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Marcus Pestana: Legados e passivos herdados da pandemia
Temos vivido momentos tristes, tensos e angustiantes. Estamos nos aproximando de 370 mil vidas brasileiras perdidas. O desemprego bate à porta do trabalhador. A fome e a miséria se agravam no cotidiano da população que vive em extrema pobreza.
Talvez pudéssemos encontrar conforto no texto do escritor e dramaturgo Caio Fernando Abreu: “Nada dura para sempre, nem as dores, nem as alegrias. Tudo é aprendizado. Tudo na vida se supera”. Cometemos muitos erros. E como disse Freud: “De erro em erro descobre-se a verdade inteira”. Confúcio ensinou: “Há três métodos para ganhar sabedoria: primeiro, por reflexão, que é o mais nobre; segundo, por imitação, que é o mais simples; e terceiro por experiência, que é o mais amargo”.
Na saúde teremos como legado a valorização do sistema nacional de saúde. O SUS teve uma ação heroica para superar seus gargalos e vazios assistenciais. A saúde suplementar teve uma ação solidária e eficiente aliviando tensões adicionais sobre o sistema público. Os profissionais de saúde foram testados ao limite. É o ambiente propício para as mudanças necessárias. O SUS demanda de todos nós reforço orçamentário, clareamento do padrão de integralidade que queremos oferecer e uma nitidez maior das atribuições de cada ator no pacto federativo setorial, para que não se repitam os conflitos que assistimos.
Na área educacional podemos enfrentar um passivo gravíssimo com o desestímulo às crianças e jovens mais pobres pela interrupção do processo pedagógico ocasionado pela pandemia. O Brasil, que universalizou o acesso ao ensino fundamental e tem uma luta inconclusa em relação aos padrões de qualidade, pode agravar o abismo social e as iniquidades, cancelando o horizonte de esperança que os mais pobres depositam na educação de seus filhos, para prepara-los para a cidadania e o mercado de trabalho.
No mundo do trabalho, a pandemia revelou um verdadeiro Raio X. Descobrimos os invisíveis. Revelamos que os nossos cadastros são falhos. Talvez seja a chance de amadurecermos um cadastro único eficaz e a identidade digital única dos cidadãos brasileiros. Formas alternativas e flexíveis de relações de trabalho foram reveladas. Entretanto, apenas uma minoria pode desempenhar suas funções “on line”. O mundo pós-moderno diferenciou trabalho e emprego. É preciso repensar o mundo do trabalho acossado pela introdução de inovações radicais. E a partir daí, reorganizar nosso sistema de seguridade social, pensado para uma sociedade industrial do século passado.
As novas tecnologias possibilitam avanços como a Teleducação, a Tele Saúde, novos serviços digitais, públicos e privados. No momento em que se discute a introdução do 5G é fundamental estar atento à questão da exclusão digital e ter como objetivo a universalização do acesso à serviços de qualidade.
Aprendemos, na pandemia, que o orçamento público não é elástico. O “Orçamento de Guerra” de 2020 que bancou despesas de saúde, auxílio emergencial, apoio às empresas foi à custa de um forte endividamento. E, o imbróglio do orçamento de 2021 revelou nossos limites e impõe uma radical mudança estrutural na dinâmica rígida das despesas públicas.
Mas, o maior legado da pandemia é se a partir dela construirmos uma sociedade mais solidária e generosa. Não é a única opção. Escolher o futuro que queremos está em nossas mãos.
*Marcus Pestana, ex-deputado federal (PSDB-MG)
Luiz Carlos Azedo: O favoritismo de Lula
Com a CPI da Covid em funcionamento no Senado, o custo político dos desatinos de Bolsonaro na pandemia e da incompetência dos militares na Saúde será altíssimo
O Supremo Tribunal Federal (STF) confirmou, ontem, a anulação de todas as condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por 8 a 3, com base no princípio do “juiz natural”, pedra basilar do chamado devido processo legal, invocado pela defesa do petista desde quando o processo começou a andar na 13a Vara Federal de Curitiba, sob a batuta do então juiz Sergio Moro. Quando a revisão do caso do ex-presidente da República começou a ser ventilada nos bastidores do Supremo, o presidente Jair Bolsonaro imaginava que Lula como adversário seria meia reeleição garantida, mas a vida está mostrando, com a pandemia da covid-19, que a roda da Fortuna girou em favor do petista.
Como já era de se esperar, a reação de Bolsonaro e seus aliados será na direção de contestar a decisão do Supremo e desacreditar os integrantes da Corte, além de intensificar a narrativa de que houve fraude nas eleições passadas e de que o voto eletrônico não é seguro. Os propósitos golpistas dessa narrativa são conhecidos, porém não têm encontrado eco nos meios políticos, nem mesmo entre os aliados do Centrão, e também nas Forças Armadas, apesar das insatisfações com a decisão. A ideia de que a polarização com Lula seria a chave da vitórianas eleições de 2022 está furada.
A decisão do Supremo anulou as condenações de Lula por um aspecto formal, o foro de seu julgamento deveria ser o Distrito Federal, e não Curitiba. Isso não significa que Lula tenha sido inocentado, porque o processo terá que ser reiniciado (há controvérsias sobre a anulação de provas). Entretanto a narrativa de que Lula foi injustiçado por Sergio Moro é cada vez mais robusta, pela revelação de suas conversas com os procuradores da força-tarefa da Lava-Jato e, também, por causa da decisão da Segunda Turma que aprovou a suspeição do ex-juiz na condução do processo, por 3 a 2. Esse é outro assunto que terá de ser examinado pelo plenário do Supremo, podendo ter sérias consequências para o ex-magistrado, um pré-candidato à Presidência ainda encabulado.
Mudança de cenário
A presença de Lula na disputa mudou completamente o cenário eleitoral de 2022. A expectativa de poder que a possibilidade de reeleição garante aos ocupantes do Palácio do Planalto, no caso de Bolsonaro, está sendo volatilizada pela pandemia da covid-19, a recessão econômica e o mau desempenho do governo federal em muitas frentes. As políticas públicas que contavam com certo consenso nacional e reconhecimento internacional foram substituídas pela improvisação, pelo obscurantismo e pela incompetência administrativa, além de um viés ideológico reacionário. Isso correu na política externa, no meio ambiente, nos direitos humanos, na cultura e na educação, mas é na saúde pública que o desastre pôs no telhado a reeleição de Bolsonaro em 2022.
Cada dia que passa, as consequências da má gestão do ex- ministro da Saúde Eduardo Pazuello mostram-se mais graves, com o agravante de que o novo ministro, Marcelo Queiroga, embora tenha flexibilizado a narrativa governista, está capotando na área administrativa da pasta. Hoje, é o principal responsável pelo colapso do fornecimento de insumos para tratamento dos casos graves da doença, principalmente os kits de intubação. Como o Ministério da Saúde requisitou toda a produção nacional e não consegue atender à demanda, hospitais de vários estados estão entrando em colapso. Pacientes estão sendo amarrados nas UTIs para não retirarem os tubos de respiração ou deixando de ser intubados, por falta de analgésicos adequados e outros recursos, o que acaba aumentando o número de óbitos.
Com a CPI da Covid em funcionamento no Senado, o custo político dos desatinos de Bolsonaro na pandemia e da incompetência dos militares na Saúde será altíssimo e se prolongará para além da pandemia, por causa do grande número de mortos. Isso significa que Bolsonaro está derrotado e Lula com o caneco na mão? Não, ninguém ganha eleições de véspera. Lula já foi favorito antes e perdeu a eleição, em 1994, para Fernando Henrique Cardoso (PSDB).
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A decisão do Supremo terá efeito catalisador no processo político, pode contribuir para transferir expectativas de poder do presidente Jair Bolsonaro para a oposição
A maioria do Supremo Tribunal Federal (STF) resolveu levar a plenário, hoje, a anulação das condenações do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pela 13a Vara Criminal de Curitiba, ou seja, pelo ex-juiz Sergio Moro, a pedido do relator da Operação Lava-Jato, ministro Edson Fachin, autor da liminar que livrou o petista da inelegibilidade. Fachin entendeu que o foro natural do processo deveria ser o Distrito Federal, por não se tratar de processo diretamente vinculado ao escândalo da Petrobras. Com a decisão de ontem do Supremo, por 9 a 2, tanto Lula quanto Moro voltam ao centro do noticiário, como possíveis adversários do presidente Jair Bolsonaro, ambos com muita força.
Esse julgamento no Supremo terá um efeito catalisador no processo político, contribuindo para transferir expectativas de poder de Bolsonaro, candidato à reeleição, para a oposição. A Lava-Jato ainda tem um grande apelo popular e é a principal face de desgaste
da candidatura de Lula à Presidência, mas, sem o julgamento, o petista não seria candidato. Entretanto, Bolsonaro se descolou da bandeira da ética por causa do escândalo das “rachadinhas” da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro e de suas manobras para proteger o filho mais velho, o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), um dos principais investigados no caso.
Moro, principal responsável pela condenação de Lula, também sofre desgastes. É acusado de ser parcial e ter usado recursos inadmissíveis durante a investigação para condenar Lula e afastá-lo da disputa eleitoral de 2018, beneficiando Bolsonaro. Ao aceitar o convite para ser ministro da Justiça do atual governo, de certa forma, o ex-juiz corroborou as acusações da defesa de Lula. Seu estridente rompimento com Bolsonaro, acusando-o de tentar usar a Polícia Federal em benefício próprio, manteve a bandeira da ética nas suas mãos, mas sua atuação como magistrado acabou fragilizada por gravações feitas por hackers de suas conversas com integrantes do Ministério Público que comandavam as investigações, desnudando sua parcialidade.
Por isso mesmo, o julgamento do mérito da liminar de Fachin, que anulou as condenações de Lula, abrirá espaço, também, para a discussão sobre a atuação de Moro, cuja suspeição foi aprovada pela Segunda Turma do STF. Não sem razão, o julgamento terá repercussão eleitoral, tanto do ponto de vista legal — Lula estará livre ou não para concorrer às eleições — quanto midiático. O Supremo pode jogar o petista para cima nas pesquisas, mas também alavancará Moro, que passa de algoz a vítima, como paladino da ética e dos bons costumes, a não ser que o ex- juiz seja punido severamente e impedido de concorrer.
Decantação
Quem mais perde com o julgamento é Bolsonaro, que tenta fazer do limão uma limonada. Ao atacar o Supremo e a decisão de liberar Lula para disputar as eleições, o presidente da República mantém em sua esfera de influência os setores mais radicalizados do antipetismo. A aposta do chefe do Planalto é que esse sentimento garanta o seu lugar no segundo turno das eleições, mas não é bem assim. A queda dos seus índices de aprovação em razão da crise sanitária e da recessão e a perda da bandeira da ética podem abrir espaço para uma candidatura robusta do chamado polo democrático, capaz de capturar o eleitor mais conservador, porém, insatisfeito com o desempenho do governo e de Bolsonaro.
O julgamento de Lula será o primeiro grande momento de decantação do processo eleitoral. Outro momento será a decisão do apresentador Luciano Huck (sem partido) sobre a proposta de renovação de contrato com a TV Globo, como substituto do Faustão nas tardes de domingo. O terceiro grande lance no xadrez eleitoral é a prévia do PSDB, marcada para outubro, na qual o partido escolherá seu candidato. Disputam a vaga os governadores de São Paulo, João Doria, e do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite. Restarão ainda as definições do DEM, em relação ao ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta e do próprio Moro, que não se comporta como candidato.
Maria Cristina Fernandes: Contra CPI, Bolsonaro ameaça sócios
São 90 dias regulamentares, mas a única certeza sobre a CPI da Pandemia é de que ninguém sabe quando esta termina. Ainda não está composta, mas já produziu, sobre o Senado, o ajuntamento de duas de suas três forças. Os que querem o cargo do presidente Jair Bolsonaro uniram-se àqueles que se contentam com sua caneta. É a junção dessas duas forças que esticará a CPI até 2022. A pauta vai muito além da incúria bolsonarista na pandemia ou de sua consequência para os Estados. O que estará em jogo é a ocupação do governo, do Judiciário e do próprio Senado.
A CPI já começou a se definir pelo parto. A anexação das duas propostas foi resultado do jogo duplo que marcou a gestão do ex-presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP), colocou o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) no cargo e continua a operar no varejo da sustentação bolsonarista na Casa, a um alto custo para o erário, como se viu no relatório do Orçamento do senador Márcio Bittar (MDB-AC).
Com os governadores e prefeitos na roda, ainda que de forma mitigada, os aliados de Bolsonaro que hoje comandam o Senado lhe deram a chance de barganhar o avanço da investigação sobre seu governo. Foi esta a porta que se abriu com a possibilidade de serem investigados não apenas o labirinto das verbas federais nos Estados como a alocação de recursos das emendas parlamentares nos municípios. Ambas passam pelas planilhas da Secretaria de Governo, ocupada até outro dia pelo ministro da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos.
A CPI ainda avançará sobre as brasas que restaram nas relações entre Ramos e o ex-ministro da Saúde, Eduardo Pazuello. Ontem o Ministério Público Federal no Amazonas adiantou-se à CPI e denunciou Pazuello por improbidade administrativa decorrente da crise de oxigênio naquele Estado. O processo correrá em primeira instância e pode levar à primeira condenação dos generais do governo. Com um adendo: Pazuello ainda está na ativa.
Com este caldeirão sob fervura, o presidente jogou com a ameaça de implodir a sociedade nada anônima em que se transformou seu governo. O sucesso de sua estratégia dependerá não apenas da composição da CPI mas dos senadores que virão a ocupar a relatoria e a presidência. A meta é reproduzir a CPI dos Correios, tida até hoje como aquela que produziu mais resultados, mas o cenário parece interditado pela força governista na Casa.
Aberta no primeiro mandato do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, esta CPI entregou a relatoria à oposição. Depois daquela comissão, os parlamentares descobriram meios para assar o porco sem queimar a cabana e os inquéritos mais efetivos passaram para o Ministério Público. A dupla Pacheco-Alcolumbre, estreante na matéria, tenta controlar a labareda mas, uma vez instalada, é a CPI quem manda.
No voto de ontem, respaldado por nove de seus pares, o ministro Luis Roberto Barroso sugeriu que as manobras protelatórias estarão sob a vigilância do Supremo: não cabe ao Senado definir se e quando a CPI será instalada, apenas como procederá, se por videoconferência, presencialmente ou por ambos os meios.
É o MDB o partido que hoje mais se arvora a tomar assento num cargo de comando da CPI e, a partir dele, ganhar terreno. Em 36 anos desde a redemocratização, o MDB mandou no Senado ao longo de 30. Perdeu para o DEM em 2019, graças a uma aliança de Alcolumbre com o grupo lavajatista do Senado. Dois desse grupo são os primeiros signatários das CPIs fundidas na Casa. O senador Eduardo Girão (Podemos-CE), autor do requerimento de ampliação do escopo, continua a gravitar sob a mesma órbita, e o senador Randolfe Rodrigues (Psol-AP) aliançou-se com o MDB.
O senador Renan Calheiros (MDB-AL) foi convidado ao Palácio do Planalto na próxima semana numa operação que visa a tornar palatável, para o presidente, sua escolha para um dos cargos da CPI. A ambição emedebista não se restringe aos domínios do DEM no Senado, mas também sobre o governo.
Os ministros políticos da gestão Bolsonaro são ou foram deputados: Flávia Arruda (Secretaria de Governo), João Roma (Cidadania), Onyx Lorenzoni (Secretaria Geral da Presidência), Teresa Cristina (Agricultura) e Fabio Faria (Comunicações). A ambição primeira dos senadores é o Ministério das Minas e Energia, foco histórico de disputa entre MDB e DEM. Contra todos, Bolsonaro reforça a ala ideológica do governo. Não apenas tirou o almirante Flávio Rocha da Secretaria de Comunicação, como mantém o ex-ministro Ernesto Araújo como entreposto entre si e o novo chanceler, Carlos França.
O Senado, porém, também ganhará força na queda de braço que hoje antagoniza a Câmara e o ministro da Economia, Paulo Guedes. A instalação da CPI eleva o preço de quaisquer das decisões de Bolsonaro sobre o Orçamento. As ambições no Senado estendem-se ainda à vaga do ministro Marco Aurélio Mello no Supremo Tribunal Federal. O passado lavajatista do preferido de Bolsonaro, o advogado-geral da União André Mendonça, o condena no Senado.
A operação, porém, tem três obstáculos. O primeiro é que o posto de governista-mor de Alagoas está hoje ocupado pelo presidente da Câmara, Arthur Lira (PP-AL). O segundo é que a ampliação do escopo colocou todos os governadores sob a mira da CPI, entre os quais o de Alagoas, Renan Filho (MDB). E, finalmente, o terceiro é que a nomeação de Renan para um cargo na CPI deixaria em maus lençóis dois de seus correligionários, os líderes do governo no Senado, Fernando Bezerra (PE) e no Congresso, Eduardo Gomes (TO).
Quem quer que ambicione o cargo de relator ou presidente na CPI se transformará num pivô do cenário de 2022. A dominância do MDB fortaleceria o partido na disputa pela vice do PT. Em meio às disputas intestinas, um presidente menos imiscuído, como o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE), seria uma solução tão desejável quanto improvável.
No pior das hipóteses, às pilhas de cadáveres se juntarão os áudios de whatsapp, comuns entre integrantes deste governo, que a CPI não custará a obter. É a espetacularização da tragédia que vai entrar no ar. Ambas poderiam ter sido evitadas se a apuração das responsabilidades tivesse começado junto com a incúria.
Benito Salomão: Novas perspectivas para a taxa de juros
Na última reunião do COPOM (Comitê de Política Monetária) o Banco Central (BC) decidiu fixar a meta da taxa Selic em 2,75% ao ano, um movimento de elevação da referida taxa em 0,75 pontos percentuais. Tal elevação veio em boa hora, uma vez que a inflação está caminhando rapidamente para o dobro da meta fixada para 2021 cujo centro é de 3,75% ao ano. Os modelos que estimei preveem que a inflação atinja as proximidades de 7,25% em maio, ou talvez junho. Se o BC ignorasse este dado e mantivesse a Selic nos 2% de antes, chegaríamos no meio do ano com uma taxa real de juros (descontada a inflação) negativa de aproximadamente -5,25% (Ver Gráfico 1).
Gráfico 1 – Taxa Selic, Taxa de Inflação e Taxa Real de Juros no Brasil entre 2011 e 2020 (Mensal em % ao ano)
Isto seria um completo desequilíbrio, nem países desenvolvidos como Estados Unidos e Europa Ocidental têm taxas reais de juros negativas neste patamar. Em boa parte destes países que estão em situação de zero lower bound, isto é, taxas nominais de juros próximas de 0% ao ano, tem também inflação acumulada em 12 meses variando entre 1% e 1,5% ao ano. Isto os confeririam a estes países, taxas reais de juros próximas a -1% ao ano. Portanto, o Brasil apresenta no curtíssimo prazo, mesmo diante da elevação da Selic anunciada pelo COPOM, taxas reais de juros menores do que os países desenvolvidos. Isto explica parte da desvalorização da taxa de câmbio verificada no país que pode alimentar o prolongamento de níveis elevados de inflação por todo o ano de 2021.
Alguns economistas muito respeitados, no entanto, mostram sua preocupação para com o ciclo de alta da taxa Selic em um momento e os seus efeitos sobre a atividade e o mercado de trabalho. Para eles, uma contração monetária neste momento pode inibir a já enfraquecida atividade econômica e aumentar a já elevada taxa de desemprego involuntário da economia brasileira. Para discorrer sobre isto, entretanto, é preciso olhar para o formato da Curva de Phillips CPh (grosso modo é o nome dado para a curva de oferta da economia). De acordo com a melhor literatura desta área, ela pode assumir vários formatos e isto está relacionado com a forma como os agentes formam suas expectativas de inflação na economia. Há modelos que assumem que os agentes formam expectativas adaptativas projetando a inflação futura, a partir do comportamento passado da mesma. Nestes modelos, há um evidente trade off na CPh entre inflação e desemprego e o BC faz política monetária escolhendo entre mais inflação e menos desemprego, ou menos inflação e mais desemprego.
Isto, no entanto, é macroeconomia do final dos anos 1960. De lá para cá os modelos passaram por ajustes em seus pressupostos e a noção de que a política monetária se resume a uma escolha entre inflação e desemprego ficou ultrapassada e nada garante que elevações da taxa Selic como a do último COPOM piorem a situação da atividade e do emprego. Isto porque, se os agentes são racionais e com base nas informações disponíveis sabem que comportamento da inflação tende a se acelerar, eles se antecipam à decisão do COPOM de elevar os juros e passam a tomar decisões de investimento e produção tomando como dado o novo contexto de alta dos juros. Neste caso, elevações de taxa de juros não afetam o lado real da economia.
A passagem das expectativas adaptativas para expectativas racionais vai determinar o formato do CPh e o quão a política monetária pode influenciar o lado real da economia. Como é de conhecimento de todos, desde o final de 2020 as expectativas de inflação já estavam difundidas entre os que acompanham o dia a dia da economia brasileira. Isto solidificou a expectativa, no começo de 2021, de que a taxa de juros iria iniciar um ciclo de alta. De forma que a decisão da última reunião do COPOM já era esperada pelo corpo majoritário dos agentes econômicos no país.
Neste sentido, os efeitos do aumento da taxa de juros sobre o lado real tendem a ser bastante limitados por duas razões: i) porque esta alta de juros praticada pelo BC já era esperada pela ampla maioria dos operadores na economia, ii) porque a taxa real de juros, que é a que importa para as decisões de investimento, tende a permanecer negativa durante todo o ano de 2020.
* Benito Salomão é mestre e doutorando em Economia pelo PPGE – UFU.
Gil Alessi: Governadores preparam carta a Biden para driblar protagonismo negativo de Bolsonaro
Com presidente e seu ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, alvo de críticas pelo aumento do desmatamento no país, chefes dos executivos estaduais querem acesso aos recursos dos EUA
Em meio à lentidão do processo de imunização contra a covid-19 no Brasil, e com o pedido feito por ONGs para que o presidente dos Estados Unidos, Joe Biden, não negocie “a portas fechadas” questões ambientais com Jair Bolsonaro, governadores brasileiros lançarão nos próximos dias iniciativas nestas duas frentes em busca de protagonismo —e de resultados concretos. Chefes de 23 Executivos estaduais formaram um bloco chamado “Coalizão Governadores Pelo Clima”, que assina uma carta endereçada ao mandatário americano.
O documento será entregue ainda este mês ao embaixador dos Estados Unidos no Brasil. Na mensagem de três páginas eles divergem de Bolsonaro ao defender o Acordo de Paris —que o presidente já falou em abandonar— e “o cumprimento do Código Florestal para a conservação das florestas e da vegetação nativa” —outro contraste com o Planalto, cujo ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, defende a flexibilização das leis para “passar a boiada”.
A carta é assinada por governadores de oposição a Bolsonaro, como João Doria (SP), Flávio Dino (MA) e Fátima Bezerra (RN), mas também por simpatizantes do presidente, como Romeu Zema (MG) e Cláudio Castro (RJ). Na mensagem eles se dizem preocupados com a situação e “conscientes da emergência climática global”. Também se colocam como atores capazes de contribuir com a solução caso tenham acesso aos recursos necessários, preenchendo um certo vácuo diplomático deixado pelo Governo Federal. “Nossos Estados possuem fundos e mecanismos criados especialmente para responder à emergência climática, disponíveis para aplicação segura e transparente de recursos internacionais, garantindo resultados rápidos e verificáveis”, diz o texto.
A articulação acontece às vésperas da Cúpula dos Líderes sobre o Clima, que será realizada de forma virtual em 22 e 23 de abril e para qual o Governo Joe Biden convidou Bolsonaro. Durante a campanha eleitoral em 2020 Biden chegou a dizer que poderia aplicar sanções contra o Brasil caso o país não controlasse o desmatamento. Depois de eleito, o tom de ameaça foi suavizado apesar dos recordes de devastação da floresta, e o enviado especial do Clima da Casa Branca, John Kerry, chegou a realizar uma videoconferência com o ministro Ricardo Salles e o então chanceler Ernesto Araújo para tratar do tema.
Todo o interesse não é em vão. A proteção dos biomas brasileiros é um negócio que movimenta bilhões de dólares. Desde o início do Governo Bolsonaro diversos fundos europeus ameaçaram suspender repasses destinados à preservação da floresta até que o Brasil mostrasse comprometimento com a redução do desmatamento e das queimadas na Amazônia e também em outros biomas. Noruega e Alemanha, por exemplo, bloquearam no final de 2019 o envio de recursos para o Fundo Amazônia, um dos principais do setor. Até o acordo comercial entre União Europeia e o Mercosul, assinado em junho de 2019, tem sua implementação arrastada à medida em que países como França e Áustria resistem a que ele saia do papel alegando preocupações ambientais.
O anúncio do contato dos governadores com Biden também ocorre uma semana após um grupo com mais de 200 ONGs ligadas a questões ambientais ter enviado ao presidente americano uma carta na qual criticam eventuais negociações “a portas fechadas” feitas entre os dois mandatários sobre a Amazônia sem a inclusão da sociedade civil. “Não é razoável esperar que as soluções para a Amazônia e seus povos venham de negociações feitas a portas fechadas com seu pior inimigo [Bolsonaro]”, afirmam em um trecho da mensagem, que também defende a participação dos Estados e comunidades locais nas tratativas. “Bolsonaro (...) compromete os Acordos de Paris ao retroceder na ambição da meta climática brasileira. Negacionista da pandemia, transformou seu país num berçário de variantes do coronavírus, condenando à morte parte da própria população”, conclui o texto.
Novos focos de atrito entre governadores e Planalto
A iniciativa dos governadores de contactar diretamente Biden tem potencial para provocar ainda mais atrito entre eles e o presidente. Ambas as partes já vivem uma relação bastante conturbada, erodida desde o início da pandemia quando Bolsonaro passou a atacar os executivos estaduais por tentarem controlar a crise sanitária com isolamento e restrições. Posteriormente, acusou os governadores de fazerem uso político da covid-19 e desviar recursos do Governo Federal destinados à Saúde.
Indagado sobre a possibilidade de conflitos com o Planalto, o governador do Piauí, Wellington Dias (PT), um dos signatários da carta, é taxativo: “Não estamos defendendo uma posição política individualista, e sim a posição do Brasil. Ela não foi alterada, apesar de verbalização [de Bolsonaro] no sentido diferente, as regras continuam as mesmas, não houve alteração da Constituição ou no Legislativo e Judiciário com relação à necessidade de proteger o Meio Ambiente”. Segundo ele, a ideia é que “Biden atente ao fato de que a posição no Brasil precisa ser uma posição que envolva os três poderes, e não apenas um”.
A carta dos Governadores pelo Clima não é a única iniciativa destes políticos que pode afrontar Bolsonaro. Nesta sexta-feira integrantes do Fórum Nacional de Governadores irá realizar por videoconferência uma reunião com a secretária-geral adjunta da Organização das Nações Unidas, Amina Mohammed. Na pauta, o pedido por “ajuda humanitária ao Brasil” em função da situação de descontrole da pandemia do novo coronavírus no país. “Queremos a sensibilização da ONU para que a Organização Mundial da Saúde agilize a entrega de vacinas para o Brasil”, afirmou Dias, referindo-se às doses do consórcio capitaneado pela entidade.
O protagonismo dos governadores na pandemia é uma questão crucial para Bolsonaro. Até o momento o Planalto ficou a reboque de iniciativas estaduais quando o assunto é imunização: boa parte das doses aplicadas nos mais de 23 milhões e brasileiros até esta terça-feira foi produzida no Instituto Butantan, em uma iniciativa do Governo paulista. Desde fevereiro outros governadores já iniciaram tratativas com laboratórios estrangeiros em busca de mais vacinas —algumas ainda sem autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, como é o caso do imunizante russo Sputnik V, adquirido por Camilo Santana (CE) e Flávio Dino (MA).
Piauí: Os números chocantes da desigualdade vacinal
Imunização brasileira é lenta e discriminatória. País é o 73º em proporção de vacinados. E regiões pobres, com menos idosos, ficam no fim da fila. Em SP, distritos mais protegidos são 8 vezes mais ricos que os com menos doses aplicadas
Por Antonio S. Piltcher, Amanda Gorziza e Renata Buono, na Piauí
A vacinação contra a Covid-19 no Brasil caminha a passos lentos. Em relação à proporção da população vacinada, o país está na 73ª posição do ranking mundial. Alguns locais do Brasil são mais impactados pela falta de vacinas e pela distribuição desigual do imunizante. Na cidade de São Paulo, os distritos mais vacinados têm renda média oito vezes maior e vacinam quatro vezes mais que os distritos menos vacinados. Na cidade do Rio, um morador do Baixo Leblon tem três vezes mais chance de ter recebido a primeira dose da vacina contra Covid que um morador do Vidigal. Municípios com maior proporção de população indígena estão com taxas de vacinação maiores. Na Paraíba, uma cidade de maioria indígena aplicou quinze vezes mais doses que o município vizinho. Para realizar as comparações, foram utilizados os microdados do Open Data SUS, que permitem mapear a imunização dentro dos municípios, pois incluem os primeiros cinco dígitos do CEP de cada pessoa vacinada. Assim, foi possível estimar a proporção de habitantes imunizados em cada bairro. Os números foram compilados pelo Pindograma, site de jornalismo de dados.
O Mato Grosso do Sul é o estado que mais aplicou doses de vacina contra a Covid-19 proporcionalmente à sua população – 18 doses a cada 100 habitantes até 9 de abril. O ideal é que se tenham 200 doses a cada 100 indivíduos, já que são necessárias duas aplicações para a completa imunização. Por outro lado, o Mato Grosso, estado vizinho, aplicou metade das doses – apenas 9 a cada 100 pessoas. Ambos têm proporções semelhantes de idosos em sua população: MS com 13% e MT com 12%.
No Rio Grande do Sul, 14% da população recebeu a primeira dose da vacina contra Covid-19, enquanto o Acre vacinou apenas 8% de seus habitantes até o dia 9 de abril. No entanto, a proporção de gaúchos idosos é de 19%, enquanto a de acrianos é de 8%, ou seja, a população do Acre é majoritariamente jovem. O PIB per capita dos estados também difere: R$ 15 mil no Acre e R$ 37 mil no Rio Grande do Sul.
Dois municípios com porte parecido, Santos e Carapicuíba, no estado de São Paulo, têm níveis distintos de vacinação contra a Covid-19. Em Santos, 13% dos 433 mil habitantes já tomaram a primeira dose da vacina. Já em Carapicuíba, na região metropolitana, apenas 3% dos 403 mil habitantes foram vacinados. Os PIBs per capita dos municípios são bastante desiguais: aproximadamente R$ 52 mil em Santos e R$ 14,4 mil em Carapicuíba.
Na cidade de São Paulo, a vacinação dos distritos mais ricos e mais pobres difere significativamente. Nos cinco locais mais vacinados até 25 de março – Pinheiros, Jardim Paulista, Alto de Pinheiros, Campo Belo e Vila Mariana –, a primeira dose foi aplicada em 17% da população, e a renda média é de R$ 9.230. Já nos cinco menos vacinados – Anhanguera, Parelheiros, Jardim Ângela, Perus e Cidade Tiradentes –, apenas 4% dos habitantes foram vacinados, e a renda média de R$ 1.167.
Até 25 de março, Marcação, na Paraíba, administrou 73 doses de vacina contra Covid-19 a cada 100 habitantes. A vizinha Cuité de Mamanguape distribuiu apenas 5 doses a cada 100 habitantes. Ambas as cidades têm PIB per capita baixo, R$ 10 mil em Cuité de Mamanguape e R$ 9 mil em Marcação, que tem população majoritariamente indígena, o que não é o caso de Cuité.
Na região do Parque Bom Jesus, na periferia de Goiânia, 2% dos moradores foram vacinados até 25 de março. Nessa região, 70% das pessoas se autodeclaram negras. Já no Setor Marista, no centro da cidade, onde menos de 20% da população é preta e parda, foram vacinados 13% dos habitantes com a primeira dose até a mesma data.
A desigualdade na vacinação também está presente dentro da favela. Na cidade do Rio de Janeiro, no CEP 22452, que cobre metade da favela do Vidigal, apenas 4% dos moradores foram vacinados com a primeira dose. A renda média dos habitantes do Vidigal é de R$ 1.789. Já no Baixo Leblon, 13% da população recebeu a primeira dose, e 4%, a segunda dose. A renda média dos moradores do bairro Leblon é de R$ 11.311.
Nota metodológica: As comparações do Open Data SUS limitam-se a dados de ao menos duas semanas antes da data de publicação do =igualdades e não comparam UFs distintas, pois há atraso na importação das informações das secretarias estaduais de Saúde para a plataforma federal, o que gera distorções para datas mais recentes.
Fonte: Dados do Open Data Sus, IBGE, Bacen e Secretarias Estaduais de Saúde via coronavirusbra1/Giscard, compilados pelo Pindograma
Luiz Carlos Azedo: Cenário ruim para 2022
Enquanto a pandemia não é controlada, o cenário econômico continua sendo de muitas incertezas e agravamento dos problemas sociais do país, como o desemprego
Com a leitura do requerimento da CPI da Covid-19 pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), consolidou-se uma das principais linhas de força da disputa eleitoral de 2022, a crise sanitária. Mesmo que a pandemia venha a ser controlada, suas consequências políticas se farão sentir durante a campanha eleitoral, devido ao agravamento do desemprego, que não se resolverá facilmente, e o presidente Jair Bolsonaro será responsabilizado pela oposição, não somente pelo número muito alto de mortes. Os dois problemas ainda se somarão à disputa em torno da Operação Lava-Jato, mesmo que seus processos sejam concluídos ou arquivados, e à defesa da democracia, uma pauta que Bolsonaro reiteradamente põe na ordem do dia ao atacar o Supremo Tribunal Federal (STF), além de os partidos de oposição e a imprensa.
Não foi à toa que Bolsonaro tentou melar a CPI e orientou seus aliados a ampliarem o escopo das investigações, para chegar a governadores e prefeitos, o que somente é possível, constitucionalmente, seguindo o dinheiro destinado ao Sistema Único de Saúde (SUS) pelo governo federal. Pacheco, cumprindo determinação do ministro Luís Roberto Barroso, do STF, apensou o requerimento da CPI apresentado pelo senador Eduardo Girão (Podemos-CE) para investigar a responsabilidade de estados e municípios em más condutas no enfrentamento da pandemia, ao pedido original do senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP), unificando as duas CPIs requeridas.
Segundo Pacheco, “estão excluídos do âmbito de investigação das comissões parlamentares de inquérito do Poder Legislativo federal as competências legislativas e administrativas asseguradas aos demais entes federados”. A guerra de narrativas entre Bolsonaro e a oposição marcará o funcionamento da comissão, mas são os fatos que determinarão o rumo das investigações.
No dia em que CPI passou a existir de fato, o Brasil registrou 3.808 óbitos por covid em 24 horas e mais 82.186 novos casos, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). Com isso, o número de mortos pela doença chegou a 358.425, e o total de casos aumentou para 13.599.994. Na segunda-feira, foram registrados 1.480 óbitos e 35.785 novos casos. O ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, reconheceu, ontem, que o Brasil tem 1,5 milhão da segunda dose de vacina em atraso. Ou seja, o cobertor está curto: muitas pessoas não estão recebendo o reforço adequado porque o fluxo de produção de vacinas, principalmente na Fiocruz, não acompanhou a escala da imunização pela primeira dose e houve uma opção de reduzir os estoques de segunda dose para aumentar o número de vacinados parcialmente.
Inflação
Enquanto a pandemia não é controlada, o cenário econômico continua sendo de muitas incertezas e agravamento dos problemas sociais do país, que registra uma de suas maiores taxas de desemprego da história, em torno de 14,5% neste ano, ultrapassando a de países como Colômbia, Peru e Sérvia, e caminha na contramão da taxa média global, cuja estimativa é de recuo para 8,7% este ano, ante 9,3% em 2020. Uma das consequências do desemprego é a fome, que atinge seis de cada 10 domicílios brasileiros; no Nordeste, são sete em cada 10 domicílios, segundo pesquisa das universidades federais de Brasília e Minas Gerais, e a Universidade de Berlim.
Ciente do problema, Bolsonaro tenta culpar governadores e prefeitos. A falta de comida na mesa é leve em 32% das casas, moderada em 13% e grave em 15% (nada pra comer). Além disso, a qualidade da alimentação piorou: queda superior a 40% no consumo de carnes e frutas e de 37% no consumo de verduras e legumes. A pesquisa mostra, ainda, que, em 63% dos domicílios, o auxílio emergencial ser- viu para comprar cesta básica. É um cenário perigoso, porque o auxílio emergencial e o Bolsa Família estão sendo insuficientes para resolver o problema alimentar das famílias de baixa renda por causa da inflação dos alimentos. Nos dois primeiros anos do atual governo, o custo da cesta básica subiu 32%.
Luiz Carlos Azedo: A CPI não sabe como começar
CPIs bem focadas promovem ampla exposição de fatos até então encobertos por silêncio, dissimulações e fraudes. Algumas CPIs fracassaram por má condução
Um velho jargão parlamentar, atribuído a Ulysses Guimarães, sustenta que todos sabem como começa uma comissão parlamentar de inquérito, mas ninguém sabe como termina. A CPI da Covid-19 do Senado, porém, nem sabe ainda como vai começar, embora já esteja no centro das tensões entre o Executivo, o Legislativo e o Judiciário, em razão da divulgação de uma gravação da conversa entre o senador Kajuru (Cidadania-GO) e o presidente da República.
Na conversa, o presidente Jair Bolsonaro orienta o parlamentar a protegê-lo e direcionar a investigação contra governadores e prefeitos. De quebra, pede para Kajuru pressionar o Supremo Tribunal Federal (STF) a decidir sobre seu pedido de impeachment do ministro Alexandre de Moraes. Quem mais se beneficia dessa confusão é o presidente Bolsonaro. A Executiva do Cidadania, partido envolvido na polêmica, apoia a instalação da CPI e saiu em defesa do senador Alessandro Vieira(SE), mas não endossa que se investigue governadores e prefeitos. Além disso, repudiou a conversa de Kajuru com Bolsonaro e solicitou que o parlamentar deixasse a legenda.
CPIs bem focadas promovem ampla exposição de fatos até então encobertos por silêncio, dissimulações e fraudes. Algumas CPIs fracassaram por má condução, como a do Futebol (2007) e a dos Cartões (2008). Outras foram bem-sucedidas, como as CPIs da Corrupção (1988), do PC Farias (1992), dos Anões do Orçamento (1993), do Judiciário (1989), do Banestado (2003), dos Correios (2005), dos Bingos (2006), dos Sanguessugas (2006), do Apagão Aéreo (2007) e do Cachoeira (2012). Às vezes, são algozes de seus protagonistas.
A CPI do Orçamento acabou cassando os mandatos do presidente da Câmara, Ibsen Pinheiro (MDB-RS), injustamente, e do líder do MDB, Genebaldo Correia (BA), entre outros. A CPI dos Correios, em 2005, fruto de uma denúncia do presidente do PTB, Roberto Jefferson (RJ), resultou na sua própria cassação, e de outros parlamentares, como o então deputado José Dirceu (PT- SP). Desfecho surpreendente teve a do Judiciário, em 1989. Antônio Carlos Magalhães (PFL-BA), no segundo mandato como presidente do Senado, protagonizou a abertura da CPI, contra a corrupção, o tráfico de influências, a má gestão
e o nepotismo no Judiciário.
Renúncias
Alguns senadores à época, como Marina Silva (PT), Geraldo Melo(PSDB) e Roberto Freire (PPS), temiam o risco de confronto entre os Poderes. Para o ministro Carlos Velloso, então vice-presidente do STF, “uma CPI desse tipo, generalizando acusações contra juízes, simplesmente expõe o Judiciário à execração pública, levando o descrédito às suas decisões”. A própria OAB, que defendia desde a Constituinte a criação de mecanismos de controle externo do Judiciário, repeliu a iniciativa. Para então presidente, Reginaldo de Castro, estaria “se criando no Brasil um tribunal de exceção”.
A CPI não desmoralizou o Judiciário nem provocou abalos institucionais. Apurou denúncias de crimes e corrupção que impactaram a opinião pública, com destaque para a ligação do senador Luiz Estevão (MDB-DF, cujo mandato foi cassado em 2000) com o desvio de R$ 169 milhões das obras de construção do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo, onde pontificava a figura do “Juiz Lalau”: Nicolau dos Santos Neto, presidente da Corte, que foi condenado a 26 anos de prisão pelos crimes de peculato, estelionato e corrupção passiva.
ACM emergiu da CPI do Judiciário como paladino do combate à corrupção, porém não conseguiu manter a presidência do Senado em 2001, sendo substituído por Jader Barbalho (MDB). Os dois senadores viviam se digladiando e acabariam envolvidos no escândalo do Painel do Senado. ACM havia revelado a lista de todos que votaram contra e a favor de Luiz Estevão na sessão secreta que resultou na cassação do mandato do ex-senador, em junho de 2000. A crise culminou com as renúncias de Antônio Carlos Magalhães e José Roberto Arruda, na época líder do governo no Senado.
Luiz Carlos Azedo: Duas derrotas num só dia
Bolsonaro anunciou um novo remédio para o tratamento da covid-19, a proxalutamida, medicamento utilizado para tratamento de câncer de próstata e de mama
O presidente Jair Bolsonaro sofreu duas derrotas ontem, ambas no Supremo Tribunal Federal (STF). Uma foi a decisão acachapante do plenário da Corte em favor de governadores e prefeitos que determinarem o fechamento temporário de templos religiosos para combater a propagação da pandemia da covid-19, durante os períodos de rígido distanciamento social, cujo resultado foi 9 a 2. A outra, a liminar do ministro do STF Luís Roberto Barroso a favor do mandado de segurança dos senadores Alessandro Vieira (SE) e Jorge Kajuru (GO), do Cidadania, determinando a imediata instalação da CPI da Covid-19 pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que vinha empurrando o assunto com a barriga há 65 dias.
CPIs são uma prerrogativa da oposição, desde que tenham número mínimo de subscrições para instalação, o que é o caso. O que muda com a instalação da CPI é que o presidente Jair Bolsonaro, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga e, principalmente, seu antecessor, o general Eduardo Pazuello, passarão a ter muitas dores de cabeça em razão de tudo o que ocorreu durante a pandemia até agora. Na lógica da oposição, a CPI é a banda de música dos pedidos de impeachment. O negacionismo de Bolsonaro tem um histórico de atitudes e medidas contra a política de isolamento social, mas também contra a compra e produção de vacinas, o uso de máscaras etc. É um prato cheio para a responsabilização criminal pelo elevado número de mortes que vem ocorrendo.
Rodrigo Pacheco segurou a instalação da CPI enquanto pôde, pressionado por Bolsonaro e pelo Centrão, mas contrariou os seto- res da oposição, inclusive os que o apoiaram. Com seu estilo conciliador e habilidoso, manobrou demais e acabou provocando mais uma intervenção do Supremo no Congresso. Agora, a oposição tem prerrogativas constitucionais e regimentais para fazer uma devassa no Ministério da Saúde. Como a base do governo é majoritária no Senado, o Palácio do Planalto tentará controlar a CPI, voltando-a contra governadores e prefeitos, mas isso fará com que o cacife dos partidos de Centrão aumentem nas negociações com o presidente da República.
Vacinas
Em sua live semanal, ontem, Bolsonaro voltou a criticar o isolamento social e defendeu “outras medidas” para combater a pandemia do novo coronavírus. Aproveitou para anunciar um novo remédio para o tratamento da covid-19, a proxalutamida, medicamento utilizado para tratamento de câncer de próstata e de mama. “É uma possibilidade. Um outro possível remédio que estará à disposição de todo o Brasil. Esperamos que dê certo”, disse. Também defendeu o exercício físico, que segundo ele, aumenta em oito vezes a velocidade de recuperação da doença.
Enquanto Bolsonaro flerta com o curandeirismo, a covid- 19 continua avançando no Brasil. Registrou 4.249 óbitos e 86.652 novos casos nas últimas 24 horas, segundo o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass). Com isso, o número de mortos pela doença chegou a 345.025, e o total de casos aumentou para 13.279.857. Na quarta-feira, foram registrados 3.829 óbitos e 92.625 novos casos. Ou seja, por falta de vacinas e isolamento social adequado, a escalada da pandemia continua.
Para complicar a situação, há 12 dias o Instituto Butantan não produz novas vacinas por falta de insumos. Ontem, reconheceu que a remessa de matéria-prima da CoronaVac está atrasada, mas anunciou que já foi liberada na China e deverá chegar a São Paulo até 20 de abril. O princípio ativo da vacina era para ter chegado ontem. De acordo com o Butantan, o lote de 3 mil litros de insumos é suficiente para a produção de 5 milhões de doses da vacina. Uma segunda remessa, com mais 3 mil litros, está prevista para chegar até o final do mês. O atraso não vai impactar as entregas previstas ao Ministério da Saúde: 46 milhões até o final de abril. O Butantan já disponibilizou 38,2 milhões de doses ao Programa Nacional de Imunizações (PNI) e ainda possui cerca de 3,2 milhões de vacinas no controle de qualidade, que devem ser liberadas até o dia 19 de abril.
Malu Gaspar: Jair Bolsonaro, um presidente imunizado contra a CPI da Covid
O requerimento para a criação de uma CPI da Covid-19, protocolado no Senado no início de fevereiro, deixou há muito de ser um pedido de investigação para ser um termômetro que afere as chances de sobrevivência política do presidente da República. Aos olhos de hoje, os líderes da Câmara e do Senado parecem ter concluído que Bolsonaro, que esteve na UTI, já pode ser politicamente desentubado.
O requerimento tem a assinatura de 31 senadores, mais do que as 27 exigidas, e o objeto da investigação é definido: “apurar as ações e omissões do governo federal no enfrentamento da pandemia da Covid-19 no Brasil e, em especial, no agravamento da crise sanitária no Amazonas com a ausência de oxigênio para os pacientes internados” nos primeiros meses de 2021.
Nessas circunstâncias, o regimento do Senado diz que o pedido deve ser lido em plenário e a CPI, instalada imediatamente. Mas Pacheco, eleito para o cargo com o apoio de Bolsonaro, está há dois meses produzindo desculpas para não fazê-lo. A última foi expressa num documento enviado ontem pelo Senado ao Supremo Tribunal Federal, em resposta a uma ação de parlamentares pedindo a instalação da comissão.
Diz que a CPI poderia ter “efeito inverso ao desejado”, produzindo “desconfiança da população em face das autoridades públicas em todos os níveis”. Menciona, ainda, um eventual “apagão das canetas”, em que os gestores públicos deixariam de tomar decisões urgentes por medo de punição.
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Causa espécie o argumento de que não se deva apurar responsabilidades por uma tragédia sanitária para não causar medo em gestores públicos. Crises são momentos desafiadores, mas não podem ser consideradas salvo-conduto para desvios que causam mortes.
Além disso, acreditar que, depois do colapso no Amazonas e da omissão do governo federal na obtenção de vacinas, será uma CPI que dilapidará a confiança do brasileiro nas autoridades públicas soa tão falso como a promessa milagrosa de cura oferecida pela cloroquina.
Outra coisa que se ouve muito no Congresso é que “uma CPI desviaria o foco”, que deve ser voltado para a obtenção de vacinas. É fato que a pressão dos senadores removeu do cargo o chanceler Ernesto Araújo. É verdade também que o discurso do presidente da Câmara, Arthur Lira, ameaçando o governo com “remédios amargos” e até fatais (como uma CPI), causou paúra em Bolsonaro.
Depois disso, ele abriu negociações para comprar a Sputnik V. Mas é difícil entender como uma CPI com 11 de 81 senadores poderia causar mais tumulto que os conflitos promovidos pelo próprio presidente da República.
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A questão, aí, parece ser quem se quereria proteger do tumulto. Com a naturalidade de quem entendeu que o que estava em jogo era a ocupação de espaços na máquina pública, e não a confiança da população, Bolsonaro pagou a fatura. Cedeu a cabeça de Araújo ao Senado e entregou um ministério dentro do Palácio do Planalto à Câmara, nomeando para a Secretaria de Governo uma afilhada de Lira, a deputada Flávia Arruda.
No dia seguinte, o presidente da Câmara foi ao Planalto se reunir com o ministro da Saúde e saiu com discurso de líder de governo, desafiando as informações de prefeitos e governadores sobre a vacinação. “Por que o Brasil distribuiu 34 milhões de doses de vacinas e nós só temos 18 milhões de doses aplicadas? Não acho que seja possível que nenhum governador e nenhum prefeito não esteja vacinando.”
De um dia para outro, o remédio amargo virou água com açúcar.
Na Câmara, o foco de Lira passou a ser atender os empresários bolsonaristas Luciano Hang e Carlos Wizard, que reivindicavam mudanças na lei que permitiu a compra de imunizantes pelo setor privado.
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O texto aprovado em março mandava as empresas doarem as doses compradas ao SUS até que fossem vacinados todos os brasileiros do grupo de risco para a Covid-19. Só depois elas poderiam imunizar seus funcionários, entregando ao SUS uma dose para cada empregado vacinado.
Para atender Hang e Wizard, Lira aprovou, em regime de urgência, o fim da obrigação de esperar a vacinação dos grupos prioritários — o que rendeu ao projeto o apelido de “fura-fila”.
E Bolsonaro, de novo à vontade, voltou a defender remédios sem eficácia, visitou sem máscara bairros populares nos arredores de Brasília e falou contra medidas de isolamento social. No dia seguinte, o Brasil ultrapassou a marca de 4.000 mortes por dia pela Covid-19.
No ofício ao STF, Pacheco afirma que a população “reclama a priorização de soluções, e não a busca de culpados”. A julgar pelos últimos lances, o Congresso não está preocupado em encontrar nem uma, nem outra.
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Merval Pereira: LSN, incompatível com a democracia
Assim como chegou a vez de extinguir a Lei de Imprensa promulgada na ditadura militar, graças à ação, em 2009, do então deputado federal Miro Teixeira, jornalista e advogado, parece ter chegado ao fim a vigência da famigerada Lei de Segurança Nacional.
O presidente da Câmara, Arthur Lira, quer colocar em votação um pedido de urgência para a análise de um projeto de lei que revisa integralmente a LSN. As mesmas razões se impõem hoje. Conforme argumentou na ocasião Miro Teixeira, a Lei de Imprensa imposta pela ditadura militar continha dispositivos incompatíveis com o Estado de Direito inaugurado com a Constituição de 1988, como a prisão de jornalistas condenados por calúnia, injúria e difamação.
Com sua revogação, as questões envolvendo notícias ou comentários têm nos Códigos Civil e Penal sua resolução. Também a Lei de Segurança Nacional (LSN) tem servido de base para diversas ações do atual governo contra seus opositores, jornalistas e cidadãos em geral. Dados oficiais mostram que, nos últimos 18 meses, foram abertos 41 inquéritos com base na LSN, mais do que em qualquer período dos últimos 20 anos, quando foi usada 155 vezes.
O artigo 26, que considera crime “caluniar o Presidente da República, o do Senado federal, o da Câmara dos Deputados ou o do Supremo Tribunal Federal, imputando-lhes fato definido como crime ou fato ofensivo à reputação”, é o mais usado para coagir os críticos do governo. O projeto de lei na Câmara pretende alterá-lo para considerar crime apenas atentados contra a integridade física de autoridades, cuja pena pode chegar a 30 anos em caso de morte.
Uma dificuldade, ou um constrangimento, para que o Supremo Tribunal Federal (STF) reveja a LSN é que ele a vem utilizando em inquéritos sobre os ataques desferidos contra o próprio Supremo, nas manifestações antidemocráticas acontecidas e na prisão do deputado Daniel Silveira.
Existe, porém, uma explicação jurídica para isso: a lei está em vigor até que seja extinta. Também a Lei de Imprensa era usada para processar jornalistas ou exigir direito de resposta, até ser revogada. Por isso mesmo, deve ser extinta. O ministro Gilmar Mendes, que é o relator de ações no Supremo que pedem que a LSN seja revogada, deu cinco dias para que o Ministério da Justiça justifique o uso da lei contra os que supostamente ofenderam o presidente da República.
Para o ministro Luís Roberto Barroso, a Lei de Segurança Nacional precisa de uma revisão, ou mesmo revogação completa, para sanar as “inconstitucionalidades variadas”. Ele falou em seminário virtual do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, considerando a LSN “uma obsessão mais com a segurança do Estado do que com a institucionalização da democracia e com o exercício pleno da cidadania”.
Ao afirmar que a LSN não se coaduna com a atualidade da sociedade brasileira, o ministro Barroso está entrando numa questão jurídica que vem sendo debatida desde a promulgação da Constituição de 1988: a recepção das leis anteriores. O jurista Marcelo Cerqueira, ex-deputado federal e advogado de presos políticos, que atuou na Constituinte como assessor, defende desde sua tese de 1994, com que foi aprovado como professor titular da Universidade Federal Fluminense, que, como definiu o jurista austríaco Hans Kelsen, as leis incompatíveis com o espírito de uma nova Constituição não são “recepcionadas”por ela, e considera que a Lei de Segurança Nacional (LSN) é uma delas e deveria ser tratada não apenas como inconstitucional, mas “ilegal”.
Para ele, “há um direito novo que o pacto político alargou e que a Constituição refletiu. Os novos preceitos constitucionais permitem uma outra leitura do direito, um novo impulso em que as regras velhas se vestem com novas roupagens para ser aceitas na festa da democracia”.