros.
A ENGANAÇÃO
Joe Biden insinua outra Guerra Fria. É curiosa a atração entre os democratas, não os republicanos, e as guerras. Os Estados Unidos entraram na Primeira Guerra sob a presidência do democrata Wilson. Na Segunda Guerra, a presidência era do democrata Roosevelt. Bem antes dos chineses, em 1950 os Estados Unidos entregaram-se à Guerra da Coreia levados pelo democrata Truman. O democrata Kennedy criou a Guerra do Vietnã. E pôs o mundo a minutos de uma guerra nuclear, de EUA e URSS, na crise dos mísseis em Cuba.
É contraditória a inadmissão de uma China em igualdade com os Estados Unidos e a determinação de sustar o aquecimento global. A primeira abre um risco de guerra em que questões como ambiente e clima não subsistem.
Apesar disso, nos dias 22 e 23 os governantes de 40 países fazem uma reunião virtual sobre clima, por iniciativa de Biden. Os americanos esperam comprar de Bolsonaro, por US$ 1 bilhão, o compromisso de medidas verdadeiras contra o desmatamento na Amazônia, essenciais para deter o aquecimento climático.
Esse bilhão sairá caríssimo ao Brasil, porque o compromisso de Bolsonaro será tão mentiroso quanto as afirmações que fará, como já fez em carta a Biden, sobre os êxitos do governo na preservação da Amazônia.
Em março, o desmatamento foi recordista: 13% maior que o de março de 2020. Desde o início do governo Bolsonaro, o desamamento por fogo, o roubo de madeira e o garimpo aumentam sem cessar. O setor de fiscalização do Ibama foi destroçado. Bolsonaro protege o garimpo ilegal, pondo-se contra a destruição de seu maquinário. O ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, protege os madeireiros criminosos.
Apresentado há três dias, o Plano Amazônia 2021/2022 não é plano, nem outra coisa. Sua meta de redução de desmatamento é maior do que o encontrado por Bolsonaro. Não contém restauração dos recursos humanos, nem as verbas condizentes com esforços reais. Mas “o governo dos Estados Unidos espera seriedade e compromisso de Bolsonaro” na reunião. Espera o que não existe.
Bruno Boghossian: CPI vai apurar papel de Bolsonaro na propagação intencional do vírus
Senadores citam incentivo à imunidade de rebanho como item a ser investigado
Nas primeiras semanas da pandemia, Jair Bolsonaro mostrou que seu plano era trabalhar para que o coronavírus se espalhasse pelo país. “Como dizem os infectologistas: 60%, 70% da população será infectada, e só a partir daí nós teremos o país considerado imunizado”, disse o presidente, em abril de 2020.
Não se sabe que infectologistas eram aqueles ou de onde veio a matemática macabra, mas o incentivo à imunidade de rebanho se tornou estratégia oficial do governo. O presidente estimulou contaminações, agiu para derrubar restrições impostas para conter o vírus e atrasou uma campanha de imunização inteligente a partir da vacinação em massa.
A CPI da Covid deve se debruçar sobre o papel de Bolsonaro na propagação deliberada do vírus –já apontado numa pesquisa de Deisy Ventura, Fernando Aith e Rossana Reis, da USP. A oposição e o senador Renan Calheiros (MDB), cotado para a relatoria da comissão, citam a defesa da imunidade de rebanho como um dos itens que serão investigados.
O estímulo ao alastramento da doença foi uma opção do presidente. Em maio, o Ministério da Saúde dizia que a imunidade de rebanho não era "a melhor estratégia se você não tem vacina". Mesmo assim, Bolsonaro agiu contra medidas de contenção e insistiu no papo de que a contaminação generalizada era o caminho.
Ao estimular aglomerações, o presidente dizia que o coronavírus era "uma coisa que vai pegar em todo mundo". Depois, ao sabotar a compra de imunizantes, ele afirmou que a contaminação era a forma ideal de se proteger. "Eu tive a melhor vacina, foi o vírus. Sem efeito colateral", declarou, em dezembro. Para Bolsonaro, bastava tomar cloroquina.
Essa linha de investigação ajuda a desmontar a versão fantasiosa de que a tragédia brasileira foi provocada exclusivamente por um vírus desconhecido, que surpreendeu governantes em todo o mundo. O presidente escolheu um caminho e se manteve nele, contra todas as evidências científicas. Bolsonaro sabia muito bem o que estava fazendo.
RPD || Hussein Kalout: O rastilho de destruição da diplomacia brasileira
Ainda é cedo para prever o grau de normalização que será possível alcançar com a saída do ex-Ernesto e a posse do novo chanceler, o embaixador Carlos França, avalia Hussein Kalout, sobretudo se a influência olavista seguir pairando sobre a cabeça no novo ministro
Ernesto Araújo, o sombrio ex-chanceler do governo Bolsonaro, também conhecido como “ex-Ernesto” nas mais do que inspiradas palavras da Senadora Katia Abreu, foi finalmente defenestrado. A experiência de misturar religião com política externa e a intentona de condicionar o futuro do Brasil a um governo estrangeiro, impingiu ao país severos danos. O rotundo fracasso e a consequente derrocada da finda gestão de Araújo, é bom ressaltar, somente teve ponto final após o levante coordenado pelo Senado da República que, altivamente, decidiu dizer: basta!
Setores do estamento estatal acreditaram ou quiseram acreditar que o tempo iria, paulatinamente, moldar a política externa em consonância com a realidade, de tal modo que a distopia em andamento na nossa diplomacia fosse naturalmente corrigida. Já o empresariado, por sua vez, acreditou que, com uma pressão aqui, outra acolá, poderia insular as insanidades ideológicas do governo, para imunizar os interesses político-comerciais brasileiros das diatribes dos “condutores” das relações exteriores do país. Nada se encaminhou como imaginado, e ambos os espectros se equivocaram regiamente.
Pressionado com a reação do Senado, o presidente da República encontrou, no embaixador Carlos França, os predicados para comandar a diplomacia nacional no mais grave período da história recente do país. Muito se argumentou que o novo chanceler não assumiu o cargo em virtude de experiência comprovada no campo da política externa, mas fruto de uma lealdade já demonstrada no Palácio do Planalto – isso sem falar que a indicação foi subscrita pelos cônsules da ideologização bolsolavista. Essa circunstância, na visão de vários parlamentares, não deixa de lançar dúvida sobre a capacidade do novo ministro de moldar decisões e moderar o ímpeto do próprio presidente.
Uma percepção não foge ao olhar daqueles que acompanham pari passu a política externa brasileira. O método que comandou a escolha do novo chanceler obedeceu ao mesmo réquiem da primeira experiência: diplomata recém-promovido à posição de embaixador, de trajetória discreta, sem nunca ter exercido funções de mais alta responsabilidade e chefia no Brasil e no exterior, desprovido de amplitude política e de denso arco de apoio no espectro nacional. A inferência natural que se fez dentro e fora da chancelaria – ainda que de forma talvez apressada – é a de que a escolha se encaixa naquilo que a ala ideológica do governo buscava assegurar: o controle sobre a diplomacia brasileira.
Apesar da lógica do método, contudo, cumpre ressaltar que a temperança e o bom senso do novo ministro da Relações Exteriores, Carlos França, são inversamente proporcionais aos de seu antecessor, o ex-Ernesto. Não obstante, é importante por ora não elevar as expectativas em demasia sobre quaisquer mudanças essenciais nas linhas da política externa. Apesar do estilo sóbrio e profissional do embaixador Carlos França, ainda é cedo para prever o grau de normalização que será possível alcançar, sobretudo se a espada de Dâmocles olavista seguir pairando sobre a cabeça no novo ministro.
Aliás, o discurso de posse do ministro França centrou-se em ilustrar como a diplomacia poderá contribuir na solução dos principais problemas do país e, especialmente, naqueles que o governo vem fragorosamente falhando em endereçar como: combate à pandemia, preservação do meio ambiente e crescimento da economia. A efetividade e o possível sucesso do trabalho do Itamaraty na solução de tais problemas, à par da boa intenção do discurso, dependem da moderação de uma única autoridade: o presidente da República. E é justamente aí que reside o perigo.
Profundas mudanças nas linhas da política externa somente devem ser aguardadas, portanto, a partir do dia 1 de janeiro de 2023 – se o Brasil eleger, obviamente, um novo presidente. Porém, até lá, é preciso ficar atento aos temas que são – e sempre serão – vitais ao interesse nacional.
Nesse sentido, China e EUA não deveriam seguir sendo opções excludentes no mapa geoestratégico da política externa do atual governo. Um país com vocação universalista como é a do Brasil, definidamente, não pode se condenar a escolher entre um ou outro lado. O pragmatismo e o bom senso recomendam extrair de ambos, chineses e americanos, os maiores benefícios para a sociedade brasileira e para os nossos interesses estratégicos – seja nas áreas comercial, tecnológica, ambiental, sanitária ou política.
Não menos importante, a América do Sul é um imperativo estratégico. O Brasil precisa com urgência redimensionar seu papel como um indutor do processo de desenvolvimento da região e país promotor da paz. Uma “liderança natural” não sobrevive por inércia quando há vácuo de poder. É preciso retomar o diálogo com os países sul-americanos, e cabe ao Itamaraty articular, liderar e impulsionar boas políticas de cooperação regional – saúde e meio ambiente são os fios condutores no momento.
A África, lamentavelmente, inexiste no mapa cartesiano da política externa bolsonarista. É um grave equívoco de avaliação achar que contaremos sempre com apoio dos países africanos mesmo estando ausentes do teatro diplomático e dos principais temas do continente. Aparições esporádicas e ações pontuais não ajudarão a consolidar as relações com a África. De maneira geral, o crescimento econômico dos países africanos, nos últimos anos, tem sido consistente, e as oportunidades econômicas e comerciais têm-se aberto àqueles países que estão sendo capazes de mensurar o valor estratégico do continente africano tais como: China, Turquia, Índia e Alemanha.
O sistema multilateral, por sua vez, sempre foi a melhor raia em que a política externa navegou. É onde construímos nosso prestígio e ampliamos nossa influência desde os tempos de Oswaldo Aranha ou até antes, com a participação marcante de Rui Barbosa na segunda Conferência de Paz na Haia, em 1907. É preciso evitar mais desgaste e recobrar a capacidade do país de evitar o isolamento que se auto impôs nos mais variados foros. É preciso repensar alguns posicionamentos, especialmente, em matérias concernentes ao meio ambiente e aos direitos humanos.
Se conseguir recolocar a política externa minimamente nos trilhos, na linha do que sinalizou em seu discurso de posse, o novo ministro das Relações Exteriores já estaria contribuindo para amainar o rastilho de destruição e minorar os graves prejuízos impostos ao país. A força do Brasil nas relações internacionais sempre foi sedimentada em sua dedicada capacidade de articular e de participar dos grandes palcos globais. Construído a duras penas, esse capital diplomático foi dilapidado nos últimos dois anos. Esperamos que o novo chanceler estanque a hemorragia e estabilize o doente. Diante da crise que nos acomete e das inclinações do presidente da República, isso seria sem dúvida um grande êxito e, quem sabe, um primeiro passo para a recuperação futura de nossa capacidade de defender nossos interesses no cenário internacional. Ao novo chanceler, desejamos boa sorte. Ele vai precisar.
* Hussein Kalout é cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2017-2018).
- ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
- *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.
RPD || José Luís Oreiro: O retorno do dilema Juros-Câmbio?
Decisão do Banco Central de aumentar a taxa Selic em 0,75% em março passado, no contexto da maior crise econômica da história do Brasil, foi a prova cabal que o país ainda não se livrou da armadilha juros-câmbio, avalia José Luís Oreiro
A sociedade brasileira tem uma patologia grave. Ela se mostra refratária a aprender com os inúmeros erros que vem cometendo nos últimos 40 anos. Trata-se da incapacidade de nossa sociedade, e particularmente dos economistas ditos “ortodoxos”, de reconhecer o estrago que a combinação entre juros altos e câmbio sobrevalorizado tem causado ao tecido produtivo da economia brasileira desde o início do Plano Real e mantido, quase incólume, durante as sucessivas administrações petistas.
A partir de 2017, com o nível de atividade econômica no fundo do poço devido à grande recessão de 2014-2016, o Banco Central do Brasil iniciou processo de (sic) redução lenta, gradual e segura da taxa Selic. Com a pandemia do covid-19, em 2020, a taxa Selic chegou à mínima histórica de 2% a.a em termos nominais, ao passo que a taxa de câmbio apresentava desvalorização de mais de 40% ao longo do ano.
Finalmente, o Brasil parecia ter-se livrado da combinação maldita entre juros altos e câmbio baixo, causa principal da desindustrialização prematura da economia brasileira, conforme mostro no livro Macroeconomia da Estagnação Brasileira, escrito em coautoria com Luiz Fernando de Paula e lançado neste mês pela Alta Books.
A decisão do Banco Central do Brasil em meados de março de aumentar a taxa Selic em 0,75 p.p - no contexto da maior crise econômica da história do Brasil e com contração fiscal já contratada para o ano de 2021 em função de redução de 75% do valor do auxílio emergencial – foi a prova cabal que o país ainda não se livrou da armadilha juros-câmbio.
A decisão “técnica” para o ajuste da taxa de juros – a qual deverá prosseguir nas próximas reuniões do Copom – era que a elevação do IPCA, acumulado nos últimos 12 meses de um patamar abaixo de 2% em junho de 2020 para mais de 5% em fevereiro de 2021, colocava em risco a obtenção da meta de inflação para o ano de 2021, definida em 3,75% a.a pelo Conselho Monetário Nacional, com um intervalo de tolerância de +/- 1,5 p.p. A autoridade monetária reconhece, contudo, que a elevação da inflação se deveu a um choque de oferta adverso – basicamente a elevação dos preços dos alimentos e combustíveis, devido à combinação de aumento dos preços internacionais das commodities e desvalorização da taxa de câmbio – que deverá ser revertido no segundo semestre de 2021. Tanto é assim que a previsão de inflação do mercado financeiro no início de março para o ano de 2021 se encontrava em 3,98%, ligeiramente acima da meta de inflação para o ano, mas confortavelmente dentro do intervalo de tolerância do regime de metas de inflação.
A teoria econômica e a prática da política monetária mostram que elevações da taxa de juros não devem ser usadas para conter uma aceleração inflacionária produzida por um choque de oferta, pois (i) a aceleração da inflação será de caráter temporário e (ii) uma elevação da taxa de juros irá amplificar, ao invés de amortecer, o efeito negativo do choque de oferta sobre o nível de atividade econômica. Nesse caso, a melhor política é acomodar o aumento temporário da inflação no intervalo de tolerância definido no regime de metas de inflação.
Essa não foi a decisão do Banco Central. Preferiu aumentar a Selic e já deixou claro que deverá continuar aumentando a taxa básica de juros até que a política monetária apresente (sic) o grau de estímulo compatível (sic) com o que é exigido pela situação atual da atividade econômica.
Essa explicação parece basear-se na premissa de que existe relação positiva entre a taxa de juros e o nível de atividade econômica, ou seja, de que por algum mecanismo que só existe na economia brasileira, um aperto na política monetária poderia levar a um aumento, ao invés de redução, do nível de atividade econômica.
Parece que a atual diretoria do Banco Central foi infectada com o vírus do “populismo cambial”, endêmico tanto entre os economistas ortodoxos, como em parte da heterodoxia brasileira. A ideia é a seguinte: elevações da taxa Selic levam a uma apreciação do câmbio, que permite uma redução da inflação, a qual leva a um aumento do salário real e do consumo das famílias. Dessa forma, um aumento da Selic seria compatível com a recuperação do nível de renda e emprego.
Essa política foi adotada ad-nauseam durante os dois mandatos do Presidente Lula e o resultado foi desindustrialização e perda de dinamismo econômico. Campos Neto quer repetir o mesmo experimento fracassado, na esperança de que agora ele finalmente vai funcionar. Irá colher os resultados de sempre.
* José Luis Oreiro é professor do Departamento de Economia da UnB
- ** Artigo produzido para publicação na Revista Política Democrática Online de abril (30ª edição), produzida e editada pela Fundação Astrojildo Pereira (FAP), sediada em Brasília e vinculada ao Cidadania.
- *** As ideias e opiniões expressas nos artigos publicados na Revista Política Democrática Online são de exclusiva responsabilidade dos autores, não refletindo, necessariamente, as opiniões da Revista.