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Paulo Fábio Dantas Neto: Desconstrução de memória da gestão Mandetta é ameaça ao SUS
Um debate promovido pela Globo News, na noite do último dia 02.05, mostrou que senta praça na discussão sobre as crises sanitária e política uma desconstrução da imagem positiva que a atuação do Ministério da Saúde contra a pandemia conquistou, junto à opinião pública mais informada e à população em geral, enquanto durou a gestão do ex-ministro Luiz Mandetta. Essa desconstrução política de uma experiência exitosa não é propriamente uma conspiração. Se repararmos nas vozes que a difundem, ou permitem, veremos que a coisa vai além do discurso bolsonarista. Aliás, parece que, para esse polo autoritário, o assunto é página virada, desde que o presidente exonerou o ministro, no qual farejava um concorrente eleitoral. Vozes que atualmente desqualificam, sempre de passagem, nunca frontalmente aquela experiência ocupam posições distintas, algumas até opostas entre si, como ficou claro no referido debate.
A desconstrução começa com uma pergunta de uma jornalista da emissora ao líder do governo na Câmara. Aqui não importa se foi politicamente intencionada ou se apenas superficial e desatenta. Muito menos a resposta dada pelo deputado. Importa reparar no raciocínio que levou à pergunta: o presidente - disse - exonerou o ministro Mandetta no meio da pandemia por discordar do isolamento social que o ministro defendia. O sucessor passaria a praticar outra política. Duas semanas depois, Nelson Teich reafirma que o MS defende o isolamento social. Então, se era para seguir a mesma política, por que Bolsonaro demitiu o ministro? Sem entender de política sanitária ou de gestão de saúde pública, como cidadão e na expectativa de que vozes mais abalizadas que a minha se debrucem sobre esse assunto, pergunto eu, agora:
Mesma política? A frase cínica de Teich revoga a realidade do contraste brutal entre o que era e o que passou a ser a política do ministério? Aonde foi parar aquela ênfase engajada no isolamento como conduta prudente e solidária diante dos fatos de não haver vacina e do vírus ser desconhecido? É a mesma coisa dizer que o isolamento é necessário, mas se calar diante da imprudência, ou mesmo flertar com ela, dizendo que ele deve ser compatibilizado, sob igual prioridade, com os requerimentos imediatos da economia? E por onde anda agora aquela articulação federativa que gerava sintonia fina entre o MS e os governadores? E aquela articulação com o Congresso, para opinar sobre o conteúdo das medidas de combate direto e de mitigação dos efeitos sociais da pandemia? Coincidem com ela a atual lassidão federal face à velocidade da crise sanitária que deve enfrentar e a indiferença do ministro à dimensão política dessa crise? O que significa a secretaria executiva do ministério ter sido desconectada da área de saúde e assumida por um militar interventor? Nada nos diz o simbolismo do principal quadro responsável pela área técnica e todos os que falam pela política de saúde do MS serem obrigados a se despir do colete do SUS, para se sintonizarem com o novo ministro e o interventor? São só mudanças de estilo, ou decretam uma malévola tensão do governo com a gestão do sistema público de saúde e com os vínculos dessa gestão com a sociedade civil?
Pergunta ainda mais importante é: a informação segura, realista, transparente e diária com a qual o MS vinha a público, dispondo-se a responder perguntas, pode expressar a mesma política expressa na atitude que hoje se vê, pela qual a informação rareia ou é filtrada na forma de monólogos? Estamos fora da realidade ao vermos contraste também nos resultados? Nem falo do número de vítimas, pois não há como provar que provém diretamente da insensibilidade social da nova política. Falo do salve-se-quem-puder que começa a acontecer diante da inépcia da logística do ministério para amparar estados e municípios às voltas com o assoberbamento do sistema de saúde. Trata-se do contraste entre a sensação de segurança relativa em meio ao temor, que antes se experimentava e a impressão atual de que o governo desligou os motores do carro do MS para que desça na banguela a ladeira da pandemia. Atitude compatível com o descompromisso, vizinho da sabotagem, que a área econômica desse mesmo governo mostra ao dificultar a aprovação de medidas legislativas de socorro federativo.
Tudo isso em si já é trágico. Então é preciso não deixar que a desconstrução da imagem da política anterior do MS - sugerida pela insólita afirmação de que ela e a atual são a mesma - retire também dos brasileiros até o recurso à memória recente. A informação e as orientações que ela nos legou são uma relativa vacina (única à mão) para proteger pessoas do fatalismo e do desespero, dois filhos perversos do caos alimentado por uma política friamente descolada do drama social. Por isso é importante que a comunidade da saúde se manifeste de modo esclarecedor e não nos deixe pensar que há razões legítimas para desconsiderar o contraste.
A pergunta da jornalista não foi, contudo, o único indicio de desconstrução política que se pode notar no debate da Globo News. Ciro Gomes e João Amoedo, candidatos derrotados nas eleições de 2018, pelo PDT e pelo Novo, discordaram em inúmeras coisas, como convém numa controvérsia entre esquerda e direita, quando travada por personalidades um tanto outsiders, ou instáveis, empenhadas em provar coerência ideológica aos eleitorados dos campos em que querem se situar. Tudo bem, até aí nada a estranhar. São efeitos colaterais da democracia, jogo do qual não queremos abrir mão. Mas esses políticos antípodas uniram-se em idêntica crítica ao que chamaram de isolamento tímido, adotado “desde o começo”, pela política federal de Saúde. Tal como engenheiros de obras prontas receitaram, no futuro do pretérito, o isolamento “radical”, que, segundo eles, deveria ter sido adotado tão logo chegaram ao Brasil as primeiras evidências do vírus. Gomes chegou a citar, como paradigma, a conduta da Nova Zelândia.
Estamos apenas diante de opiniões voluntariosas e diletantes ou de declarações politicamente interessadas em desqualificar a política anterior do ministério? Nessa segunda hipótese, o alvo é mais genérico (o governo federal), ou mais específico, no caso o ex-ministro Mandetta? Mais uma vez, não quero discutir intenções. Discuto implicações objetivas de uma visão como essa. Que ela desconsidera as abissais diferenças de dimensão territorial, de perfil social e cultural que há entre países como Brasil e Nova Zelândia é apenas a parte mais óbvia do equívoco. Espanta, especialmente em Ciro Gomes, um político experimentado e bem informado, a desconsideração do caráter eminentemente federativo da dinâmica de funcionamento do SUS.
Como pretender que ela pudesse se adaptar a tempo a uma política que pressuporia uma incontrastável autoridade do poder central para determinar a estratégia? E ainda que isso fosse possível, como fazer que o fosse instantaneamente, ao estalar de dedos de uma vontade política iluminada? O bom senso indica que teria que se fazer uma escolha entre adotar essa instantaneidade e essa disciplina radicais, à revelia do SUS e/ou atropelando a sua gestão, OU centrar o foco no SUS e na comunidade técnico-científica para traçar a estratégia, o que exige um tempo diverso daquele que o voluntarismo político imagina. Felizmente para o País, adotou-se o segundo caminho, que não se mostrou incompatível com um sentido de urgência.
Foi efetiva e febril a mobilização para aproveitar o isolamento e ampliar o sistema público de saúde, ainda que essa ampliação tenha ficado distante da necessidade, como é óbvio que ficaria. A essa mobilização o país deve as chances, que ainda conserva, de não submergir na tragédia.
Mais: como pretender isolamento instantâneo e radical, que travasse completamente a circulação num país imenso, sem condená-lo previamente a uma crise de abastecimento sobreposta à crise de contaminação? Ao contrário do que disse Bolsonaro, a política anterior do seu governo na área da saúde não descuidava de variáveis econômicas, apenas não as passava na frente da prioridade sanitária. O que os engenheiros de obras prontas propõem agora (sem mais os riscos inerentes à colocação da proposição em prática) é que o MS tivesse preferido o confronto absoluto com a linha do presidente, em vez da atitude firme com que Mandetta sustentou, contra ele, a sua política incremental. Mostra-se aqui como a desqualificação retrospectiva de uma política moderada contrapõe o voluntarismo à prudência e atiça um ambiente político avesso à cooperação e ao entendimento. A emissão de opiniões despreza o exame de resultados objetivos da visão diferente adotada. O debate reduz-se a uma disputa pela verdade. Nisso estamos há alguns anos no Brasil. Talvez por isso a experiência recente, havida no MS, pareça um ponto fora da curva.
Por fim, o debate da Globo News trouxe-nos um terceiro indicio de que, entre o desafio da curva e o cavalo selado que passava para se montar e dobrá-la, prefere-se ficar maldizendo a curva e procurando responsáveis por ela. O ex-candidato do PT na mesma eleição de 2018 perdeu uma excelente ocasião para ter uma atitude diferenciada. Essa esperança se justificava, de alguma maneira, pelos históricos vínculos que aquele partido foi construindo, ao longo do tempo, com o sistema único de Saúde. Embora esse tenha sido concebido, há quase quarenta anos, durante a transição democrática, por um movimento social (o da reforma sanitária), que se moveu sob influência maior de um outro tipo de esquerda, o PT somou-se, historicamente, a essa construção e certamente tem para com ela um real compromisso político.
No debate da Globo News, Fernando Haddad não deixou de declarar esse compromisso, como também fez Ciro Gomes. Sem dúvida, é uma reiteração importante, nesse momento. Mas ele perdeu a chance de usar o palanque que lhe foi franqueado agora - quando a emissora aceita o conflito com o presidente e aposta no seu acirramento - para dar consequência política à sua declaração de princípios. Era preciso defender o SUS pela pedagogia do exemplo. Isso passava por enfatizar o papel fundamental que esse sistema está exercendo, concretamente, na defesa da saúde pública e por mostrar o desastre a que estamos arriscados agora, por ele ter deixado de ser o centro de uma política pública federal. Mas em vez de realçar o contraste entre a política de um e de outro momento do atual governo, Haddad optou por minimizá-lo. Em tom morno e fulanizado, limitou-se a registrar diferença entre o ministro atual, que nada entenderia de SUS e de saúde pública, e o ministro anterior que, pelo menos, teria alguma coisa a ver com o SUS. É pouco, muito pouco mesmo.
Haddad sequer precisaria dar-se ao esforço republicano de elogiar o ex-ministro. Bastaria enfatizar, em vez de diluir, o contraste entre uma política centrada no SUS, como foi a de Mandetta (que vestiu literalmente essa camisa, para muito além de ter “algo a ver” com ela) e a que hoje dispensa o cérebro, ataca o coração e amarra os braços do SUS. Ao contrário de Ciro e Amoedo, ele não criticou a política anterior. Mas deve-se cobrar de um quadro do PT que faça mais do que Pilatos nessa hora. Que se concentre em mostrar à sociedade o que ela perdeu com a mudança da política do MS. Ao deixar de fazê-lo, por motivos que aqui também não vou discutir, ele contribui, objetivamente, para que a desqualificação prossiga e, com ela, a desconstrução de uma imagem que é de interesse público.
A desconstrução do contraste pedagógico entre os dois momentos transcorre não apenas no debate aqui comentado. Jornalista respeitado e respeitável usou sua coluna, no último domingo, para discutir o cada vez mais presente problema de como gerir, eticamente, no sistema de saúde, situações limite em que escassez de leitos e respiradores impõe a médicos escolher quais vidas salvar. Defendeu a fila única com argumentos legítimos e denunciou a resistência das corporações da medicina privada em colocar a utilização dos seus leitos sob regulação pública. Criticou o que seria silêncio conivente do ministério da Saúde para com essa resistência e, de passagem, afirmou ter sido idêntica a postura do ministro anterior. Mas a memória de primórdios da campanha de combate à Covid 19 registra a atuação pessoal do então ministro junto ao Congresso para aprovar a Lei 13979, de 16 de fevereiro de 2020. Ela prevê, explicitamente, em seu artigo 3º, que “Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas”. O inciso VII do mesmo artigo inclui, entre as medidas previstas, “requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa”.
A lei não permite expropriação de leitos de UTI de hospitais privados, por interesse público e prevê indenização posterior, em bases a discutir depois. Mas decerto permite que o ministério apoie requisições administrativas feitas por autoridades sanitárias estaduais e locais e coordene uma regulação nacional que incorpore esses leitos para viabilizar a fila única. Como está claro que é preciso e justo fazer isso, se não o fizer, é justíssima a crítica do articulista. Mas não sua extensão ao antecessor que, além de não ter sido colocado objetivamente diante de tal situação, sinalizou qual seria sua conduta diante dela, empenhando-se na aprovação dessa lei. Ignoro se a moderação do texto final foi do seu agrado. Sendo ou não, ele explicava, naquelas entrevistas diárias, que a lei foi uma medida proposta pelo MS para garantir, entre outras coisas, a regulação do acesso universal ao sistema de saúde na hora mais crítica, à qual estamos chegando agora. Como no caso da profissional da Globo News, não discuto a intenção da crítica do idôneo jornalista. Registro ser injusto imputar silêncio a quem se conduziu de modo oposto.
Penso que os exemplos comentados não são bastantes para afirmar que há uma coalizão de veto à memória daquele processo benigno, ceifado em botão. Mas localizar afinidades argumentativas entre fontes de opinião tão diversas aconselha ligar o alerta. A desconstrução da memória, por intenção, omissão, ou desatenção, é nociva à saúde pública e à política.
Pode ser que alguém interprete esse texto como só um reconhecimento ao papel de Mandetta, ou mesmo como sua defesa política. Nada me custaria fazê-lo. Mas aqui o foco é outro. Quem tem mais a perder com essa desconstrução é o SUS. No lance seguinte desse jogo midiático-político, ele poderá ser responsabilizado pela tragédia com que seus inimigos flertam.
*Cientista político e professor da UFBA.
Luiz Carlos Azedo: Emergência e fricção
“Bolsonaro agrega à epidemia de coronavírus um ambiente político de conflitos desnecessários e estresse institucional, com crises criadas dentro do governo”
Nunca vivemos, desde a gripe espanhola de 1918, uma emergência sanitária como a que o mundo atravessa. O problema do novo coronavírus é que ainda há mais dúvidas do que certezas em relação à doença, exceto que se propaga muito rapidamente, é letal para um contingente significativo de suas vítimas e não se tem previsão de quando e se teremos uma vacina que o previna, nem um remédio realmente eficaz para combatê-lo. O que tem sido mais eficiente no combate à epidemia é o distanciamento social e um sistema público de saúde robusto, para tratar os casos graves e salvar vidas.
Ninguém estava preparado para enfrentar o coronavírus, essa é a verdade. Mas talvez nenhum outro governante no mundo tenha revelado tanto despreparo para lidar com a situaçao como o presidente Jair Bolsonaro. Até hoje, não se deu conta de que a volta à normalidade é impossível enquanto o vírus estiver se propagando numa velocidade maior do que a capacidade de atender as pessoas que necessitam de assistência médica, pois isso significa pôr em colapso o sistema de saúde e, consequentemente, toda a economia.
Os números revelados até ontem são eloquentes: 7.321 mortes e 107.780 casos confirmados, dos quais 32.187 em São Paulo, com 2.654 mortes. Com a subnotificação, calcula-se que o número de pessoas contaminadas no país pode se aproximar de 1 milhão. Uma conta simples, usando como base o índice otimista de que 3% necessitarão de internação, projeta uma demanda próxima de 30 mil vagas em leitos hospitalares nos próximos 30 dias. Essa é a bucha na mão de governadores e prefeitos de todo o país. Em Manaus, Recife, Fortaleza e Rio de Janeiro, já há gente morrendo por falta de vagas nas UTIs, o que pode se reproduzir nos demais estados, a começar por Santa Catarina, a bola da vez.
É inequívoco que o país está sofrendo as consequências do relaxamento da política de distanciamento social, que é estimulado sistematicamente pelo presidente Jair Bolsonaro, com eco no desespero da parcela da população que perdeu suas fontes de renda. Com o agravante de que os R$ 600 aprovados pelo Congresso ainda não chegaram à parcela considerável dos que têm direito ao benefício, por dificuldades operacionais da Caixa Econômica Federal, que centralizou, desnecessariamente, o cadastramento dos beneficiados e a distribuição dos recursos. O desespero nas filas das agências da Caixa revela a outra face do drama humano que estamos vivendo.
Entretanto, o custo econômico do colapso total do sistema de saúde, provocado pela volta atabalhoada às atividades do comércio e dos serviços, seria muito maior do que o da atual política de distanciamento social. Essa dimensão do problema o presidente Bolsonaro não quer aceitar, assim como a bolha de apoiadores fanatizados com a qual interage. Ninguém sabe como sairemos dessa crise. Com certeza, porém, teríamos perspectivas mais otimistas se não houvesse tanta fricção no combate à epidemia, principalmente política.
Protagonismo
Quem mais protagoniza essa fricção é o presidente da República, que parece sabotar os próprios esforços do governo para combater a epidemia e criar um ambiente de cooperação entre os Poderes e demais entes federados, para mitigar seus efeitos econômicos e sociais. Até mesmo as relações com os parceiros internacionais, dos quais dependemos para obter mais equipamentos e insumos, notadamente, a China, sofre os efeitos dessa fricção. Na cena internacional, o Brasil voltou a ser um país exótico e, agora, politicamente isolado. A construção de gerações de diplomatas do Itamaraty está sendo implodida pelo chanceler Ernesto Araújo.
Essa fricção agrega à epidemia de coronavírus um ambiente político de conflitos desnecessários e estresse institucional, deteriorado por crises criadas dentro do próprio governo, pelo presidente da República. Ontem, Bolsonaro nomeou a toque de caixa o novo diretor da Polícia Federal, delegado Rolando Alexandre de Souza, que decidiu trocar a chefia da superintendência do Rio de Janeiro. Carlos Henrique Oliveira, atual comandante do estado fluminense, foi convidado para ser o diretor executivo da Polícia Federal, deixando a Superintendência do Rio, cuja direção Bolsonaro sempre quis indicar. Por sua vez, o procurador-geral da República, Augusto Aras, pediu ao Supremo Tribunal Federal (STF) que autorize novas diligências no inquérito que apura suposta interferência política do presidente Jair Bolsonaro na Polícia Federal.
Relator do caso, cabe ao ministro Celso de Mello autorizar a oitiva de pessoas citadas por Moro em depoimento; a recuperação de áudio ou vídeo que comprove a suposta tentativa de interferência; e a perícia nas informações obtidas a partir do celular de Moro. Dez pessoas do alto escalão do governo serão ouvidas, entre as quais os ministros Luiz Eduardo Ramos (Governo); Augusto Heleno (GSI), Braga Netto (Casa Civil); a deputada Carla Zambelli (PSL-SP); o ex-diretor-geral da Polícia Federal Maurício Valeixo; e os delegados da PF Ricardo Saadi, Carlos Henrique de Oliveira Sousa, Alexandre Saraiva, Rodrigo Teixeira e Alexandre Ramagem Rodrigues. O que se investiga? “O eventual patrocínio, direto ou indireto, de interesses privados do Presidente da República perante o Departamento de Polícia Federal, visando ao provimento de cargos em comissão e a exoneração de seus ocupantes”. Mais fricção à vista.
Elio Gaspari: A fila única para a Covid está na mesa
Rede privada tem 15.898 leitos de UTIs, com ociosidade de 50%, e a rede pública tem 14.876 e está a um passo do colapso
O médico sanitarista Gonzalo Vecina Neto defendeu a instituição de uma fila única para o atendimento de pacientes de Covid-19 em hospitais públicos e privados. Nas suas palavras:
“Dói, mas tem que fazer. Porque senão brasileiros pobres vão morrer e brasileiros ricos vão se salvar. Não tem cabimento isso”.
Ex-diretor da Agência de Vigilância Sanitária e ex-superintendente do Hospital Sírio-Libanês, Vecina tem autoridade para dizer o que disse. A fila única não é uma ideia só dele. Foi proposta no início de abril por grupos de estudo das universidades de São Paulo e Federal do Rio. Na quarta-feira, o presidente do Conselho Nacional de Saúde, Fernando Zasso Pigatto, enviou ao ministro Nelson Teich e aos secretários estaduais de Saúde sua Recomendação 26, para que assumam a coordenação “da alocação dos recursos assistenciais existentes, incluindo leitos hospitalares de propriedade de particulares, requisitando seu uso quando necessário, e regulando o acesso segundo as prioridades sanitárias de cada caso.”
Por quê? Porque a rede privada tem 15.898 leitos de UTIs, com ociosidade de 50%, e a rede pública tem 14.876 e está a um passo do colapso.
O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta (ex-diretor de uma Unimed) jamais tocou no assunto. Seu sucessor, Nelson Teich (cuja indicação para a pasta foi cabalada por agentes do baronato) também não. Depois da recomendação do Conselho, quatro guildas da medicina privada saíram do silêncio, condenaram a ideia e apresentaram quatro propostas alternativas. Uma delas, a testagem da população, é risível, e duas são dilatórias (a construção de hospitais de campanha e a publicação de editais para a contratação de leitos e serviços). A quarta vem a ser boa ideia: a revitalização de leitos públicos. Poderia ter sido oferecida em março.
Desde o início da epidemia os barões da medicina privada se mantiveram em virótico silêncio. Eles viviam no mundo encantado da saúde de griffe, contratando médicos renomados como se fossem jogadores de futebol, inaugurando hospitais com hotelarias estreladas e atendendo clientes de planos de saúde bilionários. Veio a Covid, e descobriram-se num país com 40 milhões de invisíveis e 12 milhões de desempregados.
Se o vírus tivesse sido enfrentado com a energia da Nova Zelândia, o silêncio teria sido eficaz. Como isso era impossível, acordaram no Brasil, com 60 mil infectados e mais de seis mil mortos.
A Agência Nacional de Saúde ofereceu aos planos de saúde acesso aos recursos de um fundo se elas aceitassem atender (até julho) clientes inadimplentes. Nem pensar. Dos 780 planos, só nove aderiram.
O silêncio virótico provocou-lhes uma tosse com a recomendação do Conselho Nacional de Saúde. A fila única é um remédio com efeitos laterais tóxicos. Se a burocracia ficar encarregada de organizá-la, arrisca só ficar pronta em 2021. Ademais, é discutível se uma pessoa que pagou caro pelo acesso a um hospital deve ficar atrás de alguém que não pagou. Na outra ponta dessa discussão, fica a frase de Vecina: “Brasileiros pobres vão morrer e brasileiros ricos vão se salvar.” Os números da epidemia mostram que o baronato precisa sair da toca.
A Covid jogou o sistema de saúde brasileiro na arapuca daquele navio cujo nome não deve ser pronunciado (com Leonardo DiCaprio estrelando o filme). O transatlântico tinha 2.200 passageiros, mas nos seus botes salva-vidas só cabiam 1.200 pessoas: 34% dos homens da primeira classe salvaram-se; na terceira classe, só 12%.
Sinal dos tempos estranhos
Um dia alguém vai estudar o Brasil de 2020 durante a pandemia.
Enquanto a rede pública de saúde dava sinais de colapso, o presidente da Federação Brasileira de Hospitais, guilda de 4.200 instituições privadas, informava que a ociosidade média dos leitos de UTIs de seus associados estava em 50%.
O diretor do Sírio-Libanês, o hospital das celebridades (Lula, Dilma e companhia), explicava o efeito dessa ociosidade, provocada pela suspensão dos procedimentos eletivos para clientes de planos de saúde dos abonados:
“Todos os nossos hospitais nesse momento que estão com ocupação baixa têm custos fixos que têm que ser pagos. Essas empresas vão ficar numa situação econômica difícil. Já neste mês há instituições com dificuldade de pagar a folha de pagamento. Outros vão aguentar de dois a três meses. Mas se essa situação persistir por muito tempo, vão ter problema de solvência.”
Se esse darwinismo econômico é irredutível, vale o que disse o doutor Paulo Guedes: “É da vida ser abatido, é do mercado. Uma economia de mercado de vez em quando é atingida”. Quem acha que é da vida ser abatido pelo coronavírus deve entender que também é da vida que sua empresa pegue o vírus da insolvência.
Madame Natasha
Natasha adora as entrevistas do ministro Nelson Teich. Suas platitudes permitem que ela tire sonecas vespertinas.
Por acaso ela ainda não tinha adormecido quando o doutor disse o seguinte:
“O que tem que ficar claro é que é um número que vem crescendo”.
Naquele dia haviam morrido 473 pessoas (durante todo o ano em que combateu o exército alemão na Itália, a Força Expedicionária Brasileira perdeu 474 pracinhas).
Como o ministro havia visto sinais de que a epidemia estava contida, deveria ter dito o seguinte:
“Ficou claro para mim que o número vem crescendo.”
Na mesma entrevista, o ministro apontou para o fato de que o aumento das mortes estava restrito a alguns estados, como São Paulo, Rio e Amazonas.
Em agosto de 1945, os militares japoneses aloprados diziam em Tóquio que havia um problema restrito às cidades de Hiroshima e Nagasaki.
Chavismos
A deputada Joice Hasselmann, ex-líder do governo de Jair Bolsonaro no Congresso, disse à repórter Julia Chaib que o Brasil corre o risco de cair “num chavismo de verdade, com sinal trocado”.
Em 2018, durante a campanha eleitoral, o general Hamilton Mourão, que foi adido militar na Venezuela, explicou a essência do poder chavista:
“Existe uma corrupção muito grande nas Forças Armadas venezuelanas. Elas perderam a mão em relação à missão que têm no país.”
Vargas tentou
Quando o ministro Alexandre de Moraes bloqueou a nomeação de um delegado amigo da família Bolsonaro para a direção da Polícia Federal, mostrou que o bom funcionamento das instituições acaba protegendo os presidentes.
Na manhã de 29 de outubro de 1945, Getulio Vargas decidiu nomear seu irmão Benjamin para a Chefatura de Polícia do Rio, um dos cargos mais importantes da República. À noite, estava deposto.
Eremildo, o idiota
Eremildo é um idiota e garante:
Essa epidemia é uma gripezinha, o programa Pró-Brasil era apenas um estudo e o amigo inglês de Paulo Guedes está pronto para oferecer 40 milhões de testes para o coronavírus.
Luiz Carlos Azedo: A 'gripezinha'
“Passou da hora de o presidente Bolsonaro ir a Manaus para ver o colapso do SUS. Os profissionais de saúde precisam de mais apoio e distanciamento social”
O biólogo e escritor britânico Richard Dawkins, professor emérito do New College da Universidade de Oxford — autor de O Gene Egoísta e Evolução, entre outras obras —, num comentário no Twitter, chama a atenção para um artigo da revista Science Magazine, da Associação Americana para Avanço da Ciência (AAAS), intitulado Como o coronavírus mata?, publicado no dia 17 deste mês. De autoria dos médicos Meredith Wadman, Jennifer Couzin-Frankel, Jocelyn Kaiser, Catherine Matacic, é um dos melhores textos sobre a pandemia, segundo Dawkins: “Se as pessoas na administração entenderem isso ou se importarem com isso, haveria um resultado melhor para a sociedade”, avalia.
Tratar desse assunto pode parecer chover no molhado, pois não se fala de outra coisa, mas o artigo realmente é muito bom. Ele faz um relato de como o novo coronavírus ataca o corpo humano e seus efeitos devastadores, “do cérebro aos pés”, ultrapassando o senso comum do diagnóstico de que é apenas uma síndrome respiratória aguda. “Pode atacar quase tudo no corpo, com consequências devastadoras”, segundo o cardiologista Harlan Krumholz, da Universidade de Yale e do Hospital Yale-New Haven, que lidera vários esforços para reunir dados clínicos sobre a Covid-19. “Sua ferocidade é de tirar o fôlego e é humilhante.”
O artigo corrobora o relato dos sobreviventes da doença e o testemunho dos médicos e de outros profissionais da saúde que atuam nas unidades de terapia intensiva aqui no Brasil. Muitas vezes esses últimos são duplamente derrotados: além de perderem pacientes, acabam adoecendo também e, em alguns casos, até morrem. Já passou da hora de o presidente Jair Bolsonaro ir a Manaus para ver o que é um colapso do Sistema Único de Saúde (SUS) em meio à pandemia e parar de falar bobagens sobre a “gripezinha”. Tudo o que os profissionais de saúde precisam neste momento dramático é de mais apoio (equipamentos de proteção, respiradores, medicamentos) e distanciamento social.
Médicos e patologistas de todo o mundo estão lutando para entender os danos causados pelo coronavírus no corpo humano. Embora os pulmões sejam o ponto zero, o alcance do patógeno pode se estender a muitos órgãos, incluindo o coração e os vasos sanguíneos, rins, intestino e cérebro, o que explica a grande subnotificação do número de mortos, inclusive aqui no Brasil, devido às dificuldades de diagnóstico e falta de autópsias.
A escalada
O vírus age como nenhum patógeno que a humanidade jamais viu. Quando uma pessoa infectada expele gotículas carregadas de vírus e outra pessoa as inala, o novo coronavírus (Sars-CoV-2) encontra um lar bem-vindo no revestimento do nariz, cujas células são ricas em uma enzima conversora de angiotensina 2 (ACE2), assim como na traqueia. Em todo o corpo, a presença de ACE2, que normalmente ajuda a regular a pressão sanguínea, marca os tecidos vulneráveis à infecção, porque o vírus entra nessa célula receptora. Uma vez dentro, o vírus sequestra as máquinas da célula, fazendo inúmeras cópias de si mesmo e invadindo novas células.
À medida que o vírus se multiplica, uma pessoa infectada pode lançar grandes quantidades dele, principalmente durante a primeira semana. Os sintomas podem estar ausentes neste momento. Ou a nova vítima do vírus pode desenvolver febre, tosse seca, dor de garganta, perda de olfato e paladar ou dores de cabeça e corpo. Se o sistema imunológico não repelir o Sars-CoV-2 durante esta fase inicial, o vírus marcha pela traqueia para atacar os pulmões, onde pode se tornar mortal. Mas o vírus, ou a resposta do corpo a ele, pode ferir muitos outros órgãos: cérebro, olhos, fígado, coração e vasos sanguíneos, rins e intestinos.
Alguns médicos suspeitam de que o ataque vertiginoso do coronavírus no organismo seja uma reação exagerada e desastrosa do sistema imunológico conhecida como “tempestade de citocinas”, na qual os níveis de certas citocinas sobem muito além do necessário, e as células imunológicas começam a atacar tecidos saudáveis. Pode ocorrer vazamento de vasos sanguíneos, queda de pressão arterial, formação de coágulos e falência catastrófica de órgãos. Mas o pior dos mundos, com a presença de vírus no trato gastrointestinal, pode ser a possibilidade inquietante de que ele seja transmitido pelas fezes, ainda mais num país como o nosso, no qual somente uma parcela da população tem esgoto tratado. A sorte, porém, é de que ainda não está claro se as fezes contêm vírus infecciosos intactos ou apenas o seu RNA (ácido ribonucleico), uma molécula responsável pela síntese de proteínas das células do corpo.
http://blogs.correiobraziliense.com.br/azedo/nas-entrelinhas-a-gripezinha/
Miguel Calmon du Pin e Almeida: Sobre novas escolhas
Pelo que tenho lido, o maior responsável pelo número de mortes na pandemia que estamos atravessando é o tempo. Adoecemos todos ao mesmo tempo, e assim não dá tempo de cuidar de todos os que adoecem. Morremos aos milhares por falta de assistência médico-hospitalar. Não dá tempo.
O isolamento social horizontal, corretíssima estratégia adotada nos países que têm conseguido melhores resultados no enfrentamento da pandemia, é uma determinação para ganharmos tempo. Ganhar tempo, me repito, significa que não adoeçamos todos simultaneamente, que aconteça a rotatividade na ocupação dos leitos hospitalares, que os recursos necessários aos cuidados possam ser produzidos para todos.... Ganhar tempo, eis o que estamos lutando por alcançar.
Não é curioso que isso aconteça no momento histórico onde a maior parte das reflexões e observações sobre a vida cotidiana fale sobre a aceleração do tempo? Tudo on-line, em tempo real, a capacidade orgulhosamente exibida de estarmos em vários lugares ao mesmo tempo, nos ocuparmos de várias atividades ao mesmo tempo. Na hierarquia que avalia moralmente os indivíduos e as sociedades, quanto mais em menor tempo, mais valioso se é.
A pandemia revirou esta lógica consumista de cabeça pra baixo. No confinamento de cada um de nós, temos sido desafiados a (re)aprender a desacelerar o tempo.
Olhando de longe, para aqueles que tem condições de algum conforto, ficar em casa não parece ser um grande desafio. Olhando de longe. Porque, de perto, vermo-nos privados de pequenas próteses, cuja finalidade é manter nosso equilíbrio mental, nos expõe ao risco de desorganizações as mais variadas, em seus modos e intensidades. Refiro-me a pequenas atividades que servem como barreiras de contenção, barreiras de paraexcitacão, ao desenvolvimento da angústia. Quando tais barreiras nos faltam, ficamos expostos ao risco de não termos como frear o ritmo avassalador com que a angústia nos invade, e de que ela nos prive da maior parte de nossos recursos intelectuais e afetivos.
Tenho pensado que o que justifica o enorme esforço que todos temos feito para “ficar em casa” se dá no encontro e reconhecimento destas pequenas atividades que nos servem como barreiras de contato contra a invasão da destrutividade.
Entender e aceitar que a determinação da OMS para o isolamento social é físico e não afetivo. Com certeza, este entendimento tem favorecido o uso dos mais variados aplicativos, por meio dos quais temos mantido contato com nossos filhos, netos, amigos e colegas. É fundamental não se deixar isolar pelo isolamento social.
Do mesmo modo, os afazeres domésticos: amigos e amigas empenhados em aprender a passar roupa, a cozinhar, faxinar a casa. Outro dia, engraxei os meus sapatos. Isso que dito deste jeito parece uma brincadeira, e em certo sentido o é. No entanto esta brincadeira tem uma função extraordinária ao estabelecer as tais barreiras de contato. Não esperemos que sejam a solução de tudo. Seu reconhecimento se faz na percepção de que, depois de nos ocuparmos mecanicamente destes afazeres, algo em nosso humor mudou. Por um certo tempo, o automatismo exigido nestas tarefas barra, ou, na melhor das hipóteses, desacelera o desenvolvimento da angústia. Tenho observado que aqueles que visam como finalidade de suas ações o se livrar definitivamente da angústia, estes são os que se desesperam. Ao fracassar, se desesperam. Nada mais há por fazer. Liberado o caminho para pulsão de morte, o meio mais rápido para se livrar de tudo é... se livrar de tudo.
Tempos muito difíceis, duros, quando estamos sendo desafiados a desacelerar o tempo a fim de dar tempo para sobrevivermos à pandemia.
Muitas perdas, muitas dores, muito medo.
Ao mesmo tempo, temos tido oportunidade de descobertas as mais surpreendentes, e algumas até mesmo sublimes, que espero que possam se manter para além da pandemia.
O novo coronavírus mudou a face da Terra. Serei apenas mais um a repetir que a vida não será mais a mesma e a maneira com que enfrentarmos a Covid-19 determinará que caminhos se abrirão à nossa frente: se o caminho da necessária e urgente cooperação e solidariedade entre todos (cuidar de mim implica cuidar dos outros e vice-versa); ou se se acirrará o caminho do “América first”, como se a vida no planeta fosse possível em desconexão com os demais indivíduos, esquecendo ensinamentos fundamentais de Freud, principalmente aquele que nos mostra que nos constituímos na relação com os semelhantes.
Luiz Carlos Azedo: A caneta fatal
“Desde que assumiu, Bolsonaro tenta centralizar e verticalizar o poder, o que é uma fonte de conflitos, mas também de equívocos políticos e administrativos”
A caneta Bic é um “case”” de qualidade e produtividade, funciona muito bem e custa relativamente barato. Do ponto de vista da sua finalidade, não fica nada a dever a uma Mont Blanc, objeto de desejo de muitos empresários e executivos vaidosos, como símbolo de riqueza e/ou poder. Lembro de um velho conhecido recém-chegado ao poder que exibiu a sua Mont Blanc na hora de pagarmos o almoço, ficou bravo comigo porque lhe disse, ironicamente, que era caneta de rico. Lascou-se depois, porque a caneta havia lhe sido presenteada por Marcos Valério, aquele publicitário carequinha do escândalo do “mensalão”do PT. Seu nome estava na lista de mimos em poder da secretária, havia ganho a caneta de presente, como brinde de ano-novo.
Secretárias podem ser protagonistas da grande política, assim como a ex-mulher, o motorista ou o caseiro. A política deixou de ser monopólio dos políticos, dos diplomatas e dos militares, como era antigamente. Quando exibe a sua Bic, o presidente Jair Bolsonaro sinaliza para a sociedade que é um homem austero, simples, que não se deixou deslumbrar pelo poder. É um recado que passa para preservar a sua imagem de presidente da República eleito contra o “sistema de poder” e a “velha política”. Será? No seu caso, isso é falso; o problema não é a caneta, é a tinta. Não existe caneta mais poderosa e endinheirada do que a sua Bic. Haja vista a negociação em curso com o Centrão.
Ontem houve a nova troca de cadeiras na Esplanada. Bolsonaro nomeou dois novos ministros: André Mendonça na Justiça e José Levi na Advocacia-Geral da União. Ambos foram elogiados pela competência técnica por Gilmar Mendes e Luís Barroso, ministros do Supremo Tribunal Federal (STF). Bolsonaro desistiu de nomear o atual secretário-geral da Presidência, ministro Jorge Oliveira, que trata como afilhado, para o lugar que era ocupado por Sergio Moro, por pressão dos ministros militares e a pedido do próprio Oliveira. Mas ninguém se iluda, a causa da dança nas cadeiras foi a nomeação do delegado Alexandre Ramagem para a diretoria-geral da Polícia Federal, no lugar de Maurício Valeixo, pivô da crise entre Bolsonaro e o ex-ministro Sérgio Moro. O novo diretor-geral chefiava a Agência Brasileira de Informações (Abin).
O juiz federal Francisco Alexandre Ribeiro, de Brasília, deu prazo de 72 horas para a União prestar informações sobre a exoneração de Maurício Valeixo da direção-geral da Polícia Federal. Ele é relator de três ações populares que buscam impedir a nomeação de Alexandre Ramagem por desvio de finalidade. O fato é importante para se ter a dimensão do problema criado pelo presidente Bolsonaro para si próprio, supostamente com objetivo de obter informações confidenciais sobre investigaçoes criminais e relatórios de inteligência. Embora subordinada administrativamente ao Executivo, a Polícia Federal é técnica e judiciária, tem sua própria autonomia, que se traduz na competência dos delegados para presidir os inquéritos policiais.
A Polícia Federal é um órgão de excelência, com pessoal concursado e altamente qualificado, recrutado entre os melhores com vocação para esse tipo de atividade. De certa forma, foi blindada pela Constituição para não cumprir o papel de polícia política, como aconteceu durante o regime militar, quando complementou e legitimou a atuaçao de órgãos clandestinos de repressão política das Forças Armadas. Esse trauma fez com que os constituintes atribuíssem claramente à PF o papel de um órgão de coerção do Estado, e não do governo. A nomeação de Ramagem, um delegado de carreira, resgata esse trauma, não por causa de sua competência técnica, mas devido à motivação da mudança. Além disso, sendo mais novo na carreira, fura a fila das promoções, o que sempre deixa sequelas, haja vista a situação no Itamaraty.
Inércia continental
Vivemos numa democracia de massas, o Estado brasileiro é ampliado, não no sentido da quantidade de servidores ou da intervençao na economia, mas de sua relaçao com os demais Poderes e entes federados, com a sociedade e suas instituições. Desde que assumiu, Bolsonaro tenta centralizar e verticalizar o poder, o que é uma fonte de conflitos, mas também de equívocos políticos e administrativos. Num país de dimensões continentais, a força de inércia das decisões do governo federal é imensa, como a de um grande navio cargueiro na hora de manobrar e de parar. Por isso mesmo, uma decisão equivocada pode se tornar um desastre irreversível. O fato de termos um Executivo que interage com outros poderes e esferas de governo, permeável à sociedade e que se relaciona com suas instituições, reduz a margem de erro e amplia a de soluções.
Agora mesmo, na epidemia de coronavírus, estamos sofrendo as consequências da mudança de postura do governo federal em relação ao distanciamento social. Ultrapassamos a China em número de mortos — mais de cinco mil — e estamos no limiar da barreira das 500 mortes por dia, em consequência do relaxamento da quarentena estimulado por Bolsonaro. É patético ver o ministro da Saúde, Nelson Teich, com cara de mareado no navio; o general encarregado da logística, não se dar conta de que o número de novos contaminados que precisam de UTI é muito maior do que o de respiradores que consegue distribuir; e o principal sanitarista do MS guardar o colete do SUS no armário e, de paletó e gravata, esquecer o bordão que disseminou por todo o país: “Fiquem em casa”. Depois dos Estados Unidos e Reino Unido, somos o terceiro em número de mortos por dia. Ou seja, estamos virando o epicentro da pandemia.
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Luiz Carlos Azedo: A calmaria
“A preocupação de Bolsonaro era acabar com os boatos de que Paulo Guedes estaria desembarcando da equipe, em razão das divergências com os militares”
O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), jogou um balde de água fria nas articulações para dar início a um processo de impeachment do presidente Jair Bolsonaro, o que depende dele. Uma de suas atribuições é aceitar ou arquivar, monocraticamente, os pedidos de impeachment. “Processos de impeachment e possibilidade de CPIs precisam ser pensadas e refletidas com muito cuidado. Acredito que o papel da Câmara dos Deputados neste momento, nos próximos dias, é que a gente volte a debater, de forma específica, a questão do enfrentamento ao coronavírus”, afirmou, em entrevista coletiva na Câmara. Nesta semana, acaba o seu prazo de 10 dias para informar ao ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Celso de Mello sobre os pedidos que já chegaram à Câmara, que acusam Bolsonaro de crime de responsabilidade, tanto na demissão de Moro como na postura diante da epidemia de coronavírus.
A comissão parlamentar mista de inquérito (CPMI) para investigar as denúncias do ex-ministro da Justiça Sergio Moro sobre tentativas de interferências indevidas de Bolsonaro na Polícia Federal (PF) está no telhado. Segundo o ex-ministro, Bolsonaro queria informações sobre inquéritos policiais e relatórios de inteligência, o que não foi aceito pelo ex-juiz da Lava-Jato, que se demitiu da pasta fazendo muito barulho. Nos bastidores da Câmara, a coleta de assinaturas para a instalação da CPMI já foi iniciada, mas há resistências de parte do Centrão e dos deputados bolsonaristas. Maia mantém distância regulamentar da mobilização, não quer tomar partido.
Bolsonaro, ontem, também tratou de esvaziar a crise. Continua decidido a nomear o delegado Alexandre Ramagem, atual diretor da Agência Brasileira de Informações (Abin), para a diretoria-geral da Polícia Federal, no lugar de Maurício Valeixo, que foi exonerado à revelia de Moro. Entretanto, a indicação do ministro Jorge Oliveira, secretário-geral da Presidência, para o cargo de ministro da Justiça também estava no telhado. A mobilização contra as duas indicações, devido a ligações pessoais de ambos com os filhos do presidente da República, parece ter levado Bolsonaro a avaliar melhor a situação. Oliveira também estaria reticente sobre mudar de posto. Não será surpresa se Bolsonaro indicar outro nome para a pasta, com maior trânsito junto aos tribunais superiores, no caso o ministro André Mendonça, da Advocacia-geral da União (AGU)
A preocupação de Bolsonaro era acabar com os boatos de que o ministro da Economia, Paulo Guedes, estaria desembarcando da equipe, em razão das divergências com os militares do Palácio do Planalto, que apresentaram um plano de retomada da economia que não passou por seu crivo. Em entrevista coletiva, Bolsonaro garantiu que Guedes continua dando a linha da política econômica para todo o governo. “Acabei mais uma reunião, aqui, tratando de economia. E o homem que decide a economia no Brasil é um só: chama-se Paulo Guedes. Ele nos dá o norte, nos dá recomendações e o que nós realmente devemos seguir”, disse.
Centrão
Ao lado de Bolsonaro, Guedes afirmou que o governo segue firme em sua política econômica de responsabilidade fiscal e garantiu que os gastos públicos extraordinários feitos em decorrência da crise do coronavírus são uma “exceção” na condução da política econômica. “Queremos reafirmar a todos que acreditam na política econômica que ela segue, é a mesma política econômica”, ressaltou Guedes. Estavam na entrevista o ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, um dos autores do Plano Pró-Brasil; o presidente do Banco Central (BC), Roberto Campos Neto, que muitos veem como alternativa para a Economia, e a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, que sofre um ataque especulativo da ala ideológica do governo e dos ruralistas ligados ao Centrão, que a acusam de ser aliada da China.
As negociações para articular uma base mais robusta para Bolsonaro, a cargo do ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, vão de vento em popa. Roberto Jefferson (PTB), Valdemar da Costa Neto (PR), Ciro Nogueira (PP) e Gilberto Kassab (PSD), os caciques do Centrão, querem garantir a presidência da Câmara, na sucessão de Rodrigo Maia (DEM-RJ), para o deputado Arthur Lira (PP-AL), com apoio do Palácio do Planalto. O Banco do Nordeste, a Funasa, o DNOS, o FNDE e o Porto de Santos estão no balaio do “é dando que se recebe”, mas Kassab pleiteia também o Ministério da Agricultura. Em troca, Bolsonaro estaria blindado contra qualquer tentativa de impeachment.
Ou seja, a operação política do Palácio do Planalto avançou no Congresso, amainando a crise política. A postura cautelosa de Rodrigo Maia e o silêncio do presidente do Senado, Davi Alcolumbre (DEM-AP), que estão jogando juntos, refletem isso. Em contraste com a calmaria política, porém, a epidemia de coronavírus avança, com o ministro da Saúde, Nelson Teich, ainda “estudando os dados” de sua propagação, enquanto o novo secretário executivo da pasta, general Eduardo Pazuello, critica a imprensa (que não levaria em conta a diversidade do país) e fala em “planejamento centralizado” num sistema tripartite — União, estados e municípios —, onde qualquer planejamento bem-sucedido precisa ser situacional e participativo. Já são 4.543 mortes, 338 mortes a mais do que no domingo, com 66.501 casos confirmados, ou seja, 4.613 casos a mais. Foram mais 1.802 mortes em apenas uma semana, e o general reclama da imprensa porque noticia o avanço da epidemia.
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Monica de Bolle: Bens públicos
Eis o dilema: a oferta de conhecimento como bem público o degrada aos olhos de alguns
A saúde é um bem público, a proteção social também. Bens públicos, na definição dos economistas, são aqueles que são não excludentes e não rivais. O que isso significa? Primeiramente que indivíduos não podem ser excluídos de seu uso e deles podem se beneficiar sem pagar. Em segundo lugar, são bens em que o uso individual não reduz sua disponibilidade para que outras pessoas deles desfrutem. Por fim, bens públicos podem ser desfrutados por mais de uma pessoa simultaneamente. Muitos temas podem ser enquadrados como bens públicos: a conscientização coletiva sobre saúde, questões sociais e ambientais, a manutenção da biodiversidade, o saneamento básico. Além disso, bens públicos estão sempre sujeitos ao problema que economistas chamam de free rider — como bens públicos são gratuitos ou são oferecidos a um preço abaixo do preço “de mercado”, sua utilização pode se tornar excessiva, levando a uma redução prejudicial da oferta, ou mesmo à degradação do próprio bem ou serviço oferecido.
Como saúde e proteção social, o conhecimento é um bem público. Aqueles que se dispõem a dividir o conhecimento que têm sobre determinados assuntos estão sujeitos ao mau uso, ou até à degradação do que compartilham. Trata-se de uma experiência curiosa essa de dividir conhecimento sem pagamento. Como professora universitária, compartilho meu conhecimento com alunos que por ele pagam uma mensalidade à universidade. Como participante do debate público por meio de colunas como esta que tenho em ÉPOCA, também recebo honorário. Contudo, desde que a pandemia eclodiu, eu me senti compelida a partilhar meu conhecimento de forma gratuita, no canal que criei no YouTube. A pesquisa que desenvolvo desde o Ph.D. na London School of Economics trata de crises. Quando trabalhei no FMI, tive a oportunidade de conhecer crises na prática, pensando em soluções para aliviar países. Hoje, leciono sobre crises na Universidade Johns Hopkins. Tenho usado essa experiência para fazer o que jamais imaginaria que faria: transmissões diárias ao vivo sobre temas relativos à crise que atravessamos e sobre o funcionamento da economia de modo mais geral.
A experiência tem sido muito enriquecedora, mas também desafiadora. Enriquecedora pois percebo claramente a ânsia que muitos têm em entender esse momento e em procurar essa compreensão em linguagem que lhes seja acessível. O jargão econômico, afinal, guarda um grande segredo: apesar dos termos técnicos e de assuntos que parecem áridos em primeira mão, a economia trata da vida das pessoas. Todas a experimentam em seu cotidiano, e talvez por isso tantas tenham opinião formada, ainda que não tenham tido qualquer tipo de treinamento “formal”. Considero justa essa posição. Não é preciso ser economista para saber o que é inflação e como ela afeta a vida de cada um. Não é preciso ser economista para entender que, numa crise, como a que vivemos, empregos e salários estão em risco. Contudo, há muitos temas que, quando tratados por economistas, podem se tornar excessivamente herméticos e inacessíveis a muita gente. Remover esse véu tem sido muito gratificante.
No entanto, percebo ao mesmo tempo o desafio de oferecer um bem público. Há quem o menospreze achando que, se está sendo oferecido de graça, a pessoa que o oferece não deve ter formação suficiente. Ou, aqueles que veem no ato de oferecer uma espécie de busca por autopromoção. Ou, ainda, muitos que julgam o conhecimento que você divulga livremente como algo facilmente adquirido por qualquer um, algo do senso comum, algo pretensamente “razoável”.
Não há pagamento, não há financiamento, não há patrocinadores. Portanto, não deve valer muita coisa, não é mesmo?
A crise que atravessamos está desafiando esse tipo de visão e comportamento. Ao desvelar o valor intrínseco e não monetizável de bens públicos, a crise expõe sua importância para a sociedade. Há muito que lamentar, há muito sofrimento. Haverá ainda mais nas próximas semanas e nos próximos meses. Mas façamos uma pausa para vibrar com a valorização dos bens públicos. São eles que tornarão essa terrível travessia mais palatável. E, sobretudo, mais humana.
*Monica de Bolle é Pesquisadora Sênior do Peterson Institute for International Economics e professora da Universidade Johns Hopkins
Luiz Carlos Azedo: O trilema da hora
“A saída de Moro contribuiu para a radicalização do cenário político, com a ampliação do movimento que deseja o impeachment de Bolsonaro”
A crise tríplice que o país enfrenta — sanitária, econômica e política — foi agravada pela demissão do ministro da Justiça, Sergio Moro, que deixou o cargo atirando contra o presidente Jair Bolsonaro, ao contrário de Luiz Henrique Mandetta, que deixou a Saúde sem confrontar o governo na política, apenas sustentando suas posições em relação ao distanciamento social que havia adotado contra a epidemia de coronavírus. A troca de acusações entre Bolsonaro e Moro deixa o país à beira da crise político-institucional. Diante da gravidade das acusações do ex-ministro da Justiça, não há como o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF) não investigá-las, com consequências imprevisíveis, se os fatos forem confirmados.
Moro acusou Bolsonaro de tentar transformar a Polícia Federal numa polícia política, quando sabemos que ela é uma instituição de Estado, técnica e judiciária, apesar de subordinada administrativamente ao Executivo. A decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes determinando que os delegados encarregados do inquérito que apura as fake news sejam mantidos em suas funções foi um recado claro de que não poderá haver interferência de Bolsonaro no caso. Por outro lado, nos bastidores de Congresso, é dada como certa a abertura de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para apurar as denúncias de Moro.
Estamos diante de um trilema: superar o conflito político entre Bolsonaro e os demais poderes e instâncias de governo; afastar o presidente da República por crime de responsabilidade ou derivar para um governo autoritário, que se impõe aos demais poderes à moda Fujimori (Peru) ou Chávez (Venezuela). Cada vez mais o governo Bolsonaro adquire características de um governo militar, de viés bonapartista, seja pela sua composição, seja pelas concepções que orientam sua ação.
A separação entre os militares que fazem parte do estado-maior da presidência, alguns dos quais ainda na ativa, e os comandos da Marinha, do Exército e da Aeronáutica, que seria uma linha divisória entre um governo civil e as Forças Armadas, está sendo rompida pelo próprio presidente da República. Isso ocorre quando Bolsonaro vai a uma manifestação que pede a intervenção militar e o fechamento do Congresso e do Supremo e não critica seus organizadores, muito pelo contrário (o que estão sendo investigados pelo Supremo a pedido do Ministério Público Federal, ou quando o presidente da República diz publicamente que se relaciona diretamente com os comandantes militares, em qualquer nível, sem consultar nem acionar o ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva.
No confronto com Moro, que se exonerou por esta razão, Bolsonaro disse que não abre mão de nomear o diretor-geral da Polícia Federal nem dele obter informações sobre investigações criminais e os relatórios de inteligência, o que já acontecia no caso da Agência Brasileira de Informações (Abin), subordinada ao Gabinete de Segurança Institucional (GSI). Tanto que o diretor da agência, delegado Alexandre Ramagem, deve assumir a diretoria-geral da PF, no lugar do delegado Maurício Valeixo. Há uma evidente contradição entre as regras do jogo democrático, que asseguram aos delegados federais presidirem os inquéritos com autonomia, e o tipo de relacionamento que Bolsonaro pretende manter com o diretor-geral e seus superintendentes regionais.
Mais conflitos
A saída de Moro do governo, além de enfraquecer Bolsonaro, contribuiu para a radicalização do cenário político, com a ampliação do movimento que deseja seu impeachment antes mesmo de que os fatos denunciados sejam investigados. Esse cenário altera a situação de empate que havia se estabelecido entre governo e oposição, no qual o espaço de disputa política era institucional, principalmente o Congresso. Agora, a disputa pode transbordar para as ruas, mesmo em tempo de coronavírus, como sempre desejou o próprio Bolsonaro. É um quadro perigoso, porque opõe, de um lado, os partidos e movimentos de esquerda, e de outro, apoiadores fanáticos de Bolsonaro, muitos dos quais truculentos e portadores de arma de fogo. A maioria mesmo prefere bater panelas nas janelas contra ou, eventualmente, a favor do governo.
A epidemia de coronavírus e a recessão econômica potencializam a crise política. O isolamento social para refrear a epidemia sofre um cerco em pinça para ser relaxado, patrocinado por Bolsonaro, de empresários cujas atividades foram fortemente atingidas, principalmente no comércio e nos serviços, e grande massa de trabalhadores informais e pequenos empreendedores, que perderam as fontes de renda. Ainda que o auxílio do governo de R$ 600 e outras transferências de renda sirvam para mitigar a falta de recursos da população mais pobre, essa pressão aumenta contra governadores e prefeitos. Com o passar do tempo, provoca maior movimentação nas ruas. Resultado: mais mortes e estresse do Sistema Público de Saúde (SUS).
Do ponto de vista da recessão econômica, o grande ponto de interrogação é o choque entre a equipe do titular da Economia, Paulo Guedes, e os ministros, principalmente os militares, que defendem um programa desenvolvimentista. Diante da epidemia e da recessão, as reformas de Guedes, centradas na busca do equilíbrio fiscal, perderam viabilidade a curto prazo. Entretanto, a alternativa discutida no estado-maior de Bolsonaro não é apenas emergencial, tem caráter estratégico, com orientação nacional-desenvolvimentista que lembra o governo Geisel, no regime militar. Nesse cenário, Bolsonaro está diante de uma nova escolha de Sofia. Guedes é o nome da próxima crise na Esplanada.
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Luiz Carlos Azedo: O que vem por aí
“Faltam leitos de UTI, respiradores e equipamentos de proteção, além de médicos, enfermeiros e fisioterapeutas, porque muitos estão se contaminando”
Em sua primeira entrevista coletiva, o ministro da Saúde, Nelson Teich, ontem, anunciou que o governo federal prepara uma diretriz para orientar cidades e estados na flexibilização do distanciamento social contra o novo coronavírus, que deverá ser anunciada na próxima semana. Argumentou que o total de pessoas infectadas com Covid-19 é baixo se comparado com o total da população e fez a previsão de que menos de 70% da população contrairão a doença, ao contrário das estimativas iniciais. Segundo o ministro, o Brasil tem 43,5 mil casos do coronavírus. “Se a gente imaginar que pode ter uma margem de erro grande — digamos que a gente tenha aí 100 vezes, isso é só um exemplo hipotético — a gente está falando em 4 milhões de pessoas. Nós hoje somos 212 milhões”, explicou.
Teich arrematou: “Fora da Covid tem 208 milhões de pessoas que continuam com as suas doenças, com os seus problemas, e que têm que ter isso tratado. E o que é que representam, hoje, 4 milhões de pessoas num país como esse? 2% da população”, disse. O ministro anunciou o novo secretário-executivo do Ministério da Saúde: o general de divisão Eduardo Pazuello, que hoje é comandante da 12ª Região Militar, principal unidade de logística do Exército na Amazônia, responsável por quatro hospitais, embarcações, manutenção, suprimentos e uma companhia de comando, para o apoio às unidades de combate do Comando da Amazônia. Integrante do grupo de generais paraquedista do Rio de Janeiro que hoje forma o Estado Maior de Bolsonaro, é um especialista em logística. Sua missão no Ministério da Saúde será operar a estratégia de saída da política de isolamento social em todo país, sem deixar que haja o colapso do sistema de saúde pública. Se houver precipitação, será uma missão impossível.
Como Teich ainda aparenta muita insegurança no comando do Ministério da Saúde, a entrevista foi protagonizada pelos ministros da Casa Civil, Braga Netto, e da Secretaria de Governo, Luiz Eduardo Ramos. O primeiro apresentou dois planos de retomada da economia, denominados Pró-Brasil Ordem e Pró-Brasil Progresso, para serem executados num período de dez anos. O viés é desenvolvimentista, na linha do famoso tripé Estado, iniciativa privada e investimentos estrangeiros. Em meio à recessão mundial provocada pelo coronavírus, é inevitável a comparação com o ambicioso II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) do presidente Ernesto Geisel, que foi abatido pela crise do petróleo. Braga Netto disse que o ministro da Economia, Paulo Guedes, que não estava presente na coletiva, endossou o plano.
O ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, roubou a cena. Resolveu puxar as orelhas da imprensa: “Nós, do governo do presidente Jair Bolsonaro, respeitamos muito a liberdade de imprensa e ela é fundamental para o processo democrático de todo o país. Porém, desde o começo dessa crise do coronavírus, nós temos observado uma cobertura maciça dos fatos negativos. Os noticiários entram nos lares brasileiros todos os dias. Com todo respeito, no jornal da manhã é caixão, é corpo. Na hora do almoço, é caixão novamente, é corpo. No jornal da noite, é caixão, é corpo e o número de mortos.”
Negociação
Falta ao governo um Aureliano Chaves, o vice-presidente civil do general João Baptista Figueiredo, para falar que não adianta tapar o sol com a peneira. O número de mortos aumenta e a situaão é critica nos hospitais do São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará, Pernambuco, Amazonas e Roraima, estados nos quais afrouxar a política de isolamento social agora significa multiplicar o número de mortos por falta de assistência médica adequada. Faltam leitos de UTI, respiradores e equipamentos de proteção individual, além de médicos, enfermeiros e fisioterapeutas, porque muitos estão se contaminando. Talvez o general Pazuello seja mais importante para enfrentar o problema de logística no gerenciamento da falta de equipamentos e pessoal do que na estratégia de saída do isolamento, que necessariamente estará subordinada a governadores e prefeitos.
A propósito, foi simbólica a presença do governador de Brasília, Ibaneis Rocha (MDB), na entrevista. Sinaliza duas coisas: primeiro, que a situação do Distrito Federal é critica, do ponto de vista dos recursos disponíveis; segundo, que está havendo uma forte aproximação do MDB com o governo, de olho na sucessão de Rodrigo Maia (DEM-RJ) na presidência da Câmara. Ontem, o presidente da legenda, Baleia Rossi (SP), esteve com Bolsonaro, como parte de uma rodada de conversas para rearticular a base do governo e esvaziar a liderança de Maia. Também haverá uma conversa de Bolsonaro com o presidente do DEM, ACM Neto, prefeito de Salvador (BA), agendada para hoje.
A operação de reaproximação com o Congresso tem apoio dos caciques do Centrão: Roberto Jefferson, PTB; Valdemar Costa Neto, PR; Gilberto Kassab, PSD; Ciro Nogueira, Progressistas; e Paulinho da Força, Solidariedade. A negociação envolve a entrega da Funasa, do Banco do Nordeste, do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação e dezenas de cargos de segundo e terceiro escalões para esses partidos.
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Luiz Carlos Azedo: Distopia no presente
“Nos tornamos seres perigosos, suspeitos. Qualquer aproximação menor que dois metros é uma ameaça e provoca uma reação de legítima defesa”
A pergunta de meu amigo Carlos Alberto Jr., jornalista e cidadão do mundo, numa live, inspirou a coluna de hoje: “Estamos vivendo uma distopia no presente?”. Normalmente, a distopia está associada ao futuro, porque é a negação da utopia, ou seja, da sociedade desejada, uma projeção pessimista do futuro. De certa forma, sim, estamos vivendo uma realidade distópica, como as que aparecem no cinema. A série inglesa Black Mirror (Espelho Negro), lançada há quase 10 anos, por exemplo, em cada um de seus episódios, que são independentes, nos deixa em situação muito desconfortável em relação à tecnologia, à globalização, ao poder e à “sociedade do espetáculo”.
Qual é a grande distopia que estamos vivendo aqui no Brasil? Uma pandemia de coronavírus ameaça sair do controle e seu combate começa a ser militarizado, com a substituição de uma política de saúde pública participativa por estratégias militares que se baseiam em grandes manobras, controle de informações e saídas racionais para situações fora do controle, como criar mais vagas nos cemitérios para evitar que o aumento do número de mortos gere outro grave problema sanitário: cadáveres insepultos. É uma hipótese sinistra, mas faz sentido, porque a concepção do combate à epidemia é a de que se trata de uma guerra. Em tese, militares estariam mais preparados para isso do que civis, o que, obviamente, é um equívoco em se tratando de saúde pública.
O inimigo invisível entre nós, no trabalho, no supermercado, na fila da lotérica, dentro de casa. Todos nos tornamos seres perigosos, suspeitos. Qualquer aproximação menor que dois metros é uma ameaça e provoca uma reação de legítima defesa, nem sempre um educado “por favor, chegue mais para lá”. Os mais aptos a conviver com o novo coronavírus — os contaminados assintomáticos —, hoje são a maior ameaça, não importa se é um antigo colega de trabalho, um parente querido, um amigo de infância, a pessoa amada; amanhã, porém, poderão ser os salvadores da pátria, portadores de anticorpos e perpetuadores da espécie, os primeiros a voltar ao trabalho.
A salvação virá dos mais fortes e do Estado Levitã, que pode tudo? Qual será o custo de tudo isso? Na lógica do presidente Jair Bolsonaro, é preferível um maior número de mortos do que o colapso da economia; é preciso salvar o comércio, a indústria, os pequenos negócios e os biscates. No fundo, seu raciocínio antecipa a escolha de Sofia do intensivista que seria obrigado a escolher quem vai ter acesso ao respirador na UTI quando o sistema de saúde entrar em colapso.
A República, de Platão, citada pelo ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta numa alusão irônica ao famoso Mito da Caverna (metáfora criada pelo filósofo grego para explicar a condição de ignorância em que vivem os seres humanos e o que seria necessário para atingir o verdadeiro “mundo real”), inspirou Thomas Morus (1478-1535) a escrever Utopia. Publicada na Basiléia, em 1516, na época dos Descobrimentos, criticou a tirania e descreveu a sociedade ideal, prontamente associada ao Novo Mundo. Na Inglaterra, seu livro só viria a ser publicado em 1551, 17 anos após a morte do filósofo e estadista católico executado por ordem de Henrique VIII, da Inglaterra.
Tirania
Coube a outro inglês cunhar a expressão “distopia”, o liberal progressista John Stuart Mill, o primeiro a defender o direito ao dissenso e as prerrogativas das minorias, num famoso discurso no Parlamento britânico, em 1868, ao invocar os valores defendidos por Thomas Morus em confronto com a realidade do proletariado da Inglaterra durante a Revolução Industrial. O tema da distopia foi retomado no Admirável Mundo Novo (1932), de Aldous Huxley, e em 1984, de George Orwell. Na primeira obra, a sociedade é domina por uma casta, que a submete a um condicionamento biológico e psicológico; no segundo, numa alegoria do burocratismo stalinista, um ditador muda a língua do povo, controla a vida dos cidadãos e manipula a imprensa.
Na literatura, portanto, a distopia é a denúncia da sociedade indesejada, autocrática, submetida à tirania e à ordem unida. Na vida real, voltando à pergunta inquietante do amigo, é uma ameaça latente, seria quase uma distopia do presente. Estamos vivendo uma situação inimaginável, num mundo globalizado, conectado em rede, onde todos acompanham tudo em tempo real. Trata-se de um colapso da economia mundial, provocado por um fenômeno da natureza que tem a ver com o “grande encontro” da teoria da evolução, a associação entre o vírus mutante e uma bactéria, que se reproduz em velocidade igual ou maior do que a moderna transmissão de dados.
A ficção distópica dos filmes de catástrofes vira realidade, com centenas de milhares de mortos. Ontem, o presidente Donald Trump anunciou que os Estados Unidos vão suspender a imigração legal por dois meses. O “sonho americano”, inspirado na Utopia de Thomas Morus, entrou em colapso. Aqui no Brasil, a grande distopia seria o colapso do nosso regime democrático.
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Luiz Carlos Azedo: O jogador
“Seu gesto pode ser interpretado como crime de responsabilidade, se houver ligações entre os organizadores do ato de domingo e o chamado ‘gabinete do ódio’”
O pior dos mundos nesta pandemia de coronavírus no Brasil seria uma crise institucional, num momento em que as instituições políticas precisam convergir para combater a doença e mitigar os seus efeitos na economia. Em circunstâncias normais, o maior interessado nesse esforço coordenado seria, sem dúvida, o presidente da República, mas acontece que Jair Bolsonaro faz tudo ao contrário. Como no domingo, quando foi ao ato de extrema-direita em frente ao quartel-general do Exército para apoiar manifestantes que pediam o fechamento do Congresso, do Supremo Tribunal Federal (STF) e uma intervenção militar.
É difícil compreender seu comportamento, que foge à racionalidade, num momento tão dramático da vida nacional. O gesto de domingo, como não poderia deixar de ser, aprofundou o isolamento político de Bolsonaro. Foi repudiado pelos ministros do Supremo, pelos líderes da Câmara e do Senado, por instituições da sociedade civil e provocou um pedido do procurador-geral da República, Augusto Aras, para que o STF apure as responsabilidades pela organização do ato, que atenta contra a democracia, nos termos da Lei de Segurança Nacional. Bolsonaro foi poupado pelo Ministério Público Federal, mas o presidente do Cidadania, Roberto Freire, e o líder do partido na Câmara, deputado Arnaldo Jardim (SP), se encarregaram de requerer à PGR que investigue também os que participaram do ato.
Ontem, ao sair do Palácio da Alvorada, Bolsonaro minimizou os acontecimentos de domingo. Disse que em nenhum momento endossou os pedidos de fechamento dos demais poderes e de intervenção militar. Ironizou: “O pessoal geralmente conspira para chegar ao poder. Eu já estou no poder. Eu já sou presidente da República (…). Eu estou conspirando contra quem, meu Deus do céu? Falta um pouco de inteligência para aqueles que me acusam de ser ditatorial. O que eu tomei de providência contra a imprensa? Contra a liberdade de expressão?”
Mas Bolsonaro revelou preocupação com o que aconteceu, quando nada porque sabe que seu gesto pode ser interpretado como crime de responsabilidade, sobretudo se houver ligações efetivas entre os organizadores do ato e o chamado “gabinete do ódio”, o grupo ideológico que o assessora na Presidência. “Em todo e qualquer movimento tem infiltrado, tem gente que tem a sua liberdade de expressão. Respeite a liberdade de expressão. Pegue o meu discurso, dá dois minutos, não falei nada contra qualquer outro poder, muito pelo contrário. Queremos voltar ao trabalho, o povo quer isso. Estavam lá saudando o Exército brasileiro. É isso, mais nada. Fora isso, é invencionice, é tentativa de incendiar uma nação que ainda está dentro da normalidade”, disse Bolsonaro, em defesa prévia.
Bolsonaro estimula uma militância fanatizada, que defende claramente um golpe de Estado. Militarizou seu governo a tal ponto que hoje existem mais generais na Esplanada do que em todos os governos do regime militar. Toda vez que tem um problema e não consegue resolver, apela aos ex-colegas de farda. Seu problema não é chegar ao poder, é a ambição de ter poderes absolutos, pois não consegue administrar a institucionalidade da própria Presidência, em situações emblemáticas, como a de domingo, desrespeitando a liturgia do cargo que ocupa. Não digere o sistema de pesos e contrapesos que normatiza as relações com o Congresso e o STF. No fundo, como um Luís XIV, tem uma visão absolutista da Presidência: “Eu sou realmente a Constituição”.
Isolamento
Enquanto isso, a epidemia avança. No balanço do Ministério da Saúde divulgado ontem, já são 2.575 mortes (no domingo, eram 2.462, aumento de 5,6%, ou seja, 113 óbitos a mais), num universo de grande subnotificação: apenas 40.581 confirmados (no domingo, eram 38.654, aumento de 5%, sendo a taxa de letalidade de 6,3% de letalidade). São Paulo tem 1.037 mortes e 14.580 casos confirmados. Bolsonaro minimiza a progressão da epidemia, diz que 70% da população será contaminada e “não adianta querer correr disso”. Lida com a morte como aquele general que manda seus soldados resistir apenas para ganhar tempo para a própria retirada, sabendo que o front está perdido e eles voltarão para casa dentro de um saco plástico: “Aproximadamente 70% da população vai ser infectada. Não adianta querer correr disso. É uma verdade. Estão com medo da verdade?”, afirmou.
Bolsonaro dobra a aposta de altíssimo risco: “Espero que esta seja a última semana desta quarentena, desta maneira de combater o vírus, todo mundo em casa. A massa não tem como ficar em casa, porque a geladeira está vazia”, disse. Assim, estimula a população a desrespeitar a quarentena, culpando governadores e prefeitos pela retração econômica e pelo desemprego, embora a situação esteja se agravando no sistema público de saúde, como em Manaus e Fortaleza, à beira do colapso. Seu novo ministro da Saúde, Nelson Teich, foi eclipsado. Não pode abrir a boca pra falar sobre o aconteceu no domingo. Não pode criticar Bolsonaro nem endossar suas ideias equivocadas.
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