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Luiz Carlos Azedo: O trilema das reformas
“O problema nesse cenário está na resistência das corporações e dos segmentos empresariais que não suportam a concorrência”
O economista Claudio Porto, fundador da Macroplan, batizou de trilema os cenários possíveis para o Brasil a médio prazo. Como aperitivo, faz uma comparação entre o que aconteceu no Brasil e na China nos últimos 40 anos, com base num resumo de Jorge Caldeira, no livro História da Riqueza no Brasil (Estação Brasil). Quando foi lançado o Plano Nacional de Desenvolvimento (PND), na década de 1970, o regime militar apostou no mercado interno e na construção de uma economia autossuficiente em todas as áreas, uma visão autárquica e baluartista de país. Deu errado. A China apostou na globalização, no comércio exterior e na complementariedade. Resultado, em 1979, no final do governo Geisel, em dólares de 2010, o Brasil tinha um PIB de 926 bilhões e a China, de 327 bilhões; em 2017, o PIB do Brasil chegou a 2, 3 trilhões e o da China saltou para 10,1 trilhões.
As causas desse nosso desempenho estão diagnosticadas: economia fechada, com baixa produtividade e muita insegurança; desigualdades muito altas, com 12 milhões de desempregados e 30 milhões abaixo da linha de pobreza; e sistema educacional de baixa qualidade, com o Brasil em 66º lugar entre 73 países no PISA (Programme for Internacional Stuident Assessment), atrás de todos os países da América Latina, com exceção do Peru e da República Dominicana. A grande preocupação de Porto é uma recidiva do padrão de desenvolvimento da década de 1970, cujo resultado seria a retomada do crescimento com agravamento das desigualdades.
Para quem acompanha a política em Brasília, esse cenário não deve ser subestimado, porque pode resultar da convergência de variáveis que estão fortemente presentes no governo Bolsonaro e no atual Congresso. As variáveis positivas são o avanço das reformas liberais no plano fiscal e previdenciário, com ampliação das concessões e parcerias público-privadas. São fatores negativos: manutenção do “capitalismo de laços” e restrições aos privilégios das corporações de caráter parcial ou meramente simbólico, com restrições às políticas sociais e intervencionismo econômico. Trocando em miúdos, nesse rumo, a economia pode crescer sem inflação e baixa produtividade, a taxas entre 2,2% e 1,6% ao ano, com queda na renda média das famílias na base da pirâmide.
Há mais dois cenários possíveis. O melhor é a globalização inclusiva, cujo maior obstáculo aparente hoje é a nova política externa. Além de ajuste fiscal estruturante, desregulamentação, privatizações e parcerias público-privadas, o Brasil precisa de um ambiente de segurança pública e jurídica, mais foco na educação básica, proteção social aos vulneráveis e uma política trabalhista que possibilite investimentos e gere mais empregos. Assim, poderia crescer em 4% e 3,4% ao ano. O problema nesse cenário está na resistência das corporações e dos segmentos empresariais que não suportam a concorrência.
O pior cenário é o pacto perverso do populismo com o corporativismo, que tenta conciliar as demandas da população com as das corporações. Nesse cenário, as reformas serão mitigadas no Congresso, com soluções de curto prazo para a crise fiscal, inclusive na reforma da Previdência. Esse é um horizonte de crescimento próximo do zero, depois de mais um voo de galinha.
Boechat, 66 anos
Conheci Ricardo Boechat em Niterói, no começo dos anos 1970, quando fui trabalhar no jornal O Fluminense e estudar ciências sociais na Universidade Federal Fluminense. Ele era repórter da coluna do Ibrahin Sued, no jornal O Globo. Éramos jovens militantes do antigo PCB e compartilhamos, em 1975, a angústia de ver nossos “assistentes” presos e a gratidão de saber que nenhum deles — nem José Otto de Oliveira nem Aírton Albuquerque Queiroz, respectivamente, de quem recebíamos o jornal clandestino Voz Operária — havia nos denunciado. Graças a isso, pudemos prosseguir nossas vidas profissionais.
Nos cruzávamos, às vezes, na barca Rio-Niterói, até o dia em que Boechat resolveu comprar uma moto e atravessar a ponte por meios próprios. Por causa da minha vida cigana, nosso último encontro foi na redação do jornal O Globo. Ele era colunista e eu, que trabalhava na sucursal de São Paulo, de passagem pelo Rio de Janeiro, fui à redação visitar Ali Kamel, que me resgatou para a grande imprensa, e lá o reencontrei, como a outros velhos amigos comuns, entre os quais meu xará Luís Carlos Cascon, então chefe de reportagem, também de Niterói. Depois, tivemos apenas algumas conversas por telefone. Boechat era tudo isso que os amigos estão falando. Destaco, porém, três qualidades do seu caráter: a coragem, a integridade e o amor ao próximo. Mando aqui meus pêsames para Veruska, sua mulher, colega jornalista que conheci em Vitória, e para os demais parentes e amigos. Força aí!
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Luiz Carlos Azedo: Eles estão voltando
“Os dois grandes eixos de discussão no Congresso são o apoio às reformas, principalmente a da Previdência, e o fortalecimento da Câmara e do Senado”
As articulações para ocupação de espaços nas Mesas do Congresso e nas comissões permanentes da Câmara e do Senado já estão em pleno andamento. Há políticos veteranos que sobreviveram ao tsunami eleitoral, novatos que nunca exerceram um mandato e alguns que estão voltando ao Congresso ou participavam de legislativos estaduais e municipais. Nenhum dos 513 deputados e 81 senadores é bobo. Não existe essa categoria no parlamento, como dizia Ulysses Guimarães. Os dois grandes eixos de discussão no Congresso são o apoio às reformas que serão encaminhadas pelo governo, principalmente a da Previdência; e o fortalecimento da Câmara e do Senado, que vêm de eleições nas quais ficou patente o descolamento de ambos da sociedade. A relação dos políticos com o Executivo e o Judiciário será balizada pela eleição das Mesas da Câmara e do Senado.
Vamos às reformas. São quatro as mais importantes, mas a da Previdência é uma espécie de Rubicão para o governo Bolsonaro, sem a qual a economia não deslanchará. A dificuldade do governo não é de natureza técnica, a equipe do ministro da Economia, Paulo Guedes, sabe o que precisa fazer. O problema é político. A base governista é muito heterogênea e foi articulada a partir de frentes parlamentares com interesses específicos, como as do agronegócio, dos evangélicos e da bala. É mais fácil atrair setores da oposição para a reforma da Previdência, por exemplo, do que a bancada da bala, formada majoritariamente por policiais e militares que não querem abrir mão de seus privilégios. Além disso, a alta burocracia está mobilizada e faz um lobby poderoso, encabeçado por magistrados e procuradores.
A segunda reforma mais importante e difícil é a tributária. A resistência é inercial, alguém já disse que imposto bom é imposto velho. Mas a carga tributária e a burocracia são brutais, como sustenta o presidente Jair Bolsonaro. Com a tecnologia ficou muito fácil arrecadar, mas cada vez mais difícil, financeiramente, pagar. Há um clamor na sociedade, principalmente na economia formal, a favor da redução de impostos. Talvez seja a reforma mais popular entre agentes econômicos, principalmente empreendedores e assalariados. O problema é o pacto federativo, entre a União, que arrecada muito mais e gasta muito pior, e os estados e municípios, os entes federados. O nó górdio da reforma é o Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICMS), arrecadado na origem; a maioria dos estados quer que seja recolhido no destino, como já acontece com o combustível, mas os estados produtores são muito mais poderosos do que os consumidores. O governo não sabe ainda como desatar esse nó.
Casa de enforcado
A questão do combate à corrupção e à criminalidade é a terceira reforma, cuja formulação está a cargo do ministro da Justiça, Sérgio Moro. A Lava-Jato teve um papel decisivo na eleição, mas também é um trauma para políticos, principalmente os que sobreviveram. Endurecer ainda mais o jogo em relação ao caixa dois eleitoral e à improbidade administrativa é como falar de corda em casa de enforcado, no caso, o Congresso. E, depois do caso Queiroz, o senador Flávio Bolsonaro(PSL-RJ) é primeiro da fila do cadafalso. Mas, em contrapartida, o endurecimento das penas para crimes como latrocínio, feminicídio e tráfico de drogas é barbada. Soa como música para a maioria dos parlamentares, que também não são tão resistentes à flexibilização do porte de armas, tema favorito da chamada Bancada da Bala e do próprio presidente da República.
A quarta questão, na verdade, é uma contrarreforma. Trata-se da questão dos costumes e do Estado laico, em torno da qual se dará um grande embate entre os setores conservadores que serviram de vanguarda para a campanha de Bolsonaro e as forças derrotadas na eleição, que buscam refúgio nessa pauta. É uma agenda que envolve a questão dos direitos humanos e dos direitos civis, em conexão direta com o mundo da cultura e da educação. Embora sejam temas que não tratam diretamente das relações de poder entre os políticos, essa agenda é a que tem mais conexão com a sociedade civil e suas agências, com forte repercussão no Congresso. Outra agenda emergente é a ambiental, em evidência novamente por causa da tragédia de Brumadinho (MG). É uma agenda de resistência, que tem muito a ver com a centralidade econômica da produção de commodities de minérios e agrícolas, hoje o polo mais dinâmico da nossa economia.
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Fernando Gabeira: Lições do terror
No fundo, a simples enumeração de ataques é, de forma involuntária, o jogo que interessa aos líderes de facções criminosas
Calor absurdo aqui no interior do Mato Grosso do Sul. Coisas do marxismo internacional. Acabo de ler o livro de Afonso Arinos, graças às longas viagens de avião: 1.780 páginas.
De tantos pedaços da história, discursos internacionais, personalidades, tenho espaço apenas para destacar uma frase da neta de Arinos. A mulher dele disse que ele andava triste. A menina resolveu consolá-lo:
— Vovô, não fique triste, o senhor tem sua casa, seus filhos, a sua bengala…
Livros como o de Arinos e Joaquim Nabuco me reconciliam com o Brasil. Fico orgulhoso de me dedicar ao estudo do país.
Em Fortaleza, vi um homem com um carrinho de pequenas frutas amarelas ao longe e disse: seriguelas. O homem se aproximou e, ao passar por nós, perguntei: que fruta é essa? Seriguelas, respondeu.
Fiquei feliz como um menino que passa na prova. Deveria ser um pouco mais sério porque estava cobrindo precisamente a onda de ataques no Ceará.
Acontece que estou reavaliando um pouco minha noção de jornalismo. Nossa tendência é dramatizar ataques, cortar as imagens de forma que o fogo e a destruição se destaquem.
Quando examino mais de perto, os ataques, na verdade, são feitos em lugares desertos e em altas horas da noite. Um exemplo disso foi a dinamite que apareceu no metrô. Não tinha detonante, seu objetivo era assustar.
Não quero dizer que o tema não seja grave. As cadeias estão superlotadas. As organizações criminosas cresceram muito, não apenas no Ceará. E um grande número de jovens sem emprego ou escola é atraído para as facções.
Há alguns anos li um livro sobre um congresso ligado à ONU cujo tema era diplomacia preventiva — como atuar para evitar conflitos, sobretudo aqueles que realmente podem ser evitados.
Na época, falou-se também rapidamente no jornalismo preventivo. Nos anos 1960, tínhamos cadernos teóricos e talvez me dedicasse a escrever sobre essa nova forma de jornalismo.
Mas, como as tarefas aumentaram, resta-me tentar aplicar a ideia na prática. Os puristas podem objetar: prevenir? O jornalismo não previne, não evita, nem provoca: apenas informa.
Mas é de informação de que se trata. Informar significa também colocar num contexto um pouco mais amplo.
Um pouco de estudo militar mostra que ofensivas são um momento delicado: os atacantes se expõem e costumam sofrer grandes perdas.
Com quase 4 00 pessoas presas, parece que aconteceu com as organizações criminosas do Ceará.
Em Fortaleza, há agora um centro de inteligência para todo o Nordeste. Eu visitei o centro, mas não pude entrar porque precisava de licença especial, essas coisas. Imagino que tenham aproveitado esse momento de ofensiva e muitas prisões para entender um pouco mais das organizações criminosas.
O que torna o problema do Ceará mais sério ainda é o fato de que muitas de suas coordenadas estão presentes em outros estados.
A simples enumeração de ataques, grande parte deles em lugares remotos e escuros, no fundo, é, involuntariamente, o jogo que interessa aos líderes das organizações criminosas.
Eles precisam de um tipo de cobertura para difundir o medo. Mas chega um momento, e isso vale também para o terror político, que é preciso vencer o medo coletivo e encarar a vida com normalidade, mostrar que as coisas seguem, apesar deles.
Artistas locais fizeram uma campanha intitulada Quero Meu Ceará de Volta, evocando todas as coisas boas numa cidade tão simpática como Fortaleza: andar nas ruas, ter cadeiras na frente de casa.
A ideia, creio eu, estava numa direção correta. Mas era preciso mais que isso: era preciso retomar as ruas com firmeza. Isso seria também uma tarefa para políticos. Mas eles andam meio escondidos. Exceto os que têm de tratar diretamente do tema pela responsabilidade de governo, os outros são muito discretos, para usar um termo leve.
De qualquer forma, creio que os episódios do Ceará surgiram e sumiram sem que houvesse uma discussão mais detalhada sobre eles.
Minha impressão é que já é tempo de avaliarmos as relações de jornalismo e terror. Minha sugestão não é, absolutamente, a de omitir episódios atemorizantes.
Em muitos casos, informar com mais profundidade e exatidão pode abrir caminho para que a sociedade compreenda o que se passa e retome as rédeas de seu cotidiano.
Luiz Carlos Azedo: O poder civil e os jabutis
“As exonerações em massa na Casa Civil, que tendem a se reproduzir em outras pastas, eram esperadas. Os cargos comissionados serão ocupados por quem venceu as eleições”
O sucesso de Jair Bolsonaro depende muito mais do poder civil do que do grupo de militares que cercam o presidente da República. Para ser mais claro, a médio e longo prazos, não é a retórica ideológica nem o esculacho da oposição que garantirão esse êxito, mas o desempenho dos ministros da Economia, Paulo Guedes, e da Justiça, Sérgio Moro. Os generais terão um papel importante, principalmente para o governo não sair do próprio eixo, como parece acontecer no Itamaraty, mas isso dependerá também de suas concepções de gestão. Vamos por partes.
Paulo Guedes encontra uma casa arrumada do ponto de vista financeiro, não foi à toa que trouxe importantes integrantes da equipe econômica anterior para o time que montou, ainda que o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, ontem, tenha levantado dúvidas sobre a movimentação financeira do governo no último mês. Na máquina federal, a correria para fazer empenhos e efetuar pagamentos em atraso no último mês do ano fiscal é normal. O problema do governo é outro: o deficit fiscal. Não há possibilidade de retomar o crescimento e enfrentar o desemprego em massa sem a reforma da Previdência.
Ninguém se iluda, há um alinhamento político favorável ao sucesso da nova equipe econômica. Como defendeu Guedes, o “projeto liberal democrata” de Bolsonaro não vive o dilema de quem pega o violino com a mão esquerda e toca com a direita. “A aliança de centro-direita, entre conservadores, em princípios e costumes, e liberais na economia”, como definiu Guedes, é robusta, porque conta com o apoio da maioria da população. Enfrentará resistência das corporações, inclusive militar, mas o maior perigo é a recidiva do patrimonialismo dos que vivem à custa das rendas e benesses do Estado. Eles aparecem onde menos se espera.
Abrir a economia, privatizar as estatais, controlar gastos, reformar o Estado, desregulamentar, simplificar e reduzir impostos e descentralizar os recursos para estados e municípios não são um “estelionato eleitoral”. O governo foi eleito com essa pauta. Se vai dar certo é outra história, mas, desta vez, as chances realmente são maiores. E as políticas sociais? Bolsonaro somente prometeu prioridade para o ensino fundamental e a saúde das crianças, o resto vai jogar no colo dos estados e municípios. É a receita da Escola de Chicago, aplicada na Alemanha, no Japão e no Chile. No fim da guerra, com seus países em ruínas, alemães e japoneses estavam comendo ratos; no Chile de Pinochet, era chumbo mesmo. No Brasil, num cenário completamente diferente, o sucesso do projeto será um novo “case”.
Corrupção e violência
A outra perna do poder civil está no Ministério da Justiça, que nunca concentrou tanto poder e instrumentos de atuação como agora. Combate à corrupção e ao crime organizado são bandeiras de Bolsonaro sob a responsabilidade de Sérgio Moro, que também encontrou a casa arrumada, em particular, o recém-criado Sistema Unificado de Segurança Pública. Como levou para sua equipe os principais parceiros da Operação Lava-Jato, Moro também partirá de um patamar mais elevado no combate à corrupção.
A estratégia de endurecimento das penas e a política de liberação da compra de armas pelos cidadãos, condizentes com o discurso de Bolsonaro, garantem amplo apoio popular ao novo governo, mas têm eficácia duvidosa quanto aos presídios e às mortes violentas. Há estudos realizados no Brasil e, principalmente, nos Estados Unidos sobre isso. Na Califórnia, essa política fez explodirem a população carcerária e os gastos com manutenção de presídios. Em Nova York, ao contrário do que muitos imaginam, o que baixou os índices de violência foi a legalização do aborto, com a progressiva redução da população de risco, e não a política de “tolerância zero”.
E os militares? Essa é outra história. Se trabalharem com a centralização e a verticalização da gestão, como é da cultura mais tradicional de nossas Forças Armadas, de inspiração francesa e alemã, vão burocratizar e paralisar a administração. Ao contrário, se adotarem como método a coordenação e a cooperação, a grande influência norte-americana junto aos oficiais que integraram a Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália, durante a 2ª Guerra Mundial, vão ajudar o governo a melhorar sua performance administrativa e capacidade operacional.
Houve uma gritaria grande por causa das exonerações em massa na Casa Civil, que tende a se reproduzir em outras pastas, principalmente dos cargos comissionados. O ministro Onyx Lorenzoni justificou a decisão como uma necessidade de alinhamento com a nova política do governo. Os petistas já haviam sido desalojados com a saída da presidente Dilma Rousseff, exceto àqueles que aderem a qualquer governo. O estrilo da oposição não faz sentido, porque é até uma questão de respeito à vontade das urnas ocupar esses cargos com quem venceu as eleições. O ministro, porém, vai descobrir o que é um jabuti em cima da árvore. Como se sabe, jabuti não sobe em árvore, alguém pôs ele lá, como na velha fábula.
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Luiz Carlos Azedo: O governo da ordem
“Bolsonaro promete um governo comprometido com a meritocracia, a honestidade e a eficiência. É música para a maioria da sociedade”
Para não chover no molhado, direi que o momento mais simbólico da posse de Jair Bolsonaro foi aquele em que passou em revista a Guarda Presidencial, como comandante supremo das Forças Armadas, depois de jurar a Constituição. Foi o único instante em que não sorriu; com o cenho franzido, ao contrário, chorou. Como velho repórter, se tivesse oportunidade, perguntaria o que passou pela sua cabeça naquele primeiro e breve momento de “solidão do poder”. Bolsonaro sabe que jamais chegaria à Presidência a não ser pelo voto.
Como os generais de quatro estrelas Hamilton Mourão, seu vice-presidente, e Augusto Heleno, o novo chefe do Gabinete de Segurança Institucional, faz parte de uma geração que optou pela carreira militar quando o Exército ainda era a via de acesso ao Palácio do Planalto, mas teve essa ambição política frustrada pela redemocratização do país, em 1985. Sua indisciplina acabou abortando a carreira militar. A opção pela política, porém, demonstrou-se a alternativa acertada. Ninguém exerce seis mandatos na Câmara impunemente. Por caminhos tortuosos, o capitão reformado enxergou na escuridão e agora é o presidente da República, depois de 30 anos de vida política.
Não foi à toa, portanto, que fez um discurso mais conciliador e apelou aos antigos colegas durante a sessão de posse no Congresso. Deixou muito claro que conta com o apoio do parlamento para aprovar as reformas e viabilizar o seu governo. No decorrer deste mês, esse discurso terá que ganhar forma nas articulações para as Mesas da Câmara e do Senado. O grande divisor de águas de seu governo será a aprovação da reforma da Previdência, sem ela estará condenado a uma espécie de feijão com arroz neoliberal, restringindo a eficácia das medidas econômicas que estão sendo elaboradas pelo seu ministro da Fazenda, Paulo Guedes. Que ninguém se surpreenda se fizer uma composição de última hora em favor da reeleição de Rodrigo Maia, atual presidente da Câmara, que tem afinidades programáticas e regionais com Guedes.
Além do apoio maciço de militares e cristãos, como gosta de ressaltar o professor da UnB Elimar Pinheiro, sociólogo e cientista político, a vitória de Bolsonaro tem um ingrediente antropológico, que as análises políticas de seus adversários e muitos analistas demoraram a captar: o apoio das famílias como instituição. Numa sociedade em que a desagregação da família unicelular patriarcal se transformou numa tragédia social por causa do desemprego, do crime organizado e dos péssimos serviços de saúde e educação, esse fenômeno emergiu na campanha eleitoral como uma espécie de força popular subterrânea, mobilizada por católicos e evangélicos. O discurso contra a corrupção e a violência trouxe o apoio da classe média.
O muro caiu
“Podemos, eu, você e as nossas famílias, todos juntos, reestabelecer padrões éticos e morais que transformarão nosso Brasil”, conclamou Bolsonaro no discurso após a transmissão do cargo. Essa mobilização lhe dará meios de acuar um Congresso fragilizado pela Operação Lava-Jato: “A corrupção, os privilégios e as vantagens precisam acabar. Os favores politizados, partidarizados devem ficar no passado, para que o Governo e a economia sirvam de verdade a toda Nação”. Bolsonaro promete um governo comprometido com a meritocracia, a honestidade e a eficiência. É música para a maioria da sociedade.
“Me coloco diante de toda a nação, neste dia, como o dia em que o povo começou a se libertar do socialismo, da inversão de valores, do gigantismo estatal e do politicamente correto”, bradou, para delírio de seus partidários. “Não podemos deixar que ideologias nefastas venham a dividir os brasileiros. Ideologias que destroem nossos valores e tradições, destroem nossas famílias, alicerce da nossa sociedade”. O Brasil nunca foi socialista, o nosso gigantismo estatal é uma herança do nacional- desenvolvimentismo de Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek e, sobretudo, dos governos militares. Isso é o que menos importa. Bolsonaro jogou no colo da oposição, principalmente do PT, cujo envolvimento com a corrupção desmoralizou toda a esquerda, o esgotamento histórico do modelo socialista e a crise da socialdemocracia, como se o Muro de Berlim estivesse caindo novamente. Funciona, a esquerda brasileira ainda acha que o muro só havia caído na cabeça dos militantes do antigo PCB.
“Temos o grande desafio de enfrentar os efeitos da crise econômica, do desemprego recorde, da ideologização de nossas crianças, do desvirtuamento dos direitos humanos, e da desconstrução da família. Vamos propor e implementar as reformas necessárias. Vamos ampliar infraestruturas, desburocratizar, simplificar, tirar a desconfiança e o peso do Governo sobre quem trabalha e quem produz”, promete.
Bolsonaro anuncia um governo da ordem: “Também é urgente acabar com a ideologia que defende bandidos e criminaliza policiais, que levou o Brasil a viver o aumento dos índices de violência e do poder do crime organizado, que tira vidas de inocentes, destrói famílias e leva a insegurança a todos os lugares. Nossa preocupação será com a segurança das pessoas de bem e a garantia do direito de propriedade e da legítima defesa, e o nosso compromisso é valorizar e dar respaldo ao trabalho de todas as forças de segurança”.
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Luiz Carlos Azedo: O Haiti é aqui
“A manutenção da Secretaria de Governo com status de ministério e a atual configuração esvaziará a Casa Civil, principalmente a relação política com o Congresso e com os movimentos sociais”
A indicação do general de divisão Carlos Alberto dos Santos Cruz para comandar a Secretaria de Governo consolidou na cúpula do governo um grupo de ex-integrantes da missão de paz da Organização das Nações Unidas (ONU) no Haiti, formado ainda pelo general Augusto Heleno, futuro chefe do Gabinete de Segurança Institucional, e pelo general Fernando Azevedo e Silva, que será o ministro da Defesa. Sua missão mais importante, porém, foi comandar a missão de paz na República Democrática do Congo, integrada por 23,7 mil militares de 20 países, de 2013 a 2015.
Santos Cruz foi o chefe da Secretaria Nacional de Segurança Pública durante parte da gestão do presidente Michel Temer, ostentando ainda no currículo uma passagem por Moscou, como adido militar, em 2001 e 2002, e atuação como conselheiro do Banco Mundial para a elaboração do Relatório de Desenvolvimento Mundial 2011 e do grupo da ONU para a revisão do reembolso aos países que contribuem com tropas em missões de paz. Sua indicação surpreendeu, pois a Secretaria de Governo inicialmente seria incorporada à Casa Civil, sob comando do ministro Ônix Lorenzoni.
Hoje, a Secretaria de Governo da Presidência reúne as subsecretarias de Assuntos Parlamentares, Assuntos Federativos e Juventude, além da Secretaria Nacional de Articulação Social. A manutenção da pasta com status de ministério e essa configuração esvaziará a Casa Civil, principalmente a relação política com o Congresso e com os movimentos sociais. Além disso, fortalece o grupo de generais que forma o estado-maior do governo Bolsonaro, integrado ainda pelo vice-presidente Hamilton Mourão, que não passou pelo Haiti, mas atuou na Missão de Paz em Angola e foi adido militar na Embaixada do Brasil na Venezuela.
Outro militar deverá comandar o Ministério da Infraestrutura, para o qual está cotado o general Joaquim Brandão, atual chefe de gabinete do ministro Sérgio Etchegoyen, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) do governo Michel Temer. O tenente-coronel da Aeronáutica Marcos Pontes, ex-astronauta, no Ministério de Ciência e Tecnologia, completa o naipe de militares que ocupam posições no primeiro escalão. Até agora, ninguém da Marinha foi nomeado para um cargo de destaque no governo.
Segurança
Ontem, o futuro ministro da Justiça, Sérgio Moro, anunciou a criação de uma Secretaria de Operações Policiais Integradas, que ficará a cargo do delegado da Polícia Federal Rosalvo Franco, ex-superintendente da PF no Paraná, que atuou na Operação Lava-Jato. “A ideia da secretaria é coordenar operações policiais a nível nacional. Hoje nós temos muitos grupos criminosos que transcendem as fronteiras estaduais, e essa ação precisa muitas vezes de coordenação a nível nacional”, explicou. Atualmente, esse tipo de operação vem sendo realizada pelo Ministério da Segurança Pública, que será extinto.
Moro também escolheu o delegado da Polícia Federal (PF) Fabiano Bordignon para o comando do Departamento Penitenciário Nacional (Depen), também com atuação no Paraná. Além de chefiar a PF em Foz do Iguaçu, Borgidnon foi diretor de penitenciária federal de Catanduvas (PR). Moro teve contato com o delegado quando era juiz corregedor da penitenciária. “É uma função estratégica, nós todos sabemos que os presídios no Brasil constituem uma espécie de problema devido à questão de superlotação e fragilidade de certos presídios”, declarou Moro.
A indicação de procuradores e delegados federais para funções estratégicas no Ministério da Justiça, porém, já está gerando insatisfação entre os integrantes da chamada “bancada da bala” no Congresso, principalmente entre os parlamentares que são policiais militares e estão sendo pressionados pelos coronéis da ativa. O maior foco de insatisfação está em São Paulo, corporação à qual pertence o deputado e recém-eleito senador Major Olímpio.
Diretor da Associação dos Oficiais da Polícia Militar do Estado de São Paulo, o parlamentar é uma estrela em ascensão na política paulista e já exerce grande liderança entre os parlamentares do PSL, partido de Bolsonaro, porque é um dos mais experientes da bancada. Foi deputado estadual e assumiu seu primeiro mandato como deputado federal após ser eleito no pleito de 2014, com 179.196 votos. Agora, em 2018, foi eleito senador por São Paulo, com 9.039.717 votos.
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Luiz Carlos Azedo: candidato dos violentos
É cultura política arraigada, fingir que a violência não é um problema do presidente da República, é agenda de governador. Era, não é mais
De onde vem a resiliência do deputado federal Jair Bolsonaro (PSL-RJ), que lidera as pesquisas de intenção de voto para a Presidência da República com Lula fora da disputa? Com toda certeza, vem da violência presente no cotidiano da população, que tem raízes profundas na sociedade brasileira, por causa do nosso passado escravocrata, mas ganhou contornos de guerra civil não declarada em razão do tráfico de drogas e da explosiva situação dos presídios brasileiros.
Há outras causas para o enraizamento popular de sua candidatura, como o desemprego escandaloso, que atinge 13 milhões de trabalhadores, e a desestruturação da família unicelular patriarcal em decorrência da revolução dos costumes, mas são temas em disputa eleitoral que não foram monopolizados por Bolsonaro. O tema da violência, não, é dele e ninguém tasca, porque Bolsonaro tem uma proposta de tratamento de choque para o problema: a pena de morte. Ou seja, tratar os criminosos com intensidade igual ou superior à natureza de suas ações, em todos os casos. Música para os violentos.
Ironicamente, o maior legado que o presidente Michel Temer deixará para os seus sucessores é a organização do Sistema Unificado de Segurança Pública (SUSP), recentemente criado, cuja implantação está a cargo do ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann. Pela primeira vez na história, o governo federal assumirá responsabilidade em relação ao problema em caráter nacional e permanente. Desde a Constituição de 1924, era assunto dos estados, fazia parte da política de conciliação do poder central com as oligarquias regionais.
O combate à violência era uma das bandeiras de Temer para tentar a reeleição, mas o presidente da República foi engolido pelas duas denúncias do ex-procurador-geral Rodrigo Janot e por investigações em curso da Operação Lava-Jato, sob orientação do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Barroso. A economia não cresceu como se esperava e a intervenção federal no Rio de Janeiro, ato de grande repercussão, não deu os resultados que o governo esperava.
A mudança que Temer promoveu foi estrutural e terá resultados a longo prazo, com a criação de um fundo de financiamento do sistema, uma escola de segurança e inteligência e um sistema integrado de dados. Como a abertura comercial feita pelo ex-presidente Collor de Mello, que renunciou ao mandato para evitar o impeachment, somente com o tempo a mudança será sentida pela população. Mas estarão dadas condições efetivas para que o futuro governo lidere o combate à violência e ao crime organizado, que se tornou um problema de segurança nacional.
Acontece que nenhum candidato, com exceção de Bolsonaro, pretende tratar desse assunto como prioridade. É cultura política arraigada, fingir que a violência não é um problema do presidente da República, é agenda de governador. Era, não é mais. Vejam o caso do governador do Espírito Santo, Paulo Hartung (PMDB). Em 2010, deixou o governo com uma crise nos presídios que arranhou sua imagem de político comprometido com os direitos humanos e a questão social. Agora, encerra o terceiro mandato sem condições de disputar a reeleição, desgastado em razão da crise do sistema de segurança pública capixaba, cujo ápice foi a greve dos policiais militares.
Classes perigosas
Um dos intérpretes do Brasil, o alagoano Alberto Passos Guimarães (1908-1993), autor de Quatro séculos de latifúndio, foi um dos primeiros a estudar o fenômeno da criminalidade (ou da criminalização, como preferem estudiosos do tema) e da violência nos grandes centros urbanos brasileiros, no rastro dos seus estudos sobre a questão agrária e a urbanização do país.
Na obra As classes perigosas — banditismo urbano e rural (Editora UERJ), publicada em 1982, fez um diagnóstico preciso do problema: “À violência dos criminosos se junta à violência das próprias vítimas e, a essas duas, uma terceira se vem juntar: a violência dos órgãos policiais, que, pouco fazendo para prevenir o crime, querem compensar sua ineficácia tentando inútil e injustificadamente eliminar o crime aumentando o grau de ferocidade da repressão”.
A “via prussiana” de modernização do país, durante o regime militar, gerou um contingente populacional “excedente”, que fora expulso do campo pela mecanização da agricultura, e despreparado para ser absorvido nos marcos da urbanização. Houve desestruturação de grande número de famílias, cuja pauperização, pela concentração da propriedade da terra e pelo desemprego, foi o caldo de cultura para o banditismo tal como conhecemos hoje.
O Brasil entrou num novo ciclo de ampliação das desigualdades na crise do governo de Dilma Rousseff. Apesar da retórica petista e dos programas de transferência de renda do governo, a recessão ampliou os desequilíbrios demográficos e sociais. Além disso, a crise ética mudou o comportamento social das camadas urbanas, que utilizam códigos ou símbolos morais diferentes para entender e resolver seus problemas. O entendimento do direito à propriedade já não é o mesmo. Os que têm o maior interesse em resguardá-lo não o fazem. E o respeito sagrado inoculado na consciência das classes pobres foi profundamente desgastado, como já advertia Guimarães.
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Luiz Carlos Azedo: Os deuses e os mortos
O que não falta são candidatos a deuses e a mortos-vivos. Vicejam num ambiente de iniquidade social, desesperança, violência e crise ética. O país foi atropelado pela globalização e pela Operação Lava-Jato
Dirigido pelo moçambicano naturalizado brasileiro Ruy Guerra, Os deuses e os mortos é um ícone da fase “alegórica” do Cinema Novo, vencedor do festival de Brasília de 1970, numa abordagem barroca e tropicalista que retrata a violência no campo e o monopólio da política pelas oligarquias. Era uma época em que o regime militar estava no auge; parte da esquerda ainda acreditava que derrubaria o regime pegando em armas e que implantaria um “governo popular”. Era tudo um delírio, do “Brasil, ame ou deixe-o”, do general Garrastazu Médici, ao “Quem samba fica, quem não samba vai embora”, de Carlos Marighela.
Com fotografia excepcional de Dib Lufti e trilha sonora de Milton Nascimento, o filme tinha um elenco estrelado, a maioria viria a brilhar nas novelas da Globo: Othon Bastos (“O Homem”), Norma Bengell (“Soledade”), Rui Polanah (“Urbano”), Ítala Nandi (“Sereno”), Dina Sfat (“A Louca”), Nelson Xavier (“Valu”), Jorge Chaia (“Coronel Santana”), Vera Bocayuva (“Jura”), Fred Kleemann (“Homem de branco”), Vinícius Salvatore (“Cosme”), Mara Rúbia (“Prostituta”), Monsueto Menezes (“Meu Anjo”), Milton Nascimento (“Dim Dum”), Gilberto Sabóia (“Banqueiro”) e José Roberto Tavares (“Aurélio”).
O filme foi saudado pelo The New York Times como um “western tropical”, que misturava o japonês Akira Kurosawa com o italiano Sérgio Leone no sul da Bahia, tendo a temática do cacau na saga descrita por Jorge Amado como base do roteiro do próprio Guerra, Paulo José e Flávio Império. Ao lado do diretor, Sérgio Sanz fez uma edição fascinante. Audacioso no plano estético e político, a alegoria poética retratava de forma antropológica a vida nacional dos anos 1930, num ambiente rural que culturalmente permanecia o mesmo, mas, economicamente, já estava em mudança. Sua força vital e mágica parecia surgir do nada, como acontece hoje nas periferias e favelas. O protagonista é um personagem fantasmagórico, interpretado por Othon Bastos, ator de Deus e o diabo na Terra do Sol (1964) e São Bernardo (1972).
O Homem Sem Nome (Othon Bastos), depois de levar sete balas no corpo e não morrer numa chacina, se intromete entre dois clãs de coronéis que lutam pelo poder, ou seja, pela terra e pelo cacau, em cenas memoráveis. A câmara de Dib Lufti, num determinado plano-sequência, percorre lentamente um grupo enorme de guerrilheiros, com armas, sentados nos degraus a toda a volta da praça principal da cidade, à espera do grande confronto. Na cena seguinte, um plano muito aberto mostra toda essa gente agonizando na praça ensanguentada. O Homem Sem Nome fracassa.
A mesma alegoria poderia ser transposta para o cotidiano da vida urbana do presente, pois o seu material humano, do ponto de vista cultural e político, continua presente. A violência, a disputa de território, o banditismo, as oligarquias, a cultura do velho coronelismo, todos os elementos do roteiro de Os Deuses e os mortos estão vivíssimos não só nos grotões, mas nas grandes metrópoles.
Ruy Guerra sabia o que estava fazendo. “Esse filme é talvez o passo mais importante desde Deus e o diabo na Terra do Sol para definir uma realidade cultural, religiosa e humana do brasileiro, que não depende apenas do situacionismo econômico e histórico (…) O Homem, interpretado por Othon Bastos, está infinitamente ligado com o fato de ele não ser caracterizado em termos de passado, presente ou futuro, o que ‘desindividualiza’, o torna atemporal e alegórico; o desejo impessoal do poder”, explicou à época.
Ajuste de contas
A alegoria com a nossa política também seria perfeita, basta ler as notícias dos jornais. O que não falta são candidatos a deuses e a mortos-vivos. Vicejam num ambiente de iniquidade social, desesperança, violência e crise ética. As narrativas desses atores funcionam como alegorias de um passado recente que foi atropelado pela globalização e pela Operação Lava-Jato, mas continua a assombrar o presente. Um ex-governador cordato e querido pelos pares tem a prisão decretada, o ex-líder de toda uma geração rebelde volta à cadeia, um ex-presidente preso insiste numa candidatura ficha-suja. Ministros, senadores, deputados, governadores compõem um cortejo de mortos-vivos, surgem candidatos a deuses.
Fora desse universo, o aparelho de segurança e o crime organizado se enfrentam, com baixas de ambos os lados. E a morte espreita o cidadão a cada esquina, no asfalto ou no morro, na noite escura ou à plena luz do dia, enquanto a vida segue milagrosamente o seu curso, ainda que a esperança não tenha sido reinventada, como nas cenas de Os deuses e os mortos. As instituições do país ainda funcionam, a economia resiste maltratada. Na democracia, acreditem, o povo astucia sua própria saída, que sempre aparece nos processos eleitorais, mesmo quando tudo parece dominado. Em algum momento, após a Copa do Mundo, haverá um reencontro entre a política e os cidadãos. E um democrático ajuste de contas.
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Luiz Carlos Azedo: Tiros na noite
O escritor norte-americano Dashiell Hammett (Maryland, 27 de maio de 1894; Nova York, 10 de janeiro de 1961) abandonou a escola com 14 anos e passou a trabalhar como mensageiro, entregador de jornal, escriturário, apontador de mão de obra e estivador na Filadélfia e Baltimore, até completar 20 anos, quando foi trabalhar na Agência Pinkerton de detetives. Em 1918, alistou-se no Corpo de Ambulâncias do Exército; voltou tuberculoso da guerra, tentou retomar a antiga profissão de detetive, mas acabou escritor de histórias policiais. Entre um porre e outro, foi o criador do noir americano, o gênero literário que surgiu nas revistas e jornais populares, a partir de contos e folhetins.
Autor de Seara vermelha (1929), O falcão maltês (1930), A chave de vidro (1930), Mulher no escuro (1933) e Continental OP (1945), Hammett trabalhou para o cinema em Hollywood. Na década de 1930, conheceu Lillian Hellman, jovem escritora e líder feminista, uma paixão até a morte. Ao lado de John dos Passos, Ernest Hemingway e Arthur Miller, entre outros intelectuais norte-americanos, destacou-se na luta contra o nazismo nos EUA, que somente entrou na II Guerra Mundial em 1941, após o ataque japonês a Peal Harbor, no Havaí. Hammett se alistou novamente e serviu como sargento do exército americano.
Homem de esquerda, o escritor foi vítima da “caça às bruxas” promovida pelo senador Joseph McCarthy no início da década de 1950. Não colaborou com a comissão que investigava atividades supostamente subversivas na indústria cinematográfica, foi preso e incluído na lista que impedia os artistas de trabalharem em Hollywood. Hammett morreu doente e frustrado, mas deixou uma legião de seguidores.
“Estava imóvel — os olhos amarelos acinzentados sonhadores —, quando ouviu o grito. Era um grito de mulher, agudo e estridente de terror. Spade estava atravessando a porta quando ouviu o tiro. Era um tiro de revólver, amplificado, reverberando pelas paredes e pelos tetos”, seus contos inspiram cenas recorrentes no cinema, como no clássico Um tiro na noite, de Brian de Palma, de 1981.
O sonoplasta Jack Terry (John Travolta) prepara a trilha sonora de um filme B sobre assassinatos em uma universidade. Na gravação de um áudio, em local ermo, salva a mocinha (Nancy Allen) de um acidente automobilístico. Ao resgatá-la, Jack descobre que ela estava em companhia do governador George McRyan (John Hoffmeister), um dos candidatos à Presidência dos EUA. Depois do incidente, na conferência do material sonoro, constata que o acidente pode ter sido um crime encomendado; percebe que o som do estouro do pneu, na verdade, era de um tiro de revólver.
Lava-Jato
Depois da revelação de que a família do ministro relator da Operação Lava-Jato, Edson Fachin, sofreu ameaças, os tiros disparados contra o ônibus da caravana do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva fornecem ingredientes de um thriller policial às eleições presidenciais. Só foram descobertos por causa dos buracos de bala. Os tiros precisam ser investigados, tal qual nas histórias noir.
Condenado em segunda instância a 12 anos e 1 mês de prisão em regime fechado, Lula desafia a Justiça e força a barra para manter a candidatura a presidente da República, com uma retórica de radicalização política no gogó e um salvo-conduto do Supremo Tribunal Federal nas mãos, enquanto aguarda a conclusão do julgamento de seu polêmico pedido de habeas corpus pela Corte, suspenso porque dois ministros não poderiam perder o avião. Seu adversário, Jair Bolsonaro (PSL), como já reiteramos, com discurso truculento e reacionário, retroalimenta a radicalização. É um ambiente que começa a sair do controle, como a segurança pública no Rio de Janeiro.
No Brasil, até agora, não houve atentados ou mortes na Operação Lava-Jato. Aparentemente, todos os envolvidos são pessoas de índole pacífica. Nem um pouco parecida com a dos responsáveis pelo assassinato da vereadora carioca Marielle Franco (PSol), há duas semanas, executada com quatro tiros na cabeça, logo após sair de uma reunião de mulheres negras, supostamente uma resposta à intervenção federal na segurança pública daquele estado.
Na Itália, a Operação Mãos Limpas, deflagrada em fevereiro de 1992, com a prisão de Mario Chiesa, que ocupava o cargo de diretor de instituição filantrópica de Milão (Pio Alberto Trivulzio), em dois anos, resultou em 2.993 mandados de prisão e 6.059 pessoas sob investigação, incluindo 872 empresários, 1.978 administradores locais e 438 parlamentares, dos quais quatro haviam sido primeiros-ministros. Mas houve 12 suicídios e os juízes Giovanni Falcone e Paolo Borsellino foram assassinados pela máfia.
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Marielle Franco para sempre viva e presente no #ProgramaDiferente
Quem matou a vereadora Marielle Franco, do PSOL do Rio de Janeiro, e seu motorista Anderson Pedro Gomes na noite de quarta-feira, 14 de março de 2018, certamente não deve ter imaginado a repercussão que essa execução teria, muito menos o tamanho da comoção que tomaria conta das pessoas no Brasil e no mundo. Passados sete dias, o assunto segue como pauta obrigatória. O esclarecimento do crime, a identificação e a punição dos culpados para resultar em um mínimo de justiça por essas mortes encomendadas, é uma exigência de todos nós.
O que se viu nesta semana foi o acirramento do ódio e da polarização que tem tomado conta da política nacional. Já chamávamos atenção faz tempo para os riscos que esse confronto bárbaro entre esquerda e direita poderia causar. De um lado e do outro, o extremismo insano atropela a indignação natural por esse ato absurdo, covarde e desumano. No meio do tiroteio verbal - tão ou mais inconsequente que os tiros que matam inocentes - tentaremos buscar um pouco de racionalidade, bom senso e equilíbrio na análise dos fatos.
Neste #ProgramaDiferente especial, quem fala sobre Marielle Franco, a sua história e as suas causas é ela própria. Infelizmente, ela passa a ser conhecida da maioria das pessoas e ouvida por todos apenas a partir da sua morte trágica. Mas, quem melhor que Marielle para falar da pauta da mulher negra, jovem, favelada, feminista, lésbica? De temas polêmicos levantados nos últimos dias, como sobre a sua eleição ter se dado sobretudo com votos da zona sul carioca. Quem é Marielle e porque ela viverá para sempre em cada um de nós? Assista.
Luiz Carlos Azedo: Balas traiçoeiras
No submundo da segurança no Rio de Janeiro, as regras de sobrevivência são as mesmas da lei da selva
O ministro da Segurança Pública, Raul Jungmann, e o ministro do Gabinete de Segurança Institucional, general Sérgio Etchegoyen, estão começando a se enrolar nas próprias declarações sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), no Rio de Janeiro. Jungmann resolveu segurar um fio desencapado ao dar explicações sobre as cápsulas das balas encontradas no local do crime, supostamente desviadas de um lote comprado pela Polícia Federal, que podem ter sido usadas exatamente para embaralhar as investigações e pôr na berlinda a Polícia Federal. Etchegoyen descartou de pronto a possibilidade de o crime ser uma retaliação à intervenção federal na segurança fluminense, quando também pode ser exatamente o contrário.
Todo crime deixa um rastro e tem uma motivação, é o beabá de qualquer investigação. A partir daí, o escritor noir tanto pode ter a trama de um mistério (quando ninguém sabe quem é o assassino), como pode construir o roteiro de um triller (quando todo mundo sabe, mas o mocinho, não). Em 1944, o escritor norte-americano Raymond Chandler, um dos craques dos romances policiais, escreveu um ensaio intitulado A simples arte de matar, que consta do primeiro volume de uma coletânea de contos de sua autoria, publicada pela L&PM. Nele explica o fascínio do herói noir.
“Nas ruas sórdidas da cidade grande, precisa andar um homem que não é sórdido, que não se deixa abater e que não tem medo. Neste tipo de história, o detetive deve ser esse homem. Ele é o herói; ele é tudo. Ele deve ser um homem completo e um homem comum e, contudo, um homem fora do comum. (…) Se houvesse outros como ele, o mundo seria um lugar mais seguro para se viver, sem que com isso se tornasse desinteressante a ponto de não valer a pena viver nele.” É o perfil de seu personagem mais conhecido, o detetive durão Philip Marlowe.
Jungmann e Etchegoyen não têm perfil do herói noir. Os ministros não vão desvendar o mistério. Aliás, é mais provável que o submundo do crime no Rio de Janeiro conheça os assassinos e os mandantes do crime, como nos roteiros de suspense. Foi tudo muito planejado, muito profissional, não houve sequer simulação de latrocínio, que é padrão dos crimes de mando. Quem mandou matar, no contexto da intervenção, desafiou o interventor federal, general Braga Netto, e os dois ministros, que já entraram naquela fase em que é melhor não falar mais nada sobre o que aconteceu, até que se tenha uma resposta efetiva quanto à autoria do crime.
Longo caminho
Foi longo o caminho para se chegar aos romances policiais noir. Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes, que Milan Kundera considera a cortina que se abriu para a realidade na Idade Média, foi escrito 1.500 anos depois de Satíricon, de Petrônio. Chandler publicou seu primeiro grande romance policial, O sono eterno, em 1939, aos 50 anos. Como outros escritores norte-americanos, foi soldado, jornalista, empresário e detetive, entre outras atividades. Seu mestre foi Dashiell Hammett, o autor de Falcão Maltês.
Chandler, como outros de seus colegas expulsos de Hollywood pelo macartismo, fez a crítica dos maus costumes políticos e da corrupção policial nos Estados Unidos. Não há pessoas boas e inocentes envolvidas no mundo do crime. E o herói noir não é um cara todo certinho. A diferença é que não vendeu a alma ao diabo. Ele também é um predador, que a cada passo calcula a vantagem de se aproximar da presa sem perder o elemento surpresa. No mundo animal, quando o perigo de ter sua presença notada já não supera a vantagem de chegar mais perto, o predador ataca. Esse é um mecanismo fisiológico que visa obter o máximo de chance de sucesso para qualquer tipo de terreno ou de presa.
No submundo da segurança no Rio de Janeiro, as regras de sobrevivência são as mesmas da lei da selva. Quanto mais perto chegar sem despertar suspeita, maior a chance de ser bem-sucedido na caçada. No livro Informações sobre a vítima (Companhia das Letras), o ex-delegado paulista Joaquim Nogueira conta a história de um policial movido pelo desejo de justiça, que investiga por conta própria o assassinato de um colega. Suas diligências rastreiam os propósitos secretos de uma dezena de suspeitos no submundo paulistano, entre os quais um padrasto estuprador, o traficante e sua mãe hipertensa, o bicheiro generoso, a escrivã sexy, para ao final descobrir que um amigo comum da vítima era o mandante do crime. Quase que também morre por causa disso.
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Luiz Carlos Azedo: Falsa contradição
A tentativa de transformar o caso Marielle numa bandeira partidária e eleitoral está fadada ao fracasso, ainda que empolgue e mobilize setores da classe média e da juventude
Por causa dos 20 anos de ditadura militar, estabeleceu-se uma falsa contradição entre as políticas de segurança pública, contaminadas por métodos violentos e ilegais herdados da repressão à oposição ao regime, e a defesa dos direitos humanos, bandeira empunhada pelos antigos oposicionistas até como uma forma de sobrevivência. Incorporados à Constituição de 1988, de certa forma, esses direitos passaram a ter mais centralidade na atuação das antigas forças oposicionistas do que a defesa das instituições políticas que efetivamente garantiram a redemocratização do país, entre as quais se destacou o Congresso.
A violência generalizada e o colapso da segurança pública no Rio de Janeiro, em parte, são frutos do imbricamento dessa contradição com a corrupção em sucessivos governos e na Assembleia Legislativa fluminense, assim como no Tribunal de Contas do Estado. E não se sabe, ainda, se chegou às entranhas do Judiciário local. Afinal, desde a eleição de Leonel Brizola (PDT), em 1982, foram as antigas forças de oposição que governaram o Rio de Janeiro, ou seja, governos do PDT, do PSDB, do PT e do PMDB.
O fato é que o sistema de poder que controla o Estado foi progressivamente tomado de assalto por políticos e empresários corruptos, a partir de um bunker instalado na Assembleia Legislativa; por sua vez, permitiu-se que o crime organizado se enraizasse no sistema de segurança e se fez vista grossa à ocupação de “territórios” pelo tráfico de drogas, sobretudo nas favelas, e pelas milícias, nos subúrbios. A tentativa de retomá-los pelo Estado, sob a liderança do delegado federal José Mariano Beltrame, com as unidades de pacificação, por ironia e contra seus objetivos, fracassou em decorrência do grau de contaminação do aparelho de Estado, sem embargo da discussão sobre essa política em si.
Especialistas no combate à corrupção costumam usar as cores do trânsito para dividir a burocracia em três categorias: vermelha, formada por corruptos contumazes; amarela, por corruptos eventuais; e verde, os não corruptos. Quando a liderança é corrupta, o amarelo avermelha e o verde pode até amarelar; quando a liderança é incorruptível, o vermelho é que amarela e o amarelo esverdeia. A aposta dos militares que lideram a intervenção federal no Rio de Janeiro é que a mudança de comando no sistema de segurança e sua blindagem em relação aos políticos e empresários corruptos possam ter um efeito regenerador nas polícias Civil e Militar, desde que expurgados os corruptos contumazes.
O assassinato da vereadora Marielle Franco (PSOL), líder comunitária da favela da Maré e do movimento de mulheres negras do Rio, precisa lser visto em dois contextos. De um lado, a necessidade de ultrapassar a velha oposição entre defesa de direitos humanos e a política de segurança; de outro, deixar em segundo plano a disputa entre governo e oposição na hora de identificar o inimigo no combate à violência. Mais do que ineficaz, responsabilizar a intervenção pela morte da vereadora é burrice política.
Todas as investigações até agora apontam em direção às milícias que operam no Rio, uma provocação com o nítido propósito de isolar, desmoralizar e, se possível, intimidar as autoridades, entre as quais o ministro da segurança Pública, Raul Jungmann, e o comandante militar do Leste, general Braga Neto, o interventor. Isso já ocorreu outras vezes, com sucesso. A diferença agora é de correlação de forças, uma vez que essas autoridades, encarregadas de restabelecer a Lei e a Ordem, não estão sujeitas a chantagens. No lugar do aparelho de coerção do Estado tomado pela corrupção, o crime organizado esbarra em instituições que estão a salvo disso, entre as quais as Forças Armadas, o MP e a PF. Ou seja, a provocação pode ter efeito contrário e levar ao desbaratamento da organização criminosa que a promoveu.
Bandeiras
Mas há variáveis culturais e ideológicas que precisam ser enfrentadas. A glamourização da malandragem, o jeitinho, o espírito naturalmente transgressor da população; e o esquerdismo infantil e inconfessável que vê no tráfico de drogas uma espécie de “banditismo social”. A convergência desses elementos leva água para o moinho das forças mais conservadoras, que acreditam no “prendo e arrebento” como forma de resolução dos problemas e até veem nas milícias a força do bem contra o mal. A tentativa de transformar o caso Marielle em bandeira partidária está, por essa razão, fadada ao fracasso, ainda que empolgue e mobilize setores da classe média e da juventude.
O endurecimento das penas e a repressão generalizada ao consumo de drogas não oferecem solução duradoura. Mais eficaz são a educação, o esporte, o empreendedorismo, a legalização do aborto, a recuperação de áreas urbanas e o combate ao comércio ilegal de produtos roubados e aos serviços pirateados. Saídas radicais, à direita ou à esquerda, são vetores da violência. O que une mesmo é a luta pela paz.
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