senado
Bernardo Mello Franco: Tropa de trapalhões
Em duas semanas, o Planalto já acumula ao menos sete vexames na CPI da Covid. A série começou quando o UOL publicou uma planilha da Casa Civil com 23 acusações contra o governo. A lista foi redigida para ajudar os bolsonaristas. Ao vazar, virou arma para a oposição.
Na semana passada, O GLOBO revelou que requerimentos assinados por senadores governistas foram produzidos em computadores da Presidência. Os registros eletrônicos mostram que os parlamentares atuaram como laranjas do capitão.
Nesta terça, o ex-ministro Henrique Mandetta expôs mais uma lambança. O ministro Fábio Faria enviou para o celular dele, por engano, uma pergunta que seria feita pelos aliados de Bolsonaro.
No dia seguinte, os governistas protagonizaram outro papelão: tentaram impedir as representantes da bancada feminina de falar. Os senadores Ciro Nogueira e Marcos Rogério se esforçaram para calar as colegas no grito. Foram desautorizados até por Soraya Thronicke, uma bolsonarista de carteirinha.
O general Eduardo Pazuello ainda não deu as caras, mas já acumula dois vexames na CPI. Na terça, apresentou uma desculpa esfarrapada para adiar seu depoimento. Disse que teve contato com dois coronéis contaminados, embora não tenha se prestado a fazer um teste de Covid-19.
Ontem o drible se transformou em escárnio. Enquanto dizia estar isolado no hotel de trânsito do Exército, o general fujão recebeu a visita do ministro Onyx Lorenzoni.
O sucessor de Pazuello protagonizou a sétima trapalhada governista. Num depoimento arrastado, Marcelo Queiroga deixou dezenas de perguntas sem resposta. A cada enrolação, evidenciava o medo de dizer algo que desagradasse o chefe.
“O senhor é médico, fez o juramento de Hipócrates, mas não consegue responder àquilo que eu pergunto”, protestou o senador Otto Alencar. Queiroga continuou a embromar e voltou para casa com o apelido de ministro Rolando Lero.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/tropa-de-trapalhoes.html
Hélio Schwartsman: Pazuello, covarde ou herói?
O general Pazuello fugiu do depoimento que daria à CPI da Covid. Isso é fato. Resta determinar se o fez por covardia ou bravura. É claro que estou sendo irônico, mas menos do que o leitor imagina. A relação entre covardia e bravura é irredutivelmente paradoxal.
O guerreiro que nada teme não faz nada de extraordinário quando enfrenta a morte no campo de batalha. Para que sua atitude tenha algo de heroico, é preciso que ele tenha medo, se não de perder a vida, dos chamados destinos piores que a morte, como viver em desonra ou ver seus familiares e compatriotas reduzidos à escravidão. E basta admitir que o medo é indissociável da bravura para gerar situações contraditórias.
Gosto de uma observação do marechal Georgi Jukov: “No Exército Vermelho, é preciso ser muito valente para ser covarde”. É que os soviéticos punham em campo as temíveis companhias penais, que fuzilavam imediatamente qualquer soldado que parecesse recuar. Estima-se que centenas de milhares tenham sido mortos por esses pelotões.
Num exemplo mais literário e mais doméstico, Gonçalves Dias cria um I-Juca Pirama tão valente que não teme passar por covarde para cumprir suas obrigações filiais, sendo rejeitado até mesmo pelo pai pelo qual sacrificara a honra aparente.
Em qual contexto a fuga de Pazuello da CPI poderia ser interpretada como um ato de bravura? Lealdade. O general é tão leal ao comandante em chefe que não hesita em passar por covarde para protegê-lo. O fato de Pazuello ser um militar, carreira em que a covardia é o pior anátema que pode ser pespegado a alguém, torna seu sacrifício ainda mais trágico.
Só o que impede o general de ter seu destino imortalizado em versos são as motivações do chefe. Elas são tão mesquinhas que apequenam qualquer heroísmo. Se Pazuello não é covarde por ter fugido da CPI, o é por não ter denunciado os crimes de Bolsonaro.
Fonte:
O Globo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/helioschwartsman/2021/05/pazuello-covarde-ou-heroi.shtml
Everardo Maciel: Reforma tributária – Propostas subestimam impactos da tributação sobre preços
Não há nenhuma dúvida quanto à necessidade de reforma tributária, no Brasil, por várias razões, como a natureza intrinsecamente imperfeita de todos os sistemas tributários, as mudanças, cada vez mais rápidas e relevantes, nas circunstâncias econômicas e sociais, as controvérsias conceituais em razão de instabilidades na interpretação administrativa e na jurisprudência, a voracidade da burocracia tributária, etc.
Essa necessidade, todavia, não é exclusiva do Brasil. Alcança todos os países, não necessariamente ao mesmo tempo, nem com a mesma agenda de questões a solucionar.
Propostas de reforma tributária devem, precipuamente, delimitar seu objeto e eleger a forma de execução, dispensando chavões, dogmatismos, ilações insubsistentes, pretensões de recepcionar acriticamente experiências estrangeiras, estudos e pareceres encomendados por interesses privados. Além disso, devem ser precedidas de estudos, que exponham de forma clara os problemas que pretende enfrentar, as possíveis soluções e suas repercussões, a serem submetidas a debate aberto e transparente.
É como se fez no Brasil, em 1953, quando da elaboração do anteprojeto do Código Tributário Nacional.
Instituiu-se então uma comissão presidida pelo próprio ministro da Fazenda, Osvaldo Aranha, e integrada por qualificados tributaristas e servidores públicos, tendo como relator Rubens Gomes de Souza.
Durante nove meses, a Comissão fez inúmeras reuniões, produziu relatórios levados ao conhecimento público, examinou mais de mil sugestões, daí resultando um projeto de lei encaminhado para apreciação e aprovação pelo Congresso Nacional.
De igual modo, em 1965, foi constituída uma comissão para elaborar o anteprojeto de reforma da discriminação constitucional de rendas, presidida por Simões Lopes, presidente da Fundação Getúlio Vargas, e integrada por Rubens Gomes de Sousa, na condição de relator, e, entre outros, por Gerson Augusto da Silva, Gilberto de Ulhôa Canto e Mário Henrique Simonsen.
Essa Comissão, tomando por base estudos que remontam a 1963, elaborou o anteprojeto da Emenda Constitucional n.º 18, de 1965, que foi certamente a melhor reforma da tributação do consumo no Brasil.
Fica patente, em ambos os casos, que os projetos foram concebidos por especialistas, porém com efetiva participação do Estado, em nome da preservação do interesse público e da imparcialidade.
A Espanha, em abril passado, adotou providência análoga, ao instituir comissão, integrada por tributaristas, economistas e servidores da Fazenda Pública, para analisar o sistema tributário espanhol e, até fevereiro de 2022, propor medidas visando a torná-lo mais eficiente no plano arrecadatório e mais eficaz no combate à pobreza, e, por fim, ajustá-lo ao contexto do século 21, especialmente no que concerne à atenção com a sustentabilidade e a economia digital.
Fatos recentes atestam que iniciativas tributárias movidas por mero voluntarismo, mesmo que lastreadas em teses razoáveis, podem resultar em custosas frustrações, em virtude da reação dos contribuintes.
Na França, em 2018, a elevação dos tributos incidentes sobre os combustíveis de origem fóssil gerou o movimento dos coletes amarelos (gilets jaunes, em francês), que promoveu uma trágica rebelião popular, com pessoas mortas, feridas e detidas, além de barricadas, saques e danos à propriedade pública.
No início desta semana, o governo colombiano se viu obrigado a retirar proposta de reforma tributária que, entre outras medidas, previa tributar, com uma alíquota uniforme de 19%, bens e serviços consumidos pela classe média e pelos pobres. A proposta provocou uma revolta, com 19 mortos e 700 feridos.
Esses fatos constituem um alerta para propostas de reforma tributária, no Brasil, que subestimam reações aos impactos da tributação sobre os preços, especialmente em tempos de pandemia.
Os contribuintes, dizia Maurício de Nassau em seu testamento político, são como carneiros, que se, entretanto, tosquiados até a dor se convertem em terríveis alimárias.
*Consultor Tributário, foi Secretário da Receita Federal (1995-2002)
Fonte:
O Estado de S. Paulo
Bruno Carazza: A volta dos que não foram
No ciclo de 2013 a 2018, as estruturas da política brasileira foram sacudidas por três fenômenos consecutivos e de certa forma inter-relacionados. Os movimentos sísmicos começaram com as manifestações de junho de 2013 e a ascensão do discurso do “não me representam”. Na sequência, muitas lideranças partidárias desabaram diante do terremoto que foi a Operação Lava-Jato. Por fim, nas eleições de 2018, o bolsonarismo chegou como um tsunami, derrubando quase tudo o que restou da velha ordem da Nova República.
Por condenações judiciais ou derrotas impostas pelos eleitores, a lista das vítimas é imensa. Para ficar apenas nos nomes mais significativos que tiveram suas carreiras interrompidas nesse processo estão os petistas Dilma Rousseff, Antonio Palocci, Fernando Pimentel, Jorge Viana e Delcídio do Amaral. Entre os tucanos, não conseguiram ser eleitos ou perderam seus cargos Geraldo Alckmin, Marconi Perillo e Beto Richa.
No MDB tombaram Romero Jucá, Eduardo Cunha, Eunício Oliveira, Garibaldi Alves, Valdir Raupp, Edison Lobão e Geddel Vieira Lima. Entre os membros do DEM, foram abatidos José Agripino, Heráclito Fortes e José Carlos Aleluia. No Centrão caíram ainda Valdemar da Costa Neto e Alfredo Nascimento (PL), além de Roberto Jefferson (PTB), entre muitos outros “peixes pequenos”.
Jair Bolsonaro assumiu a Presidência da República, portanto, com um Congresso em terra arrasada. Além da diminuição no número de políticos experientes, o índice de “senioridade” na atual legislatura caiu (nas minhas contas, 82 deputados eleitos nunca haviam disputado uma eleição sequer na vida) e o grau de pulverização elevou-se – PT e PSL, os dois partidos com maior representatividade no plenário da Câmara, possuem pouco mais de 10% das cadeiras.
Esse cenário era perfeito para Bolsonaro nadar de braçada, pois além de não contar com um exército de parlamentares tarimbados na oposição, boa parte dos novos e antigos congressistas comungava de suas visões sobre a sociedade e a economia – afinal, o atual presidente moldou-se no mesmo barro que constitui o Centrão.
Bolsonaro, porém, abriu mão de liderar, seja por falta de agenda ou de cabeças coroadas na sua equipe (seu ministro com maior rodagem, Onyx Lorenzoni, nunca havia ocupado um cargo na Mesa Diretora da Câmara). Antes de seu governo ser engolido pela pandemia, a única entrega significativa foi a Reforma da Previdência – e ainda assim tendo contado com um belo empurrão da administração Temer. Fora isso, poucas propostas legislativas compensadas por muitos decretos tentavam contornar a falta de uma base governista.
Em nossa história recente, é alta a probabilidade de presidentes fracos no Congresso terem em algum momento que enfrentar um processo de impeachment ou uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) que seja capaz, senão de matá-lo, pelo menos de fazê-lo sangrar por alguns meses.
O capitão parece não ter aprendido nada em seus sete mandatos como deputado federal. Quando acordou para o fato de que, para governar, é preciso fazer alianças, já era tarde demais. O ideal seria evitar a criação da CPI; não conseguindo contorná-la, poderia ter manobrado para que ela fosse mista, contando com a ajuda de Arthur Lira pelo lado da Câmara; restrita ao Senado, com algum jogo de cintura daria para ter a maioria dos membros. Perdeu em todas.
A CPI da covid dará trabalho a Bolsonaro não apenas por estar em minoria. Pior do que contar com um apoio restrito é ver emergirem forças que desde o início do mandato vagavam à procura de uma oportunidade para retomar o protagonismo que detiveram no passado.
A composição da CPI é mais um sinal do movimento de refluxo na política brasileira, já captado no resultado das urnas em 2020. Entre seus titulares e suplentes estão alguns dos sobreviventes da sucessão de ondas destruidoras das jornadas de 2013, da Lava-Jato e do bolsonarismo.
Em 2018, quando a avalanche soterrou boa parte dos figurões que deram as cartas nas últimas décadas, poucos foram poupados. Cada um a seu modo, Renan Calheiros (MDB-AL), Jader Barbalho (MDB-PA), Eduardo Braga (MDB-AM), Humberto Costa (PT-PE) e Ciro Nogueira (PP-PI) foram importantes lideranças durante as presidências do PSDB e PT que escaparam tanto dos processos criminais quanto da sede de renovação do eleitor.
A eles se juntam Tasso Jereissati (PSDB-CE) e Otto Alencar (PSD-BA), que por terem sido eleitos em 2014 (o mandato de senador é de oito anos), não foram colocados à prova no mesmo pleito que elegeu Bolsonaro.
Com o couro curtido por décadas de embates em CPIs – atuando ora como investigados, ora como inquisidores -, esse grupo de parlamentares ditará, para um lado ou para o outro, o ritmo da devassa sobre a responsabilidade do chefe do Poder Executivo sobre as mais de 400 mil mortes causadas pela pandemia até agora.
A volta dos que não foram coloca em jogo muito mais do que o destino do atual presidente. Cada um desses membros da velha guarda tem objetivos próprios ou coletivos bastante concretos e usarão a CPI para torná-los mais próximos de serem alcançados.
Jereissati e Alencar buscarão em 2022 a reeleição ou tentarão alçar outros voos. As sessões da comissão, portanto, serão um palanque de luxo que será explorado à exaustão visando ampliar seu capital eleitoral.
Os demais, tendo à frente Renan Calheiros como relator e Ciro Nogueira como principal representante governista, tentarão fazer da CPI a base para a reconstrução da ordem política, da qual almejam ser protagonistas dependendo de quem vier a ocupar o Palácio do Planalto em 2023.
Bolsonaro errou muito desde o seu governo, mas já percebeu que não pode ficar refém das velhas raposas que tentarão acuá-lo a partir desta semana, com o início dos depoimentos. Para isso vai buscar se blindar com o apoio popular, como demonstraram as manifestações desse último final de semana.
Os próximos capítulos prometem.
*Bruno Carazza é mestre em economia, doutor em direito e autor de “Dinheiro, Eleições e Poder: as engrenagens do sistema político brasileiro”.
Fonte:
Valor Econômico
https://valor.globo.com/politica/coluna/a-volta-dos-que-nao-foram.ghtml
Correio Braziliense: ‘Muito poderia ter sido feito para evitar tantas mortes’, diz Gilmar Mendes
Ao ministro do Supremo Tribunal Federal, Gilmar Mendes, a pandemia conta uma história e deixa lições. Impossível passar por ela e não ver uma imensa janela aberta, mostrando a realidade que descortina um Brasil em pleno luto: “A pandemia escancarou erros e omissões históricas do Estado brasileiro na área social”. Não só isso. Para ele, fica demonstrada de forma inequívoca a importância da ciência e a necessidade ampliar investimentos no setor.
Lamentando a marca de mais de 400 mil mortos por covid-19, o ministro percebe que a dimensão absurda que a pandemia tomou no Brasil não se deve apenas a uma questão de agilidade: “Olhando para tudo que foi feito até agora, é possível dizer que não foi apenas uma questão de decisões tomadas fora do tempo ideal. Há uma série de outras questões que nos conduziram a essa tragédia.” Seria fundamental, a seu ver, a consistência da atuação do governo, a coordenação entre órgãos, o respeito aos critérios técnicos e à ciência, a boa comunicação com a população.
Nesta entrevista à coluna, o ministro também fala sobre as adaptações da Justiça frente à pandemia, a tecnologia, a noção de prazer e o conceito de liberdade. Acredita que é preciso manter acesa a esperança. E, no fim de tudo, haverá algo de positivo: “Entendo que ficará o legado e o exemplo daqueles que renunciaram a vários prazeres da vida em prol de um objetivo maior, que foi o de salvar vidas”.
Como a Justiça e o Direito se adaptaram para as novas demandas da sociedade diante da pandemia?
É preciso falar, aqui, que o Direito e a Justiça tiveram que se adaptar sob dois aspectos. O primeiro deles, é claro, foi a necessidade de manter as atividades do Judiciário mesmo no contexto da pandemia. Vimos uma atuação bastante relevante de todos os tribunais para possibilitar julgamentos, despachos, audiências, em suma, toda sorte de atos necessários à jurisdição em meio virtual. Felizmente, o nosso Judiciário já contava em grande medida com estrutura para tanto, dada a difusão do processo eletrônico nos tribunais do país.
O segundo aspecto tem relação com o próprio modo de fazer da atividade jurisdicional. Vimos o impacto da pandemia nas próprias demandas que chegam ao Judiciário. E, nesse caso, um dos grandes desafios foi responder a uma série de questões jurídicas, de certo modo, inéditas.
No início da pandemia, não se sabia a dimensão real do problema. Foi necessária uma grande sensibilidade do sistema de Justiça para enfrentar essas situações que se multiplicaram em todo o país. Como lidar com contratos durante esse período? Como fica a questão de eventuais inadimplementos por pessoas e empresas severamente impactadas pelas medidas restritivas? Como devem ser tratados os presos, principalmente os pertencentes aos grupos de riscos, nesse período? Essas foram algumas das questões que os Tribunais tiveram que responder.
No âmbito do Supremo Tribunal Federal, tivemos uma série de ações sobre temas relevantíssimos da pandemia. Diante dos conflitos entre estados e União, principalmente, o tribunal conseguiu delinear importantes diretrizes para a atuação desses entes. Retirou-se também as amarras financeiras e fiscais para as ações de combate à covid-19 e de socorro à população mais severamente atingida. Atuamos, inclusive, no âmbito das vacinas.
Como a pandemia pode reforçar os valores humanistas da sociedade?
A pandemia mostrou a importância da ação coletiva e da união das pessoas. Acredito que, neste momento, foram reforçados os laços de solidariedade e respeito e abandonadas posturas egoístas. É claro que houve infelizes casos de desrespeito às medidas de contenção ao vírus. Mas, no geral, entendo que ficará o legado e o exemplo daqueles que renunciaram a vários prazeres da vida em prol de um objetivo maior, que foi o de salvar vidas.
É possível ter um olhar poético diante desse momento difícil? Como faz para aliviar a tensão?
Acredito que seja difícil diante de tanto sofrimento, mas é importante manter, na medida do possível, a esperança. Para aliviar a tensão eu tento manter a rotina de trabalho no Supremo e no IDP, como professor. Além disso, busco me exercitar e me manter atualizado nos livros.
O que mudou na sua rotina neste ano de pandemia?
Não se pode negar o fenômeno das “lives”. Esse momento nos mostrou que podemos quebrar a barreira da distância — e, aqui, a tecnologia assume um importante papel — através de eventos on-line. Tenho participado de inúmeros e frutuosos debates na modalidade virtual. Até mesmo, passei por uma situação inusitada de, sem querer, soltar uma reclamação ao final de um desses encontros virtuais. O constrangimento, de alguma maneira, deu lugar à piada. Além disso, vemos, é claro, que houve uma completa mudança na dinâmica do Supremo. Os julgamentos virtuais ganharam maior relevo, e as sessões por videoconferência inauguraram uma nova era não só no STF, mas em todo o Poder Judiciário. Com certeza, sem os avanços tecnológicos, nada disso seria possível e, nesse particular, devemos celebrar essas inovações que permitiram que os tribunais continuassem em pleno funcionamento.
Como ficam as grandes questões da humanidade no pós-pandemia?
Acredito que a pandemia não vá alterar o que podemos dizer como as “grandes questões da humanidade”. Mas é certo que ela impactará a forma como as enxergamos. A covid-19 escancarou diversos de nossos problemas e criou novos olhares para analisá-los. Um exemplo claro é o de como tratamos questões tão relevantes como a desigualdade social, a desigualdade entre países e o próprio nacionalismo e todas suas implicações. Diante de uma ameaça global, na qual o descontrole da pandemia em um país pode gerar mutações mais agressivas e resistentes, é evidente que o debate sobre esses temas será afetado. Talvez a pandemia traga a eles uma perspectiva mais solidária e menos cínica. Outro caso interessante é o da liberdade, tema que sempre esteve presente nos mais diversos momentos históricos. Vejo o tanto que a pandemia da covid-19 deu a essa questão novas perspectivas. Refiro-me aqui às variadas discussões que surgiram a partir do tema liberdade, como a de locomoção, a de se vacinar (ou não), a de se manifestar (em redes sociais ou não), a de celebrar cultos, como vimos recentemente.
Que ensinamento este momento nos deixa?
Acredito que, enquanto sociedade, a covid-19 nos deixa uma série de ensinamentos que certamente poderiam ter sido aprendidos de forma menos dura, sem a perda de tantas vidas. Mas gostaria de destacar, em primeiro lugar, o quanto a pandemia demonstrou a importância da ciência e a necessidade de se ampliar o investimento nesse setor. Em segundo lugar, creio que ela escancarou erros e omissões históricas do Estado brasileiro na área social. A pandemia demonstrou e cresceu frente a um sistema de saúde frágil, à falta de estrutura urbana e de morada, às deficiências de nossa educação e a um sistema de seguridade social que até mesmo desconhecia uma quantidade gigantesca de trabalhadores brasileiros, os chamados “invisíveis”. Aqui, talvez, haja uma pontada de esperança de que fique o ensinamento a toda a classe política de que esses temas são urgentes e devem ser tratados com rigor.
Como o senhor vive em Brasília depois de mais de três décadas de convivência? Como “sentiu” a cidade neste ano de pandemia?
Apesar de ter nascido no Mato Grosso e de ter um vínculo muito forte com o estado, toda minha vida se encontra e foi em grande parte desenvolvida aqui em Brasília. Gosto da cidade, das pessoas que aqui conheci e das oportunidades que ela me proporcionou. E, mesmo estando acostumado ao estilo diferente da cidade, com seus grandes espaços abertos, poucos pedestres etc., é impossível não notar a diminuição do número de pessoas na rua, a redução drástica de eventos culturais, especialmente nos períodos mais graves da pandemia.
Como vê a perda de tantos brasilienses na pandemia? Os governos deveriam ter sido mais céleres nas decisões? Que exemplo no mundo poderia ser usado no Brasil?
O sentimento predominante é, certamente, de tristeza e consternação por tantas vidas perdidas. E, claro, também sinto que muito poderia ter sido feito para evitar tantas mortes. Aqui, não acredito que a questão seja simplesmente de “celeridade” na atuação do governo. É evidente que, em se tratando de vacinas, a velocidade importa. Mas, pensando na pandemia como um todo, acredito que, além da velocidade na tomada de decisões, é fundamental a consistência da atuação do governo, a coordenação entre órgãos, o respeito aos critérios técnicos e à ciência, a boa comunicação com a população, entre outras coisas. Olhando para tudo que foi feito até agora, é possível dizer que não foi apenas uma questão de decisões tomadas fora do tempo ideal. Há uma série de outras questões que nos conduziram a essa tragédia.
A importância da união em torno de um projeto suprapartidário para mitigar os efeitos da pandemia nos próximos anos é possível?
Certamente. Desde o início da pandemia venho defendendo a importância de uma atuação coordenada entre todos os entes federados e partidos para que haja um combate ao vírus mais eficaz. Para isso, são necessárias políticas públicas voltadas para a implementação de medidas sanitárias em todo o território nacional, bem como para ações focadas na vacinação em massa e na garantia da subsistência de toda a população. Da mesma forma, será necessário envidar todos os esforços para mitigar os severos impactos que a pandemia tem causado na economia e na vida de cada um dos brasileiros. Eu tenho para mim que, apesar das desavenças e de nossas “fraturas expostas”, esses temas devem ser assuntos prioritários nas pautas do nosso Poder Legislativo.
Fonte:
Correio Braziliense
Gilmar Mendes: “Muito poderia ter sido feito para evitar tantas mortes”
Terrence McCoy: Bolsonaro insultou grande parte do mundo. Agora, o Brasil precisa de ajuda
RIO DE JANEIRO – Dois países em desenvolvimento, enormes em população e em extensão geográfica, são vítimas da devastação do coronavírus. Os hospitais esgotaram seus suprimentos. Pacientes são mandados de volta. Em todo lugar, uma nova variante. Precisa-se desesperadamente de ajuda externa.
No caso da Índia, derrubada por taxas recordes de infecção, o mundo se apressou a responder. Esta semana, a Casa Branca divulgou a entrega de mais de US$ 100 milhões em equipamentos e material hospitalar. Cingapura e Tailândia enviaram oxigênio. O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, anunciou que o Reino Unido fará “tudo o que puder”.
Mas no caso do Brasil, que enterrou 140 mil vítimas nos dois últimos meses, a resposta internacional tem sido mais moderada. Em março, o presidente Jair Bolsonaro solicitou a ajuda das organizações internacionais. Um grupo de governadores pediu à ONU “ajuda humanitária”. Há duas semanas, o embaixador brasileiro na União Europeia implorou por ajuda. “É uma corrida contra o tempo para salvar muitas vidas no Brasil”.
Mas a resposta tem sido em grande parte ou falta de interesse, ou críticas aos erros do Brasil – e muito pouca ação, até o momento.
“O que está acontecendo no Brasil é uma tragédia que poderia ter sido evitada,” afirmou um membro do Parlamento Europeu ao embaixador brasileiro em uma audiência, este mês. “Mas esta tragédia foi baseada em decisões políticas erradas”.
“Em lugar de declarar guerra ao coronavíurs”, afirmou outro, “Bolsonaro declarou guerra à ciência, à medicina, ao senso comum, à vida”.
Desde terça-feira, a presidente do Parlamento Europeu, Ursula von der Leyen, tuitou três vezes sobre a ajuda à Índia. No entanto, pouco ela falou sobre o Brasil.
O contraste entre o tratamento dispensado pela comunidade internacional ao enfrentamento da crise na Índia e no Brasil mostra que as crescentes batalhas diplomáticas de Brasília complicaram a resposta do país contra o coronavírus. A imagem internacional que o Brasil passou décadas cultivando – focalizada no respeito do meio ambiente, amistosa, multilateral – foi solapada por um presidente cuja administração insultou grande parte do mundo no momento em que mais necessitava de ajuda.
Bolsonaro, um nacionalista de extrema direita, que chegou ao poder zombando do globalismo, acusou países europeu inclinados ao respeito do meio ambiente de colonialismo e desmatamento ilegal. Amplificou uma mensagem nas redes sociais usando termos depreciativos contra a aparência da esposa do presidente francês Emmanuel Macron. Reiterou as afirmações infundadas do presidente Donald Trump sobre fraude eleitoral, e foi o último líder do G-20 a reconhecer a vitória do presidente Joe Biden. Durante meses, membros do seu governo e apoiadores dispararam ataques racistas contra a China e zombaram de sua vacina. Na terça-feira, seu ministro da Economia afirmou que a China “inventou o vírus”.
Desde o começo da pandemia, o governo federal do Brasil menosprezou a gravidade de um vírus que aleijou este país de 210 milhões de habitantes. Bolsonaro conclamou as pessoas a viverem sua vida normalmente. Muitos lhe deram ouvidos – por causa da pobreza, da política ou do cansaço – o suficiente para comprometer medidas de contenção pouco uniformes. Mais de 400 mil brasileiros já morreram de covid-19, o pior desastre humanitário da história da nação, e o segundo maior do mundo, depois dos Estados Unidos.
Agora, ainda mergulhado no período mais mortal de sua pandemia – outros 3.001 morreram na terça-feira, segundo informações – um país que há muito gabava de ser amigo de quase todo mundo, agora se encontra em grande parte sem amigos.
“O mundo inteiro está tentando ajudar a Índia”, disse Maurício Santoro, cientista político da UERJ. “Mas Bolsonaro tornou-se um problema internacional tão grande que ninguém está disposto a ajudá-lo.”
“Ninguém fala em dar grande ajuda ao Brasil.”
À pergunta da razão pela qual os Estados Unidos não se mexeram para ajudar o Brasil com a urgência demonstrada em relação à Índia, um porta-voz do Departamento de Estado apresentou uma lista de contribuições dos EUA ao Brasil antes da fase pior da pandemia, por um total de mais de US$ 20 milhões em assistência fornecida pelo governo. O porta-voz acrescentou ainda os US$ 75 milhões de “ajuda do setor privado”. A contribuição, grande parte da qual foi enviada durante a administração Trump, incluiu mil ventiladores e 2 milhões de comprimidos de hidroxicloroquina.
“Continuamos ativamente dispostos a discutir com o governo brasileiro suas necessidades e a encontrar maneiras de continuarmos nossa parceria com o Brasil a fim de ajudar a satisfazer as suas necessidades”, afirmou o porta-voz do Departamento de Estado.
Outros países também contribuíram. A Alemanha enviou ventiladores depois que o sistema médico da cidade de Manaus fracassou. A Organização Mundial da Saúde começou a enviar vacinas por meio de um programa que visa sanar as de imunizantes. A União Europeia e seus países membros concederam cerca de US$ 28 milhões em doações desde o início da pandemia, segundo um porta-voz. Em resposta a uma solicitação do Brasil em março, o bloco contribuiu para o envio de “80 mil unidades de medicamentos criticamente necessários” ao Brasil.
Mas a falta de mais assistência internacional – ou mesmo de uma maior expressão de solidariedade – durante os meses de maior desespero no Brasil, confirmou os temores de que o país venha a pagar um preço internacional pela atitude de confronto de Bolsonaro em matéria de política externa e de zombaria em relação às medidas contra o coronavírus aceitas pelos líderes globais.
“O País perdeu influência em inúmeros níveis”, afirmou Oliver Stuenkel, professor de relações internacionais da Fundação Getúlio Vargas em São Paulo.
O Brasil nunca irritou o mundo. Vasto, tranquilo e em desenvolvimento, seguiu tradicionalmente o que Stuenkel descreveu como uma política externa “previsível”, baseada na construção de alianças. Ano após ano, procurou estender o seu corpo diplomático, um dos maiores do mundo em desenvolvimento.
Voltar-se contra a sua história foi uma jogada que o Brasil não podia se permitir.
“Os EUA conseguiram tirar um Trump porque não precisam tanto do mundo”, disse Stuenkel. “Eles podem produzir suas próprias vacinas. Mas no Brasil, tal comportamento foi particularmente imprudente porque dependia da comunidade internacional. Nós não temos poder forte. Nós precisamos de multilateralismo“.
Em vez disso, o governo Bolsonaro menosprezou a fé na China e em suas vacinas ao mesmo tempo em que o Brasil dependia do país para obter material para as vacinas. Em abril passado, o ex-ministro da Educação de Bolsonaro tuitou uma mensagem racista provocando uma violenta censura da China e da Suprema Corte brasileira. O filho do presidente, membro do Congresso brasileiro, culpou a China pela pandemia, depois a acusou de usar o sistema 5G para espionagem.
O governo chinês advertiu que haveria “consequências negativas” se tal retórica continuasse. Em janeiro, o embarque de material da China para a produção de vacinas sofreu um considerável atraso, provocando uma série de especulações. Para alguns veículos de informação, os insultos do governo tiveram consequências.
Esta semana, enquanto as autoridades de saúde do país recusavam a vacina Sputnik V da Rússia, alegando falta de transparência, o ministro da Economia, Paulo Guedes, criticou a vacina chinesa que o Brasil tem.
“Os chineses inventaram o vírus”, afirmou, “e sua vacina é menos eficiente do que a americana”.
O embaixador chinês revidou: “Até este momento, a China é a principal fornecedora de vacinas e de material básico ao Brasil”.
Os que estão pagando o custo destas disputas diplomáticas são os brasileiros comuns, afirmou Michael Shifter, presidente do Diálogo Interamericano sediado em Washington.
“O povo brasileiro está sofrendo e morrendo a taxas absurdas,” ele disse. “E esta é a parte mais trágica”. /
Tradução de Anna Capovilla
Fonte:
O Estado de S. Paulo/ The Washington Post
Celso Rocha de Barros: Não há mais governo, e ninguém se dispõe a derrubar quem já desistiu de governar
No sábado (1º), velhos vacinados pelo Doria foram às ruas em apoio a Bolsonaro. Parabéns para os chineses: os manifestantes pareciam bem fisicamente, e seus evidentes problemas mentais eram claramente preexistentes.
Mesmo a maior manifestação, no Rio de Janeiro, não reuniu mais do que quatro ou cinco dias de brasileiros mortos durante a pandemia por culpa do governo Bolsonaro. Se a ideia era dizer “se tentarem derrubar Bolsonaro, terão de se ver conosco”, ninguém ficou assustado.
A demonstração de força dos bolsonaristas fracassou, mas o que interessa é que precisaram tentá-la. Eles sabem que Bolsonaro está perdendo.
O governo dos extremistas se desfaz a olhos vistos. Pela primeira vez na história, os chefes das Forças Armadas renunciaram conjuntamente em protesto contra o presidente da República. Logo depois, o Supremo Tribunal Federal tomou coragem e cumpriu seu dever constitucional obrigando o Senado a abrir a CPI do assassinato em massa. Bolsonaro manobrou para barrar a CPI, fracassou; manobrou para tirar Renan Calheiros da relatoria da CPI, fracassou.
A equipe econômica está se desintegrando em plena luz do dia, com demissão após demissão, uma fila puxada pelos melhores que só não termina em Guedes porque existe o inacreditável Adolfo Sachsida. O extremista Ernesto Araújo perdeu o Itamaraty e agora xinga o governo no Twitter. O vice-presidente Mourão deu uma entrevista ao jornal Valor Econômico em que declarou que não deve continuar na chapa na campanha da reeleição; defendeu, inclusive, a união em torno de uma terceira via para 2022.
Não há precedente para nada disso. Todo governo brasileiro que chegou perto desse ponto caiu antes de atingir esse grau de degeneração. E, no entanto, o governo Bolsonaro não cai.
No fundo, quem sustenta o governo Bolsonaro no momento é a Covid-19. O vírus impede manifestações de rua dos 70% do eleitorado que rejeitam Bolsonaro. E a mortandade causada pelo governo está tão fora de controle que as forças que poderiam organizar o impeachment não querem assumir responsabilidade pelo número imenso de mortes que Bolsonaro já contratou.
Mas se a Covid-19 segura Bolsonaro no Planalto, também impede que seu governo seja funcional, o que, sejamos honestos, já não seria fácil de qualquer maneira. O Brasil tem um grande problema de cuja solução depende a solução dos outros, a pandemia. Foi justamente esse o problema que Jair Bolsonaro desistiu de solucionar, porque já não comprou a vacina, já sabotou o isolamento social, e, a esta altura, não saberia corrigir-se se o quisesse.
Daí em diante, não há mais governo, só a mímica da rotina administrativa, a máquina rodando no vazio. A grande realização de Bolsonaro em 2021 foi aprovar o orçamento antes de maio.
Não há mais governo, e ninguém se dispõe a derrubar quem já desistiu de governar.
Resta-nos confiar no que ainda temos de burocracia profissional, no SUS, na Anvisa, nos governos estaduais, no Butantã, na Fiocruz. Que o medo da CPI pelo menos impeça Bolsonaro de continuar atrapalhando essa gente.
Minha aposta é que, depois do governo Bolsonaro, alguma palavra do português brasileiro entrará para as outras línguas como sinônimo de desastre.
Fonte:
Folha de S. Paulo
Fernando Henrique Cardoso: Hora de decisão
Há períodos em que se necessita ter muita imaginação, ou o senso de dever aguçado, para cumprir compromissos. Pois bem, olhando em volta, e com minha escassa imaginação, só resta mesmo o senso do dever para escrever este artigo: o desânimo em volta acaba por inibir, se não a todos, a muitos de nós, brasileiros. Será que tal processo só acontece conosco, ou é a pandemia que tira da maioria – queiramos ou não – a vontade de falar, de escrever? Tenho dúvidas. Mas o fato é que o desânimo tolhe muito a imaginação: ao redor, mortes e enfermos; por enquanto há esperança de vencer mais este vírus. Mas escrever sobre política…
Francamente, com o governo atordoado e o povo desinteressado, pois o dia a dia consome as energias e boa parte da população deixa de lado tudo o que existe além do trabalho e da família, parece até estranho que alguém se disponha a conjecturar sobre o futuro ou sobre o mundo. Em meu caso, não fosse o “senso de responsabilidade” (herdado de pais e avós militares), preferiria “flanar”, como se dizia antigamente, a trabalhar sobre tais temas. Mas não há escolha: ao trabalho, portanto.
Para ver mais longe e não choramingar sobre o cotidiano local, convém pensar no positivo e no global. Apesar do encolhimento econômico, os que mais sabem parecem ver caminhos e, bem ou mal, a democracia se manteve onde ela resplandece. Nos Estados Unidos há um novo presidente, eleito pela maioria. Já isso é reconfortante.
Até que ponto a decisão americana nos atinge ou alcança? Por mais que acreditemos que nosso país é grande (somos mais de 200 milhões) e, afinal, a América Latina pesa para os Estados Unidos, é melhor não esquecer o ditado, como se diria em latim: modus in rebus. Ou, mais popularmente, devagar com o andor, pois o santo é de barro. O mais provável é que, descontando as boas palavras e as regras de convivência, como é do feitio diplomático, as mudanças no panorama americano não mudem muita coisa entre nós. E ainda bem.
No mundo internacional os interesses definem mais a ação do que a boa vontade ou mesmo os valores (salvo em casos extremos). Saudemos, pois, a mudança de governo por lá, porque o novo presidente pertence a um partido democrático. Mas paremos por aqui e cuidemos do nosso quintal.
Não sei se é correto falar em “nosso” quintal. O mundo está tão integrado economicamente e as influências cruzadas são tantas que é melhor ser prudente. De qualquer modo, a eventual insatisfação com o rumo das coisas por aqui não afeta os interesses maiores de lá, nem os de lá aqui. Se algo puder acontecer, deverá ser por vontade da maioria daqui mesmo.
Ou seja, o olhar panorâmico ajuda, mas a decisão dos rumos há de ser local. Convenhamos: as maiorias se formam e nem sempre seus resultados são os melhores. Mas quem julga? Na democracia, o eleitorado. E este, se não houver lideranças que abram seus olhos, pode resultar no que, ao ver de alguns, ou mesmo de muitos, seja a escolha de um mau caminho. Paciência. Como tenho escrito nesta página, melhor esperar novas eleições do que tumultuar o processo. À condição de que se preparem alternativas mais consistentes com nossos valores, aqueles em que acreditamos.
Escrevi “nossos valores”. Quais? Há alguns conflitantes e essa é a beleza do jogo democrático: não se sabe de antemão se a escolha foi boa, mas tem-se a certeza de que haverá chance de refazê-la. Desde que a maioria mude de opinião. Convém, portanto, não apenas aceitar resultados eleitorais, mas propor alternativas. É esta a fase em que estamos: os arreganhos de uns e outros deixam entrever que há vários caminhos. É hora para os candidatos se apresentarem e dizer o que propõem. E me refiro aos candidatos de diversos partidos. Além de que, como se sabe, há mais de um candidato em alguns partidos.
Que pelo menos se comprometam a respeitar o jogo democrático; se ocupem de defender nossos interesses, como povo e como cultura; e tenham a capacidade de decidir, qualidade que é indispensável nos regimes presidencialistas. Talvez esta seja a crítica mais geral que se possa fazer a quem ganhou as últimas eleições. Têm-se a impressão de que o eleito foi “uma família”, e não seu chefe. E que este às vezes se cerca mal. E talvez fique, em certos momentos, menor do que a cadeira que ocupa.
Se dentre os candidatos houver um ou dois capazes de cumprir esses requisitos, o barco retornará a andar. O País, nesse sentido, é mesmo grande: é só mostrar o rumo que ele caminha. Isso, se não serve de consolação, pelo menos explica como foi possível chegar aonde chegamos. Com muitas mazelas, é certo, mas caminhando para melhorar as condições de vida. Por enquanto, não de todos, mas talvez de boa parte. Está passando da hora de querer que seja pelo menos a condição de vida da maioria. E venha quem vier, se não enveredar pelo caminho do crescimento econômico e de mais renda para muitos, que encontre, se não a oposição – que seria salutar –, pelo menos o desprezo da maioria.
*Sociólogo, foi presidente da República
Fonte:
O Estado de S. Paulo
https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,hora-de-decisao,70003700766
O Globo: ‘Tenho que lutar dez vezes mais do que pensei’, diz Guedes
Thiago Bronzatto,, Marcello Corrêa e Manoel Ventura, O Globo
BRASÍLIA — O ministro da Economia, Paulo Guedes, costuma medir em percentual o apoio de Jair Bolsonaro à agenda liberal. Nas eleições de 2018, era 100%. Depois, passou para 99% — e, aos poucos, essa taxa foi caindo. Até que, agora, está em 65%, embora nos momentos mais críticos o presidente tenha bancado o seu Posto Ipiranga no cargo.
Em entrevista ao GLOBO, Guedes reconhece que a aderência ao seu plano de trabalho em Brasília é menor que imaginava. “Estou tendo que lutar dez vezes mais do que eu pensei que fosse lutar”, afirma o ministro.
Orçamento: Governo quer pente-fino em benefícios sociais para liberar R$ 3 bi para obras e atender ala política
Apesar disso, ele diz que não pensa em desistir. “Eu tenho um senso de responsabilidade muito grande”, afirma. E garante que não ficará só na defensiva — quer partir para o ataque com a sua equipe, colocando em prática medidas para reduzir o desemprego e a pobreza.
Guedes entrou na mira de senadores oposicionistas da CPI da Covid-19. Para ele, a comissão parlamentar de inquérito faz parte do jogo democrático, mas pode atrapalhar o andamento das reformas no Congresso.
Nesta entrevista, o ministro também antecipou medidas para incentivar a geração de empregos no país e criticou o questionamento no Supremo Tribunal Federal (STF) da autonomia do Banco Central.
Como o senhor vê o andamento da agenda econômica?
Eu tinha três hipóteses quando eu vim para cá. Uma, que o presidente ia apoiar o programa de uma aliança de conservadores e liberais. O presidente ia apoiar o programa liberal na economia. O presidente mesmo brinca que já foi 99%, agora é 97%, ele fala. Aí eu brinco: “Não, presidente, o senhor está em 65%”. A segunda hipótese é que temos um Congresso reformista, que ia nos ajudar a fazer as reformas. E não era só o Congresso. É o Congresso, o Supremo e a mídia, que era a minha terceira
Fies: Guedes diz até filho de porteiro que zerou no vestibular entrou na faculdade
Como o seu trabalho se adapta a esse processo de reavaliação?
Na nossa democracia, eu continuo apostando. Eu só estou recalibrando. Eu tinha uma fé um pouco ingênua de que tudo seria muito mais rápido e de que as transformações seriam muito mais profundas. Eu estou só recalibrando tudo um pouquinho para baixo, mas sem mudar em nada a direção, a esperança. Só está me dando mais resiliência. Estou tendo que lutar dez vezes mais do que eu pensei que fosse lutar. Porque a aderência é um pouco menor do que eu pensei. Mas sem reclamação. É a democracia. Nas horas críticas, o presidente sempre nos apoiou. E o Congresso reformista tem nos ajudado também. Eu acredito na dinâmica de uma grande sociedade aberta.PUBLICIDADE
Mas por que a aderência é menor?
No capítulo um, o presidente está atento a dimensões políticas que arrefecem os impulsos de transformação. Você quer fazer uma transformação rápida, privatizar rapidamente. (Alguém diz) “Espera aí, tem um efeito político, uma reclamação aqui, outra ali”. Isso não é uma reclamação. É um reconhecimento de que quem manda é a política. E não é só o presidente. Eu, por exemplo, parti para uma reforma que teria capitalização na Previdência, e o Congresso disse “não”.
Por isso que eu atenuei um pouco o entusiasmo inicial. Porque tanto o presidente quanto o Congresso e a mídia vieram com menos ímpeto na direção das transformações. Aí o trabalho tem que ser muito maior para um resultado menor. Talvez essa seja a experiência de todo mundo que já passou pelo governo um dia. Quem está de fora olhando acha que tudo é mais simples.
Para o senhor, esse esforço vale a pena?
Sem falsa modéstia, eu sei que fui crucial em momentos decisivos. Eu tenho um senso de responsabilidade muito grande. Não só com a pessoa que confiou em mim, que foi o presidente. Mas principalmente com quem ele representa, que são 200 milhões de brasileiros. A nossa velocidade de resposta à crise, a nossa capacidade de fazer uma política econômica integrada, tudo isso só foi possível porque tinha esse comando único na economia.
O senso de responsabilidade e o compromisso com os brasileiros que estão lá fora são muito maiores que a preocupação de ficar bem na fotografia. É muito simples falar: “Não privatizaram duas ou três empresas, vou sair porque não estão me atendendo”. Como é que vai sair no meio de uma pandemia, com pessoas morrendo? Você está no meio de uma guerra e vai pensar: “Não estou bem na foto”?.
Não é razoável. Se tem gente que diz que eu fui avalista, tenho que ter um compromisso de entregar isso na próxima eleição do jeito que peguei. Eu peguei uma democracia e entregarei uma democracia. Peguei uma inflação alta e entregarei uma inflação mais baixa. Peguei o país crescendo 1% e o entregarei crescendo 3%. Peguei o país com 12 milhões de desempregados e o entregarei com dez. Temos que ter compromisso de melhorar o país.
Como o senhor recebe as críticas de que o seu plano não saiu do papel?
É um negacionismo dizer que não temos plano, que não estamos fazendo nada, que promete e não entrega. Isso dói. Isso é uma falta de reconhecimento ao trabalho, uma negação de coisas que são autoevidentes e empíricas. “Eles não fizeram”. Não fizeram o quê? A reforma da previdência? “Ah não, mas o Temer ia fazer”. Por que não fez? É uma negação dos nossos méritos. Nosso programa é reconhecido por todos e dizer que não o conhece é negacionismo ou uma desonestidade intelectual. Até as pedras sabem do nosso programa.
Claudio Ferraz: A elite e o filho do porteiro
O senhor perdeu os seus principais secretários. Por que houve mudanças em sua equipe?
Nós jogamos dois anos na defesa. Agora nós vamos para o ataque. Quais foram os dois anos na defesa? Controle na dinâmica de gastos do governo. Fizemos a reforma da Previdência, derrubamos a dívida/PIB e o déficit no primeiro ano. No primeiro ano de governo, o déficit primário era 2% do PIB e caiu pela metade. A dívida era 76,4% do PIB e caiu para 75,4%.
Não demos aumentos de salários por três anos e nenhum governo fez isso. Jogamos na defesa, travando as despesas. Depois de dois anos jogando assim, há desgastes naturais na equipe. O que aconteceu agora foi uma reavaliação do grupo, o que no setor privado acontece com uma frequência. Isso estava marcado para acontecer no início de 2020, mas a pandemia chegou. Nós não recuamos na nossa política e não nos retiramos de combate.
Nós podemos ser derrotados, mandados embora, aniquilados, vencidos. Mas não tem rendição. O lema do grupo é: “Não desistimos”. Então, se alguém desistir sai do grupo. O Salim (Mattar, ex-secretário de Desestatização) desistiu.
Há uma pressão política para recriar o Ministério do Planejamento?
Durante a campanha e logo depois da eleição do presidente, houve um esforço enorme para não deixar juntar os ministérios. Houve muito lobby contra a fusão dos ministérios, particularmente em relação ao Ministério da Indústria e Comércio. Agora, há, sim, algumas pressões para desmembrar.
Mas o presidente não conversa sobre isso comigo. Ele nunca conversou sério disso comigo. Ele só brinca. Fala: “Olha, você sabe que, volta e meia, tem pressão política aí para fazer isso”. Eu falo: “Eu sei, presidente”. Mas a nossa capacidade de implementar uma política consistente, como estamos fazendo, depende de estar junto. Se tiver comando duplo, triplo na economia, rapidamente vamos para a desorganização. Aí, você diz assim: “Bom, o Ministério do Planejamento não fez falta no Orçamento?”. Nenhuma.
E qual foi o problema do Orçamento?
O governo achou o eixo político de sustentação e começou a avançar. Aí veio o primeiro exercício de fazer o Orçamento juntos. Nesse exercício conjunto, o time mostrou seu desentrosamento. Eu falo que toda informação tem um sinal e um barulho. O barulho é que tem uma crise terrível, tremenda. A informação é que é o primeiro Orçamento elaborado por uma nova configuração política. É uma coalizão política tentando dar seus primeiros passos juntos. E isso está muito claro hoje. Alguns atores se excederam durante a elaboração do Orçamento.PUBLICIDADE
Censo: Somente mais 5 países, fora o Brasil, não têm previsão para a pesquisa
O senhor disse que os chineses teriam ‘inventado’ o vírus da Covid-19. Essa declaração criou um ruído e o colocou no foco da CPI da Covid…
Criou. Desde o início do governo, falei que o Brasil ia dançar com todo mundo. Nunca houve movimento meu contra a China. Eu considero aquele comentário meu dentro de um contexto. Eu quis dar o exemplo de quando a economia de mercado é forte e robusta, ela consegue se adaptar em pouco menos de um ano e criar uma vacina ainda mais eficiente do que as vacinas produzidas na própria região que está muito mais habituada a esse tipo de doença. Aí desvirtuam tudo. Eu, aliás, tomei a CoronaVac.
Como o senhor vê a possibilidade de ser convocado pela CPI da Covid?
Eu fui nove vezes ao Congresso em tempo real durante a pandemia. Se me chamar, vai ser a décima vez. Eu quero elogiar a comissão mista (da Covid-19)do Congresso sob orientação do senador Confúcio Moura e do deputado Francisco Júnior. A CPI é parte do jogo democrático. Dito isso, usar isso que eu falei para confundir com CPI, eu acho um oportunismo. Quero fazer uma reflexão.
Estamos em meio à pandemia. Isso é equivalente a fazer um tribunal de guerra durante a guerra contra o vírus. Para mim, é inédito. Você acha que a classe política vai sair bem disso? Foi o que eu sempre falei: subir em cadáveres para fazer política numa hora dessas… Acho que a população brasileira não vai apreciar isso. Ela quer resolver o problema. Ela quer a preservação da vida e dos empregos.
Sem dinheiro: Pesquisadores alertam para falta de financiamento para vacinas brasileiras contra Covid-19
A investigação da CPI não é importante para corrigir os rumos das políticas públicas contra a pandemia?
Eu acho que levantar o tema, de que nós vamos fazer uma CPI, já estimularia a correção de rumos. Temos um desafio difícil pela frente: evitar que a politização da crise piore a gestão da crise. Vacinação em massa e reformas é o ganha-ganha. Acho que precisa desse equilíbrio: de um lado, vamos fazer a CPI que eles acharem que é oportuno fazer, mas, por outro, não paralisem as reformas.
Temos nos próximos 90 dias as reformas administrativa e tributária e os marcos regulatórios para destravar os investimentos. Quer fazer a agenda de CPI, pense que estamos no meio de uma pandemia. Faça, mas com alguma moderação para não desorganizar tudo. Tanto as medalhas quanto as avaliações nos tribunais de guerra são feitas logo após a guerra.
De que maneira o atraso da vacinação em massa penalizou a retomada do crescimento econômico?
É claro que durante uma guerra há falhas. Nós, por exemplo, lançamos um programa de crédito no início que não funcionou bem.
A autonomia do Banco Central, já aprovada, está sendo questionada no STF por PT e PSOL e até mesmo pela Procuradoria-Geral da República (PGR). Como o senhor vê isso?
Acho que merece um alerta muito sério. Estamos dessincronizando o ciclo político da gestão monetária. Há muitas acusações a governos passados que usaram o Banco Central para reeleição. Você vê a ironia. Quando você faz uma política de Estado, vem a própria oposição, o PT, e questiona a política de Estado. Eu não vou questionar a PGR. Com Justiça, a gente não fala nada, só olha. Mas eu acho que merece uma profunda reflexão. Quando há aumentos setoriais e transitórios de preços, como que impede que se transformem em alta generalizada de preços? É justamente um Banco Central independente.
Mais ricos ainda: Bezos e Zuckerberg ganharam mais dinheiro nos cem dias de Biden
O governo pretende ampliar o Bolsa Família, mas ainda há o desafio dos trabalhadores informais. Qual é o plano para lidar com o desemprego e o aumento da pobreza?
A primeira coisa é a vacinação em massa. A segunda medida estamos chamando de Bônus de Inclusão Produtiva (BIP). Da mesma forma que se dá R$ 200 para uma pessoa que está inabilitada receber o Bolsa Família, por que não poderia dar R$ 200 ou R$ 300 para um jovem nem-nem? Ele nem é estudante nem tem emprego. Ou seja, é um dos invisíveis.
Agora, esse jovem vai ter que bater ponto e vai ser treinado para o mercado de trabalho. Ele vai ser servente de pedreiro, mecânico… É uma oportunidade. Ele é a vítima da nossa legislação trabalhista. Quando você bota lá o salário mínimo, um rapaz filho de uma classe média, que estudou em uma boa universidade, fala duas línguas, ele consegue emprego com salário mínimo.
Qual seria a contrapartida da empresa?
Zero. Ajuda o Brasil, treina o menino. Estamos estudando. Isso deve vir rápido para esse segmento dos invisíveis. Temos que erradicar a miséria. A grande lição do ano passado foi que, com o dinheiro que vai direto para quem precisa, tivemos a maior redução de pobreza em 40 anos. Essa lição não pode ser esquecida. Vamos ter que reforçar o Bolsa Família e criar os programas de inclusão produtiva.
O maior exemplo de compromisso com a saúde é que eu falei que tem que criar voucher. Acho natural que, com as novas tecnologias, as pessoas queiram viver 100 anos. O grande desafio é como ajudaremos nesse sentido as camadas mais frágeis. Por que um sujeito rico se interna no (hospital) Albert Einstein e o pobre tem que ficar numa fila do SUS durante dez dias? Se o pobre tiver um voucher e não tiver vaga no SUS, ele vai na rede privada. São soluções privadas efetivas para problemas públicos gravíssimos.
O ministro Marco Aurélio Mello, do STF, determinou a realização do Censo pelo IBGE. Como o senhor vai responder a isso?
O nosso Orçamento enviado ao Congresso tinha previsão dos recursos para o Censo. O Congresso, acredito que pensando na pandemia, e não nas verbas, deve ter achado sensato tirar (do Orçamento). Se fizemos a previsão é porque sabemos a importância de ter o Censo para orientar políticas públicas. E esperamos agora, depois da decisão do ministro Marco Aurélio, a orientação da Advocacia-Geral da União (AGU). Imagino que o Congresso tenha visto o Censo como elemento de risco para a pandemia. Mandar um pesquisador de casa em casa para fazer perguntas pode criar um agente de transmissão do vírus.
Fonte:
O Globo
Merval Pereira: Histórias exemplares
Nesses depoimentos, o que mais se ouve são duas palavras: liderança e governança. O comentário é de José Augusto Coelho Fernandes, pesquisador que conduz as trinta entrevistas com formuladores e gestores de políticas públicas que compõem a série de podcasts sobre a “arte da política econômica no Brasil”, a ser lançada na próxima semana pelo IEPE/ Casa das Garças, um dos principais think tanks do país.
Na série, temos depoimentos importantes que podem ser usados para comparação com o que está sendo feito no atual momento. A negociação incessante com o Congresso, no lançamento do Plano Real, e a atuação em equipe com autonomia na crise energética de 2001, são exemplares.
Atores importantes da cena econômica nos anos recentes, Maílson da Nóbrega, Edmar Bacha, Pérsio Arida e Gustavo Franco abrem o primeiro mês da série, com relatos sobre os anos de aprendizado dos planos e reformas, com o fim da conta movimento entre Banco do Brasil e Banco Central, a criação da Secretaria do Tesouro, até desembocar no Plano Real, suas reformas econômicas e privatização, regime de metas de inflação e câmbio flutuante.
No desenrolar da série, ouvem-se relatos sobre gestão de crises, desafios de governança, construção e desenho de instituições. A série se encerra com o depoimento do ex-ministro da Fazenda Pedro Malan. Inaugurando a série específica sobre o Plano Real, o economista Edmar Bacha, presidente da Casa das Garças e membro da Academia Brasileira de Letras destaca o papel do Departamento de Economia da PUC RIO nas discussões sobre as causas da inflação e as políticas para o seu controle, o aprendizado com as experiências fracassadas de estabilização no Brasil e no mundo, como o Plano Cruzado.
O Plano Real foi produto de muitas discussões acadêmicas que desaguaram num conjunto de etapas que se inicia pela consolidação fiscal e termina com o lançamento da nova moeda, o Real. No caminho, um plano intensivo em negociações com o Congresso, principalmente para a aprovação das medidas de transição para a nova moeda e a criação do fundo social de emergência.
A tarefa ficou a cargo de Bacha, que era chamado de “senador” pelos companheiros de equipe, a tal ponto chegou sua dedicação. Ele diz que o grande trunfo negociador esteve na oferta de um produto de alta demanda da população – a inflação baixa- e, na expectativa dos efeitos desse novo ambiente sobre o crescimento do salário real e a popularidade dos políticos que o apoiavam.
Engenheiro eletrônico e ex-chefe da Casa Civil da Presidência da República, Pedro Parente relata a sua experiência na administração pública brasileira, especialmente na crise de energia em 2001, que ele admite ter acontecido por desconhecimento do governo da complexidade do sistema hidroelétrico brasileiro.
O conhecimento da real situação teve impacto sobre as expectativas, queda de popularidade do governo e gerou forte preocupação na sociedade. A primeira percepção é que a reação exigia uma coordenação geral, que ficou a cargo de Parente, visto que não se tratava apenas de um contratempo no Ministério de Minas e Energia, e sim de um fato com impacto geral na economia e sociedade.
A mesma percepção não teve o governo Bolsonaro, embora estivesse mais bem informado sobre as consequências da pandemia da COVID-19. Nos debates, ficou demonstrada a importância da autonomia, já que sem ela não se poderia resolver o problema. Em segundo, era preciso ter poder, ou seja, as propostas seriam terminativas, de modo que não sofressem o processo de análise comum no governo.
Por fim, propunha-se a criação de uma câmara de gestão da crise, a qual viria a ser importante no processo de comunicação com a sociedade. A ideia era, sob a gestão de Parente, reunir representantes dos órgãos federais que tivessem relevância no assunto, como do Ministério da Fazenda e do Planejamento, da ANEEL e da ONS. Convocou-se também o professor e consultor empresarial Vicente Falconi, bem como Mauro Arce, secretário de energia de São Paulo. A decisão inicial foi a de o governo assumir a responsabilidade da falha e, a partir dessa medida, buscar, a todo custo, a transparência e disponibilidade diária para responder às indagações da imprensa sobre a crise de energia.
Fonte:
O Globo
https://blogs.oglobo.globo.com/merval-pereira/post/historias-exemplares.html
Demétrio Magnoli: O general que obedecia
“Um manda, outro obedece”. Eduardo Pazuello, o general que logo sentará na cadeira de testemunhas da CPI da Covid, carrega um álibi no bolso, mas pensará duas vezes antes de invocá-lo. A alegação permitiria à CPI saltar as etapas intermediárias, girando seus holofotes diretamente para a suposta fonte das ordens, que é Bolsonaro. Além disso, como revela a história argentina, não seria capaz de livrá-lo da responsabilidade por seus próprios atos.
Sob pressão militar, Raúl Alfonsín, o primeiro presidente da redemocratização argentina, anunciou em março de 1987 a edição de uma lei destinada a interromper inúmeros processos por crimes contra a humanidade. A Lei de Obediência Devida foi antecipada pela sublevação dos “carapintadas”, comandada por um tenente-coronel condecorado na Guerra das Malvinas, na Escola de Infantaria do Campo de Mayo, durante a Semana Santa. Promulgada em junho de 1987, tornou inimputáveis cerca de 500 oficiais indiciados por torturas, “desaparecimentos” e assassinatos durante a ditadura militar.
A lei erguia-se sobre o reconhecimento de que as Forças Armadas operam com base na regra da “obediência devida” —ou seja, os subordinados na cadeia de comando cumprem “atos de serviço”. Contudo, mesmo cedendo à chantagem dos quartéis para estabilizar uma jovem democracia acuada, o presidente eleito introduziu uma cláusula limitante: o benefício da impunidade só seria concedido a oficiais com patentes inferiores a coronel. Pazuello teria que responder por suas ações e omissões até na Argentina abalada pelos motins militares.
O conceito de obediência devida sustentou a defesa do nazista Adolf Eichmann no célebre julgamento em Jerusalém, em 1961. Seu advogado, Robert Servatius, declarou que o coronel da SS responsável pela deportação dos judeus aos campos de extermínio era “culpado diante de Deus, não diante da lei”. Na Argentina, a Lei de Obediência Devida foi derrogada pelo Congresso em 1998 e declarada inconstitucional pela Corte Suprema em 2005. Crimes contra a humanidade não são passíveis de anistia, decidiram os juízes.
Pazuello não cometeu crimes contra a humanidade, mas crimes potenciais contra a saúde pública que se estendem da postergação da compra de vacinas à divulgação de falsos tratamentos milagrosos contra a Covid-19, passando pela distribuição de cloroquina a hospitais de Manaus carentes de oxigênio. Nem assim, porém, o álibi dos “atos de serviço” pode ser admitido na CPI.
O general obediente permaneceu na ativa quando assumiu o cargo de ministro da Saúde, borrando um pouco mais a fronteira democrática que separa as Forças Armadas do governo. Sua deliberação pessoal, contudo, em nada altera o fato institucional de que ministros são auxiliares políticos do presidente, não subordinados numa hierarquia militar. Diante dos senadores da CPI, deporá um político fantasiado em uniforme militar, não um oficial sujeito à cadeia de comando castrense.
Eichmann e os oficiais argentinos estavam submetidos a ordens superiores. Entretanto, não agiam automaticamente, à moda de robôs: cotejavam, numa balança invisível, o peso das hipotéticas punições por desobediência contra os imperativos das suas consciências. Como explicou Kant, eles continuavam a dispor de autonomia e decidiram cumprir ordens abomináveis. Seus crimes resultaram de obediência consentida, não de obediência devida.
Pazuello, como eles, mas encarando consequências muito menores, poderia ter dito “não”.
Alfonsín concedeu bastante, até um certo limite. No Processo das Juntas, em 1985, os chefes militares que emitiram as ordens da “guerra suja” foram sentenciados e encarcerados. A CPI tem o dever de analisar as responsabilidades pessoais do general que obedecia, mas não tem o direito de usá-lo como bode expiatório, fingindo que ninguém emitia as ordens desastrosas.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/demetriomagnoli/2021/04/o-general-que-obedecia.shtml
Cristina Serra: Biden, Guedes e a Casa-Grande
Merece ampla discussão o plano do presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, para a retomada pós-pandemia, especialmente pelo que propõe sobre o papel do Estado numa economia capitalista e numa sociedade profundamente desigual como a norte-americana.
Basicamente, o presidente propõe reformas de caráter progressista, que se destinam a melhorar as engrenagens do capitalismo, para que o motor econômico volte a girar sem deixar para trás multidões de desesperados revirando lixo para não morrer de fome.
Biden quer criar empregos para a classe média e trabalhadores com menor qualificação, aumentar o valor do salário mínimo, ampliar a educação pública e melhorar o acesso à saúde, que, segundo ele, deve ser um direito, não um privilégio.
A questão é saber quem vai pagar a conta dos investimentos do Estado. Biden quer elevar a carga tributária das empresas e daqueles que ocupam, digamos, o topo da cadeia alimentar e que engordaram suas fortunas ainda mais durante a pandemia. Ele enunciou seu argumento de forma até singela: “É hora de pagarem a sua parte justa”.
No Brasil, porém, falar em aumento de carga tributária dos mais ricos (inclusive no âmbito de uma reforma sobre o tema) é um debate interditado, sobretudo em parte da grande mídia, que deveria amplificá-lo. Esta parece domesticada pelo “mercado” e se comporta como porta-voz de Paulo Guedes em seu projeto de desossar o Estado e seu papel de indutor da mobilidade social.
Guedes é exemplo extremo de “aporofobia”, expressão cunhada pela filósofa espanhola Adela Cortina para definir a aversão aos pobres e que se manifesta de diversas formas no mundo contemporâneo. A palavra vem do grego áporos (pobre) e fobéo (rejeitar).
Guedes não cansa de demonstrar ódio de classe: empregadas domésticas não podem viajar e filhos de porteiros não merecem estudar. Cada vez que abre a boca, Guedes exala o mau hálito da Casa-Grande.
Fonte:
Folha de S. Paulo
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/cristina-serra/2021/04/biden-guedes-e-a-casa-grande.shtml