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Míriam Leitão: Escolhas erradas no pior da crise
Há algo profundamente errado no Orçamento, além de todos os números desencontrados. Os erros são crassos, de todos os lados, e reveladores. Mas a principal falha é que o governo e o Congresso juntos fizeram uma peça em completo divórcio com o país. Os brasileiros estão morrendo, as emergências são dramáticas na saúde e na educação, mas o Orçamento garantiu verba para submarino nuclear e corvetas dos militares, encheu os bolsos dos parlamentares de emendas, reservou verba para os palanques de Bolsonaro. É a prova, mais uma, de um governo alheio a tudo o que é de fato urgente neste pavoroso momento brasileiro.
Mesmo se houvesse mais dinheiro para o Ministério da Educação, o risco é o uso errado. O ministro Milton Ribeiro saiu da sua inexistência para ir ao Congresso defender a medieval educação domiciliar, com a socialização das crianças sendo feita nas igrejas, e as verbas para programas essenciais foram cortados. O autor da lei da compra de vacinas pelas empresas queria passar o custo para todos os brasileiros. O deputado Hildo Rocha (MDB-MA), autor da lei que autoriza o fura-fila na vacinação, queria incluir um dispositivo permitindo que os empresários descontassem no Imposto de Renda Pessoa Jurídica. Diante das críticas, recolheu sua péssima ideia. Mas é um sinal da distorção na escolha das prioridades dos poderes no Brasil. O ministro Kassio Nunes Marques, ao expedir sua liminar permitindo os cultos no meio desta carnificina que virou o Brasil, mostrou que também o Judiciário pode ser colhido por essa falta de noção que atingiu os poderes no Brasil. Como perguntou o prefeito de Belo Horizonte, Alexandre Kalil, em que planeta estão os negacionistas?
O Orçamento é parte dessa mesma confusão de prioridades. Quem entra no emaranhado dos números vê muita coisa errada nos detalhes, de parte do Executivo e do Legislativo. Ninguém pode dizer que não viu a grande lambança das contas públicas. No blog ontem contei que houve pedalada para frente e pedalada para trás. O governo superestimou despesa, o relator subestimou. No caso dos gastos da Previdência, o projeto de lei orçamentária previa R$ 712 bilhões. Isso é, segundo técnicos, pelo menos R$ 7 bilhões a mais do que o valor que pode ser projetado. O valor correto seria em torno de R$ 705 bilhões. Mas o relator Márcio Bittar (MDB-AC) fez algo ainda pior, ele subestimou despesa obrigatória e colocou no seu relatório R$ 698 bilhões. O governo fez o cálculo do aumento da despesa vegetativa, mas não considerou os ganhos da reforma da Previdência. Isso é um dos detalhes desse emaranhado numérico. Isso é só um exemplo da torre de babel que se tornou esse Orçamento do ano, com comprovações explícitas de erros de parte a parte.
Em cada escolha, o que se vê é o retrato de um governo com distorção da realidade. O Censo pode até não ser feito neste ano e ficar para 2022. Há uma discussão entre especialistas se faz agora ou no próximo ano com mais segurança. Mas o que é mais importante é se dar conta de que o governo vem estrangulando o IBGE desde 2019. O previsto inicialmente eram R$ 3,4 bilhões, o Ministério da Economia mandou cortar R$ 1 bilhão. A então presidente do IBGE aceitou e reduziu os questionários. Depois cortou mais R$ 400 milhões e agora acabou praticamente com a dotação. O atual governo briga com números e não vê relevância em estatística. E o Censo será fundamental para trazer os dados com os quais reconstruiremos as políticas públicas.
Neste momento aumentou espantosamente a insegurança alimentar no Brasil. E o governo só neste quarto mês do ano está depositando nas contas digitais da Caixa o auxílio emergencial. Em dezembro, estava claro que seria necessária uma nova rodada do auxílio, mas o Ministério da Economia fez avaliação errada de conjuntura. Achou que o país estava retomando o crescimento, quando estava entrando em nova onda de contágio e mortes.
Depois que consertarem todas as contas do Orçamento da União, com vetos em emendas e um projeto restaurando as despesas obrigatórias, quando resolverem todos os conflitos com as leis fiscais do país, sobrará a questão mais importante: no Brasil, executivo e legislativo erram dramaticamente ao definir que prioridades o país deve ter no meio da maior crise em um século.
Adriana Fernandes: Crise do Orçamento deixou mágoas na relação entre Congresso e governo
Independentemente do tamanho do acerto do presidente Jair Bolsonaro com o comando do Congresso para a saída do impasse sobre as emendas parlamentares do Orçamento de 2021, a crise política já deixou mágoas e feridas abertas na relação entre o Senado e a Câmara e também com o governo.
As cicatrizes poderão ser maiores ou menores a depender da forma como o presidente vai bater o martelo. Bolsonaro tem prazo até dia 22 para sancionar o Orçamento. De hoje até lá, parece uma eternidade.
Foi assim em 2020, quando impasse orçamentário semelhante se instalou na República, no momento em que a pandemia da covid-19 mostrava a sua cara no Brasil. A diferença é que agora Senado e Câmara estão divididos. Lideranças já avisaram que o rancor é grande no Senado com Paulo Guedes pela postura que consideram errática do ministro da Economia em relação ao acordo feito pelo governo para acomodar o aumento das emendas parlamentares com cortes de despesas obrigatórias.
O Senado ficou com a imagem chamuscada porque não cumpriu o acordo das emendas e aumentou a parcela para obras de interesse dos senadores. Será, portanto, o mais atingido pelo desfecho da crise, que ainda não está fechado e terá de passar pelo arbítrio do presidente Bolsonaro. Por sua vez, a Câmara vai ficar com o que já tinha negociado antes da votação. É para isso que o presidente da Casa, Arthur Lira, luta e sobe o tom: garantir o mesmo valor das emendas parlamentares para os deputados que já estava acertado. Nenhum centavo a mais ou a menos.
A crise causa frisson e explica o vaivém de rumores que têm surgido no mercado com o processo “estica a corda” do Centrão. É o jogo de pressão funcionando.
No mercado financeiro, enquanto reunião sobre Orçamento acontecia em Brasília, a especulação que corria era de que, se não houvesse acordo, Guedes poderia cair. Quem não gosta do ministro da Economia pega carona na crise para desgastá-lo ainda mais.
Enquanto a corda estica, o recado que vem sendo transmitido pelos líderes é que haverá maior dificuldade para aprovação dos projetos de interesse da área econômica. Muitos falam em retaliação a Guedes que na visão deles trava o acordo.
Um aperitivo já foi dado pelo Senado que colocou na pauta de votação projeto que permite às empresas cortarem jornada e salário dos funcionários ou suspenderem contratos neste ano, nos mesmos moldes do programa adotado em 2020, o BEm.
Na hesitação do governo sobre como bancar o BEm em alinhamento às regras fiscais, o Senado foi lá e cravou uma no governo, que no mesmo dia saiu do muro e mandou projeto para alterar a Lei de Diretrizes Orçamentárias e abrir caminho ao financiamento do BEm por meio de créditos extraordinários e sem compensação de aumento de arrecadação ou mais corte de despesa.
O recado político do Congresso, que tem chegado até empresários e banqueiros, é o de que haverá distensão política com uma saída honrosa para a crise do Orçamento e que o tamanho das emendas não será o que foi aprovado.
Mas esse mesmo PIB, que fica cobrando publicamente as reformas, já sabe que não terá mais nenhuma aprovada. Ninguém tem expectativa de reforma nem sonha mais com elas.
Por outro lado, o recado transmitido por empresários a interlocutores do governo é que pare de meter os pés pelas mãos (ou seja, de fazer besteira) para chegar até o ano que vem, quando haverá folga orçamentária pela correção do teto de gastos pela inflação mais alta.
“Não regredir mais” virou o ponto mais alto do sarrafo das cobranças dos empresários junto com mais vacina e melhoria das relações diplomáticas. São oito meses até o fim do ano. Depois é só eleição e nada mais.
Guedes tenta evitar a decretação de calamidade (tema da última coluna) e quer administrar a edição de novos créditos extraordinários de medidas de combate ao impacto da pandemia na base do conta-gotas para controlar a expansão dos gastos.
E o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, trabalha para comunicar o dilema orçamentário apontado pelo Copom como risco adicional para a inflação que pode levar a uma alta maior dos juros, como apontado por ele em entrevista ao Estadão publicada no domingo.
Guedes e Campos Neto estariam com Bolsonaro nesta quarta-feira em jantar com empresários. Tentativa do governo de estancar a sangria que faz com que o presidente esteja perdendo apoio na parcela do PIB brasileiro que o ajudou na sua eleição em 2018.
Ricardo Noblat: Jantar de Bolsonaro com empresários foi uma ação entre amigos
O presidente reafirmou o que pensa e acabou ovacionado
Nos oito anos dos governos de Fernando Henrique Cardoso, e nos oito de Lula, não foi preciso selecionar com rigor nomes de empresários dispostos a jantar com eles para driblar o risco de serem fortemente pressionados por isso ou por aquilo. Fernando Henrique estava à vontade no meio deles. Lula, também.
Já foi o caso do presidente Jair Bolsonaro até, pelo menos, metade do ano passado. Desde então deixou de ser, daí os cuidados tomados em ocasiões como essas. Recentemente, centenas de economistas, empresários e banqueiros pesos pesados do PIB assinaram um manifesto fazendo duras cobranças a Bolsonaro.
Não se tem notícia se alguns deles participaram do jantar oferecido a Bolsonaro, ontem, em São Paulo, por Washington Cinel, dono da empresa de segurança Gocil. Mas nomes graúdos compareceram. E os primeiros relatos indicam que Bolsonaro foi muito bem recebido e chegou a ser ovacionado quando discursou.
O que ele disse para merecer aplausos? No dia em que o Brasil ultrapassou a marca de 340 mil mortos pela Covid-19, o presidente fez duras críticas a Estados e prefeituras que defendem restrições mais severas de isolamento social. E defendeu a manutenção de igrejas e templos abertos, segundo o jornal VALOR.
O encontro fora planejado para apresentar um Bolsonaro mais moderado à parte do empresariado paulista. Mas ele foi o de sempre. “Tem de olhar o lado bom do país. Os investidores estão acreditando no Brasil. Basta olhar, hoje, o leilão dos aeroportos. Não existe terra melhor do que essa!”, disse o presidente.
Que em seguida disparou: “Podem me dar porrada à vontade. […] Imagina se o [Fernando] Haddad tivesse ganhado a eleição?”. E ele mesmo respondeu: “O Brasil teria afundado. Se os atuais presidenciáveis tivessem no meu lugar, tinha virado o caos social”. A agressiva retórica entusiasmou os convidados.
Eles se sentiram então mais à vontade para, a salvo dos jornalistas, impedidos de testemunhar a cena, criticarem as medidas mais duras de isolamento do governador João Doria (PSDB). Muitos aproveitaram para falar mal dos governos do PT e disseram ver Lula como seu inimigo número um.
“Estamos com o senhor. O Brasil não volta para ladrão e vagabundo”, gritou um empresário, para quem falta compreensão de certa parcela do público para entender o quanto Bolsonaro é autêntico. Flávio Rocha, um dos apoiadores de Bolsonaro, pediu a aprovação das reformas econômicas ainda este ano, e prometeu:
– Vamos te dar apoio.
Falou-se de vacinação, por suposto, mas nada que pudesse constranger o presidente, outra vez aplaudido ao afirmar que o Brasil é um dos poucos países do mundo que produzem imunizantes. Não disse que sem os insumos fornecidos por outros países, o Brasil seria incapaz de produzir as vacinas que usa.
“Foi uma conversa boa, eu gostei, me deu tranquilidade”, definiu Rubens Menin, controlador de MRV, Banco Inter e da rede de televisão CNN. Questionamentos sobre o viés ideológico de Bolsonaro ficaram de fora da pauta do jantar. “Foi uma conversa de alinhamento, não de confusão”, segundo Menin.
Eugênio Bucci: Os dez mandamentos do desmando
Verás teu povo fenecer sem o sopro da vida e isso te insuflará a embriaguez de poder
1 – Profanarás o Estado laico.
A maior notícia da temporada não tem que ver com sepultamentos noturnos extenuantes ou com reuniões angustiantes entre empresários e o presidente da República. A maior notícia é que entrou em cartaz na TV Brasil – emissora da Empresa Brasil de Comunicações, a EBC, vinculada ao governo federal – a novela Os Dez Mandamentos, produzida e já exaustivamente exibida pela TV Record. Segundo foi noticiado, a EBC pagou R$ 3,2 milhões pelos direitos de sua nova atração. Com isso vem abaixo qualquer aparência de laicidade que pudesse ainda resistir na comunicação pública da União. É verdade que a TV Cultura, de São Paulo, exibe desde sempre a missa dominical de Aparecida, mas Os Dez Mandamentos chegam à TV Brasil para explodir com todos os limites. Se a TV Cultura tem uma face de coroinha, a EBC é agora um canal escancaradamente missionário, com préstimos do dízimo do erário.
2 – Transformarás a política em fanatismo.
A mistificadora novela na TV governamental pode ser vista como um curso de formação (e de deformação) política. Nela se encena a regressão do neopentecostalismo a uma forma religiosa pré-cristã, decalcada no monoteísmo judaico. O objetivo não é espiritual. Não se trata de expandir os horizontes da fé. Trata-se apenas de catequizar as massas para convertê-las às maravilhas da autocracia.
Moisés, na trama da Record, é um líder acima de todos porque está em linha direta com Deus, alegadamente acima de tudo. Em vez de dialogar, ordena. Sua liderança exige obediência, em lugar de raciocínio. Ele não tem aliados, mas fiéis. A novela reduz a fanatismo o que há de política no Velho Testamento.
3 – Xingarás a ciência de bruxaria.
Na cosmogonia fraudulenta da novela em reprise na EBC, só a renúncia à razão pode salvar os aflitos. Somente os milagres produzem soluções – e os milagres não são acessíveis à compreensão humana. Quem busca de entender os mistérios da natureza por meio da experiência e da crítica atenta contra o sagrado. Melhor morrer cumprindo as ordens do profeta do que buscar a cura pela inteligência. A ciência é um tipo de feitiçaria e seus praticantes são apóstatas, assim como a democracia é uma tentação demoníaca.
4 – Invocarás o nome de Deus em vão, sim, Senhor.
O mandatário maior fica autorizado a, mesmo sem crer, imitar Moisés, agindo como se tivesse parte com aquilo que está acima de tudo e de todos. Assim aglomerará crédulos ao seu redor, enquanto outros se amontoarão em seu nome. Primeiro, vivos. Depois, mortos.
5 – Não te compadecerás dos que padecem no abandono.
Dizendo de outro modo: verás teu povo fenecer sem o sopro da vida e isso te insuflará a embriaguez de poder. O anjo da morte na porta do teu próximo avivará tua vaidade.
6 – Não honrarás a verdade dos fatos.
O site da TV Brasil promete sensações indescritíveis, gozosas, fáceis e falsas: “A novela Os Dez Mandamentos é repleta de conflitos familiares, intrigas, luta pelo poder, traições, inveja, ódio, paixões proibidas e amores impossíveis, em tramas recheadas de muita emoção”. Eis a que se reduz o nome de Moisés na programação da emissora estatal. A propaganda, em tempos de asfixia generalizada, é de perder o fôlego. Enquanto isso, fora do site da TV Brasil, proliferam as garantias de que tudo não passará de uma “gripezinha”, sob aplausos excitados. O discurso do Planalto leva os desinformados a crer que a moléstia que os consome não passa de um embuste armado por jornalistas, cientistas, comunistas, professores, intelectuais e artistas, todos em conluio. Fechar o comércio é fazer o jogo dos covardes, diz alguém. Os autoproclamados corajosos exultam.
7 – Matarás.
Ele se olha no espelho e se vê mito. Crê ter sido predestinado a livrar o Brasil da praga do comunismo. Está acima do certo e do errado. O que é a morte de alguém, ainda que famoso, diante de tão grandiosa missão? No stalinismo, tudo era permitido em nome da classe. No nazismo, tudo era imperativo em nome da raça, incluído o genocídio: os que morreram nos campos de extermínio eram a doença, eram um vírus maligno. Ele repete: morrer faz parte. Está convicto: se todos vamos morrer um dia, que partam antes os fracos e os maricas.
8 – Conspurcarás todas as profecias.
Trazida para a TV Brasil, altar de todos os falsos testemunhos, a novela Os Dez Mandamentos tem o propósito indigno de urdir a mensagem de que as autoridades cumprem desígnios divinos. O que pode haver de mais antimoderno?
9 – Amaldiçoarás pensamentos e desejos.
Nada que não seja a obediência tem status de virtude na EBC. O pensamento foi declarado uma ameaça. O desejo, perdição – a não ser o do chefe.
10 – Não amarás a ninguém, mas adorarás a ti mesmo.
Na novela, um Moisés fake. Fora dela, um imitador barato. Cidadãos fanatizados acreditam na liberdade de levar o contágio uns aos outros. Julgam-se livres para matar e morrer. Adoram quem os condenou a parar de respirar. Não amam ninguém. Não sabem o que é amor.
*Jornalista, é professor da ECA-USP
Monica de Bolle: Os desafios de um país que está no futuro do pretérito
O passado sempre pesou mais sobre o Brasil do que o futuro ou mesmo o presente, mas, no futuro do pretérito, as discussões conjunturais perdem decididamente qualquer sentido
Há doze meses, o Brasil não imaginava que um ano depois estaria em seu pior momento da pandemia. Há nove meses, o Brasil pensava que tudo haveria de se resolver por si só, sem que qualquer ação real fosse tomada. Há seis meses, o Brasil achava que o pior tinha passado. Há três meses, o Brasil cogitava que 2021 seria o ano da retomada. Durante todo esse tempo o país não se deu conta do quão preso estava e está aos seus traumas. O Brasil é um país no futuro do pretérito. E essa é mesmo a imagem perfeita, pois que o tempo verbal expressa a ideia de um futuro construído em um momento passado e ligado a ele. O passado sempre pesou mais sobre o Brasil do que o futuro ou mesmo o presente, mas, no futuro do pretérito, as discussões conjunturais perdem decididamente qualquer sentido.
Em 1985 o Brasil não imaginava que em 2021 estaria se debatendo com o espectro da ditadura. O golpe militar de 1964 iniciou a ditadura de duas décadas que deixaria um rastro de destruição cujo legado conosco está até hoje. Morte, tortura, crises de dívida, crises externas, fome, pobreza, desigualdade, hiperinflação. Hiperinflação, aí está um dos motivos para que o país permaneça preso nesse passado que o atormenta. Tudo é motivo para pensar na hiperinflação. A crise externa de 1999 trouxe à tona o fantasma da hiperinflação, que tornaria a assombrar na crise externa de 2002/2003. Mas, apesar dos desequilíbrios e problemas, hiperinflação não houve. O Brasil se pouparia dos temores hiperinflacionários ao longo de boa parte dos anos 2000, e o espectro não surgiria sequer em 2008, ano da crise financeira internacional. Na verdade, os temores hiperinflacionários só voltariam em 2015, quando os abalos da política econômica de Dilma Rousseff ganharam expressão em dados e se fizeram sentir na vida. Novamente, os temores seriam frustrados. Escrevo estas palavras como alguém que também temeu a hiperinflação em todas essas ocasiões sem saber indicar ao certo o porquê. Afinal, trauma é trauma.
Pessoas têm traumas. Países, compostos por pessoas, têm traumas. O trauma do Brasil é a longa convivência com a hiperinflação para aqueles que dela se lembram. E há muita gente que se lembra dela. O trauma da Argentina, outro país que conviveu com a hiperinflação mais ou menos no mesmo período, ainda que por menos tempo, não é a hiperinflação. O trauma argentino é a crise da dívida de 2001, que o país insiste em reviver não somente na memória. Não falo da Argentina por acaso. Quem viveu a hiperinflação certamente se lembra do “efeito Orloff”, a peça de publicidade da vodka que pregava “eu sou você amanhã”. O Brasil viveu no futuro do pretérito com a Argentina, a Argentina viveu nesse mesmo tempo verbal com o Brasil. Até que chegaram os anos 90 e o efeito etílico se desfez com o Plano Real. Contudo, nem o Plano Real foi capaz de apagar o trauma.
Estamos em 2021, no meio de uma pandemia: a pior do século XXI e apenas comparável em escala à do início do século passado, a gripe espanhola. A atual pandemia desarticulou tudo. Cadeias de produção foram abaladas, empregos foram perdidos, empresas e negócios foram obrigados a se reinventar. Ainda que a imagem da guerra não seja a ideal para pensar a crise humanitária proveniente da covid-19, ela serve para que pensemos na inflação e na sua versão mais severa, a hiperinfllação. Como mostram os exemplos históricos, guerras afetam cadeias de produção, o suprimento de insumos, o fornecimento de serviços sem os quais algo não pode ser produzido. Por essas razões, desponta a escassez de bens. A demanda por muitos bens e serviços também cai quando há guerras, afinal, há um empobrecimento geral em meio à destruição, mas há certos produtos que as pessoas não podem deixar de consumir. A escassez de oferta, nesses casos, ocasiona inflação. O raciocínio pode ser estendido para a pandemia. Se países reduzem a exportação de determinados produtos, se as medidas sanitárias interrompem o suprimento de determinados bens ou causam a ausência de alguns serviços, cadeias de produção serão abaladas. Preços irão subir, como vimos ocorrer com os preços de alimentos no Brasil e no mundo. Essa inflação é inerente à pandemia, como é inerente às guerras. O medo de que se descontrole é justificável? Em certa medida, é. Mas não pelos motivos articulados no Brasil.
O medo da hiperinflação manifesto no Brasil, hoje, está ancorado na premissa de que estamos de volta ao passado. Ainda que assim pareça quando ouvimos o presidente da República e o uso corrente das palavras “golpe” e “militares”, o momento é outro. O país está sem lideranças no meio de uma pandemia que ceifou cerca de 3 milhões de vida no mundo todo e mais de 320.000 no Brasil. Esse país sem lideranças, que faz asfixiar e morrer, lembra o terrível passado ditatorial, mas não é igual a ele. Em alguns aspectos, é pior: foram mais mortes evitáveis em pouco mais de um ano do que ao longo de todo o período da ditadura. Em outros sentidos, não é nem melhor, nem pior, mas diferente. O Brasil está à deriva não porque sofreu uma crise de dívida externa, porque as taxas de juros globais estão subindo, ou mesmo porque não sabe controlar o déficit público. O Brasil está à deriva porque não adotou qualquer das medidas necessárias para combater a pandemia e sustentar a economia. Não planejou a campanha de vacinação, resistiu e continua a resistir às medidas de isolamento e quarentena, inventou uma data fictícia para o término do estado de calamidade, não impediu o desmantelamento das cadeias de produção por meio do apoio a pequenas e médias empresas. Fez o auxílio emergencial, é verdade. Mas o desfez para agora pôr no lugar algo pior por medo, em parte, da hiperinflação que não existe.
Nos Estados Unidos, de onde escrevo, mesmo Donald Trump adotou medidas para impedir o desmantelamento das cadeias de produção. Sua adoção evitou uma alta generalizada de preços, embora alguns produtos estejam hoje muito mais caros do que há um ano. Nem todo desmantelamento pôde ser evitado, pois uma parte é atrelada ao comércio internacional, e este também foi impactado. Mas a comparação faz ver que a realidade é que, se hoje o Brasil está preso no futuro do pretérito inflacionário, as causas não são o auxílio emergencial, nem o déficit e a dívida mais elevados. As razões estão no desprezo pelo papel do Estado na contenção de uma crise sem precedentes, o que nos põe em uma posição curiosa: o Brasil vive o trauma inflacionário não devido a um Estado excessivamente intervencionista, mas devido a um Estado ausente.
Diante desse descalabro, não há discussão de conjuntura que faça sentido. Dela, portanto, tomo a liberdade de me ausentar por tempo indeterminado.
Monica de Bolle é economista, PhD pela London School of Economics e especializada em medicina pela Harvard Medical School. É professora da Universidade Johns Hopkins, pesquisadora-Sênior do Peterson Institute for International Economics e mestranda em Imunologia e Microbiologia na Georgetown University.
Luiz Carlos Azedo: Muito além das igrejas
É surreal a polêmica que ocorre no Supremo, no momento mais dramático da pandemia, que registrou 3.829 mortes por covid-19 e 92.625 novos casos nas últimas 24 horas
O julgamento iniciado, ontem, no Supremo Tribunal Federal (STF), com o voto contrário do relator, ministro Gilmar Mendes, à liberação de celebrações religiosas presenciais, como cultos e missas, em razão da pandemia da covid-19, extrapola a crise sanitária e diz respeito à existência de um Estado laico e sua relação com a sociedade no Brasil. A ideia da separação entre a política, o Estado, e a religião, ou seja, as igrejas, não é um assunto tão pacificado como deveria, embora preconizada por Nicolau Maquiavel, em O Príncipe, desde o século XVI.
A discussão na Corte foi provocada por liminar do ministro Kassio Nunes Marques a favor da liberação dos cultos, a pretexto de defender a liberdade religiosa, acolhendo pedido da Associação Nacional dos Juristas Evangélicos. Sua decisão acabou confrontada por outra liminar, do ministro Gilmar Mendes, em favor do governo de São Paulo, que proibiu as celebrações em razão das medidas de distanciamento social para combater a pandemia.
Há jurisprudência do Supremo reconhecendo as prerrogativas de governadores e prefeitos para agirem dessa forma, mas não há súmula vinculante. A novidade é o entendimento de três aliados do presidente Jair Bolsonaro, com viés “terrivelmente evangélico”: o ministro Nunes Marques, indicado por Bolsonaro, o mais novo integrante da Corte; o advogado-geral da União, André Mendonça, que citou várias vezes a Bíblia e nenhuma vez a Constituição de 1988 no julgamento; e o procurador-geral da República, Augusto Aras, que também deveria defender o caráter laico do Estado, mas adotou uma linha juridicamente enviesada.
“As pessoas têm o direito de professar sua fé, direitos e garantias são postos em defesa do cidadão contra o Estado e não em favor do Estado contra cidadãos. A ciência salva vidas; a fé também”, argumentou Aras, em defesa da liberação de cerimônias religiosas em todo o país. O procurador-geral da República disputa com o advogado-geral da União a indicação, pelo presidente Jair Bolsonaro, para a vaga do ministro Marco Aurélio Mello no STF. O decano da Corte se aposentará em 5 de julho.
Essa polêmica é surreal, pois ocorre no momento mais dramático da pandemia, que registrou, nas últimas 24 horas, 3.829 mortes por covid-19 e 92.625 novos casos, aumentando o número de óbitos pela doença para 340.776. O total de casos confirmados se aproxima de 13,2 milhões. O Supremo já assegurou autonomia aos estados e municípios para que tomem medidas de combate ao coronavírus, mas a decisão é questionada pelo presidente Bolsonaro.
Duas liberdades
Ao defender sua posição, André Mendonça invocou o filósofo britânico Isaiah Berlin, autor de um clássico do liberalismo do século XX: Dois conceitos de liberdade (Editora Universidade de Brasília). Berlin discute os conceitos de “liberdade positiva”, a ausência de impedimentos à ação do indivíduo, e “liberdade negativa”, a qual estabelece condições para que os indivíduos ajam de modo a atingir seus objetivos.
Berlin sustenta que o indivíduo só é livre na medida em que nenhum outro homem, ou grupo, interfira em suas atividades. O julgamento ocorre na fronteira entre as vidas privada e pública. A ideia de liberdade positiva tangencia o conceito de liberdade civil de Rousseau: “Quanto mais eu obedeço a lei civil, mais livre eu sou, já que ajudo a elaborá-las”. Simplificando, é como se dissesse que, para o próprio bem, o indivíduo não está sendo coagido.
A Constituição de 1988, fortemente influenciada pelo liberalismo radical do deputado Ulysses Guimarães, pautou-se por outro pensador inglês, Stuart Mills, para quem devemos ter “liberdade na busca pelo nosso próprio bem, da forma que melhor nos apetece, desde que isso não interfira na possibilidade de os outros fazerem o mesmo”. O indivíduo pode até ser livre para causar dano a si mesmo, mas não aos outros; dependendo das circunstâncias e dos interesses da maioria, a liberdade pode ter limitações. Esse é o xis da questão na crise sanitária, que Bolsonaro não está levando em conta.
Eliane Brum: Atenção! Bolsonaro vai ficar mais perigoso
Se o impeachment não avançar já, preparem-se para algo ainda pior do que o recorde global de mortos por covid-19
Primeiro. Não há a menor condição moral de debater a eleição de 2022. É conversa de gente ruim, que ignora o horror diário do Brasil, que em 6 de abril registrou o recorde de 4.195 mortes por covid-19. Jair Bolsonaro precisa ser submetido a impeachment já. Cada dia a mais com Bolsonaro no poder é um dia com menos brasileiros vivos. Mortos não por fatalidade, porque o mundo vive uma pandemia, mas porque Bolsonaro e seu Governo disseminaram o vírus e converteram o Brasil no contraexemplo global.
Estamos no caminho dos 400.000 mortos. Se o Brasil continuar nesse rumo ―como vários epidemiologistas alertam― superaremos o meio milhão. E ainda assim as mortes vão seguir. Se esse extermínio não for suficiente para mover aqueles que têm a obrigação constitucional de promover ou apoiar o impeachment, é importante acordar para uma grande probabilidade. Bolsonaro é uma besta. Acuado e isolado, quase certamente ficará mais perigoso. É urgente impedi-lo antes que um horror ainda maior do que centenas de milhares de mortes aconteça.
Que Jair Bolsonaro não se importa com ninguém, a não ser ele mesmo e seus filhos homens, é claríssimo. Desde sempre, ele frita aqueles que o ajudaram a se eleger, o advogado Gustavo Bebianno poderia dizer se estivesse vivo. E também aqueles que o ajudaram a se manter governando, o general Fernando Azevedo e Silva que nos conte, já que Bebianno não pode mais. Bolsonaro não tem lealdade a ninguém, só lhe importam seus próprios interesses. Mais do que interesses, Bolsonaro tem apetites. Só lhe importam seus próprios apetites.
Bolsonaro gostou, porém, da popularidade e da ideia de ser o líder de um movimento. Bolsonaro, uma mal acabada mistura de cachorro louco com bobo da corte, que sugou os cofres públicos como deputado sem fazer nada de relevante por quase 30 anos, apreciou ser finalmente levado a sério. E isso teve efeito sobre ele, como teria sobre qualquer pessoa.
Bolsonaro se elegeu e começou a governar com generais apoiando-o, justamente ele, um capitão que saiu do Exército pela porta dos fundos, apenas para não ser preso (mais uma vez). Bolsonaro se elegeu e começou a governar com Paulo Guedes, um economista ultraliberal que tinha as bênçãos dessa entidade metafísica chamada “mercado”, que tanto opina nos jornais ―sempre nervosa e com humores, mas raramente com rosto. Bolsonaro se elegeu e começou a governar com o ainda herói (para muitos) Sergio Moro, com sua capa de juiz justiceiro contra os corruptos. Bolsonaro, que só provocava risadas, de repente era ovacionado como “mito”, escolhido para liderar um país.
Era um delírio, em qualquer mente sã, mas o delírio se realizou porque o Brasil não é um país são. Uma sociedade que convive com a desigualdade racial brasileira não tem como ser sã. Uma maioria de eleitores que vota em alguém que diz que prefere um filho morto num acidente de trânsito a um filho gay e que defende em vídeo que a ditadura deveria ter matado “pelo menos uns 30.000” não pertence a uma sociedade sã. Essa sociedade, da qual todos fazemos parte e portanto somos coletivamente responsáveis, gestou tanto Bolsonaro quanto seus eleitores.
Sem jamais perder de vista seus apetites, Bolsonaro acreditou no delírio. A realidade, porém, foi corroendo-o. Finalmente, no terceiro ano de Governo, Bolsonaro descobre-se isolado. De bufão do Congresso, uma imagem com a qual convivia sem maiores problemas, virou “genocida”. A libertação do politicamente correto, que ele anunciou em seu discurso de posse, pode ter liberado vários horrores, a ponto de permitir que um misógino, racista e homofóbico como ele se tornasse presidente. Mas genocídio é um degrau que ainda continua no mesmo lugar. Não dá para fazer piada com genocídio.
Quem ainda tem algo a perder começou a se afastar de Bolsonaro, com as mais variadas desculpas, ao longo dos primeiros anos de Governo. De Jananína Paschoal a Joyce Hasellmann. Do MBL ao PSL, seu próprio partido. E então Sergio Moro se foi e saiu atirando. E, no final de março, chegou a vez dos militares. Bolsonaro quis dar uma demonstração de força, demitindo um general, e seu apoio nos peitos estrelados das Forças Armadas ficou reduzido à meia dúzia, se tanto, de seus generais de estimação. Bolsonaro ainda precisa conviver com o bafo na nuca do vice Hamilton Mourão. Único não demissível, o general sempre dá um jeito de sutilmente avisar ao país (que já levou três vices ao poder desde a redemocratização, um por morte e dois por impeachment) que está ao dispor se necessário for. Mourão está sempre por ali, dando um jeito de ser lembrado.
A queda do chanceler Ernesto Araújo foi um ponto de inflexão no Governo Bolsonaro. Porque Bolsonaro foi obrigado a demiti-lo, e Bolsonaro não gosta de ser obrigado a nada. Ele fica ressentido como uma criança mimada e reage com malcriação ou violência, o que em parte explica a mal calculada demissão do ministro da Defesa, o equivalente a uma cotovelada para mostrar quem manda quando sente que já manda pouco. Mas principalmente porque Ernesto Araújo era importante para Bolsonaro. Ele era o idiota ilustrado de Bolsonaro, aquele que deveria dar uma roupagem supostamente intelectual a um Governo de ignorantes que sabem que são ignorantes.
Araújo sempre foi muito mais importante do que o guru Olavo de Carvalho porque era ele o ideólogo do bolsonarismo dentro do Governo e trazia com ele a legitimidade (e o lustro) de ser um diplomata, quadro de carreira no Itamaraty, ainda que obscuro. Seu discurso de posse como chanceler era uma metralhadora de citações para exibir erudição. A peça final era delirante, mas cuidadosamente pensada como um documento de fundação do que o então chanceler anunciava como uma “nova era”. Um delírio. Mas o que é Bolsonaro no poder senão um delírio que se realizou?
Perder Araújo ou, pior do que isso, ser obrigado a chutá-lo contra a sua vontade, significa para Bolsonaro que não há mais o simulacro de um projeto para além de si mesmo e o anteparo que isso representava, não há anseio ou expectativa de ser algo na história. Bolsonaro é agora também oficialmente só ele mesmo. E ele sabe o que é.
Bolsonaro converteu o Brasil num gigantesco cemitério. E essa tem sido uma manchete recorrente em jornais das mais diversas línguas. Seu projeto de disseminar o vírus para garantir imunidade por contágio, um barco furado em que o premiê Boris Johnson embarcou no início da pandemia, mas pulou fora quando o Reino Unido exibiu as piores estatísticas da Europa, deu ao Governo brasileiro o título de pior condução da pandemia entre todos os países do planeta.
Se as reuniões presenciais de cúpula estivessem permitidas, Bolsonaro teria dificuldades hoje em se manter ao lado de algum chefe de Estado com autoestima e preocupação eleitoral para posar para um retrato oficial. O brasileiro é visto como pária do mundo e estar perto dele pode contaminar o interlocutor. No cenário global ele não é mito, e sim mico (com o perdão ao animal que, graças a Bolsonaro, hoje vive muito pior em todos os seus habitats naturais).
Bolsonaro hoje é radioativo e infectou as relações comerciais do Brasil com o mundo. Grandes redes de supermercados, por exemplo, não querem se arriscar a um boicote por vender carne e outros produtos de um país governado por um destruidor da maior floresta tropical do mundo. Ninguém que tem apreço pela imagem de “democrata” quer negociar com alguém cada vez mais colado ao rótulo de “genocida”, especialmente na Europa pressionada por ativistas climáticos como Greta Thunberg e com os “verdes” aumentando sua influência em vários parlamentos.
Na terça-feira, 199 organizações ambientais brasileiras fizeram uma carta pública a Joe Biden alertando sobre o risco que um acordo de cooperação iminente entre os Estados Unidos e o Governo Bolsonaro traria para a emergência climática, os direitos humanos e a democracia. A descoberta de que o Governo Biden mantém há mais de um mês conversas a portas fechadas com o Governo Bolsonaro sobre meio ambiente surpreendeu o mundo democrático. Segundo a carta, as negociações com Bolsonaro —negacionista da pandemia que desmontou a política ambiental brasileira e que foi acusado por indígenas no Tribunal Penal Internacional por crimes contra a humanidade— contaminam a narrativa de Biden, que prometeu em sua gestão lidar com a pandemia, o racismo, a crise climática e o papel dos Estados Unidos na promoção da democracia no mundo. “O presidente americano precisa escolher entre cumprir seu discurso de posse e dar recursos e prestígio político a Bolsonaro. Impossível ter ambos”, afirma o texto.
Depois de mais de dois anos com Bolsonaro no poder, o Brasil vive um dos piores momentos de sua história. A economia ruiu. O pib brasileiro é o pior em 24 anos. A fome e a miséria aumentaram. A Amazônia está cada vez mais perto do ponto de não retorno. Os quatro filhos homens de Bolsonaro (a filha mulher, lembram, é só o resultado de uma “fraquejada”) são investigados por corrupção e outros crimes. Sua ligação com as milícias do Rio de Janeiro e o cruzamento com a execução de Marielle Franco, ela sim um ícone, se tornam cada vez mais evidentes. Um após outro grande jornal do mundo estampa Bolsonaro como uma “ameaça global” em seus editoriais e reportagens.
Quem ainda permanece ao lado de Bolsonaro hoje? Paulo Guedes, anunciado como superministro para aplacar os tais humores do tal mercado, desde o início do Governo foi apenas um miniministro. O fato de ainda permanecer como titular da Economia de um Governo com o desempenho do atual diz muito mais sobre Guedes do que sobre Bolsonaro. Se fosse uma empresa privada, essas que ele tanto defende, estaria demitido há muitos meses. E não adianta culpar a pandemia, porque vários governos do mundo, inclusive na América Latina, exibiram desempenhos econômicos muito melhores, inclusive porque fizeram lockdown.
Permanecem também os líderes do evangelismo de mercado. É importante diferenciar os evangélicos para não cometer injustiças. Quem apoiou e apoia Bolsonaro e suas políticas de mortes são os grandes pastores ligados ao neopentecostalismo e ao pentecostalismo que converteram a religião num dos negócios mais lucrativos dessa época, e também algumas figuras católicas. Beneficiadas com um perdão de débitos concedido sob a bênção de Bolsonaro, as igrejas acumulam 1,9 bilhão de reais na Dívida Ativa da União, dinheiro este, é importante assinalar, que pertence à população e dela está sendo tirado. Sem compromisso com a vida dos fiéis, esses mesmos pastores e padres abriram os templos na Páscoa, autorizados por Nunes Marques, ministro de estimação de Bolsonaro no Supremo Tribunal Federal, produzindo aglomerações no momento em que o Brasil a cada dia superava o anterior no recorde de mortes por covid-19.
E permanecem também uma meia dúzia de generais de pijama, dos quais os generais da ativa tentam desesperadamente se distanciar para não corromper ainda mais a imagem das Forças Armadas. Há ainda o Centrão, o numeroso grupo de deputados de aluguel que hoje comanda o Congresso, mas que já mostraram que podem mudar de lado, se mais lucrativo for, da noite para o dia, como fizeram com Dilma Rousseff (PT) no passado recentíssimo. É esse rebotalho que resta hoje a Bolsonaro, que já não encontra quadros minimamente convincentes nem para recompor seu próprio Governo.
Bolsonaro, que gostou de ser popular, vê hoje baixas na sua base de apoio, assombrosamente fiel apesar dos horrores do seu Governo ―ou por causa dele. Sua popularidade está em queda. É certo que sempre haverá de restar aquele grupo totalmente identificado com Bolsonaro, para o qual negar Bolsonaro é negar a si mesmo. Esse grupo, ainda que minoritário, é lamentavelmente significativo. Lamentavelmente porque mostra que há uma parcela de brasileiros capazes de ignorar as centenas de milhares de mortes ao seu redor, mesmo quando há perdas dentro de sua casa. Esse é um traço de distorção mental complicado de lidar numa sociedade, mas não é novo, na medida em que a sociedade brasileira sempre conviveu com a morte sistemática dos mais frágeis, seja por fome, por doença não tratada ou por bala “perdida” da polícia.
Porém, todos aqueles que encontrarem alguma brecha para se desidentificar de Bolsonaro ou para dizer que foram enganados por ele na eleição estão se afastando horrorizados. Como sociedade, precisamos parar de renegar os eleitores arrependidos de Bolsonaro, porque é necessário dar saída às pessoas ou elas serão obrigadas a permanecer no mesmo lugar. Todos têm o direito de mudar de ideia, o que não os exime da responsabilidade pelos atos aos quais suas ideias os levaram no passado.
Bolsonaro se descobre isolado. E se descobre feio, pária do mundo. Nem mesmo líderes de direita de outros países querem vê-lo por perto. Antigos apoiadores, que lucraram muito com ele, vão vazando pela primeira brecha que encontram. Bolsonaro está acuado, como mostrou ao demitir o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva. E Bolsonaro acuado é ainda mais perigoso, porque ele não gosta de perder e tem cada vez menos a perder. Este é um homem, ninguém tem o direito de esquecer, que planejou explodir bombas em quartéis para pressionar por melhores salários. Explodir bombas diz muito sobre alguém. Mas é preciso também prestar atenção no porquê: para melhorar seu próprio soldo. Bolsonaro só age fundamentalmente por si mesmo. Sua vida é a única que importa, como está mais do que provado.
A ideia ridícula de que ele é controlável é isso mesmo: ridícula. E, em vários momentos, também oportunista, para alguns justificarem o injustificável, que é seguir compondo com Bolsonaro. O homem que governa o Brasil é bestial. Se move por apetites, por explosões, por delírios. Mas não é burro. Aliado às forças mais predatórias do Brasil, ele destruiu grande parte do arcabouço de direitos duramente conquistados, um trabalho iniciado por Michel Temer (MDB) antes dele. Também desmontou a legislação ambiental e enfraqueceu os órgãos de proteção, abrindo a Amazônia para exploração em níveis só superados pela ditadura civil-militar (1964-1985). Bolsonaro governa. E, não tenham dúvidas, seguirá governando enquanto não for impedido.
É necessário compreender que Bolsonaro é uma besta, sim, no sentido de sua bestialidade. Mas é uma besta inteligente e com projeto. Poucos governantes executaram com tanta rapidez seu projeto ao assumir o poder. Com exceção do discurso vazio da anticorrupção, Bolsonaro fez e faz exatamente o que anunciou na campanha eleitoral que faria. É por essa razão que isso que chamam “mercado” está sempre prestes “a perder a paciência” com ele, mas como demora... Demora porque sempre pode ganhar um pouco mais com Bolsonaro. Isso que chamam mercado inventou as regras que movem o Centrão. O que vale são os fins e os fins são os lucros privados, o povo que se exploda. Ou que morra na fila do hospital, como agora. O mercado é o Centrão com pedigree. Muito mais antigo e experiente que seu arremedo no Congresso.
Bolsonaro precisa ser impedido já, porque o que fará a seguir poderá ser muito pior e mais mortífero do que o que fez até agora. E precisa ser impedido também pelo óbvio: porque constitucionalmente alguém que cometeu os crimes de responsabilidade que ele cometeu não tem o direito legal e ético de permanecer na presidência. Ter impedido Dilma Rousseff por “pedaladas fiscais” e não fazer o impeachment de Bolsonaro “por falta de condições de fazer um impeachment agora” ou porque “o impeachment é um remédio muito amargo” é incompatível com qualquer projeto de democracia. É incompatível mesmo com uma democracia esfarrapada como a brasileira. E haverá consequências.
O que resta agora a Bolsonaro, cada vez mais isolado e acuado, é olhar para Donald Trump e aprender com os erros e acertos de seu ídolo. Ele seguirá tentando o autogolpe, mesmo com as Forças Armadas afirmando seu papel constitucional. Ele seguirá apostando naqueles que o mantiveram por quase 30 anos como deputado, sua base desde os tempos em que queria explodir os quartéis: as baixas patentes das Forças Armadas e, principalmente, as PMs dos Estados.
Bolsonaro se prepara muito antes de Trump. Se conseguirá ou não, é uma incógnita. Mas aqueles sentados sobre mais de 70 pedidos de impeachment e aqueles que ainda sustentam o Governo vão mesmo pagar para ver? É sério que vão seguir discutindo uma “solução de centro” para a eleição de 2022 e ignorar todos os crimes de responsabilidade cometidos por Bolsonaro? É sério que ainda não entenderam que ele sempre esteve fora de controle porque as instituições que deveria controlá-lo pelo respeito à Constituição abriram mão de fazê-lo?
É sério que vão se arriscar a reproduzir no Brasil, de forma muito mais violenta, a “insurreição” vivida pelo Congresso americano em 6 de janeiro de 2021, quando o Capitólio foi invadido por seguidores inflamados por Donald Trump? Vale lembrar do republicano Mike Pence, vice-presidente no Governo de Trump, e do republicano Mitch McConnell, líder do partido no Senado: deram a Trump tudo o que ele queria, acreditando-se a salvo, até descobrir em 6 de janeiro que também estavam ameaçados. Não se controla bestas.
No Brasil, porém, com uma democracia muito mais frágil, qualquer uma das aventuras perversas de Bolsonaro poderá ter consequências muito mais sangrentas. Posso estar errada, mas acredito que Trump não pretendia que houvesse mortes. Ele é um político inescrupuloso, um negociante desonesto, um mentiroso compulsivo e um showman que adora holofotes, mas não acho que seja um matador. Já Bolsonaro é notoriamente um defensor da violência como modo de agir, que defende o armamento da população e claramente goza com a dor do outro. Bolsonaro acredita no sangue e acredita em infligir dor. Perto de Bolsonaro, Trump é um garoto levado com topete esquisito. E Bolsonaro está se movendo.
Quantos brasileiras e brasileiros ainda precisam morrer?
O Brasil já exibe números de mortos por covid-19 comparáveis a grandes projetos de extermínio da história. E as covas continuam sendo abertas a uma média diária de quase 3.000 por dia. Grande parte dessas mortes poderiam ter sido evitadas se Bolsonaro e seu Governo tivessem combatido a covid-19. Isso não é uma opinião, é um fato comprovado por pesquisas sérias. O sistema público de saúde está colapsado. O sistema privado de saúde também está colapsado. Hoje não adianta nem mesmo ter dinheiro no Brasil. As pessoas estão morrendo na fila, o que também está comprovado. Hospitais privados de ponta estão racionando oxigênio e diluindo sedativos. E as mortes seguem multiplicando-se.
A pergunta às autoridades responsáveis, de todas as áreas, no âmbito público e no privado, é: quantas brasileiras e quantos brasileiros mais precisam morrer para que vocês façam seu dever? Muitos de nós ainda morreremos, mas eu garanto: muitos de nós viveremos para nomear a responsabilidade de cada um na história. Seus nomes serão grafados com a vergonha dos covardes e seus descendentes terão o sobrenome manchado de sangue. Não morreremos em silêncio. E os que sobreviverem dirão o nome de cada um de vocês, dia após dia.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum
Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro no vermelho
Pandemia e cenário econômico puxam avaliação do governo para baixo e assustam estrategistas do Palácio do Planalto, que também perde apoio do mercado
O presidente Jair Bolsonaro tenta se reposicionar no mercado. Quer reverter o grande desgaste que vem sofrendo com o agravamento da pandemia da covid-19 e busca se reaproximar dos grandes empresários do país, dos quais se afastou em decorrência do seu negacionismo em relação à crise sanitária. A pedalada fiscal desenhada no novo Orçamento da União, fruto de uma negociação entre o Palácio do Planalto e o Centrão, que guindou à Secretaria do Governo a ex-presidente da Comissão Mista de Orçamento deputada Flávia Arruda (PL-DF), também assustou os investidores. Para o mercado, o governo está no vermelho.
Hoje à noite, Bolsonaro participará de um jantar organizada pelo ministro das Comunicações, Fábio Faria, com 20 grandes líderes empresariais, tendo por anfitrião o empresário Washington Cinel, dono da Lide Segurança e magnata da terceirização, na antiga mansão de José Ermírio de Moraes, em São Paulo, arrematada em leilão por quase R$ 40 milhões. Entre os participantes confirmados estão André Esteves (BTG), Alberto Leite (F5 Securities), AlbertoSaraiva (Habib’s), Candido Pinheiro (Hapvida), Carlos Sanchez (EMS), Claudio Lottenberg (Hospital Albert Einstein), Flavio Rocha (Guararapes), Luiz Carlos Trabuco (Bradesco), João Camargo (grupo Alpha de comunicação), João Carlos Saad (Band), José Roberto Maciel (SBT), Ricardo Faria (Granja Faria) e Tutinha Carvalho (Jovem Pan). Não haverá gravações.
As recentes pesquisas assustaram os estrategistas do Palácio do Planalto. A divulgada pela XP/Ipespe, na segunda-feira, mostrou o saldo da troca de ministros do governo: cresceu a avaliação negativa (agora, 48%) e a positiva ficou abaixo dos 30 pontos (27%) pela primeira vez desde julho do ano passado. Em janeiro, empatavam as avaliações positivas e as negativas, ambas com 37%. A desaprovação chegou a 60%, enquanto a aprovação foi de 33%. Entretanto a troca de ministros da Saúde teve pequeno efeito positivo para o governo: a avaliação positiva (ótima/boa) foi de 18% para 21%, enquanto a negativa recuou de 61% a 58%.
Auxílio e vacinas
A tentativa de reaproximação com o meio empresarial é fruto do cenário econômico, que continua puxando o governo para baixo: 65% afirmam que está no “caminho errado”, enquanto 23% dizem estar no “caminho certo”. A avaliação negativa passou de 36% para 42%. A aposta do governo é o efeito do auxílio emergencial, que pode ajudar a melhorar a imagem de Bolsonaro, uma vez que a medida é aprovada por 67% dos entrevistados e desaprovada por 29%, segundo a pesquisa. O problema de Bolsonaro é o modo de governar: 15% dos pesquisados querem que seja mantido, enquanto 27% dizem que precisa mudar alguma coisa e 53% condenam completamente o comportamento do presidente da República.
Esse cenário explica a guinada de Bolsonaro em relação às vacinas, que passou a ser o centro da atuação do governo, ainda mais porque a Fiocruz, por falta de insumos, ficou muito para trás na corrida com o Instituto Butantan, responsável pela produção de mais de 80% dos imunizantes aplicados no país. O agravamento da pandemia, principalmente em São Paulo, não permitiu que isso alavanque nacionalmente o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), mas está evidente que a conta da crise sanitária caiu mesmo no colo de Bolsonaro. Essa vantagem estratégica de Doria na “guerra das vacinas” dificilmente será revertida, a não ser que o presidente consiga importá-las. Não foi à toa que ligou para o presidente russo, Vladimir Putin, ontem, para acertar a compra do imunizante russo Sputnik V, que está sendo produzido no Brasil por laboratórios privados e exportado para a América Latina.
Bolsonaro aumentou seu controle sobre os órgãos de coerção do Estado. A posse dos seis novos ministros do governo foi realizada, ontem, em cerimônia discreta, sem a presença de convidados e da imprensa. O novo ministro da Justiça, Anderson Torres, trocou toda a cúpula policial: Rolando Souza foi substituído na Direção-Geral da Polícia Federal pelo delegado Paulo Maiurino; o novo chefe da Polícia Rodoviária Federal será o inspetor Silvinei Vasques, no lugar de Eduardo Aggio.
Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro e o mito de Sísifo
Como disse Camus, “sempre houve homens para defender os direitos do irracional”. O problema é quando se trata do presidente da República
O consagrado escritor francês Albert Camus foi um existencialista, para quem o homem vive em busca de sua essência, do seu sentido, e encontra um mundo desconexo, ininteligível, guiado por religiões e ideologias políticas. Num de seus ensaios filosóficos, Camus classifica Sísifo, um dos grandes personagens da mitologia grega, como um herói absurdo. “Tanto por causa de suas paixões como por seu tormento. Seu desprezo pelos deuses, seu ódio à morte e sua paixão pela vida lhe valeram esse suplício indizível no qual todo seu ser se empenha em não terminar coisa alguma. É o preço que se paga pelas paixões desta terra”, resumiu.
Os deuses condenaram Sísifo a rolar incessantemente uma rocha até o cume de uma montanha, de onde a pedra se precipitava por seu próprio peso. “Imaginaram que não haveria punição mais terrível que o trabalho inútil e sem esperança”, afirma Camus, que publicou O Mito de Sísifo em 1942. Nessa obra, destaca o mundo imerso em irracionalida- des. “Ou não somos livres, e o responsá- vel pelo mal é Deus todo-poderoso, ou somos livres e responsáveis, mas Deus não é todo-poderoso”, questionava.
Àquela época, em plena Segunda Guerra Mundial, o mundo parecia mesmo absurdo: a guerra, a ocupação da França, o triunfo aparente da violência e da injustiça, tudo se opunha ao humanismo e à ideia de civilização. O trabalho de Sísifo, ao empurrar incessantemente uma pedra até o alto da montanha, até ela tornar a cair, é uma analogia perfeita com o esforço empreendido por profissionais da saúde, prefeitos e governadores para combater a pandemia do novo coronavírus: a covid-19. Entretanto, esse não é um trabalho inútil e sem esperança, como no caso do mito grego. É uma batalha que acabará sendo ganha, apesar de tudo.
Como disse Camus, porém, “sempre houve homens para defender os direitos do irracional”. O problema é quando se trata de um governante, como o presidente Jair Bolsonaro, que combate as medidas de isolamento social e mobiliza seus aliados para sabotar os esforços dramáticos que estão sendo realizados para evitar que a pandemia mantenha sua escalada, que pode chegar a mais de 500 mil mortos em julho, segundo estimativas dos principais centros de estudos epidemiológicos do mundo.
Liminares
A polêmica do momento é a liminar do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Kassio Marques, o mais novo da Corte, indicado por Bolsonaro, que autoriza o funcionamento de templos religiosos durante a pandemia, mesmo contrariando as medidas de restrição de circulação de pessoas e aglomerações adotadas por prefeitos e governadores de cidades e estados nos quais a pandemia saiu do controle. Apesar de o Sistema Único de Saúde (SUS) estar entrando em colapso, por falta de leitos, respiradores e insumos para atender tantos infectados graves, o ministro acolheu pedido da Associação Nacional de Juristas Evangélicos, apresentada em junho do ano passado, para libertar os cultos.
Houve reação entre seus colegas do Supremo. Além das críticas públicas do decano Marco Aurélio Mello, ontem, o ministro do STF Gilmar Mendes, ao negar uma ação do PSD, manteve o decreto do governador de São Paulo, João Doria (PSDB), que restringiu as atividades religiosas de igrejas no estado. Contrariou a decisão de Kassio Marques, que havia liberado celebrações presenciais em todo o país. À tarde, o procurador-geral da República, Augusto Aras, aliado de Bolsonaro e cotado para a vaga do ministro Marco Aurélio Mello, que está prestes a se aposentar, protocolou no Supremo um pedido para retirar de Gilmar Mendes e transferir para Kassio Marques a ação do PSD contra a proibição de cultos e missas coletivas em São Paulo, porque é relator de uma ação mais antiga: a do PSD é de março deste ano.
O presidente do STF, ministro Luiz Fux, decidiu pôr o assunto em votação amanhã, na reunião plenária da Corte. A decisão de Kassio Marques, a pretexto de garantir a liberdade religiosa, está em contradição com a jurisprudência do Supremo, que atribuiu aos estados e municípios autoridade para fixar medidas restritivas de enfrentamento da pandemia, inclusi- ve, o fechamento de templos e igrejas.
Cristovam Buarque: Olhe a responsabilidade, gente
Sem o PT, pode não chegar ao segundo turno, só o PT, pode não ganhar no segundo
Nesta semana, a reforma ministerial mostrou que Bolsonaro já está trabalhando para o pós-segundo turno, enquanto os líderes e partidos de oposição continuam no pré-primeiro. Com o novo Ministro da Defesa, ele deseja controlar as Forças Armadas; com o novo Ministro da Justiça busca o controle sobre as polícias estaduais; com a liberação da compra e porte de armas, equipa sua milícia paralela. Com Forças Armadas, polícias e milícias, Bolsonaro passa a ter forças armadas nas ruas, para contestar derrota por pequena margem de eleitores, caso não consiga argumento para contestar o resultado na Justiça Eleitoral.
Enquanto isto, as oposições continuam divididas entre os possíveis candidatos que depois disputarão entre eles qual vai ao segundo turno. Estes embates deixam marcas que poderão levar outra vez a abstenções e votos nulos no segundo turno, como aconteceu em 2018. Difícil imaginar os eleitores do PT votando em Ciro ou outro candidato, e eleitores do Ciro e de outros candidatos votando no Lula ou outro do PT, salvo se fosse construída uma aliança ampla de todos desde o primeiro turno.
Felizmente, tudo indica que o exército não está aceitando o papel de milícia do Bolsonaro, e alguns dos candidatos pela oposição assinaram um manifesto conjunto em defesa da democracia. Mas todos que percebem as consequências da reeleição do atual governo sobre o futuro do Brasil, deveriam se encontrar em um debate franco sobre qual deles tem mais chance de vencer a eleição; também quais as qualidades, erros e méritos que se reconhecem; em que princípios estariam unidos no governo seguinte. Esta reunião poderia ter a participação de entidades da sociedade civil, como ocorreu em momentos decisivos da história. Poderia inclusive ser presidida por uma ou mais destas entidades.
Pena que a política é mais dominada pela arrogância do otimismo do que pela consciência dos riscos. Cada candidato já se considera com um pé no segundo turno, e tem confiança que unirá os eleitores dos que ficaram para trás. Imaginaram isto em 2018, mas nem a boa qualidade do candidato do PT foi suficiente para evitar a rejeição que o partido tinha. Pode ser diferente agora, se o candidato for Lula e o PT tiver rejeição menor, sobretudo depois da anulação Lava Jato de Curitiba; ainda mais com o reconhecimento oficial de que houve parcialidade do juiz contra Lula. Mesmo assim, não é claro se ele e o PT teriam menos rejeição. É possível que mesmo sabendo o que Bolsonaro representa, muitos eleitores ficarão em casa, ou viajarão para não votar, ou votarão nulo, induzidos pela ideia divulgada pela própria oposição, de “nem Bolsonaro, nem PT”. Possível também que eleitores do PT façam agora o que foi feito com Haddad em 2018, anulando o voto e se abstendo.
Estes líderes precisam entender que, divididos, dificilmente qualquer deles tomará o lugar do candidato do PT, mas o PT deve entender que, solitário, dificilmente ganhará no segundo turno se não tiver o apoio dos outros candidatos e partidos. Sem o PT, pode não chegar ao segundo turno, só o PT, pode não ganhar no segundo.
Os candidatos e líderes de partidos que se opõem à estratégia da reeleição de Bolsonaro têm diante deles a imensa responsabilidade de não falharem por arrogância, por vaidade, preconceito. Não podem neste momento colocar seus partidos e suas propostas na frente do interesse maior da democracia e do futuro do país. É preciso unidade com um candidato de baixa rejeição que leve a uma vitória expressiva, cale os fanáticos e desarme as milícias, oficiais ou não.
*Cristovam Buarque foi senador, governador e ministro
Luiz Carlos Azedo: A Páscoa na pandemia
O presidente da República desperdiça seu ativo mais valioso: o tempo do mandato. É impressionante a falta de foco e o empenho em desconstruir certos consensos
Antes de mais nada, feliz Páscoa para todos. É uma data ecumênica por sua própria origem, pois foi ressignificada pelos cristãos como um momento de renovação das esperanças. A origem da Páscoa é o Pesach, a comemoração judaica da libertação dos hebreus da escravidão do Egito. Narrada nos Pentateucos, os primeiros cinco livros da Bíblia, em hebraico, a palavra significa “passagem” e faz menção ao anjo da morte no Egito — a décima praga, conforme a narrativa bíblica. A festa foi reinventada pelos cristãos, passando a se remeter à crucificação e à ressurreição de Cristo.
“E, se Cristo não ressuscitou, logo logo é vã a nossa pregação, e também é vã a vossa fé”, diz o apóstolo Paulo, em I Coríntios 15:14. Na fé católica, foi por meio da ressurreição que a humanidade teve a redenção de seus pecados. Jesus Cristo sacrificou-se para redimir o povo e dar-lhe uma nova chance de salvação. No seu sacrifício, o poder de Deus teria se manifestado.
Estamos encerrando a Semana Santa sem procissões nem missas campais, porém, plena de simbolismo. O Brasil vive uma das maiores tragédias de sua história, com uma média de mais de 3 mil mortos por dia nas últimas semanas, em razão do descontrole da pandemia da covid-19. Existe uma energia humana nos subterrâneos dessa tragédia social que, em algum momento, transbordará para as ruas. Essa resiliência, que seria traduzida nas cerimônias religiosas tradicionais, de alguma forma, acabará se transformando em manifestação política.
Além do agravamento da crise sanitária, também há desorganização da economia. Não estamos falando da redução das atividades econômicas em razão do distanciamento social, mas da desestruturação das contas públicas e da falta de um projeto de retomada do crescimento econômico. É um problema anterior à pandemia, mas que se agravou com ela, principalmente agora, com a aprovação de um Orçamento da União completamente fora da realidade, que agrava as dificuldades já existentes e cria novos problemas, contratados para o pós-pandemia.
Perda de tempo
Há um estresse político criado por arroubos autoritários e tentativas de ruptura do pacto federativo da Constituição de 1988. À época da Constituinte, como tudo estava em discussão, havia moedas de troca suficientes para construção dos acordos entre União, estados e municípios. Agora, uma das dificuldades para aprovação da reforma tributária, por exemplo, é a escassez dessas moedas. O xis da questão acaba sendo sempre a polêmica sobre a arrecadação do ICMS na origem ou no destino das mercadorias, além dos termos da partilha das receitas dos impostos entre os entes federados.
O presidente da República desperdiça seu ativo mais valioso: o tempo do mandato. É impressionante como a falta de foco e o empenho em desconstruir certos consensos políticos — na política externa e na Defesa, no meio ambiente e na segurança pública, no respeito aos direitos humanos e às minorias —, desloca a ação do governo dos verdadeiros problemas do nosso desenvolvimento. A janela de oportunidade das reformas, o primeiro ano de mandato, foi desperdiçada. Agora, em plena pandemia, antecipou-se a disputa eleitoral, porque Bolsonaro conseguiu fazer com que sua reeleição subisse no telhado.
A expectativa de poder está se deslocando de Bolsonaro para a oposição. Mesmo com os desgastes causados pela Lava-Jato, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) se coloca na arena em vantagem, ao comparar suas realizações de governo com as de Bolsonaro. A última proeza do presidente da República foi unir os demais pré-candidatos, no episódio de demissão do general Fernando Azevedo do Ministério da Defesa e dos comandantes da Marinha, do Exército e da Aeronáutica. O governador paulista João Doria (PSDB), o ex-governador cearense Ciro Gomes (PDT), o ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta (DEM), o empresário João Amoedo (Novo) e o comunicador Luciano Huck (sem partido) mandaram o recado: Bolsonaro, não! Podem não se unir no primeiro turno, mas estão contra a reeleição.
Luiz Carlos Azedo: Como no quartel de Abrantes
A crise militar foi pura perda de tempo, tirou o foco do principal problema do país: a pandemia da covid-19, que ontem registrou novo recorde, 3.869 óbitos em 24 horas
A frase “tudo como dantes no quartel de Abrantes” é uma herança lusitana. Chegou ao Brasil em 1808, a bordo dos navios que trouxeram a família real e sua corte para o Rio de Janeiro. Surgiu durante a invasão de Napoleão Bonaparte à Península Ibérica. Portugal havia se oposto ao Bloqueio Continental, que obrigava o fechamento dos seus portos a qualquer navio inglês. Em 1807, o general Jean Androche Junot, braço-direito de Napoleão, atravessou a fronteira com a Espanha e ocupou Abrantes, a 152 quilômetros de Lisboa, na margem do rio Tejo. Lá, instalou seu quartel-general e, meses depois, se fez nomear duque d’Abrantes.
Com a fuga do príncipe-regente Dom João VI para o Brasil, o general francês praticamente não enfrentou oposição. Isso despertou a ironia popular, registrada por Orlando Neves no Dicionário de Expressões Correntes (Editorial Notícias, Lisboa): “‘Tudo como dantes, quartel-general em Abrantes”. Esse é o saldo da crise militar provocada pela demissão do ex-ministro da Defesa Fernando Azevedo e dos comandantes militares do Exército, Edson Leal Pujol; da Marinha, Ilques Batista; e da Aeronáutica, tenente- brigadeiro Antônio Carlos Bermudez.
Ontem, o presidente Jair Bolsonaro escolheu os novos comandantes militares, apresentados pelo novo ministro da Defesa, general Braga Netto: Exército, general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira; Marinha, almirante de esquadra Almir Garnier Santos; e Aeronáutica, tenente- brigadeiro do ar Carlos Baptista Junior. A péssima repercussão da forma como Azevedo e os comandantes militares foram despachados para casa levou a uma solução de compromisso: Bolsonaro aceitou o nome do general Paulo Sérgio, autor da entrevista ao Correio Braziliense, de domingo passado, que tanto o desagradou, mas levou a melhor na Marinha e na Aeronáutica, cujos comandantes serão mais afinados com o Palácio do Planalto do que os antecessores.
O novo ministro da Defesa, general Braga Netto, saiu do episódio desgastado com seus colegas. Foi a primeira vez, desde 1985, que os comandantes das três Forças Armadas deixaram o cargo ao mesmo tempo sem ser em período de troca de governo. A escolha do general Paulo Sérgio foi uma imposição do Alto-Comando do Exército. Com 62 anos, cearense de Iguatu, é general do Exército desde março de 2018. Serviu em unidades de infantaria em João Pessoa (PB), Garanhuns (PE), Belém (PA) e Juiz de Fora (MG). Antes de chefiar o Departamento de Pessoal do Exército, foi comandante militar do Norte, em Belém (PA). Ao contrário de Pujol, Paulo Sérgio mantém ativa presença nas redes sociais.
Perda de tempo
Almir Garnier Santos, 60 anos, é almi- rante de esquadra desde novembro de 2018. Carioca de Cascadura (RJ), é especialista em guerra eletrônica e logística naval. Tem traquejo político, tendo assessorado os ex-ministros da Defesa Celso Amorim, Jaques Wagner, Aldo Rebelo e Raul Jungmann. Carlos de Almeida Baptista Júnior é tenente-brigadeiro desde março de 2018. Carioca, é filho do ex- comandante da Aeronáutica Carlos de Almeida Baptista. Serviu como adido adjunto de Defesa e Aeronáutica nos Estados Unidos e foi comandante da Base Aérea de Fortaleza. Em Brasília, foi assessor de Orçamento da Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência.
A crise militar foi pura perda de tempo, tirou o foco do governo do principal problema do país: a pandemia da covid- 19, que ontem registrou novo recorde: 3.869 óbitos em 24 horas. É a quinta vez que o país registra mais de 3 mil vítimas por dia. Enquanto isso, Bolsonaro continua combatendo prefeitos e governadores que adotam medidas de distanciamento social mais rígidas. Sabota os esforços do novo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, e do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-RJ).
Em tempo: Junot marchou tranquilamente para Lisboa. Na Praça do Rossio, em janeiro de 1808, hasteou a bandeira francesa, declarou extinta a Casa Real de Bragança e dissolveu o Exército português.