saúde

Luiz Carlos Azedo: O país está parando

“O coronavírus provoca a reorganização do trabalho, em razão das medidas de distanciamento social; governadores e prefeitos se antecipam ao governo federal”

Quem observa o cotidiano da população já constata a redução do movimento de pessoas e de carros nas ruas; filas nas farmácias e supermercados. Não se trata de pânico, mas de prudência, as pessoas estão se dando conta de que o distanciamento social é realmente necessário e começam a se preparar para o confinamento doméstico. O medo do coronavírus é justificado, basta olhar o que está acontecendo no mundo e prestar atenção nas entrevistas e decisões dos governadores e prefeitos.

Ontem, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, voltou a falar como um sanitarista experiente, em entrevista na qual dispensou a máscara cirúrgica. Não escondia a tensão em que se encontra, diante do avanço da epidemia. No começo da noite, já havia 635 casos confirmados no país, em 21 estados e no Distrito Federal, com transmissão comunitária em São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Pernambuco e Sergipe. Sete mortes foram contabilizadas até ontem, cinco em São Paulo e duas no Rio, ou seja, 1,1% dos casos confirmados.

As notícias que chegam do mundo justificam a apreensão da população. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), eram 207.855 casos confirmados e mais de nove mil mortes por Covid-19 em 166 países e territórios. Em Hubei, província chinesa onde se originou o surto, ocorreram 34% das mortes, com 3.130 óbitos, antes de a epidemia ser controlada. Entretanto, a Itália ultrapassou a China, com 3.405 mortes pelo novo coronavírus, apesar da população algumas vezes menor. Tecnicamente, o Brasil se encontra numa situação em que a curva da doença ainda não se definiu, ou seja, um momento no qual há três cenários, o pior deles é o italiano. O melhor é o cenário da Coreia do Sul, que conseguiu controlar a letalidade da doença.

O ministro Mandetta trabalha com o modelo inglês. Como não somos uma ilha, talvez por isso, a principal medida efetiva de distanciamento social adotada pelo governo federal tenha sido o fechamento das fronteiras, anunciado ontem, no caso dos países vizinhos, alguns dos quais já tinham tomado essa decisão. Outra preocupação foi orientar os planos de saúde privados a não descarregar nos hospitais públicos os seus segurados. Um novo protocolo de atendimento foi anunciado: pessoas com febre, tosse ou dor de garganta e/ou dificuldade respiratória receberão máscaras e serão encaminhadas para isolamento respiratório.

Solidariedade
Pessoas acima de 60 anos, pacientes com doenças crônicas, imunossuprimidos, gestantes e mulheres até 45 dias após o parto terão prioridade. Todas as pessoas com mais de 60 anos deverão evitar comparecimento ao trabalho ou demais ambientes fechados; empregadores devem buscar adaptar-se a essa solicitação. A recomendação é sair de casa apenas para atividades essenciais (mercado, farmácia, serviços de saúde), que não possam ser realizadas por outra pessoa. Comunidades, vizinhos, grupos de amigos devem ajudar as pessoas com mais 60 anos a obter seus bens de primeira necessidade sem sair de casa.

O coronavírus está provocando a reorganização do trabalho, em razão das medidas de distanciamento social; governadores e prefeitos estão se antecipando ao governo federal. Em Brasília, o governador Ibaneis Rocha (MDB) decretou, ontem, a suspensão das atividades de atendimento ao público em comércios na capital. A medida inclui restaurantes, bares, lojas, salões de beleza, entre outros. O decreto também determina a suspensão de missas e cultos. Poderão funcionar: clínicas médicas, laboratórios, farmácias, postos de gasolina, mercados, lojas de materiais de construção, padarias, atacadistas, peixarias e delivery. No Rio de Janeiro, o governador Wilson Witzel (PSC), que já vinha adotando medidas duras, quer fechar as divisas do estado e interromper a ponte aérea Rio-São Paulo.

O ministro da Economia, Paulo Guedes, anunciou um auxílio para os trabalhadores que recebem até dois salários mínimos e forem afetados pela redução de jornada e salários proposta nesta semana pelo governo federal, que pretende pagar os primeiros 15 dias de afastamento se o trabalhador tiver contraído o coronavírus. O auxílio, destinado aos mais vulneráveis que tiverem renda e jornada reduzidas, busca contemplar 11 milhões de trabalhadores, a um custo de R$ 10 bilhões, com recursos provenientes do Fundo de Amparo ao Trabalhador (FAT).

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Luiz Carlos Azedo: Os vírus são teimosos

Bolsonaro não esconde seu desacordo com as medidas de “distanciamento social”, mas finalmente considerou o país em “estado de calamidade pública”

O presidente Jair Bolsonaro finalmente se deu conta de que os vírus são mais teimosos do que ele próprio. Ontem pela manhã, em entrevista à Rádio Tupi, o presidente da República criticou os governadores por adotarem medidas para evitar aglomerações, o que classificou de “histeria”. No final do dia, declarou “estado de calamidade pública” em todo o país e pediu ao Congresso a aprovação da medida. Vírus são parasitas intracelulares obrigatórios (característica que os impede de serem considerados seres vivos), dependem de células para se multiplicarem. Diferentemente dos organismos vivos, são incapazes de crescer em tamanho e de se dividir. Porém, uma vez dentro da célula, a capacidade de replicação dos vírus é surpreendente: um único exemplar é capaz de multiplicar, em poucas horas, milhares de novos vírus. Não foi à toa que apenas um dos 30 infectados na Coreia do Sul foi o responsável pela transmissão da epidemia que atingiu 196 mil pessoas.

Os vírus são capazes de infectar todos os seres vivos de todos os domínios e representam a maior diversidade biológica do planeta, sendo mais diversos que bactérias, plantas, fungos e animais juntos. Desde o século XIX, cientistas travam uma batalha silenciosa contra os vírus, iniciada por Louis Pasteur, com a teoria microbiana das doenças, que teve um grande avanço quando o microbiologista Charles Chamberland, em 1884, conseguiu filtrar as bactérias. Coube ao microbiologista Martinus Beijerinck, em 1898, identificar pela primeira vez um contagium vivum fluidum (fluido vivo contagioso).Ele introduziu o termo ‘vírus’ para indicar que o agente causal da doença do mosaico do tabaco não tinha uma natureza bacteriana, e sua descoberta é considerada como o marco inicial da virologia.

A partir daí vieram as grandes descobertas: Em 1898, o vírus da febre aftosa (Aphtovirus; em 1901, Walter Reed identificou o primeiro vírus humano, o vírus da febre amarela (Flavivirus). Em 1908, Vilhelm Ellerman e Olaf Bang demonstraram o vírus da leucose aviária. E em 1911, Peyton Rous transmitiu o vírus do sarcoma de Rous de uma galinha para outra. Em 1915, o bacteriologista Frederick William Twort observou que as colônias morriam e que o agente dessa transformação era infeccioso. Em 1937, Max Theiler cultivou o vírus da febre amarela em ovos de galinha e desenvolveu uma vacina a partir de uma estirpe do vírus atenuado.

Em 1949, John Franklin Enders, Thomas Weller e Frederick Robbins cultivaram o vírus da poliomielite em culturas de células embrionárias humanas, o primeiro vírus a ser cultivado sem a utilização de tecido animal sólido ou ovos Este método permitiu a Jonas Salk desenvolver uma vacina eficaz contra a poliomielite.Mas somente após a segunda metade do século XX. a luta contra os vírus ganhou escala: foram reconhecidas mais de 2000 novas espécies de vírus de animais, plantas e bactérias. Em 1957, descobriu-se o arterivírus equino e o vírus da diarreia bovina (um pestivírus). Em 1963, Baruch Blumberg descobriu o vírus da hepatite B, e em 1965, Howard Temin descreveu o primeiro retrovírus. A transcriptase reversa, que é a enzima fundamental dos retrovírus, foi descrita em 1970, por Howard Martin Temin e David Baltimore. Em 1983, a equipe de Luc Montagnier do Instituto Pasteur, na França, isolou pela primeira vez o retrovírus que hoje conhecemos por HIV, ou seja, o vírus da AIDS.

Economia
Bolsonaro é um “criacionista”, não está nem aí para os mistérios da biologia, o mundo dos darwinistas, onde se trava essa guerra sem fim. Sua grande preocupação durante o dia de ontem não era com os infectados pelo coronavírus, que fez a sua primeira vítima em São Paulo. Já são 346 casos em 17 estados, com 8.819 casos suspeitos, 1.890 casos descartados e 18 pessoas hospitalizadas em estado grave (7% do total). Era não prejudicar a economia: “Olha, a economia estava indo bem, fizemos algumas reformas, os números bem demonstravam taxa de juros lá embaixo, o risco, a confiança no Brasil, a questão de risco Brasil também. Então, estava indo bem. Esse vírus trouxe uma certa histeria”, disse. “Tem alguns governadores, no meu entender, eu posso até estar errado, mas estão tomando medidas que vão prejudicar em muito a nossa economia”, completou.

A entrevista de Bolsonaro à Rádio líder dos Diários Associados reiterou dois comportamentos recorrentes do presidente da República nesta crise: primeiro, a subestimação da doença em si, em que pese os exemplos dos demais chefes de Estado em todo o mundo, inclusive seu aliado principal, o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump; segundo, se eximir da responsabilidade e culpar os governadores pelo que vier o ocorrer na economia, no caso, a recessão, que será inevitável. Essa postura somente aumentou o seu isolamento, além de reforçar uma avaliação quase generalizada nos meios políticos, e crescente na opinião pública, de que está despreparado para os desafios do cargo que ocupa, além de não respeitar sua liturgia.

Na segunda-feira, Bolsonaro criticou o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, que vem se destacando no combate à epidemia e lidera os sanitaristas do país na mobilização dos serviços do SUS. Não gostou da participação de Mandetta numa reunião com os chefes dos demais poderes, os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que vem criticando as atitudes de Bolsonaro; do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), e do Supremo Tribunal Federal (STF), ministro Dias Toffoli, que procura atuar como algodão entre os cristais.

A nomeação do ministro da Casa Civil, general Braga Neto, para comandar o comitê de crise que vai gerenciar o combate à epidemia foi vista, erroneamente, como uma maneira de esvaziar a atuação de Mandetta. Não é o caso, pois alguém tem que coordenar todo o governo, mas a “fritura” de Mandetta pela ala mais sectária do Palácio do Planalto estava de vento em popa. Bolsonaro não esconde seu desacordo com as medidas de “distanciamento social” adotadas pelo Ministério da Saúde para evitar a rápida propagação do coronavírus, mas, no final do dia, pressionado pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, e pelos militares que o assessoram, declarou o país em “estado de calamidade pública”, para poder fazer gastos sem romper a “responsabilidade fiscal”., o que ainda depende de autorização do Congresso.

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Luiz Carlos Azedo: Ilustre passageiro

"A reação dos países à epidemia é proporcional à envergadura de seu sistema de saúde, esclarecimento da população e escala de medidas de contenção por parte dos governos"

Um dos mais famosos “cases” da propagada brasileira é um anúncio de bondes: “Veja, ilustre passageiro, o belo tipo faceiro que o senhor tem ao seu lado. E, no entanto, acredite, quase morreu de bronquite, salvou-o o Rum Creosotado”. O poeta Bastos Tigres levou a fama, mas a autoria seria do farmacêutico Ernesto de Souza (1864-1928), criador da fórmula, que até hoje serve de exemplo nas escolas de comunicação, por causa da simplicidade de seus versos. De acordo com o anúncio publicado no jornal Correio da Manhã, de 8 de agosto de 1920, a fórmula do Rum Creosotado, produzido pela centenária Drogaria Granado, era mesmo aquela que aparece na propaganda, com “fartos elementos para a hygiene dos pulmões”: iodo, hypophosphito de sódio (NaH2PO2), e de cálcio [Ca(H2PO2)2]. Naquela época, como grande público tinha baixa escolaridade, os versos e a ilustração facilitavam a propagação do anúncio boca a boca.

Seu principal concorrente era o Biotônico Fontoura, criado em 1910 pelo médico Cândido Fontoura para sua esposa. Seu amigo Monteiro Lobato, que tomava o produto para combater o cansaço, batizou a fórmula exaltando suas propriedades e o nome do criador. O Biotônico ganhou muita fama por causa da Lei Seca dos Estados Unidos (1920-1933), para onde foi exportado e fez muito sucesso como remédio que podia ser comprado nas farmácias, mas que servia para aliviar a abstinência dos beberrões, por causa do teor de 9,5% de álcool. No Brasil, era usado como abridor de apetite das crianças, misturado com leite condensado e ovos de pata, um coquetel antianêmico. Em 2001, a Anvisa proibiu que produtos destinados às crianças tivessem qualquer quantidade de álcool em sua composição, razão pela qual o produto foi modificado, ganhando os sabores morango e uva, sem álcool, para as crianças. Rico em ferro, é vendido até hoje, por R$ 26.

A propósito do tipo faceiro, ilustre passageiro ao lado, era o caso do secretário de Comunicação da Presidência da República, Fábio Wajngarten, que viajou aos Estados Unidos com o presidente Jair Bolsonaro e seus familiares e está com coronavírus. Toda a comitiva presidencial — parentes, ministros, assessores civis e militares, parlamentares — fez exames ontem para saber se alguém mais foi contaminado. Fábio está em isolamento, depois de fazer novo exame em São Paulo; o resultado da contraprova confirmou a infecção. Bolsonaro, a primeira-dama Michelle e o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), filho do presidente da República, fizeram o teste no Palácio da Alvorada, residência oficial da Presidência da República, e não apresentam sintomas da doença.

Desdenhar do coronavírus é a mesma coisa que acreditar que o Rum Creosodato resolveria o problema dos pulmões, numa época em que a penicilina não havia sido descoberta e, por isso mesmo, não existiam antibióticos capazes de curar a tuberculose, e a pneumonia era quase fatal. Essa suposição é alimentada pela baixa letalidade da epidemia (entre 0,5% e 3,5% dos infectados), que atinge grupos de risco (cardiopatas, diabéticos e idosos). O problema é a velocidade da propagação da epidemia, que aumenta sua letalidade por causa da incapacidade de o sistema de saúde atender o crescimento exponencial de casos graves, que exigem entubação dos pacientes em leitos de UTIs. Até a volta dos Estados Unidos, Bolsonaro tratava o assunto de forma até leviana, comparando o coronavírus a uma simples gripe e culpando a imprensa — sempre ela — pelo justificado temor que se disseminou na população, o que é muito diferente de pânico.

Escolhas
Trata-se de uma escolha de Sofia (decisão difícil sob pressão e enorme sacrifício pessoal, como a vista no filme homônimo de 1982, que valeu a Meryl Streep o Oscar de melhor atriz), entre a redução das atividades da sociedade, principalmente as aglomerações e circulação das pessoas, com consequente redução da atividade econômica, ou o colapso do sistema de saúde, sem leitos, máscaras, tomógrafos, respiradores e outros equipamentos para quem precisa, provocando o aumento do número de mortos. A capacidade de reação dos países à epidemia é mais ou menos proporcional à envergadura de seu sistema de saúde, nível de esclarecimento da população e escala de medidas de contenção da epidemia por parte dos governos.

O caso da China proporcionou aos especialistas da Organização Mundial de Saúde (OMS) um estudo do comportamento da doença em diversas regiões do país, que está servindo de paradigma para o enfrentamento da epidemia, sobretudo depois do colapso do sistema de saúde da Itália, que é um dos melhores do mundo. As ruas desertas das cidades italianas escondem o drama terrível dos hospitais lotados, onde não se morre só de coronavírus, mas de câncer, ataque cardíaco, traumatismo craniano, pneumonia e até gripes comuns, por falta de leitos de UTIs.

O Brasil vai contratar 5 mil médicos pelo Programa Mais Médico e direcionar 2 mil leitos de UTI para o tratamento de pacientes com Covid-19 pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O secretário executivo do Ministério da Saúde, João Gabbardo, em entrevista coletiva, revelou que o nível de preocupação com leitos aumentou após registros dos casos na Itália. Ontem, em Florianópolis (SC), prefeitos das capitais e das principais cidades do país, se reuniram para discutir medidas de combate ao coronavírus. Ninguém se iluda, o sucesso no combate ao coronavírus precisa de medidas governamentais corajosas, dos prefeitos e dos governadores, para reduzir a velocidade de propagação da epidemia e contê-la, poupando vidas.

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Folha de S. Paulo: Genoma do novo coronavírus que infectou brasileiro é sequenciado

Cepa encontrada no país se aproxima de patógeno transmitido na Alemanha

Gabriel Alves, da Folha de S. Paulo

O Instituto Adolfo Lutz, em conjunto com o Instituto de Medicina Tropical da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo e com a Universidade de Oxford, sequenciou o genoma do novo coronavírus que atingiu um brasileiro.

A pesquisa contou com apoio da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e do Medical Research Concil, no Reino Unido. O projeto Cadde, uma parceria entre os dois países para o estudo de arboviroses, desenvolve técnicas para monitorar epidemias em tempo real.

Ao "soletrar" as letras que compõem as "frases" do genoma do Sars-CoV-2, é possível aprender sobre como o vírus se espalhou e até mesmo detectar mutações que podem aumentar ou atenuar sua transmissibilidade.

O primeiro caso de coronavírus foi primeiramente testado pelo Hospital Israelita Albert Einstein e confirmado pelo Instituo Adolfo Lutz em 26 de fevereiro. O paciente esteve no norte da Itália, região que registrou um surto da doença na última semana.

A análise, preliminar, está disponível no fórum de discussão Virological.org, que é acessado por cientistas de todo o mundo.

Para Ester Sabino, diretora do Instituto de Medicina Tropical da USP, é importante ressaltar que quanto mais rapidamente as sequências dos vírus forem publicadas, mais se saberá sobre a trajetória da epidemia.

As mutações identificadas eventualmente também podem implicar na necessidade de adaptação dos testes diagnósticos, que buscam idealmente devem identificar regiões do DNA que não mudem tanto. Esses dados também são importantes para a produção de vacinas, já que os anticorpos produzidos têm idealmente que se ligar a todos os vírus daquela espécie, independentemente das cepas.

"A Itália ainda não tem nenhuma sequência enviada. Quando eles começarem a colocar as sequências deles, podem ter uma ideia de onde o surto do país começou. Digamos que apareça um novo caso em São Paulo; um sequenciamento pode ajudar a saber se pessoa pegou o vírus no avião, no aeroporto ou se veio de outro lugar", diz Sabino.

"O feito científico que os pesquisadores do Instituto Adolfo Lutz concluíram hoje é grandioso e merece todos os nossos agradecimentos. O sequenciamento genético do coronavírus é um trabalho inédito e absolutamente fundamental para que novas vacinas sejam desenvolvidas. Isso mostra o comprometimento do Governo de São Paulo com o combate ininterrupto ao coronavírus e nosso apoio total à comunidade de pesquisadores em saúde", diz em nota o governador de São Paulo, João Doria.

O sequenciamento foi feito por meio de um dispositivo portátil. “Desde a década de 1970 se faz sequenciamento genômico, e a ideia era fazer sequenciamento em campo e trabalhar em tempo real. Esse sequenciador é menor que um celular e conectado a um computador por meio de um cabo USB. Consegue fazer um sequenciamento da célula de fluxo, como se fosse um chip onde estão os nanoporos. Dentro dele, colocamos as sequencias da amostra que vai ser lida ao passar pelos poros”, explica Jaqueline Goes de Jesus, do Instituto de Medicina Tropical.

Análises preliminares indicam que o genoma identificado no Brasil tem diferenças em relação ao de Wuhan, epicentro da epidemia e que duas mutações se aproximam da cepa da Alemanha, diagnosticada em transmissão em Munique, região da Bavária.

“Grupos internacionais têm demorado em média 15 dias para gerar e submeter as suas sequências relativas a casos de covid-19, o que destaca a relevância científica da pesquisa brasileira e o pioneirismo do Estado de São Paulo. Essa conquista certamente contribuirá para aprimorarmos as políticas públicas de vigilância e prevenção da doença”, afirma o Secretário de Estado da Saúde, José Henrique Germann.

Colaborou Cláudia Collucci


Luiz Carlos Azedo: O vírus de cada dia

“Por enquanto, o maior problema em relação ao coronavírus no Brasil continua sendo seu impacto no comércio com a China, como acontece com a maioria dos países”

A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) divulgou, ontem, um estudo sobre o comércio internacional de mercadorias nos países do G20, cujo fluxo continuou recuando no quarto trimestre de 2019, “com as exportações e importações caindo para os níveis mais baixos em dois anos”. O comunicado cita o coronavírus como um problema para as trocas entre os países, com chances reais de contaminar os resultados do primeiro trimestre de 2020.

O papa Francisco levou um susto — era uma indisposição —, com suspeita de uma gripe, num país que está à beira do pânico por causa da epidemia de coronavírus. Depois do Irã, a Itália abriga o maior número de casos fora da China. Na América Latina, o Brasil é o primeiro país a ter um caso confirmado de coronavírus, um homem que havia chegado da Itália. A Organização Mundial de Saúde ainda não declarou uma pandemia, mas admite que o risco aumentou e elevou o estado de alerta.

São 132 casos suspeitos no Brasil, em São Paulo (55), Rio Grande do Sul (24), Rio de Janeiro (9), Santa Catarina (8), Paraná (5), Distrito Federal (5), Minas Gerais (5), Ceará (5), Rio Grande do Norte (4), Pernambuco (3), Goiás (3), Mato Grosso do Sul (2), e Paraíba, Alagoas, Bahia e Espírito Santo, com um caso suspeito cada. O Ministério da Saúde trabalha na prevenção, mas já admite que os casos podem chegar a 300 e estuda medidas para enfrentar uma epidemia. Uma delas é antecipar a vacinação contra a gripe, para facilitar o diagnóstico de coronavírus. O carnaval foi um período propício à transmissão de doenças infectocontagiosas, por causa das multidões em circulação e contato físico direto.

Nas redes sociais, circulam informações de toda ordem, desde o áudio do carioca que se acha um super-homem por sobreviver a todas as mazelas da cidade até decálogos de prevenção que receitam de chá de erva-doce a vitaminas, além de lavar as mãos e higienizá-las com álcool gel. O mais sensato é só compartilhar informações oficiais das autoridades de saúde. Nos centros de pesquisa, como Fiocruz e Instituto Butantã, cientistas participam da corrida mundial para desenvolver uma vacina ou encontrar um medicamento eficaz contra a doença. O Brasil tem uma larga experiência de combate a epidemias, mas também coleciona fracassos, como a volta da febre amarela e a resiliência da dengue.

Uma empresa de biotecnologia com sede nos Estados Unidos anunciou que uma vacina produzida em tempo recorde entrou em fase de testes, outra prometeu novidades em razão de seus ensaios clínicos. Na China, universidades e centros de pesquisa especializados, coordenados pelo Centro Chinês de Controle e Prevenção de Doenças, trabalham para produzir remédios e vacinas. Austrália, Suíça, Itália, França, Japão, Coreia do Sul e Reino Unido também correm em busca de um medicamento adequado. Hoje, esse pode ser o melhor negócio do mundo.

Golpismo
Por enquanto, o maior problema em relação ao coronavírus no Brasil continua sendo seu impacto no comércio com a China, como acontece com a maioria dos países. Para o governo brasileiro, porém, isso funciona também como aquela tempestade que desaba quando uma manifestação esvaziada ou show sem apelo popular vai começar: uma boa desculpa para o fracasso dos organizadores. A economia brasileira patina por outros motivos. Os principais são o nosso deficit fiscal, a interrupção das reformas e o diversionismo político de Bolsonaro.

Passado o carnaval, o assunto em pauta na política é a negociação entre o Palácio do Planalto e o Congresso sobre as emendas impositivas ao Orçamento da União. Havia um acordo para derrubada dos vetos do presidente Bolsonaro a emendas da ordem de R$ 30 bilhões, em troca da devolução de R$$ 11 bilhões. O Palácio do Planalto, por meio de seus negociadores, comeu mosca na negociação; depois, resolveu melar o acordo.

Bolsonaro aproveitou a situação para pressionar o Congresso, mobilizando seus partidários pelas redes sociais. Ocorre que a manifestação convocada por seus aliados de extrema direita para o dia 15 de março tem um caráter golpista, pois prega o fechamento do Congresso e do Supremo, além da implantação de um regime ditatorial. Ou seja, oportunista, o vírus do golpismo se aproveitou da situação. Quando Bolsonaro passa os feriados com os filhos Eduardo, deputado federal, e Carlos, vereador no Rio, sempre cria uma nova tensão política nas redes sociais.

Na próxima semana, os políticos e ministros do Supremo voltarão a Brasília. Ontem, o clima já era de recuo organizado no Palácio do Planalto, mas o cristal foi trincado. Generalizou-se a percepção — contra ou a favor — de que Bolsonaro prepara um golpe de Estado e estica a corda para criar uma crise com o Congresso. Sua narrativa e a dos aliados reforçam essa percepção. Ela somente será desfeita com gestos efetivos e não, com declarações evasivas, como até agora.

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IHU Online: Fim do piso para a saúde é o divórcio definitivo da economia dos problemas sociais, diz Ligia Bahia

Por Ricardo Machado, IHU Online

No centro do alvo das políticas administrativas e econômicas do atual governo estão as políticas sociais. Os três pilares que sustentam o austericídio das políticas públicas são as Reformas da Previdência e Trabalhista e a Emenda Constitucional – EC 95, que congelou os investimentos em áreas fundamentais para o país, como saúde, educação e segurança. Uma nova ofensiva visa desmantelar ainda mais o Sistema Único de Saúde – SUS. “A proposta de extinção da proporção fixa de recursos para a saúde seria o corolário das mentiras que justificaram a EC 95 e a reforma da previdência. A economia se divorciou definitivamente dos problemas sociais”, ressalta a professora doutora e pesquisadora Ligia Bahia, em entrevista por e-mail à IHU On-Line.

“O subfinanciamento crônico da saúde pública poderia se tornar desfinanciamento do governo federal. Estados e principalmente municípios teriam que fazer das tripas coração para impedir o caos completo na saúde e possivelmente não conseguiriam evitar a deterioração radical dos serviços de saúde”, avalia a pesquisadora. No fundo há uma visão, por parte de quem defende o corte de recursos para a saúde, vulgarizada do que é o SUS, ao mesmo tempo que se romantizam os planos privados, que, atualmente, devem mais de R$ 1,7 bilhão aos cofres do Sistema Único de Saúde. “A concepção sobre o SUS apenas como prestador de serviços médicos e não como sistema que pesquisa e produz insumos prevalece e agora está ainda mais explícita”, critica.

ataque à saúde pública e universal é mais um capítulo no processo contínuo de destruição das conquistas sociais da Constituição Federal de 1988, que tem ocorrido, de forma explícita, desde 2016. Ao projetar o futuro, Ligia Bahia faz um balanço sobre os investimentos na área nos últimos dez anos. “A década de 2010 se encerra com o SUS em banho-maria e expansão do setor privado, a de 2020 possivelmente consolidará a tendência de enfraquecimento da rede pública. No entanto essas tendências geram crises porque a privatização está longe de ser uma alternativa efetiva para organizar o sistema de saúde em um país como o Brasil”, projeta.

Ligia Bahia é professora associada da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ. Possui graduação em Medicina pela UFRJ, mestrado e doutorado em Saúde Pública pela Fundação Oswaldo Cruz. Tem experiência na área de Saúde Coletiva, com ênfase em Políticas de Saúde e Planejamento, principalmente nos seguintes temas: sistemas de proteção social e saúde, relações entre público e privado no sistema de saúde brasileiro, mercado de planos e seguros de saúde, financiamento público e privado, regulamentação dos planos de saúde. Entre suas publicações, destacamos Planos e seguros de saúde. O que todos devem saber sobre a assistência médica suplementar no Brasil (São Paulo: Unesp, 2010) e Saúde, desenvolvimento e inovação (Rio de Janeiro: Cepesc, 2015).

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Por que a extinção dos pisos para investimento nas áreas de saúde e educação está no raio de ação da PEC do Pacto Federativo?

Ligia Bahia – A proposta de extinção da proporção fixa de recursos para a saúde seria o corolário das mentiras que justificaram a EC 95 e a reforma da previdência. Ambas políticas foram justificadas com o argumento que poderia haver aumento dos recursos para a saúde e o que ocorreu foi o contrário. A economia se divorciou definitivamente dos problemas sociais. Essa ameaça de “liberação” das amarras do orçamento é o ponto máximo dessa ruptura onde haveria um orçamento extraído de impostos, taxas e contribuições que não dialoga com as necessidades sociais do país. Em tempos de Coronavírus ao invés dos esforços para ampliar recursos para a saúde pública o governo anuncia que irá restringir as respostas para a melhoria da saúde.

IHU On-Line – Em específico para a área da saúde, quais os riscos da extinção do piso mínimo de investimento? Como isso se materializaria no cotidiano do SUS?

Ligia Bahia – O financiamento do SUS dependeria exclusivamente da boa ou má vontade de cada governo e assim fica tudo ainda mais difícil. O subfinanciamento crônico da saúde pública poderia se tornar desfinanciamento do governo federal. Estados e principalmente municípios teriam que fazer das tripas coração para impedir o caos completo na saúde e possivelmente não conseguiriam evitar a deterioração radical dos serviços de saúde.

IHU On-Line – O senador Marcio Bittar (MDB-AC), relator da PEC do Pacto Federativo, já declarou que além de educação e saúde, estuda incluir o setor de segurança pública no pool de áreas que devem ter o piso mínimo para investimentos extinto. Quais podem ser as consequências de medidas como essas?

Ligia Bahia – São proposições diretamente derivadas de acepções completamente errôneas sobre as relações entre economia e questões sociais. Nós nunca defendemos engessamento do orçamento, os pisos foram adotados como estratégias de resistência às políticas sucessivas de ajustes fiscais e subfinanciamento do SUS. Os pisos se confundem com tetos exatamente porque os governos não priorizam políticas essenciais para a efetivação de direitos básicos de cidadania. O núcleo do problema nunca foi a “reserva” de recursos e sim a negligência com as políticas sociais.

IHU On-Line – Em mais um verão, o Brasil vê aumentar a incidência de doenças causadas por vetores, como a Dengue. O que esses dados revelam acerca dos investimentos estatais em saúde pública e na própria concepção do SUS nesse último ano?

Ligia Bahia – As arboviroses, entre as quais a Dengue, se tornaram endêmicas no Brasil. O país realizou investimentos na produção de vacinas e mantém esforços em relação à vigilância epidemiológica. Entretanto essas iniciativas sempre foram insuficientes e uma parte delas está sendo descontinuada. A concepção sobre o SUS apenas como prestador de serviços médicos e não como sistema que pesquisa e produz insumos prevalece e agora está ainda mais explícita. A acepção sobre as relações entre saúde e desenvolvimento econômico e social está soterrada sob o cimento da indiferença de autoridades governamentais pelo sofrimento da população com doenças que poderiam ser evitadas.

IHU On-Line – Como avalia atualmente a estrutura e ações de saúde preventiva no Brasil, desde a ação de agentes comunitários de saúde, a unidades de atenção básica?

Ligia Bahia – Estamos certamente diante de uma retração do SUS e de sua possibilidade de resolver problemas de saúde. A prevenção no sentido literal sempre foi frágil e está evidente, desde os casos de febre amarela, que temos problemas muito graves que incluem desde qualidade e transporte adequado de vacinas até a oferta de unidades de saúde abertas limpas e dotadas de profissionais de saúde e medicamentos.

IHU On-Line – Em agosto de 2019, o governo federal encerrou o programa Mais Médicos e abriu, em substituição, o Médicos pelo Brasil. Pouco mais de meio ano depois, como avalia essa mudança?

Ligia Bahia – O programa Mais Médicos foi um marco no Brasil, demonstrou ser possível alocar profissionais de saúde em lugares distantes e inóspitos. O Ministro Mandetta não suprimiu a política de interiorização de médicos. Considero que a continuidade deva ser comemorada como uma conquista da saúde pública. É importante dar seguimento a uma política que busca uma distribuição mais homogênea de recursos. Certamente houve perdas de traços importantes do programa mais médicos relacionados com a presença dos profissionais cubanos: disposição para trabalhar sob condições muito precárias em áreas remotas. Mas houve também o reconhecimento, ainda que não explícito, de seus acertos. Os desafios agora estão explicitados: 1) a alternativa carreira de Estado para médicos é de difícil viabilização, requer formulação e decisão política que são incompatíveis com o sentido e direção da reforma administrativa pretendida pela área econômica; 2) os postos de trabalho em áreas remotas e perigosas não são preenchidos mediante editais de convocação, será necessário encontrar alternativas estruturais e sustentáveis para manter a oferta de serviços nessas localidades.

IHU On-Line – O ano de 2019 encerrou com um verdadeiro caos na saúde pública do Rio de Janeiro. O que esse caso revela acerca da política de saúde pública no Brasil? Como conceber saídas para casos como esse do Rio de Janeiro?

Ligia Bahia – O Rio pode estar na “vanguarda” do caos. A queda de arrecadação, repasse irregular e insuficiente de recursos conjugada com a ausência de liderança de autoridades sanitárias e presença de milícias em unidades de saúde plasmam uma crise de enormes proporções. As saídas requerem reconhecimento dos problemas, transparência e participação e mobilização social para a definição de prioridades e monitoramento permanente da execução de políticas.

IHU On-Line – Quais os desafios para o fortalecimento e manutenção do SUS agora em 2020? E, além da PEC do Pacto Federativo, qual a maior ameaça?

Ligia Bahia – O SUS está de pé, ficou de pé. As principais ameaças são a expansão do setor privado. Os lobbies mais ativos na saúde concentram-se em torno da desregulamentação das coberturas dos planos privados. Empresas privadas querem vender mais planos. Do lado governamental, a principal ameaça é o desestímulo completo das carreiras públicas (um ministro que considera que servidores púbicos são parasitas). Não existirá um SUS abrangente e de qualidade sem servidores públicos muito bem formados, sem uma burocracia moderna e eficiente. A PEC do pacto federativo, a extinção dos mínimos orçamentários são ameaças que poderão ser revertidas por governos que priorizem a saúde, a acepção do SUS como política negativa, fracassada, ultrapassada causa danos irreversíveis.

IHU On-Line – Como o Brasil encerra a década de 2010 na área da saúde? E o que se projeta para a próxima década?

Ligia Bahia – A década de 2010 se encerra com o SUS em banho-maria e expansão do setor privado, a de 2020 possivelmente consolidará a tendência de enfraquecimento da rede pública. No entanto essas tendências geram crises porque a privatização está longe de ser uma alternativa efetiva para organizar o sistema de saúde em um país como o Brasil. Iniciamos a década com uma baita crise na saúde em várias cidades brasileiras.

IHU On-Line – Este ano tem eleições. Como a pauta da saúde deve emergir nesse contexto?

Ligia Bahia – Nas eleições municipais a saúde tem presença garantida nas plataformas eleitorais. Possivelmente haverá novidades porque as velhas soluções mágicas como os corujões, mutirões, atendimento móvel, nada disso deu certo, mostraram-se insuficientes. Temos que contribuir para a elaboração de programas e debates eleitorais que vinculem os temas sociais aos econômicos, buscando impedir que as promessas de campanha sejam meramente retóricas.

 

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Luiz Carlos Azedo: Tempos do coronavírus

“O grande problema para o Congresso entrar em velocidade máxima são as eleições municipais, cujas articulações já estão começando e deverão se acelerar a partir de abril, com abertura do prazo de filiações”

O governo já iniciou a operação para repatriar 29 brasileiros que estão na região de Wuhan, na China, e deverão chegar à Base Aérea de Anápolis (GO) no sábado. Os que tiverem sintomas da doença serão conduzidos diretamente para o Hospital das Forças Armadas, em Brasília. Essa operação é um prenúncio de tempos que poderão ser difíceis para o Brasil, não necessariamente por causa dessas pessoas, ou mesmo dos 14 casos suspeitos em observação no país, mas em razão do impacto que a epidemia em curso na China terá na economia mundial, caso não seja debelada rapidamente.

O acordo comercial dos Estados Unidos com a China, que estabelece relações especiais fora das regras do jogo da Organização Mundial de Comércio (OMC), deve impactar as exportações brasileiras para a China, numa escala que ainda não é mensurável. A redução da atividade econômica chinesa, em razão da epidemia, pode agravar o impacto do acordo no agronegócio e na mineração, que são atividades nas quais a parceria com a China é estratégica. A queda na produção industrial brasileira, no ano passado, por outro lado, refletiu a crise em países da América Latina que tradicionalmente importavam produtos industrializados do Brasil, sobretudo a Argentina.

Essas externalidades precisam ser compensadas para que a economia brasileira volte a crescer. São duas as variáveis necessárias. Uma é o aporte de investimentos estrangeiros, o que depende da aprovação do marco regulatório das concessões e parcerias público privadas. Sem esse marco, o programa de privatizações e concessões do governo não terá a segurança jurídica necessária para atrair esses recursos. A outra é a ampliação do poder de compra da população, que depende da oferta de crédito, uma vez que não haverá aumento da renda de imediato. Não é uma equação fácil.

O governo aposta todas as fichas na agenda econômica do ministro da Economia, Paulo Guedes, que depende da aprovação do Congresso. Em tese, não existe grande objeção dos parlamentares à agenda, mas o tempo é exíguo. O começo da legislatura na segunda-feira e ontem foi meio melancólico, com o Congresso esvaziado. O clima é de pré-carnaval. O governo também não tem capacidade de articulação política suficiente para impor um ritmo diferente aos trabalhos do Congresso, que funciona no seu próprio diapasão.

O grande problema para o Congresso entrar em velocidade máxima são as eleições municipais, cujas articulações já estão começando e deverão se acelerar a partir de abril, com abertura do prazo de filiações partidárias. O que está antecipando essas articulações é a mudança das regras eleitorais, pois todos os partidos estão sendo obrigados a montar chapas proporcionais e a lançar o maior número possível de candidatos a prefeito, com o fim das coligações.

Quarentena
Existe também um certo nível de imponderabilidade em razão do próprio governo Bolsonaro, que fabrica crises de combustão espontânea, a mais recente na Casa Civil, onde o ministro Onyx Lorenzoni passa por um processo de contínua fritura, sem falar na estratégia de confronto adotada em algumas áreas, na qual pontifica o ministro da Educação, Abraham Weintraub, que é foco permanente de fricção política com o Congresso. Para muitos analistas, as diatribes políticas da ala ideológica do governo e até do presidente Jair Bolsonaro são fatores perturbadores do ambiente econômico.

Esse comportamento contrasta com a atuação de outros ministros que têm amplo trânsito no Congresso, como Tereza Cristina, da Agricultura; Tarcísio de Freitas, da Infraestrutura; e Luiz Henrique Mandetta, da Saúde, que rapidamente mobilizou seus aliados no Congresso para aprovar a medida provisória com normas de emergência para enfrentar a ameaça de epidemia de coronavírus, relatada pela deputada Carmem Zanotto (Cidadania-SC) e aprovada ontem à noite pela Câmara, numa tramitação relâmpago. A MP autoriza a realização de quarentenas e outras medidas compulsórias para evitar que a epidemia se instale no Brasil.

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Luiz Carlos Azedo: Imposto do desemprego

“O governo deixará de arrecadar cerca de R$ 10 bilhões em cinco anos, mas a compensação viria na mudança das regras do seguro-desemprego”

Na mensagem enviada ao Congresso Nacional, ontem, o presidente Jair Bolsonaro anunciou suas prioridades para 2020, focadas na agenda econômica: reforma tributária, MP do Contribuinte Legal, independência do Banco Central, privatização da Eletrobras, promoção do equilíbrio fiscal e novo marco regulatório do saneamento. As propostas foram bem recebidas no Congresso, que começou o ano politicamente esvaziado. O ministro da Casa Civil, Ônyx Lorenzoni, cuja pasta foi esvaziada, fez uma entrega protocolar da mensagem. Bolsonaro estava em São Paulo, com o ministro da Educação, Abraham Weintraub, outro que anda em baixa no governo, para inaugurar um colégio militar.

A única proposta de caráter social entre as prioridades do governo é o Programa Verde Amarelo, cujo objetivo é combater o desemprego. O grande jabuti é o desconto de 7,5% de contribuição no seguro-desemprego. Lançada em novembro passado, a proposta já está sendo ironizada no Congresso, onde é chamada de imposto do desemprego, e deve ser rechaçada pela Câmara, ainda mais num ano eleitoral, como aconteceu com outras propostas do ministro da Economia, Paulo Guedes, como a recriação da contribuição sobre operações financeiras e o chamado “imposto do pecado”, a supertaxação do cigarro e da bebida, rechaçada pelo próprio presidente Bolsonaro.

O governo deixará de arrecadar cerca de R$ 10 bilhões em cinco anos, mas a compensação viria na mudança das regras do seguro-desemprego, que possibilitaria uma arrecadação de R$ 12 bilhões em cinco anos. Em compensação, o período de recebimento do seguro-desemprego passaria a contar para a aposentadoria. O Programa Verde Amarelo mira o desemprego, com regras que flexibilizam a legislação em relação ao trabalho aos domingos e feriados, às férias e ao 13% salário. É destinado a trabalhadores que recebam até 1,5 salário-mínimo, em contratos de 2 anos. Estima-se que 500 mil pessoas poderão ser contratadas com a mudança.

Outra proposta do programa é a concessão de R$ 40 bilhões para até 10 milhões em microcrédito, destinados a pequenos empreendedores. De acordo com o governo, os recursos serão direcionados à população de baixa renda, aos “desbancarizados” e aos pequenos empreendedores formais e informais. Outra meta é reinserir no mercado de trabalho 1 milhão de pessoas afastadas por incapacidade, pela via da reabilitação física e habilitação profissional. Também está prevista a contratação de 380 mil pessoas com necessidades especiais.

Coronavírus
O governo está levando a sério a ameça de epidemia de coronavírus chegar ao Brasil, que já tem 14 pessoas infectadas. Ontem, o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, anunciou que o Brasil, mesmo sem casos confirmados de infectados com coronavírus, vai reconhecer estado de emergência em saúde pública. A medida pode viabilizar a retirada dos brasileiros que estão na província de Wuhan, na China, o epicentro da epidemia, que está isolada. De acordo com o Ministério da Saúde, a escolha do local onde será a quarentena dos brasileiros trazidos da China ficará a critério do Ministério da Defesa. Provavelmente, uma base militar, em Florianópolis, em Santa Catarina, ou em Anápolis, em Goiás.

O ministro cita três razões para a quarentena: primeiro, a cidade de Wuhan escolheu fazer um isolamento. Quando se entra em um local de quarentena, se mantém em estado de quarentena. Segundo, lá estão concentrados 67% de todos os casos. Terceiro, quando se traz pessoas de várias regiões do país, elas seriam espalhadas para vários estados do Brasil, daí a necessidade de manter todos eles juntos. O ministro não falou, mas existe uma quarta razão: o sistema hospitalar no Brasil não está em condições de enfrentar uma situação na qual o vírus seja transferido de pessoa a pessoa, seria uma tragédia sem igual, desde a gripe espanhola. A saída é aumentar a vigilância epidemiológica nos aeroportos e portos e isolar os casos suspeitos imediatamente.

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Política Democrática || Ligia Bahia: Saúde no Rio de Janeiro - ascensão, queda e desespero

Reconhecida internacionalmente até os anos 1990, a rede pública de saúde do Rio de Janeiro hoje está sem recursos e enfrenta o caos na atual gestão do prefeito Crivella

A rede pública de saúde no Rio, com seus hospitais de grande porte, centros de saúde e institutos de pesquisa, teve destaque internacional até os anos 1990. A cidade tinha o maior hospital de emergência da América do Sul, realizou a primeira cirurgia de coração e abrigou as iniciativas dos sanitaristas “jovens turcos” (a expressão alude aos oficiais conduzidos ao poder pelo General Ataturke), que propuseram reformas “rápidas e enérgicas”. Durante os governos do médico Pedro Ernesto Baptista (por dois períodos no início dos anos 1930), foram construídos os hospitais Getúlio Vargas, Jesus, Carlos Chagas, Rocha Faria, Paulino Werneck, Miguel Couto e o Hospital Central de Vila Isabel (que recebeu o nome de Pedro Ernesto). Após a II Guerra, os institutos de aposentadorias e pensões edificaram hospitais de grande porte na então capital do país.

Após a II Guerra, mudanças nas práticas clínicas e cirúrgicas impulsionaram investimentos dos Institutos de Aposentadoras e Pensões em hospitais de grande porte, muitos dos quais sediados no Rio de Janeiro. No início dos anos 1960, embaladas pela luta por democratização durante o Estado Novo, as ideias de Mario Magalhães, médico integrante do ISEB, sobre sanitarismo desenvolvimentista, adquirem destaque. A acepção segundo a qual “no Brasil se morre de tuberculose, mas igualmente morre-se de verminose, malária; de falta de assistência médica, por ignorância, e, principalmente, de miséria e fome, em consequência do grande atraso da economia nacional” inspirou um projeto de mudanças estruturantes, sustado pelo golpe de 1964. Com os governos militares e priorização de subsídios e contratos com estabelecimentos privados, termina a época de ouro da saúde pública no Rio.

As acepções reformistas do sistema de saúde só serão retomadas com os movimentos pela redemocratização nos anos 1980, protagonizados por pesquisadores do Rio de Janeiro, como Sérgio Arouca e Hésio Cordeiro. A inscrição do direito à saúde e do SUS na Constituição de 1988 tinha como fundamento a existência de uma rede pública no país e especialmente na cidade do Rio de Janeiro, que seria a base concreta para a garantia de atenção de qualidade para todos. A probabilidade de o SUS “dar certo” seria maior nas regiões com maior densidade de serviços públicos. E o que ocorreu de lá para cá foi uma conjugação de obstáculos à implementação do SUS, exatamente na cidade com a maior rede pública do país. Retração de recursos federais e ziguezagues de políticas de prefeitos e governos estaduais concorreram para o sucateamento dos estabelecimentos públicos de saúde.

A partir dos anos 1990, a cidade de São Paulo, com seus hospitais filantrópicos, privados, luxuosos e equipados, deixa o Rio, até então a cidade vanguarda da medicina e saúde pública, para trás. Houve esforços esparsos para reformar ou expandir a capacidade pública instalada na gestão Cesar Maia, e mais intensos durante o mandato de Eduardo Paes. Mas foram insuficientes para deter tendência estrutural de precarização das instalações físicas e condições de atendimento. Segundo denúncia da Defensoria e do Ministério Público do Rio de Janeiro, a administração municipal deixou de investir R$ 2,2 bilhões na saúde desde o início da gestão de Marcelo Crivella, em 2017, e quase R$ 1 bilhão referente a redução, bloqueio e remanejamento indevido só em 2019, segundo informações da Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde – CNTS. Houve redução de leitos, médicos, agentes comunitários de saúde e procedimentos ambulatoriais. O tempo de espera para consultas eletivas na atenção especializada aumentou de 47 para 88 dias.

Profissionais de saúde, contratados por organizações sociais, passaram a não receber salários em dia e a serem demitidos e reconvocados a trabalhar sob novos contratos. Jovens médicos, expostos diariamente à insatisfação da população com condições de atendimento sempre precárias, estão migrando para cidades nas quais o SUS oferece melhores padrões assistenciais. O desmonte do SUS no Rio de Janeiro atinge atendimentos de ambulância na atenção primária e hospitais de emergência, que são recursos estratégicos para salvar vidas de doentes graves e acidentados. Quem for ferido em um acidente de carro e encaminhado para uma emergência municipal estará no mesmo barco do restante da população. A cidade, que, no passado, teve a melhor rede pública do país, tornou-se exemplo de desmazelo e incúria.

As reiteradas interpelações do Poder Judiciário, Ministério Público e órgãos de controle, como tribunais de contas são imprescindíveis, mas chegam “na ponta”. O desespero prevalece entre pacientes e profissionais de saúde. Os primeiros não sabem se serão atendidos; os segundos não conseguem aplicar seus conhecimentos porque não dispõem de condições adequadas de trabalho.

 


Luiz Carlos Azedo: O tombo

“A nota do Palácio do Planalto é lacônica demais, diante dos comentários do próprio presidente Bolsonaro sobre a queda que sofreu no banheiro do Palácio do Planalto”

Durante cinco anos, o presidente Jair Bolsonaro fez parte da principal unidade de elite do Exército Brasileiro, a Brigada de Infantaria Paraquedista, no Rio de Janeiro, na qual aprendeu a saltar nas mais diversas condições adversas. Quem tem medo de altura ou falta de preparo físico nem se candidata à PQD, um corpo de voluntários. A passagem pela tropa marcou profundamente o comportamento do presidente da República — “quero a insegurança e a inquietação, quero a luta e a tormenta”, diz a canção dos paraquedistas —, mas nem por isso Bolsonaro ficou livre do mais comum e letal acidente doméstico: cair no banheiro.

A queda que sofreu às vésperas do Natal, na banheira do Palácio da Alvorada, engrossou as estatísticas de acidentes domésticos com registro hospitalar. Bolsonaro chegou a ser internado no Hospital das Forças Armadas, onde fez exames e passou a noite em observação (“Eu perdi a memória parcial, hoje de manhã, eu comecei a recuperar muita coisa e agora estou bem. Eu não sabia, por exemplo, o que tinha feito no dia de ontem. Caí de costas, escorreguei para frente e caí de costas”, disse o presidente, em entrevista na TV Band, depois de receber alta). O exame de tomografia computadorizada do crânio, porém, não detectou alterações, afirmam os médicos.

Segundo estudos, as quedas são a terceira principal causa de mortes por causas externas — a primeira são os acidentes de trânsito (23%); a segunda, os homicídios (18,9%). Em 2010, eram 2.520 mortes (10%). Em 2016, esses números saltaram para 3.361 óbitos, taxa de 15% dos casos. A maioria envolve idosos com mais de 65 anos. Das 3.361 mortes, mais da metade (1.809) foram relacionadas a pessoas com mais de 75 anos. No Brasil, 30% dos idosos caem ao menos uma vez ao ano. A falta de prevenção está entre os principais fatores que fazem com que as quedas sejam tão frequentes. Os idosos representam 25% dos casos de internação devido a quedas; desses 25%, 63% foram a óbito.

O acidente com Bolsonaro mexeu comigo na véspera do Natal. No sábado de carnaval passado, perdi um grande amigo, o arquiteto Bruno Fernandes, mais jovem do que eu, em decorrência das sequelas de um traumatismo craniano provocado por um acidente doméstico: escorregou na escada que leva à piscina de sua casa, na Ladeira do Sacopã, e bateu a cabeça num dos degraus, entrando em coma. Operado, passou por longa internação e, já em casa, quando se recuperava, teve uma morte súbita.

Outro grande amigo, o advogado e ex-deputado Marcelo Cerqueira, há alguns anos, ficou tetraplégico em decorrência de um acidente ainda mais banal: levantou à noite para ir ao banheiro, no escuro, e bateu com a cabeça na porta do quarto entreaberta antes de alcançar o interruptor da luz. Ao cair, fraturou a coluna cervical. Havia estado com ele no ano-novo, no apartamento na Avenida Atlântica, onde ainda recepciona os amigos para ver os fogos de artifício de Copacabana; uma hora após a virada, ele havia saído para nadar “100 braçadas mar adentro”, o que fazia todas as manhãs.

Segurança
Quedas ocorrem em decorrência de doenças, hábitos, condição física, dieta e fatores extrínsecos, como condição de vias públicas, decoração dos ambientes e pisos domésticos. Muitas vezes, a queda é causada por AVC, hipotensão, anemia, polipatologias, alteração na visão e/ou no equilíbrio, uso excessivo ou equivocado de medicamentos e, principalmente, perda de força muscular (especialmente nas pernas) e falta de elasticidade e resistência. Às vezes, coincidem com os riscos do local: pisos escorregadios, calçamento irregular, escadas, tapetes, excesso de móveis nos ambientes ou uma banheira das antigas, como a do Palácio da Alvorada. Até mesmo um sapato velho ou tênis molhado podem provocar uma queda.

Bolsonaro já é um sobrevivente da facada que levou durante a campanha e das cirurgias às quais foi submetido em decorrência das sequelas do atentado. Um colega repórter fotográfico registra quase religiosamente todas as solenidades oficiais do Palácio do Planalto. É um especialista nos detalhes que fazem a diferença entre uma foto de capa de revista e uma imagem trivial. Coleciona fotos de autoridades em situações, digamos, desconfortáveis. Em algumas, Bolsonaro aparenta cansaço, mal-estar ou mesmo dor.

Ao contrário do presidente Tancredo Neves, que morreu sem tomar posse, e outros políticos que escondiam as doenças, Bolsonaro não foge dos seus médicos. A nota oficial do Palácio do Planalto, porém, é lacônica demais, diante dos comentários feitos pelo próprio presidente da República sobre a queda que sofreu. A causa do tombo pode ter sido mesmo um simples escorregão, mas Bolsonaro não é mais um capitão paraquedista. Precisa de um banheiro mais seguro. A Caderneta de Saúde da Pessoa Idosa, do Ministério da Saúde, lista medidas de prevenção: claridade, tapete antiderrapante, barras de apoio, campainha e nunca trancar a porta.

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Luiz Carlos Azedo: Quem acha vive se perdendo

“O presidente Jair Bolsonaro está dando mais importância ao próprio achismo do que ao planejamento estratégico com base em estudos e pesquisas científicas”

O trocadilho de Noel Rosa em Feitio de Oração — “Quem acha vive se perdendo/ Por isso agora eu vou me defendendo/ Da dor tão cruel desta saudade/ Que por infelicidade/ Meu pobre peito invade” —, como diria o colega Heraldo Pereira, ajuda a encaixar os fatos da conjuntura. O samba não se aprende no colégio, explica a canção antológica: “O samba na realidade não vem do morro/ Nem lá da cidade/ E quem suportar uma paixão/ Sentirá que o samba então/ Nasce do coração”. Entretanto, governar não é só paixão. Também se aprende no colégio.

O Brasil tem excelentes escolas de administração pública e uma alta burocracia muito bem qualificada, a quem cabe zelar pela legitimidade e consistência técnica das decisões. O achismo na gestão pública é uma perdição, ainda mais num país de dimensões continentais como o Brasil. A escritora norte-americana Bárbara Tuchman (1912-1989) escreveu um livro que trata do achismo e mostra a cegueira dos governantes em momentos decisivos da história: “Os seres humanos, especialmente as autoridades, costumam ser acometidos de um estranho paradoxo: tomar atitudes totalmente contrárias aos interesses da coletividade e, em última análise, a si mesmos, ainda que elas possam parecer o contrário”. Chamou o fenômeno de “a marcha da insensatez”, expressão que intitula seu livro.

A história está cheia de exemplos de decisões desastradas de governantes. A soberba dos papas da Renascença levou a Igreja Católica ao grande cisma protestante. O rei inglês Jorge III, ao tomar medidas extremamente impopulares em suas colônias americanas, impeliu-as a declarar a independência e a fundar os Estados Unidos. A ocupação de Moscou fez Napoleão perder a guerra na Rússia. As coletivizações forçadas de Stálin provocaram uma escassez crônica de alimentos na antiga União Soviética. O Grande Salto Pra Frente de Mao Zedong matou de fome milhões de chineses. A intervenção norte-americana no Vietnã levou os Estados Unidos ao seu maior desastre militar. Aqui no Brasil, recentemente, a “nova matriz econômica” da ex-presidente Dilma Rousseff jogou o Brasil na sua maior recessão e provocou seu impeachment.

O presidente Jair Bolsonaro está dando mais importância ao próprio achismo do que ao planejamento estratégico com base em estudos e pesquisas científicas, realizados para elaborar políticas públicas mais eficientes. As mudanças nas leis de trânsito, por exemplo, são eloquentes quanto a isso. A confrontação da legislação com seus resultados, em termos históricos e estatísticos, mostra que a política estava na direção correta ao desestimular o uso do automóvel e retirar das ruas os motoristas infratores contumazes. Não apenas devido aos indicadores de mortes violentas, mas também por causa do impacto físico e econômico dos acidentes de trânsito no sistema de saúde pública.

Erros estratégicos
O mesmo raciocínio vale para a questão da liberação de venda, posse e porte de armas. O fato de o banditismo ter aumentado devido ao tráfico de drogas não justifica uma política que, em última instância, vai armar os mais violentos. O indivíduo que deseja ter uma arma em casa para se proteger numa situação específica é uma coisa: moradores de zonas rurais, por exemplo; outra, bem diferente, é o sujeito ter uma arma e portá-la nas ruas, simplesmente porque gosta de atirar e pretende fazê-lo se tiver motivação e oportunidade. A maioria dos especialistas em segurança pública é a favor do desarmamento da população. A política correta é desarmar os bandidos (como o nosso Exército fez no Haiti, por exemplo), não é armar quem gostaria de fazer justiça pelas próprias mãos. Além disso, a quebra do monopólio do uso da violência pelo Estado é um risco para a democracia, porque possibilita o surgimento de uma militância política armada, como no fascismo.

Há inúmeros exemplos de achismos desastrosos na condução de áreas específicas do atual governo. É o caso do meio ambiente, onde o desmantelamento da política de proteção ambiental já produziu índices alarmantes de desmatamento na Amazônia, além de reações internacionais à compra de produtos agrícolas brasileiros, por causa da liberação quase que indiscriminada da venda de agrotóxicos. A maior vítima do achismo, porém, é o Censo de 2020, cujo questionário foi enxugado pela nova orientação dada ao IBGE. A alteração da série histórica com relação a diversos indicadores de qualidade de vida da população é uma maneira de varrer para debaixo do tapete nossas desigualdades e iniquidades sociais e pode levar a erros estratégicos graves, com consequências colossais. Cinco dirigentes do corpo técnico do órgão já pediram demissão por causa disso.

As opiniões de pé de ouvido da “bancada da bala”, dos ruralistas e dos caminhoneiros têm mais peso no Palácio do Planalto do que décadas de estudos e pesquisas de cientistas e órgãos especializados, mesmo de estudos de estado-maior das Forças Armadas sobre temas estratégicos para a coesão nacional e o desenvolvimento do país. A última pérola do achismo é o “Peso Real”, a nova moeda que o presidente Bolsonaro anunciou que pretende criar em parceria com o presidente argentino Maurício Macri, que os técnicos do Banco Central (BC), de gozação, já estão chamado de “Sul Real”.

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