saúde
Fernando Reinach: Navegar ao sabor do vírus
Abrimos mão de controlar a pandemia e o vírus está nos levando para onde deseja
Navegar ao sabor do vento significa içar vela e deixar que o vento nos leve para onde soprar. É abrir mão de comandar o futuro. O Brasil está navegando ao sabor do vírus. Abrimos mão de controlar a pandemia e o vírus está nos levando para onde deseja. Talvez mais lentamente do que poderia, pois não levantamos completamente a vela: lavamos as mãos, usamos máscaras e fazemos um mínimo de isolamento. Sem dúvida estamos caminhando em direção à tragédia, mas em câmara lenta, e não temos planos para retomar o controle. É a consumação da estratégia que chamei em 9 de maio de imunidade de rebanho por incompetência.
Ao sabor do vírus a pandemia no Brasil só terminará quando atingirmos a imunidade de rebanho, o único mecanismo biológico conhecido que inibe a propagação do vírus sem intervenção humana. Navegar ao sabor do vírus pode custar a vida de até 1% dos contaminados. A imunidade de rebanho geralmente ocorre quando 70% a 80% da população suscetível tiver sido infectada. Talvez ocorra antes, mas chegaremos lá antes de a vacina estar disponível. Isso é quase uma certeza. Quais são as evidências de que navegamos ao sabor do vírus? O gráfico abaixo, cortesia do meu amigo Cal, mostra nossa rota desde a chegada do vírus no Brasil.
No eixo vertical estão os números de novos casos por dia, por milhão de habitantes, em cada um de quatro países. Os dados diários foram plotados como uma média móvel de sete dias. O Brasil registra hoje por volta de 150 novos casos, a cada dia, por milhão de habitantes (sem contar as subnotificações), um número maior que os 90 registrados nos Estados Unidos. No eixo horizontal estão os dias que se passaram desde que cada país registrou um caso por milhão de habitantes. Isso ocorreu quando o Brasil registrou 220 novos casos por dia, os EUA, 330, o Reino Unido, 66, e a Itália, 60.
É fácil observar como a Itália, após um crescimento rápido do número de casos por dia, impôs um lockdown rigoroso após o dia 30 e tomou controle do barco. Passados 90 dias, estava com a pandemia sob controle. O Reino Unido demorou para responder e o lockdown veio mais tarde. Mas desde o dia 60 conseguiu reduzir o número de novos casos por dia. Os EUA também se assustaram com o crescimento rápido dos novos casos, implementaram um lockdown nas principais cidades, conseguiram estabilizar o número de novos casos, mas quando começaram a tomar pé da situação relaxaram o distanciamento social. Os resultados da abertura são gritantes, o crescimento rápido do número de novos casos por dia já está ocorrendo.
O mais impressionante é o barco brasileiro. Medidas brandas de distanciamento social retardaram o crescimento da pandemia, que cresceu lenta e livremente por 80 dias. Quando as medidas estavam começando a fazer efeito, veio o relaxamento do distanciamento social e a pandemia voltou a crescer mais rapidamente do que antes, totalmente fora de controle.
O pior no Brasil é que simplesmente não temos um plano para controlar esse crescimento. O exemplo mais claro dessa atitude é o anúncio da abertura das escolas no Estado de São Paulo. Ele deve ocorrer no início de setembro caso todas as áreas do Estado estejam com níveis de propagação classificadas como verde já no início de agosto. O problema é que não foi anunciado simultaneamente um plano capaz de garantir que o Estado de São Paulo atinja essa a condição no início de agosto. Sem executar algum plano seguramente não chegaremos lá, pois São Paulo está batendo todos os dias os recordes de novos casos por dia e número de mortes por dia. Ou seja, as escolas não abrirão em setembro se o governo cumprir o que decretou.
Até agora as medidas anunciadas são inócuas para controlar a pandemia. Oferecer mais leitos de UTI ajuda os pacientes graves, o que é importante, mas não diminui o número de casos. E esse aumento tem limite, que eram respiradores, mas de agora em diante serão profissionais da saúde capazes de atender um número crescente de leitos. Liberar gradativamente as atividades ao menor sinal de desocupação de leitos vai seguramente na direção oposta do controle, pois cada liberação significa levantar um pouco mais a vela desse barco que navega ao sabor do vírus.
E a testagem em massa? Ela tem sido um fracasso em nosso Estado e em todo o País. Os governos sequer detalham o que significa esse termo e como ele pode levar ao controle da pandemia. O número de testes de RT-PCT, que detectam pessoas durante a fase em que estão transmitindo o vírus, e podem ser usados para isolar pessoas que estão transmitindo a doença, são executados em número ínfimo. Pululam iniciativas governamentais baseadas em testes sorológicos, que, sabemos muito bem, somente identificam pessoas que já passaram pela fase crítica da doença e já contaminaram quem deveriam contaminar. São inúteis para controlar a doença e uma bênção para o vírus.
Em suma, não existe nenhuma medida em andamento que tenha alguma chance de reverter o andamento da pandemia nos próximos meses. Nenhuma.
A impressão é que nossos governantes esperam por algum milagre, alguma intervenção divina que provoque a diminuição do espalhamento da doença de maneira mágica, sem que eles tenham de executar algum plano que tenha embasamento científico. Como a fração da população já infectada ainda é baixa, não existe nada no horizonte que vai conter o crescimento diário do número de novos casos em 2020. Estamos navegando ao sabor do vírus com a vela a meio mastro.
*É BIÓLOGO
Luiz Carlos Azedo: Mudança de rota
“A nomeação de Decotelli para a Educaçao e a passagem do general Ramos para a reserva sinalizam um correção de rumo no governo Bolsonaro”
Aparentemente, o presidente Jair Bolsonaro deixou a rota de iminente colisão contra os demais poderes. A mudança ocorreu após forte reação das lideranças do Congresso e dos ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), mas, sobretudo, após a prisão de Fabrício Queiroz, seu amigo, ex-assessor parlamentar de seu filho Flávio Bolsonaro (PR), quando o senador ocupava uma cadeira na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Ambos são investigados no caso das rachadinhas daquela Casa legislativa. Dois fatos assinalam a mudança de curso: a nomeação do novo ministro da Educação, o economista Carlos Alberto Decotelli da Silva, e a passagem para a reserva do general de divisão Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo, que anunciou a intenção na reunião do Alto Comando do Exército, ontem.
Decotelli substituirá Abraham Weintraub, protagonista de uma gestão espalhafatosa e desastrosa à frente da pasta, com uma narrativa ideológica afinada com o grupo de extrema direita liderado pelo escritor Olavo de Carvalho, guru dos filhos de Bolsonaro. Como prêmio de consolação, o ex-ministro foi indicado para o posto de diretor representante do Brasil no Banco Mundial, mas sua nomeação está sendo questionada por funcionários do órgão. Até para sair do país e entrar nos Estados Unidos, Weintraub foi atabalhoado, pois viajou como se ainda fosse ministro, quando já havia deixado o cargo. Comportou-se como um fugitivo. Weintraub é investigado por causa de suposto envolvimento com grupos de extrema direita que ameaçavam ministros do Supremo Tribunal Federal (STF), a quem chamou de “vagabundos”, na reunião ministerial de 22 de abril passado.
Primeiro ministro preto do governo Bolsonaro, Decotelli será o terceiro titular da pasta em menos de 1 ano e meio. O primeiro ocupante do posto foi Ricardo Velez, que permaneceu apenas três meses no cargo. Oficial da reserva não-remunerada da Marinha, o novo ministro atuou na Escola de Guerra Naval como professor. Bacharel em ciências econômicas pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), é mestre pela Fundação Getulio Vargas (FGV), doutor pela Universidade de Rosário (Argentina) e pós-doutor pela Universidade de Wuppertal, na Alemanha. Tem um perfil muito mais de gestor do que de educador, sua nomeação é uma esperança de um comportamento mais conciliador e menos ideológico à frente da pasta, embora seja um conservador e tenha apenas breve passagem pelo Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), entre fevereiro e agosto do ano passado. Depois, comandou a Secretaria de Modalidades Especializadas do Ministério.
Verde-oliva
Outra notícia importante foi o anúncio de que o general de exército Luiz Eduardo Ramos, ministro da Secretaria de Governo e principal articulador político do Planalto, passará à reserva. Ele já havia anunciado essa intenção, mas só agora foi oficializada. Sua situação era um fator de tensão entre o presidente Jair Bolsonaro e o Alto Comando, porque circulavam rumores de que o presidente da República pretendia nomeá-lo para o Comando do Exército, no lugar do general Edson Leal Pujol. Ramos era o 6º na hierarquia de comando, o que resultaria na passagem antecipada para a reserva dos principais generais hoje na ativa. Bolsonaristas fomentavam a intriga, provocando mal-estar entre os militares.
Pelo regulamento atual, militares da ativa somente podem permanecer dois anos fora dos quadros regulares de comando, mesmo ocupando função para as quais, tradicionalmente, são designados militares, no Ministério da Defesa, criado originalmente para ser chefiado por uma autoridade civil, no Gabinete de Segurança Institucional e na Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República. A situação era meio esquizofrênica, porque Ramos é um dos ministros mais poderosos do governo Bolsonaro e, ao mesmo tempo, era subordinado a Pujol na hierarquia militar. Outro alto oficial da ativa praticamente na mesma situação é o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, general de divisão.
Ambos são ligados ao ministro da Defesa, Fernando Azevedo, como o ministro-chefe da Casa Civil, Braga Neto, que também era do Alto Comando, mas passou à reserva logo após assumir o cargo. Quando Azevedo foi o comandante do Leste, Ramos comandou a Vila Militar; Pazuello, a Brigada de Paraquedistas; e Braga Neto era o chefe de Estado-Maior.
Luiz Carlos Azedo: Saudades do Mandetta
“A Fortuna de Bolsonaro pode ser comparada à do presidente Trump, que também defendeu o uso de cloroquina e se opôs ao isolamento social”
O Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou, ontem, um relatório do ministro Vital do Rêgo que resume o que todo mundo estava vendo: falta de diretrizes e coordenação entre entes federados e órgãos oficiais no combate à covid-19, por culpa do governo federal. Esse era o ponto forte da gestão de Luiz Henrique Mandetta, defenestrado do cargo porque o presidente da República ficou enciumado da popularidade adquirida pelo então ministro da Saúde e discordava da estratégia de isolamento social que havia adotado. Bolsonaro queria distribuir cloroquina a todos os infectados e implementar a atual estratégia de “imunização de rebanho”.
Quando Mandetta saiu da Saúde, em 16 de abril, o Brasil contabilizava 1.924 mortes; hoje, já são quase 54 mil, uma tragédia anunciada. Na ocasião, as pesquisas mostravam que 76% dos entrevistados aprovavam o desempenho do ministro da Saúde, que antes era avaliado positivamente por 55%. A pandemia havia catapultado sua popularidade, graças ao excepcional desempenho na liderança do Sistema Unificado de Saúde (SUS). Ao contrário, a atuação de Bolsonaro, que havia entrado em guerra com os governadores de São Paulo, João Doria, e do Rio de Janeiro, Wilson Witzel, e se descolado de Mandetta, havia oscilado para baixo, de 35% para 33%. Os ciúmes do clã Bolsonaro — verbalizado nas redes sociais e entrevistas do presidente da República — puseram tudo a perder. Para substituir Mandetta, Bolsonaro escolheu o médico oncologista Nelson Teich, que ficou apenas um mês na pasta e caiu fora, depois da fatídica reunião ministerial de 22 de abril, cujas imagens revelam seu espanto com o que aconteceu na ocasião. A essa altura da pandemia, já eram mais de 14 mil mortos.
Os ministros militares do Palácio do Planalto — os generais Augusto Heleno (GSI), Rego Barros (Casa Civil), Fernando Azevedo (Defesa) e Luiz Ramos (Secretaria de Governo) — bem que tentaram segurar Mandetta no cargo, mas foi um esforço em vão. A ala radical do governo, liderada por Carlos Bolsonaro — que não faz parte do governo, mas tem grande influência no governo — já havia selado o destino de Mandetta. No início de abril, Bolsonaro disse à rádio Jovem Pan que o subordinado deveria “ter mais humildade” e “ouvir um pouco mais o presidente”. Ao saber da crítica, Mandetta falou com o chefe por telefone e ouviu dele que deveria “pedir demissão”. Respondeu: “O senhor que me demita”. Era o fim da linha.
Efeito Orloff
No relatório apresentado ao Tribunal de Contas, Vital do Rêgo critica a ausência de integrantes técnicos da área de saúde no comitê de gestão da pandemia pelo governo: “Os cargos-chave do Ministério da Saúde, de livre nomeação e exoneração, não vêm sendo ocupados por profissionais com essa formação específica”. Segundo ele, isso pode levar a decisões não baseadas em questões médicas e científicas, o que resulta em “baixa efetividade das medidas adotadas de prevenção e combate à pandemia, desperdícios de recursos públicos e aumento de infecções e mortes”. O TCU recomendou a inclusão, como membros permanentes do Comitê de Crise da Covid-19, dos presidentes do Conselho Federal de Medicina, da Associação Médica Brasileira e do Conselho Nacional de Secretários de Saúde, com direito a voz e a voto. Entretanto, o governo não é obrigado a cumpri-la.
O relatório também destaca a ausência de ampla divulgação das ações de enfrentamento à crise de saúde pública e recomenda a inclusão de um representante da Secretaria de Comunicação Social no Centro de Coordenação de Operações do Comitê de Crise para Supervisão e Monitoramento dos Impactos da Covid-19 (CCOP). O TCU determinou, porém, que a Casa Civil passe a divulgar no prazo de 15 dias na internet as atas das reuniões do Comitê de Crise e do CCOP.
A Fortuna de Bolsonaro pode ser comparada à do presidente Donald Trump, dos Estados Unidos, que também defendeu o uso de cloroquina e inicialmente se opôs ao isolamento social, embora agora tente se reposicionar, depois de ver sua reeleição caminhar em direção ao brejo. Hoje, Trump amarga 14 pontos atrás do seu concorrente democrata, Joe Biden. Agora, o principal aliado de Bolsonaro na política externa, embora se declare seu amigo, cita o Brasil como mau exemplo a ser seguido no combate à pandemia.
Bolsonaro cometeu um erro fatal ao demitir Mandetta, com quem dividiria o prestígio. Como diria o Conselheiro Acácio, personagem de Eça de Queiroz em O Primo Basílio, as consequências sempre vêm depois. A flexibilização precoce do isolamento social por governadores e prefeitos, pressionados por Bolsonaro, está provocando o aumento do número de casos da covid-19, inclusive, onde a pandemia estava sendo controlada. Além disso, o governo perdeu o rumo na economia em meio à recessão.
Luiz Carlos Azedo: Mortes em vão
“Bolsonaro limitará o auxílio aos “invisíveis” a apenas mais R$ 600, parcelados em três vezes; sem recursos, como 36 milhões poderão permanecer em casa?”
Para o sanitarista Luiz Antônio Santini, pesquisador da Fiocruz e ex-diretor do Instituto Nacional do Câncer (INCA), a metáfora da guerra não é a mais adequada para abordar os desafios da saúde. Segundo ele, uma pandemia não representa um ataque inesperado de um agente inimigo da humanidade, como a tese da guerra sugere. “O processo de mutação dos vírus é uma atividade constante na natureza e o que faz com que esse vírus mutante alcance a população, sem proteção imunológica, são, além das mudanças na biologia do vírus, mudanças ambientais, no modo de vida das populações humanas, nas condições econômicas e sociais. Muito além, portanto, de um ataque insidioso provocado por um agente do mal a ser eliminado.” Por essa razão, cabe à ciência “responder com vacinas, medicamentos e o que mais estiver ao seu alcance ou que ainda venha a desenvolver de conhecimentos e tecnologias”.
Enquanto isso não ocorre, a melhor alternativa continua sendo o isolamento social, o rastreamento dos casos e o tratamento adequado aos infectados, o que pressupõe restrições de atividades econômicas e circulação de pessoas, testes em massa e um serviço médico operacional e capacitado. É que o conceito de guerra impõe decisões estratégicas nas quais as prioridades não são necessariamente as vidas humanas, ou seja, o tratamento daqueles que precisam de assistência médica, mas outros objetivos, no caso, o retorno das atividades econômicas e/ou os interesses eleitorais, como estamos assistindo. A morte é apenas o efeito colateral. O fato de já não se restringir aos grupos de risco é mera consequência. A maior vulnerabilidade da população de baixa renda nas favelas, periferias, grotões e aldeias indígenas, reflexo de nossas desigualdades, é considerada uma contingência contra qual nada se pode fazer, quando deveria ser exatamente o contrário.
Esse é o raciocínio. O presidente Bolsonaro, por exemplo, deixou o Palácio da Alvorada, no fim de semana, para velar o corpo de um soldado cujo paraquedas não abriu, no Rio de Janeiro, gesto louvável, mas é incapaz de decretar luto oficial por atingirmos a espantosa marca de mais de 50 mil mortos e quase 1,1 milhão de casos confirmados, em respeito às suas famílias. Muito menos homenagear os médicos e demais profissionais de saúde que morreram na linha de frente das UTIs e àqueles que se arriscam todos dias, nos hospitais e unidades de pronto atendimento (UPAs), muitos dos quais depois de terem contraído o vírus e se recuperado. No gesto de Bolsonaro havia mais cálculo político do que humanismo.
Rebanho
Recentemente, o professor de direito Lucas de Melo Prado, no site justificando.com, citou uma passagem do livro Homo Deus, de Yuval Noah Harari, sobre a síndrome “nossos rapazes não morreram em vão”, comum durante as guerras. Referia-se à participação da Itália na Primeira Guerra Mundial, com objetivo de recuperar os territórios de Trento e Trieste, em poder do Império Austro-Húngaro. O Exército austro-húngaro encastelou-se ao longo do Rio Isonzo e resistiu a todos os ataques. Na primeira batalha, morreram 15 mil italianos. Na segunda, 40 mil. Na terceira, 60 mil. E assim prosseguiu a guerra por dois anos. Na 12ª Batalha, em Caporeto, os austríacos passaram à ofensiva, só parando às portas de Veneza. Morreram 700 mil soldados italianos, mais de um milhão foram feridos. Inebriados pelo patriotismo, em busca das glórias romanas, “por Trento e por Trieste”, políticos e generais mandaram seus jovens para a morte. A analogia faz sentido.
Nos 40 dias à frente do Ministério da Saúde, o general de divisão Eduardo Pazuello opera uma política de “imunização de rebanho” não-declarada. Militarizou a pasta, para a qual levou duas dezenas de militares — os da ativa, em desvio de função —, a maioria neófitos em política sanitária. Quando assumiu, em 15 de maio, o Brasil contabilizava 14,8 mil mortos e 218 mil casos confirmados. Esses números quase quintuplicaram no período. Não será surpresa se duplicarmos o número de mortos até o fim de agosto, com o relaxamento da política de isolamento social, como queria Bolsonaro.
Na ativa, Pazuello cumpre ordens. Sua prioridade é uma devassa na pasta da Saúde, que subsidie investigações e denúncias contra governadores e prefeitos que adquiriram equipamentos médicos com preços acima das cotações de mercado. Como de fato houve casos de superfaturamento e desvio de recursos por parte das máfias que atuam no Sistema Único de Saúde (SUS), a pandemia já virou pauta policial. Quem pagará com a vida, porém, são as vítimas da covid-19, cujo número aumenta exponencialmente, em razão da flexibilização precipitada do isolamento social. Bolsonaro já anunciou que limitará o auxílio aos chamados “invisíveis” — 36 milhões de trabalhadores informais que ficaram sem nenhuma renda — a apenas mais R$ 600, parcelados em três vezes; sem recursos, como poderão permanecer em casa?
Luiz Carlos Azedo: Os “dinossauros”
“Bolsonaro acha que 70% da população terão a doença de forma branda, porém, devem voltar logo ao trabalho para não perderem os empregos”
Ninguém sabe como os dinossauros foram extintos. Entre 208 e 144 milhões de anos atrás, esses animais dominavam os ambientes de terra firme: eram herbívoros, em sua maioria, mas havia algumas espécies carnívoras que se alimentavam de anfíbios, insetos e até mesmo de outros dinossauros. No final do período Cretáceo, foram extintos juntos com diversas outras espécies de animais e plantas. Uma das teorias sobre essa extinção é a de que certos movimentos sofridos pelos continentes provocaram mudanças nas correntes marítimas e também no clima do planeta. Isso teria feito a temperatura baixar, o que causou invernos mais rigorosos. Outra, de que um asteroide colidiu com a Terra e provocou uma catástrofe, com terremotos, tsunamis e incêndios gigantes, que liquidaram a cadeia alimentar. Não existe nenhuma teoria de que tenham sido extintos por uma superbactéria ou um vírus mortal.
Já foram identificadas aproximadamente 3,6 mil espécies de vírus, que podem infectar bactérias, plantas e animais, bem como se instalar e causar doenças ao homem. Gripe, catapora ou varicela, caxumba, dengue, febre amarela, hepatite, rubéola, sarampo, varíola, herpes simples e raiva são as doenças viróticas mais conhecidas. Nenhuma delas se equipara, por exemplo, ao ebola, cuja letalidade é de 90%, ou ao HIV, que já foi de 100% e hoje está sob controle. Ambas não têm vacina reconhecida.
Uma epidemia acontece quando um determinado número de pessoas fica doente e o vírus se propaga exponencialmente. Para os epidemiologistas, o número mágico é 400 para cada 100 mil indivíduos. Esse é o rubicão natural de propagação de um vírus, a partir do qual, na linguagem dos sanitaristas, a epidemia “decola”. As gripes são as epidemias mais comuns, porque seus vírus sofrem permanentes mutações, exigindo campanhas anuais de vacinação. Os antibióticos são utilizados para combater infecções causadas por bactérias, que muitas vezes se propagam em simbiose com os vírus, mas não eliminam os vírus. Por isso, deveriam ter outro nome, talvez antibacterianos, o que facilitaria a vida dos médicos com seus pacientes, que não entendem a diferença entre uma coisa e outra e ficam querendo a medicação.
Os vírus são difíceis de combater. Como os tratamentos quimioterápicos para a infecções virais são limitados, descanso, hidratação e analgésicos são as alternativas mais comuns para reduzir os incômodos das doenças virais, exceto nas infecções respiratórias graves. A cura ocorre, entretanto, porque o sistema de defesa do organismo parasitado passa a produzir anticorpos específicos que combatem o vírus invasor das células. Os vírus são formados por proteínas diferentes daquelas no organismo parasitado, que acabam neutralizadas pelos anticorpos. Assim, caso o vírus invada o organismo novamente, a memória imunológica desencadeará rapidamente uma resposta imune específica contra o vírus, e a doença não se instalará novamente. Quando isso não ocorre, aí, sim, temos um grande problema pela frente.
Imunização
Vários membros da família Coronaviridae infectam humanos e causam uma infecção respiratória discreta. Alguns membros desta família que infectam animais silvestres, quando transmitidos aos humanos, causam uma Síndrome Respiratória Aguda Severa (Sars), como é o caso do Sars-cov-1, da MERS (Síndrome Respiratória do Oriente Médio) e do Sars-cov-2, responsável pela atual pandemia denominada Covid-19. O vírus pulou dos morcegos para animais silvestres que, ao chegarem ao mercado de Wuhan, na China, infectaram os homens. As teorias de que os chineses comeram morcegos ou fabricaram o vírus para dominar o mundo são mentirosas e racistas, disseminadas com o propósito de promover uma nova “Guerra Fria” entre o Ocidente e a China.
O mundo já teve outras pandemias, como a gripe espanhola, que matou 50 milhões de pessoas, mas que nem de longe se propagou com a velocidade no novo coronavírus, devido à globalizaçao. No Brasil, estamos vivendo um momento dramático por causa disso, com o sistema de saúde pública em estresse, devido ao aumento rápido do número de casos, com mais de 200 mortes por dia. A situação é delicada: o presidente Jair Bolsonaro é contra a política de isolamento social adotada por governadores e prefeitos para reduzir a velocidade de propagação da doença e preparar o sistema de saúde para receber seu impacto. Substituiu o ministro Luiz Henrique Mandetta pelo oncologista Nelson Teich, no Ministério da Saúde, com o claro propósito de flexibilizar o regime de quarentena e retomar as atividades econômicas paralisadas em razão da epidemia. Acha que 70% da população terão a doença de forma branda, porém, devem voltar logo ao trabalho para não perderem os empregos. Diz o samba: “quem acha vive se perdendo.”
O risco de colapso do Sistema Único de Saúde (SUS) é real. Mesmo que ocorra a tragédia anunciada, de fato, não devemos temer o fim da espécie. A maioria das pessoas está desenvolvendo seu sistema imunológico para se defender do vírus e com ele conviver, como acontece com outras doenças. O problema é que essas pessoas transmitem o vírus para as demais, inclusive os nossos “dinossauros”, ou seja, os mais idosos, que adquirem lesão pulmonar grave devido à produção de moléculas inflamatórias (citocinas) pelo sistema imune inato e têm também problemas de coagulação, devido à reação inflamatória sistêmica (coagulação intravascular disseminada) ou à produção de anticorpos contra fosfolipídeos (síndrome antifosfolipide).
Enquanto não se tem uma vacina, esses sintomas estão sendo tratados com drogas utilizadas para combater outras doenças, como a polêmica cloroquina, usada contra a malária, de eficácia duvidosa, e drogas anticoagulantes, em especial a heparina. Muitos, porém, não resistem. Ou seja, é melhor os nossos “dinossauros” ficarem bem espertos, em casa.
Monica De Bolle: Vida ou morte
Apesar dos riscos que manifestações pró-democracia em meio à pandemia podem implicar, calar-se neste momento é dar respaldo às atrocidades que levam vidas impiedosamente e com descaso
Perguntado sobre os mais de 30 mil mortos por Covid-19 no Brasil, o presidente da República respondeu, na lata, sem dó: "A morte é o destino de todos". A morte é o destino de todos. Destino de George Floyd nos Estados Unidos, nas mãos de um policial. Destino do menino João Pedro, de 14 anos, baleado enquanto obedecia a quarentena dentro de sua casa. Assassinado por policiais. A morte é o destino de todos. Destino de pessoas de idades diversas, vítimas da doença a que o presidente se recusa a dar a devida relevância. Pois bem. A morte é, de fato, o destino de todos, ou de muitos que não perderiam sua vida tão cedo em razão do desprezo pela vida que demonstra o líder do país. Manifestação? Sim, manifestação.
As manifestações no meio de uma epidemia evidentemente aumentam o risco de contágio. As pessoas precisam se proteger, sair de máscara, procurar manter distanciamento para reduzir o risco de contaminação. Mas condenar as manifestações pró-democracia por causa da epidemia?
É bom lembrar que a manifestação pró-democracia é contra o presidente da República, que não apenas repudia a democracia, mas faz troça da epidemia e da perda de vidas, todas as vidas — em especial, a vida dos mais pobres e dos negros, os mais atingidos até agora. Portanto, manifestar-se pró-democracia é posicionar-se a favor da luta contra a epidemia.
Manifestar-se pró-democracia é uma questão de vida ou morte, tal qual a própria epidemia.
Tenho visto muita gente no Brasil se recusando a enxergar aquilo que deveria ser óbvio. O país atravessa um momento insustentável, com um governante que prefere o caos à preservação do país. Um governante que detesta as instituições que regem nossa democracia. Um governante abertamente favorável à brutalidade e à opressão. Um governante que não se importa com o sofrimento de dezenas de milhares de famílias brasileiras, com dezenas de milhões de habitantes do Brasil, com os mais vulneráveis, que ele reluta em auxiliar pela renda básica emergencial. O que fazer perante essa situação? Panelaços, sim. Gritaria, sim.
Mas vejam: as ruas sempre foram um espaço privilegiado da ação política. Quando algo está profundamente errado nós buscamos as ruas porque é nelas que se tem maior visibilidade e, portanto, se encena a um maior número a contestação, na esperança de que espectadores se disponham a se tornar atores. A tomada das ruas está proibida por causa da epidemia? Não, tomá-las está mais perigoso, mas de modo algum proibido.
Cabe a todas as pessoas que queiram se manifestar — diga-se, legitimamente — contra a barbárie do bolsonarismo ir às ruas com responsabilidade. Com máscara para não se contaminar. Com máscara para não contaminar os outros.
Aqui nos EUA a morte de George Floyd levou centenas de milhares de pessoas para as ruas ao longo de mais de uma semana. Algumas dessas manifestações foram violentas. Outras foram pacíficas. Outras ainda tiveram de lidar com a brutalidade da polícia: foi esse o caso aqui em DC, onde moro. Para que Trump pudesse tirar uma foto com a Bíblia na mão de cabeça para baixo, as forças de segurança lançaram gás lacrimogênio sobre pessoas que exerciam pacificamente seu direito de protestar contra o racismo.
Há temores de que possa haver um recrudescimento da epidemia nas próximas semanas? Sem dúvida. Mas o resultado das manifestações já é visível: os policiais envolvidos na morte de Floyd que haviam sido acusados com brandura viram suas acusações se tornarem muito mais duras em razão da indignação do povo nas ruas diante da injustiça do homicídio e da condescendência com ele.
Vejo no Brasil uma relutância que, apesar do descontrole da doença, não vislumbrei aqui. São pessoas que veem no governo Bolsonaro, na figura presidencial, todos os perigos que eles representam, mas que hesitam. Hesitam por causa da epidemia. Hesitam devido a um senso de responsabilidade justificado, como preservação das vidas.
Contudo, calar-se neste momento, apequenar-se neste momento, esconder-se neste momento é dar respaldo às atrocidades que levam vidas impiedosamente e com descaso. "É o destino de todos".
Luiz Carlos Azedo: A alegoria de Camus
“A epidemia de meningite só acabou após a vacinação de 80 milhões de pessoas, o que seria impossível com a manutenção da censura sobre a doença”
Publicado em 1947, A Peste, do escritor franco-argelino Albert Camus (1913-1960), é uma alegoria da ocupação nazista. Por isso, fez tanto sucesso não só na França como na Europa do pós-guerra e também na América Latina, inclusive no Brasil, nas décadas de 1960 e 1970. Camus foi um militante da Resistência, mas teve uma posição muito moderada em relação aos que colaboraram com os invasores alemães durante a II Grande Guerra, condenando os “justiçamentos”. Já era um escritor consagrado, com duas obras elogiadíssimas pela crítica: O estrangeiro e O mito de Sísifo.
Albert Camus nasceu em 7 de novembro de 1913 na Argélia, à época uma colônia francesa, cenário de seu romance, que conta a história de uma epidemia na cidade de Oran, no norte daquele país. Em 1940, um médico encontrou um rato morto ao deixar seu consultório. Comunicou o fato ao responsável pela limpeza do prédio. No dia seguinte, outro rato foi encontrado morto no mesmo lugar. A esposa do médico tinha tuberculose e foi levada para um sanatório. A quantidade de ratos aumentou exponencialmente. Em um único dia, oito mil ratos foram coletados e encaminhados para cremação.
Em pânico, a cidade declarou estado de calamidade, as pessoas tinham febre e morriam em massa. Os muros foram fechados, em quarentena, ninguém entrava ou saía; os doentes foram isolados, as famílias, separadas. Enquanto o padre apregoava que tudo aquilo era um castigo divino, prisioneiros eram mobilizados para enterrar os cadáveres, que empilhavam nas ruas: velhos, mulheres e crianças morriam. O livro é uma alegoria da condição de vida regulada pela morte, fez muito sucesso porque era uma crítica ao fascismo e relatava as diferenças de comportamento diante de situações-limite. Fora escrito durante a ocupação militar alemã. Camus foi editor do jornal clandestino Combat, porta-voz dos partisans.
Em 1951, Camus lançou o livro O homem revoltado, no qual condenava a pena de morte e criticava duramente o comunismo e o marxismo, o que provocou uma ruptura com seu amigo e filósofo Jean-Paul Sartre, que liderou seu linchamento moral por parte da intelectualidade francesa. Mesmo depois do Prêmio Nobel de Literatura, em 1957, continuou sendo um renegado para a esquerda. Seu discurso na premiação foi profético. Permanece atual nestes tempos de epidemia de coronavírus.
“Cada geração se sente, sem dúvida, condenada a reformar o mundo. No entanto, a minha sabe que não o reformará. Mas a sua tarefa é talvez ainda maior. Ela consiste em impedir que o mundo se desfaça. Herdeira de uma história corrupta onde se mesclam revoluções decaídas, tecnologias enlouquecidas, deuses mortos e ideologias esgotadas, onde poderes medíocres podem hoje a tudo destruir, mas não sabem mais convencer, onde a inteligência se rebaixou para servir ao ódio e à opressão, esta geração tem o débito, com ela mesma e com as gerações próximas, de restabelecer, a partir de suas próprias negações, um pouco daquilo que faz a dignidade de viver e de morrer”, disse Camus.
Epidemia
Em comemoração aos 60 anos de sua morte, divulgou-se na França um de seus textos da época da resistência, cujo original foi encontrado nos arquivos do general De Gaulle, o presidente francês que liderara a Resistência do exílio. O documento era destinado às forças que combatiam o marechal Pétain e trata de dois sentimentos presentes no contexto da ocupação: ansiedade e incerteza. A ansiedade “em uma luta contra o relógio” para reconstruir o país; a incerteza, em razão do fato de que, “se a guerra mata homens, também pode matar suas ideias”.
A alegoria de A Peste também serve de advertência diante de certas manifestações de apoio ao regime militar implantado após o golpe de 1964, cujo aniversário foi comemorado ontem. Em 1974, o Brasil enfrentou a pior epidemia contra a meningite de sua história. Para evitar o contágio, o governo decretou a suspensão das aulas e cancelou os Jogos Pan-Americanos de 1975, que foram transferidos de São Paulo para o México. A epidemia começou em 1971, no distrito de Santo Amaro, na Zona Sul de São Paulo. Com dor de cabeça, febre alta e rigidez na nuca, muitos morreram sem diagnóstico ou tratamento.
Em setembro de 1974, a epidemia atingiu seu ápice. A proporção era de 200 casos por 100 mil habitantes, como no “Cinturão Africano da Meningite”, que hoje compreende 26 países e se estende do Senegal até a Etiópia. O Instituto de Infectologia Emílio Ribas, com apenas 300 leitos disponíveis, chegou a internar 1,2 mil pacientes. Na época, eu era um jovem repórter do jornal O Fluminense, de Niterói (RJ). Com a cumplicidade de um acadêmico de medicina, conseguimos fotografar pela janela uma enfermaria lotada de crianças com meningite, no Hospital Universitário Antônio Pedro (UFF). A foto foi publicada com a matéria, mas gerou a maior crise política para a direção do jornal, porque a meningite era um assunto censurado pelos militares. A epidemia só acabou no ano seguinte, após a vacinação de 80 milhões de pessoas, que seria impossível com a manutenção da censura sobre a meningite pelo governo do general Ernesto Geisel.
Arminio Fraga: Uma resposta à altura da crise
Reformas menos impactantes nos deixariam na ciclotimia medíocre de décadas
Em minha última coluna discorri sobre a tempestade perfeita de crises que assolam o Brasil: sanitária, econômica e política. Argumentei que o desafio exigia liderança esclarecida por parte do Executivo. De lá para cá a tormenta recrudesceu.
Já não é de hoje que o governo vem dando sinais preocupantes. Ataques constantes à imprensa. Rejeição à política e ao diálogo. Repressão ao terceiro setor e à cultura. Desdém pela ciência, meio ambiente, questões identitárias, pela própria democracia. O vídeo da reunião de abril confirmou de forma assustadora esses sinais.
Resulta daí grande incerteza. E não surpreende, portanto, que o investimento nacional esteja há tempo parado em seu menor nível histórico.
No campo econômico, a agenda pouco evoluiu. A privatização, a PEC Emergencial (de natureza fiscal) e a abertura da economia não andaram. As cruciais reformas tributária e administrativa não foram sequer apresentadas.
O ambiente político anda crescentemente tenso, como no título do livro “A Batalha dos Poderes”, de Oscar Vilhena Vieira, colega aqui nesta Folha. O governo parece se alimentar do confronto. Chama a atenção nesse contexto a montagem de uma base de apoio em linha rejeitada na campanha. Sugere uma guinada para modo de sobrevivência. Não é um bom sinal.
Independentemente do rumo que a política brasileira vier a tomar, cabe um alerta quanto ao cenário econômico.
A crise econômica tem suas raízes nas equivocadas escolhas da gestão de Dilma Rousseff, amplamente debatidas, embora não devidamente absorvidas. Meu resumo: modelo econômico velho (intervencionista, de baixa produtividade) e crise de confiança por descontrole fiscal a partir de 2014 (fato frequentemente esquecido).
A despeito da aprovação da reforma da Previdência e da introdução do teto para o gasto público, que impactaram positivamente os mercados, faltam ainda condições objetivas para que o teto seja cumprido a médio e longo prazos. Como resultado, o investimento público, que já vinha baixo, caiu para próximo de zero. As despesas livres foram também espremidas e se aproximam de um limite mínimo. Houve sim estabilização da dívida pública (como proporção do PIB), mas de maneira insustentável.
Nesse contexto chega o vírus. O governo saiu gastando agressivamente em saúde e assistência social, corretamente, mas sem planejamento. Como nossa convivência com o vírus pelo visto vai durar bem mais do que se imaginava, o buraco fiscal deve aumentar bastante. Estima-se um déficit primário que pode neste ano chegar a inimagináveis 12% a 15% do PIB (num cenário em que o PIB caia entre 6% e 10%). A implacável aritmética levará a dívida pública dos atuais 75% para mais do que 90% do PIB.
O orçamento chamado de guerra (que veio em boa hora) acertadamente proíbe que os gastos extraordinários adentrem 2021. Mas as pressões para mais gastos serão enormes. A despeito das regras legais, há risco que ocorram (lembremo-nos aqui que a Lei de Responsabilidade Fiscal foi violada a partir de 2014). É bem possível que ano que vem a dívida se aproxime de 100% do PIB.
As enormes e crescentes necessidades de financiamento do setor público forçarão um encurtamento no prazo da dívida. Vejamos como. Um aumento do endividamento como o que está programado gera insegurança e reduz a demanda por títulos de longo prazo. A consequência direta é que sobe o custo da dívida de longo prazo, o que já está ocorrendo. No limite, a demanda pode secar completamente, como em 2002. Nesse contexto, o Tesouro é obrigado a encurtar o prazo de suas captações.
Esse encurtamento pode ocorrer através de vários mecanismos, que a não especialistas parecem misteriosos. Alguns envolvem o Banco Central. Mas no final das contas, o que importa é que o prazo da dívida pública em poder do público vai encurtando. Ou seja, parte da dívida vai se transformando em uma quase moeda.
O encurtamento reduz o custo do financiamento, mas cria a dependência de rolagens frequentes e grandes da dívida. Quando em algum momento os financiadores se assustam, as taxas de juros de curto prazo também ficam pressionadas. Parte do dinheiro pode inclusive querer sair do país, o que pressiona também a taxa de câmbio e, eventualmente, a inflação.
Como bem advertiu Edmar Bacha em evento quinta-feira passada na Câmara dos Deputados, não precisamos ir muito longe para vermos que inflação pode coexistir com recessão: basta ir à Argentina (ou consultar nossa própria história).
Temos assim diante de nós um colossal desafio para 2021 e adiante. Considero gestão temerária estabilizar a dívida pública em patamar superior a 70% do PIB, especialmente com prazo encurtado. Algumas economias avançadas podem fazê-lo, mas não o Brasil, com seu histórico de inflação, confiscos, controles de câmbio e moratórias. Temos que sair dessa! Para tanto, será necessário fazer um ajuste fiscal de 4 a 5 pontos do PIB. Assim se garante que a dívida entre em trajetória crível de queda, o que acalmaria as expectativas.
Além do ajuste macroeconômico, será necessário obter recursos para investimentos públicos em áreas como saúde, tecnologia e infraestrutura, algo como quatro pontos do PIB. A soma bate sim em 8 a 9 pontos do PIB. Não podemos nos iludir —esse é o tamanho do desafio. Tenho plena convicção de que valeria a pena enfrentá-lo.
De onde viriam os recursos? Cabe aqui o que no mundo empresarial seria chamado de um benchmarking. No caso, uma comparação com outros países, em busca de oportunidades para mais economia e eficiência. No Brasil, os gastos com Previdência e funcionalismo atingem cerca de 80% do total das despesas públicas. Na esmagadora maioria dos países esse número não passa de 60%. Se as duas contas fossem para 60%, cifra ainda alta, daria para economizar até sete pontos do PIB (20% dos 35% do PIB de gastos totais).
Como? Do lado da Previdência, com uma reforma adicional que inclua os estados e elimine algumas folgas nas regras. Assim seria possível se obter um total de três pontos por ano. O projeto coordenado por Paulo Tafner em 2018 oferece um exemplo detalhado de como se chega a esse resultado.
Uma reforma da área de recursos humanos do Estado deveria gerar mais três pontos do PIB (além de melhores serviços para a população). A reforma incluiria uma redução do número de funcionários (ao longo de alguns anos), avaliações de todos os funcionários, fim de promoções automáticas, ajustes nos planos de carreira e correções de distorções (como supersalários). Seria possível simular caminhos e criar metas detalhadas.
Há ainda uma terceira fonte de recursos, que viriam de uma redução de subsídios que não fazem sentido econômico ou social. No orçamento de subsídios da União é possível identificar economias de 2 a 3 pontos, sobretudo nas regras dos regimes especiais do Imposto de Renda, que são absurdas sob o ponto de vista distributivo. Esse passo teria o benefício adicional de conferir autoridade moral ao conjunto de propostas, pois deixariam claro que as perdas seriam proporcionalmente maiores para os mais capazes de arcar com elas.
Que fique claro também que sem as reformas as perdas gerais seriam imensas e recairiam sobre os mais pobres.
No curto prazo, creio que com contenção de salários e de contratações no setor público e com a eliminação de subsídios se poderia chegar a um ajuste de três pontos do PIB. As reformas mencionadas aqui cuidariam do restante, ao longo de alguns anos.
Estamos diante de problemas enormes. Felizmente, como demonstrei, existem respostas de igual dimensão. Se adotado, o roteiro apresentado aqui porá o Brasil em uma trajetória de crescimento sustentável e inclusivo. Reformas menos impactantes nos deixariam na ciclotimia medíocre em que estamos há décadas. Nada fazer nos garantiria um final distópico.
*Arminio Fraga, sócio da Gávea Investimentos, é presidente do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS).
Dorrit Harazim: Talkey
Pouco apaziguante para um país que ultrapassara 330 mil casos de Covid-19 e um séquito de mais de 21 mil óbitos
A linguagem do decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, em nada se assemelha ao idioma criado por Jair Bolsonaro para pregar a seus devotos. A sintaxe, o léxico, o conteúdo falam a dois Brasis cada vez mais estrangeiros. Na sexta-feira passada, porém, Celso de Mello se fez entender por todos ao lembrar que cabe ao Estado mandar apurar delitos apontados por “qualquer pessoa do povo”, mesmo que se trate de “alguém investido de autoridade na hierarquia da República”. Em outras palavras: nem o Mito está acima da lei, talkey? O causídico assinou dois despachos — bomba com poucas horas de intervalo —, autorizou a liberação quase integral do vídeo da polêmica reunião ministerial de 22 de abril último, e encaminhou à Procuradoria-Geral da República (PGR) um pedido de apreensão do celular de Bolsonaro e de seu filho 02, o vereador bissexto Carlos. As duas decisões são desdobramentos das investigações sobre a suposta interferência do presidente na Polícia Federal, denunciada pelo ex-ministro Sergio Moro.
A partir daí, o estado democrático de direito viu-se, mais uma vez, enroscado.
Com 48 horas de intervalo, o general de reserva Augusto Heleno, ministro-chefe do GSI (Gabinete de Segurança Institucional) também emitira dois comunicados à nação. O primeiro já teve sonoridade meio esquisita, embora pretendesse soar como afago aos historicamente inquietos. “Os militares não vão dar golpe. Isso não passa na cabeça dessa nossa geração… São provocações feitas por alguns indivíduos…”, garantiu o general durante uma live com o grupo Personalidades em Foco. Heleno acrescentou que deve isso à geração de seus instrutores, “vacinados por toda aquela trajetória de militares se intrometendo de uma forma pouco aconselhável, mas muitas vezes necessária, na política”. No segundo comunicado, em papel timbrado via Twitter, indignou-se com o pedido de apreensão e encaminhamento à PGR do celular presidencial. Considerou o pedido uma afronta à autoridade máxima, e uma interferência “inadmissível” do STF na privacidade de Bolsonaro e na segurança nacional. E assim sendo, alertava “as autoridades constituídas que tal atitude… poderá ter consequências imprevisíveis para a estabilidade nacional”.
Pronto, o “inadmissível” estava colocado na mesa. Para bolsonaristas, intolerável passa a ser o pedido de apreensão do celular do presidente; para ouvidos mais maduros, inquietante é o aceno pouco velado a uma eventual instabilidade nacional. Tudo pouco apaziguante para um país que ultrapassara a marca de 330 mil casos de Covid-19 e um séquito fúnebre de mais de 21 mil óbitos notificados.
Foi nesse pano de fundo que os brasileiros puderam acompanhar a transmissão de largos trechos da reunião ministerial de 22 de abril, peça-chave na investigação sobre as acusações feitas pelo ex-ministro Moro ao chefe do Executivo, e cujo sigilo o ministro Celso de Mello liberara.
O seu conteúdo será dissecado por anos a fio, por histórico, revelador, estupefaciente. Mas como esta coluna dominical está sendo enviada dois dias antes, no meio da transmissão do material libertado, cita-se aqui apenas uma rima presidencial pinçada às pressas, que não se refere às acusações de Sergio Moro mas não deixa de ser instigante. Palavras do presidente da República um tanto alterado, estilo haikai talkey:
“Os caras querem/ A nossa hemorroida!/ A nossa liberdade!/ Isso é que é a verdade” .
Também digno de nota foi a imagem na parede de um grupo de crianças lindinhas, todas branquinhas, olhando com enlevo para um cartaz do governo com os dizeres PÁTRIA AMADA, BRASIL. Servia de pano de fundo ao ministro da Educação, Abraham Weintraub, que podia ser visto e ouvido elencando seu rol de inimigos. “Odeio o termo povos indígenas” haverá de se tornar um clássico. Mandar prender todos os ministros do STF também. Não que o presidente ficasse atrás. “Estou armando o povo porque não quero a ditadura” e “Povo armado jamais será escravizado”, entoou com vigor o chefe da nação.
Talvez seja oportuno invocar o velho Bertolt Brecht dos tempos em que ele ainda acreditava na capacidade humana de renunciar ao mal. Marxista de raiz, o dramaturgo alemão escreveu este poema antes de Hitler apresar o mundo:
“O vosso tanque, general, é um carro-forte/ Derruba uma floresta, esmaga cem homens/ Mas tem um defeito/ — Precisa de um motorista/ O vosso bombardeiro, general/ É poderoso:/ Voa mais depressa que a tempestade/ E transporta mais carga que um elefante/ Mas tem um defeito/ —Precisa de um piloto/ O homem, meu general, é muito útil:/ Sabe voar, e sabe matar/ Mas tem um defeito/ — Sabe pensar.”
Pensemos, pois.
Eliane Cantanhêde: Nada faz sentido
Reunião foi do balacobaco e ministro da Saúde tem de fazer o que dr. Jair manda
Nada faz mais sentido, com as versões oscilando entre inacreditáveis e ridículas. Mas vamos ao principal: o vídeo da reunião ministerial de 22 de abril confirma toda a versão do ex-ministro Sérgio Moro e deixa o presidente Jair Bolsonaro na patética situação de alegar que não falou em Polícia Federal, só em PF… Ah, bem!
O trecho divulgado pela Advocacia Geral da União, que defende Bolsonaro, deixa tudo em pratos limpos. Bolsonaro não apenas citou a PF como a citou em primeiro lugar. E todo o contexto não deixa dúvidas: “querem F…. com ele e a família”, é preciso cuidar da segurança da família e dos amigos.
O órgão responsável pela segurança pessoal da família não é a Polícia Federal (ok, a PF), é a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), vinculada ao GSI. E nem a PF nem a Abin cuidam da segurança de amigos, vamos convir. Logo, o presidente não estava falando da segurança física nem da Abin. Estava falando, sim, da PF. E os desdobramentos confirmam à sobeja.
“Vou interferir. Ponto final”, avisou o presidente. E interferiu. Onde? Na PF. Quem foi demitido foi o diretor geral da PF, delegado Maurício Valeixo, não o também delegado Alexandre Ramagem, da Abin, que chegou, inclusive, a ser nomeado para a vaga de Valeixo. O presidente promoveu quem não estava cuidando direito da segurança pessoal da família e dos amigos?! Não.
Assim, o presidente usa nomes falsos em exames de covid-19, demora meses para entregar os laudos à Justiça, diz que não falou na Polícia Federal, mantém a versão sem sentido da “segurança pessoal”. Dr. Jair, médico renomado, também insiste em desconsiderar estudos científicos do mundo todo para impor o uso da cloroquina em pacientes iniciais, como insiste na sua cruzada contra o isolamento social. E instiga a guerra contra governadores, que “querem quebrar a economia para atingir o meu governo”. Non sense.
Saiu Luiz Henrique Mandetta, entrou Nelson Teich e nada mudou. O presidente exige que o ministro da Saúde, seja quem for, faça o que ele próprio tem na cachola. A Dra. Damares Alves topa o jogo, falando em “milagre da cloroquina”. Mas, se insistir em nomear um general para o Ministério, Bolsonaro vai criar uma saia justa. O estudo mais completo, claro e realístico sobre a importância do isolamento social foi feito pelo… Exército. Um ministro-general vai seguir os estudos científicos ou os achismos do presidente?
A semana, portanto, começa sob duas expectativas. Quem será e o que vai dizer e fazer o novo ministro da Saúde num momento dramático da pandemia? O relator Celso de Mello, do STF, vai quebrar o sigilo integral ou só parcial da reunião do dia 22? Há quem defenda que ele libere geral, em nome da transparência, há quem ache melhor a divulgação em parte, em nome da segurança e da imagem do Brasil.
Curiosos foram os argumentos do procurador geral Augusto Aras, contra a divulgação integral: trata-se de um “arsenal de uso político” e de “instabilidade pública”, “proliferação de querelas” e de “pretextos para investigações genéricas sobre pessoas”. A conclusão é que a reunião foi do balacobaco. Além do presidente falando palavrão, mostrando que é capaz de qualquer coisa para proteger a família – o que consta dos trechos da AGU –, há ministros falando qualquer coisa para agradar ao presidente.
Um verdadeiro vale tudo com provocações gratuitas contra o maior parceiro comercial do Brasil, proposta de botar na cadeia os onze ministros do Supremo, a ideia de prender junto os governadores. Celso de Mello, portanto, vai ter de decidir se os brasileiros têm ou não o direito de saber onde estão metidos e se o mundo precisa saber o que está ocorrendo no Brasil.
El País: Brasil supera a Espanha e já é o quarto país em infectados no mundo
Já são mais de 15.000 mortos, 816 nas últimas 24 horas. País se aproxima do Reino Unido em número de infectados, com 233.142 neste sábado. País digere a queda do segundo ministro da Saúde
O Brasil chega a este sábado com uma cifra triste de 15.633 mortes confirmadas por coronavírus. Foram 816 mortes confirmadas somente nas últimas 24 horas, segundo o Ministério da Saúde. O Brasil já superou a Espanha e a Itália em número de pessoas infectadas, com 233.142 casos confirmados. O país fica atrás agora de Estados Unidos, Reino Unido (241.461), um país de quase 70 milhões de pessoas, contra os 210 milhões no Brasil, em seguida Rússia (272.043) e Estados Unidos com quase um milhão e meio de infectados.
Quase 90.000 se recuperam do vírus, mas as contaminações continuam a escalas cada vez maiores. O epicentro da pandemia no país, São Paulo, soma 61.183 infectados e 4.688 mortes, seguido por Ceará e Rio de Janeiro. Essa realidade se depara com a insistência do presidente Jair Bolsonaro (sem partido) em se concentrar na agenda econômica, enquanto perde seu segundo ministro da Saúde em plena pandemia. Nelson Teich pediu demissão por não aceitar a pressão de recomendar a cloroquina no combate à covid-19 — assim como seu antecessor, Luiz Henrique Mandetta (DEM-GO), um mês antes.
Eis um embate para o próximo nome que assumir a pasta. Até o momento não há estudos que comprovem a eficácia do medicamento no tratamento da covid-19. Duas grandes pesquisas feitas recentemente nos Estados Unidos com milhares de pacientes, e publicadas em respeitadas revistas científicas internacionais —o que significa que foram revisadas por outros cientistas—, mostraram que o uso da cloroquina e da hidroxicloroquina não diminuiu a mortalidade por covid-19.
Enquanto isso, o Exército aumentou em 80 vezes a produção de cloroquina., conforme contou o EL PAÍS. O Laboratório Químico Farmacêutico do Exército (LQFEx) produziu 1,2 milhão de comprimidos do final de fevereiro até meados de abril. Até o começo da pandemia, a média era de 250.000 comprimidos a cada dois anos, segundo a assessoria de imprensa do Exército. O fármaco atende a quem sofre de lúpus, malária e, agora, segundo o Governo, pacientes com covid-19, apesar das negativas médicas. "A capacidade de produção pode ser de até 1 milhão de comprimidos por semana”, diz a instituição, que produz a droga sob encomenda do Ministério da Saúde.
O ex-ministro Mandetta chegou a dizer em entrevista ao Correio Braziliense que Bolsonaro quer “empurrar” a cloroquina para o tratamento de covid-19 para que as pessoas se sintam confiantes e reativem a economia. “Ele quer um medicamento para que as pessoas sintam confiança, para retomar a economia. A pessoa fica na sua tranquilidade achando que o medicamento resolve o problema. Como é barato e o Brasil produz, por ser medicamento da malária… Só que malária costuma dar em mais jovens”, afirmou.
O próximo à frente da pasta viverá essas pressões, assim como as cobranças pelo fim do isolamento social, outra bandeira de Bolsonaro durante a pandemia. Acertar um plano com o Brasil todo, que case cuidado com a saúde e com a economia é contar com o aceite geral da sociedade de soluções alternativas ao consenso mundial do controle da covid-19. A Organização Mundial da Saúde e a comunidade médica e científica advertem que é o único caminho para frear o ritmo de contágio neste momento agudo. Não se sabe o que acontecerá com o país conduzido com Bolsonaro. É um momento difícil no Brasil .
Luiz Carlos Azedo: Sem chance
“Tanto o Congresso quanto o Supremo, ao contrário do que o presidente da República se queixa, colaboram com o governo no enfrentamento da crise”
No rumo em que vai, o governo Bolsonaro não tem chance de dar certo, isso não significa que o impeachment do presidente da República venha a ocorrer. O problema é que as variáveis de sucesso conspiram para que as coisas deem errado. A primeira delas é o conceito de governo. Bolsonaro fez uma opção por um governo de colisão com os demais poderes e esferas de poder, anda às turras com o Congresso e o Supremo, os governadores e os prefeitos. No lugar do presidencialismo de coalizão, optou por uma estratégia de centralização de poder e confronto. Montou um time de militares para operar a administração, mas não deixa que os generais do Palácio do Planalto façam uma política de conciliação à la Duque de Caxias. Seu estilo está mais para Gastão de Orléans, o Conde d’Eu.
Governança e governabilidade caminham de mãos dadas, Bolsonaro cria instabilidade política permanentemente, força os limites do regime democrático. A segunda variável de sucesso seria um método adequado de governança. Aparentemente, é um assunto com o qual não se preocupa. Confronta permanentemente a elite do serviço público, desestabiliza até as atividades-fins, como aconteceu com a Saúde, num momento decisivo para achatamento da curva da epidemia de coronavírus. Se tivesse colado no então ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta, estaria usufruindo dos mesmos índices de popularidade que o auxiliar ostentava, mas errou feio. E continua errando, embora aparentemente tenha caído a ficha para o novo ministro da Saúde, Nelson Teich, de que, neste momento, é loucura relaxar a política de isolamento social.
No mesmo caso se enquadra a ruptura com o ex-ministro Sergio Moro, que saiu do governo acusando o presidente da República de interferências indevidas na Polícia Federal. O depoimento de Moro no inquérito que investiga o caso, divulgado ontem, frustrou a oposição, que esperava denúncias mais contundentes do que aquelas que já havia feito. O problema de Moro é que a maioria de suas afirmações depende de confirmação do estado-maior do governo. Embora todo ocupante de cargo público tenha compromisso com a verdade, nada garante que os generais Luiz Eduardo Ramos (Secretaria de Governo); Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional) e Walter Braga Netto (Casa Civil), ao interpretar os fatos, corroborem as acusações de Moro; resta saber o que dirão os delegados da Polícia Federal (PF) Ricardo Saad, Carlos Henrique de Oliveira Sousa, Alexandre Saraiva, Rodrigo Teixeira, Maurício Valeixo e Alexandre Ramagem.
Moro não conta com a solidariedade política do Ministério Público Federal (MPF) e do Supremo Tribunal Federal (STF), que vão investigar o caso numa linha de ponderação e equilíbrio. Não pretendem ser protagonistas, no momento atual, de uma crise institucional. No depoimento de Moro, além das acusações contra Bolsonaro, também há contradições e lacunas que podem ser usadas contra o ex-juiz. Apesar de contar com grande prestígio na opinião pública, Moro agora enfrenta uma guerra nas redes sociais, para a qual não estava preparado. Continua sendo um nome fortíssimo para a disputa da Presidência em 2022, mas terá de atravessar o deserto sem camelo, se digladiando com os inimigos declarados e ocultos que amealhou ao longo de sua atuação, inclusive nos tribunais. O caso Moro, porém, tira de Bolsonaro a bandeira da ética.
Novo cenário
A terceira variável do sucesso é a construção de um ambiente favorável para o governo. Impossível isso ocorrer a curto prazo. No plano mais objetivo, a pandemia de coronavírus e a recessão mundial modificaram completamente as circunstâncias nas quais Bolsonaro governa. Um governante que chegou ao poder mais pela sorte do que pelas virtudes tem grandes dificuldades de lidar com mudanças de envergadura. É o caso de Bolsonaro. Aves podem fazer coisas como mergulhar e falar, mas não pode dar leite. É assim que a economia funciona. No cenário de desestruturação das atividades econômicas por causa da epidemia, a política econômica ultraliberal do ministro Paulo Guedes foi para o espaço; não pode ser implementada sem um custo social muito alto no imediato pós-epidemia. Essa é uma contradição com a qual Bolsonaro não contava. No mundo inteiro, se discute o que será o “novo normal” na vida social e econômica. Não é possível, simplesmente, voltar ao que se fazia antes, como imagina.
O ambiente político também mudou muito, embora o governo venha fazendo um esforço para aumentar seu cacife no Congresso. A aproximação de Bolsonaro com os partidos do chamado Centrão blindará o governo diante das tentativas de impeachment da oposição, mas isso não melhora seu desempenho administrativo, que deixa muito a desejar, nem garante a hegemonia no Congresso, além de afastar setores da opinião pública identificados com Moro. Além disso, o estresse institucional criado por Bolsonaro atrapalha as negociações políticas. Tanto o Congresso quanto o Supremo, ao contrário do que o presidente da República se queixa, vêm atuando no sentido de colaborar com o governo no enfrentamento da crise provocada pela pandemia. Nesse aspecto, deveria até agradecer, em vez de tanto reclamar.