segunda onda

Vinicius Torres Freire: 'Segunda onda' ainda não está nos números, mas onda de relaxamento está na cara

Pela estatística, é difícil afirmar que há repique, mas é fácil saber o que fazer para evitá-lo

Depois de semanas de despreocupação e, em muitos casos, de negligência com as medidas de segurança sanitária, subitamente o país volta a se ocupar da epidemia. A onda é falar de “segunda onda”, repique de infecções e mortes que estaria ocorrendo no Brasil.

Segundo alguns, seria algo parecido com os Estados Unidos, onde jamais houve controle do espalhamento da infecção, mas apenas uma redução do ritmo do número de mortes, que, no entanto, voltou a acelerar já por duas vezes.

Já se pode dizer que há “segunda onda” no Brasil? O que isso significa? Os dados são suficientes e persistentes para dizer que há um aumento do crescimento do número de internações, casos e mortes?

Francamente, a estatística não diz muito. Entre epidemiologistas com os quais este jornalista costuma conversar, uma meia dúzia, quase todos dizem que não é possível afirmar grande coisa, mas “evidências anedóticas” (histórias, relatos parciais) “preocupam”, tais como alertas de médicos e de administradores de grandes hospitais.

Seja como for: 1) todas as medidas de precaução continuam valendo; o relaxamento era um perigo terrível, com ou sem “segunda onda”; devem ser levadas a sério; 2) não parece haver dados suficientes para que se tome medida mais drástica alguma, o que, de resto, poderia ser contraproducente.

Hospitais particulares dizem faz mais de semana que internaram mais doentes. Alguns poucos especialistas afirmam peremptoriamente que há “segunda onda”, sem especificar bem do que se trata, porém.

As estatísticas de casos suspeitos, internações, doentes na UTI ou sob ventilação mecânica de fato apontam alguma alta na cidade de São Paulo. A média móvel de sete dias de internações no estado de São Paulo, que vinha em queda fazia tempo, deu um salto notável no dia 17, em particular na Grande São Paulo, o que não se via fazia muitas semanas.

Os dados recentes de doença e morte têm ainda mais ruídos do que de costume. Como se sabe, de 6 a 11 de novembro, ocorreram problemas no sistema nacional de registros de Covid-19, o que embananou a série de dados.

Além do mais, houve mudança de critério de confirmação de casos e mortes, diz o governo de São Paulo. Casos que ocorreram durante a epidemia foram agregados agora às estatísticas (221 mortes extras, segundo o governo paulista). Assim, os dados de casos (sempre imprecisos e variáveis em excesso) e de mortes parecem difíceis de interpretar desde o dia 5 e assim devem permanecer por mais alguns dias.

Ressalte-se que não é bem assim com o aumento recente de internações, dados de hospitais privados e da prefeitura paulista. Os dados dos hospitais parecem indicar pelo menos uma marola paulista.

Como não sabemos bem do que se trata, o aparente repique dos números serve de alerta renovado: não se pode relaxar no uso de máscaras e na limpeza, não se pode fazer aglomeração, festa ou maluquice pior.

Uma “segunda onda” ou mesmo apenas “marola forte” seriam um desastre humano e econômico. Não seria preciso decretar mais isolamentos, fechamentos etc. para que a atividade econômica desandasse. O medo já basta para causar estrago. Basta ver o movimento de restaurantes ou, pior ainda, a tentativa de reabrir cinemas.

É possível fazer o essencial para segurar essa, por ora, ameaça sinistra de repique. É preciso um pouco mais de persistência. Pode ser que o começo do fim da calamidade esteja próximo, com a esperança de vacinas. Mas, até lá, o relaxamento pode provocar um desastre evitável.


Bruno Boghossian: Bolsonaro escancara sua segunda onda de sabotagem no combate à pandemia

Divergência entre presidente e vice sobre vacina mostra busca por ganhos políticos individuais

Quando começou a atacar as medidas de distanciamento para conter o coronavírus, Jair Bolsonaro ainda tentava disfarçar suas motivações. O presidente queria transferir para seus adversários políticos a responsabilidade pelos efeitos da pandemia, mas fingia estar preocupado só com a economia.

A segunda onda de sabotagem oficial é mais escancarada. Bolsonaro não se esforça mais para manter as aparências. Integrantes do governo reconhecem, sem pudor, que a saúde pública é explorada pelo presidente apenas para alimentar sua rivalidade com outros atores.

Um sincero Hamilton Mourão admitiu o óbvio numa entrevista à revista Veja. “Essa questão da vacina é briga política com o Doria”, afirmou, em referência ao veto de Bolsonaro à compra de doses produzidas em parceria com o governo paulista.

O vice-presidente disse que não veria problema em tomar a vacina chinesa fabricada em São Paulo e que o governo federal pagaria pelo imunizante. “O governo vai comprar a vacina, lógico que vai”, acrescentou.

Como se sabe, a lógica é um artigo em falta no Palácio do Planalto. Na véspera da publicação da entrevista, Bolsonaro havia descartado essa operação. E ainda debochou do tucano: “Eu, que sou governo, não vou comprar sua vacina também, não. Procura outro para pagar”.

O presidente e o vice raramente falam a mesma língua, mas a divergência específica sobre a compra da vacina mostra quem está em busca de ganhos políticos individuais.

A ação é descarada. Na última semana, o líder do governo na Câmara reconheceu que o objetivo era esvaziar o governador. “O Doria quer carimbar um tucano no vidrinho da vacina. Ele puxou o assunto para a política e agora ele vai ver as consequências disso”, disse Ricardo Barros (PP-PR) à Rádio Gaúcha.

Doria tenta mesmo tirar proveito político de um imunizante que ainda nem foi aprovado, e Bolsonaro trabalha para desacreditar a vacinação em geral. Enquanto isso, o país chega à marca de 160 mil mortos.


Marco Aurélio Nogueira: Ainda o futuro

Difícil voltar ao que havia antes. Mas não sabemos bem o que virá nem o que queremos

A notícia de que uma segunda onda de disseminação do coronavírus atingiu diversos países europeus dramatizou a questão que nos perturba desde o início do ano: que futuro teremos? Em que medida ele será afetado pelas medidas que acompanharam a marcha da covid-19 pelo mundo? Quando virão as vacinas e que efeitos terão?

No Brasil, em particular, tudo ganha maior proporção, dado o caráter atrabiliário e anticientífico do presidente da República. Seus esgares ideológicos sugerem uma preferência explícita pela morte e pelo descaso, menosprezam vacinas e põem planos eleitorais à frente de providências médicas e sanitárias. Colidem com o bom senso e a responsabilidade. Embaçam ainda mais o futuro.

Não restam dúvidas de que a vida já sofre mudanças importantes. Estamos sendo obrigados a alterar hábitos e comportamentos às pressas, sem o devido processamento mental, prático e organizacional. Em dez meses vivemos como se houvessem transcorrido vários anos. Pulamos do mundo físico, material, analógico para o mundo digital. A casa passou a ser refúgio valorizado e os filhos, acompanhados mais de perto. O delivery aumentou e novas atividades produtivas brotaram. A mal chamada “uberização” invadiu setores bem estruturados.

Ingressamos com vigor no teletrabalho. A flexibilidade de horários articula-se com maiores doses de informalidade. Novos padrões infiltraram-se inapelavelmente na vida cotidiana, com vantagens e desvantagens: menos movimentação e deslocamentos, mas mais percepção de que se trabalha 24 horas por dia, de que ficamos mais dependentes de celulares e computadores, mais estressados e angustiados. A torrente de informações que desaba sobre nós provoca pasmo e confusão. A informalização crescente desprotege, causa insegurança e medo.

Tudo, porém, é seletivo e tem um claro corte de classe: as maiorias sofrem para se adaptar, ficam desempregadas com facilidade e sentem na pele a corrosão da renda. Cada passo no processo de digitalização produz uma modificação no plano do trabalho. Há mais produtividade e a mão de obra passa a ser substituída com rapidez. Máquinas de inteligência artificial deslocam os humanos, competem com eles, terminam por vencê-los. A obsolescência surge em cada curva da estrada. A exigência de qualificação torna-se a porta de entrada do mundo do emprego, que, no Brasil, paga alto preço pela baixa qualidade do sistema educacional. A nova economia pede a incorporação de recursos técnicos e intelectuais de novo tipo, cria exigências atitudinais e de formação continuada. A maioria da população está longe disso. Tudo é arrastado pela voracidade do mercado. A “desregulamentação” é do tipo arrasa-quarteirão: desmonta o que existia e de algum modo protegia.

Difícil imaginar que possamos voltar ao que havia antes. Estamos amarrados a um presente que se modifica incessantemente sem que consigamos atravessar a névoa que embaça o futuro.

Não se trata de uma “nova normalidade”. Mudanças socioculturais transcorrem quase sempre em silêncio, de modo molecular, e nos espasmos de seus fluxos vão se impondo aos indivíduos, convencendo-os de que é preciso adotar novos hábitos e valores. Mesmo quando há uma metamorfose social não há modificações repentinas. Não serão os condicionantes da covid, nem o modo como a pandemia está sendo administrada, que farão a vida ser virada de ponta-cabeça num átimo. Os efeitos dos vigorosos processos em curso amadurecerão aos poucos, em decantação. Com mais sofrimento que prazer.

Porque a política está congelada no tempo. Os partidos continuam aprisionados à mesmice. No Brasil, são desafiados pelos movimentos de renovação política, que fazem intenso trabalho pedagógico. Há protestos variados pelo mundo, mais lutas contra o racismo, a discriminação, a violência policial. A agenda eleitoral permanece ativa, a defesa da democracia agrega vozes, formando uma retórica de indignação que poucos resultados produz. Os governos continuam inoperantes, líderes “populistas” seguem se multiplicando, sem que a política consiga confrontá-los. A situação é terrível para os partidos mais à esquerda, que sofrem por estar numa posição antissistêmica sem terem uma ideia clara de sistema alternativo e sem terem, também, sustentação social consistente, o que decorre da desconstrução a que está submetida a estrutura de classes.

Ainda não se pôs em movimento uma política dedicada a pensar o futuro. Sem ela ficamos às cegas, agarrados às nossas fantasias, aos nossos fantasmas, às narrativas impulsionadas pelas redes.

Não sabemos bem o que virá pela frente, nem o que queremos. Talvez consigamos deslindar o que não desejamos: o autoritarismo, as discriminações, o racismo, a violência, a insegurança. Mas a forma do futuro permanece imprecisa, uma esfinge perturbadora. E assim permanecerá enquanto não surgir uma proposição política democrática que organize o presente e elabore uma carta de navegação que nos una e nos leve ao futuro.

*Professor titular de teoria política da UNESP