saúde
Luiz Carlos Azedo: Viver é muito perigoso
“Com 82,7 mil mortes no Brasil, as cidades reabrem o comércio, as pessoas circulam em transportes lotados e calçadas apinhadas — o risco de contaminação aumentou”
A frase antológica que intitula a coluna, do jagunço Riobaldo, em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, nunca foi tão universal. No romance, repete-se muitas vezes, como as referências aos redemoinhos e ao diabo. “Hoje, sei. E sei que em cada virada de campo, e debaixo de sombra de cada árvore, está dia e noite um diabo, que não dá movimento, tomando conta. Um que é o romãozinho, é um diabo menino, que corre adiante da gente, alumiando com lanterninha, em o meio certo do sono. Dormi, nos ventos. Quando acordei, não cri: tudo que é bonito é absurdo — Deus estável.”
A situação que os brasileiros estão passando em meio à pandemia do coronavírus é como ter um pesadelo acordado. Estamos numa travessia marcada pela incerteza, na qual um vírus terrível vive à espreita. Sair às ruas é um risco, ao qual cada vez mais pessoas estão submetidas, seja pelo número de infectados assintomáticos que circulam, seja pela necessidade de voltar ao trabalho para sobreviver. Ontem, batemos recorde de casos da covid-19 registrados em 24 horas. Segundo o Ministério da Saúde, foram nada menos que 67,8 mil diagnósticos positivos, somando 2,227 milhões de casos confirmados. O recorde anterior, em 19 de junho, era de 54 mil casos. As mortes por covid-19 registradas nas últimas 24 horas foram 1.284. Subiu para 82.771 o número de óbitos pela doença no país.
A pandemia continua assombrosa em São Paulo, onde avançou pelo interior, e pressiona os estados do Sul e do Centro-Oeste. No Norte e Nordeste do país, parece que o pior já passou. Impossível dissociar a sofisticada filosofia do jagunço Riobaldo do diplomata Guimarães Rosa, o escritor: “No real da vida, as coisas acabam com menos formato, nem acabam. Melhor assim. Pelejar por exato, dá erro contra a gente. Não se queira. Viver é muito perigoso…”. Riobaldo flertava com correntezas e redemoinhos: “Viver — não é? — é muito perigoso. Porque ainda não se sabe. Porque aprender a viver é que é o viver mesmo”.
Sem controle
O Brasil está relaxando as quarentenas, a política de isolamento social. Mesmo com 82,7 mil mortes, as cidades estão reabrindo o comércio, as pessoas voltam a circular, nos transportes lotados e calçadas apinhadas, o risco não diminuiu, aumentou. Doze estados ainda registram expansão da doença: Paraná, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Goiás, Mato Grosso do Sul, Mato Grosso, Amapá, Pará, Rondônia, Roraima, Tocantins e Paraíba. Ao mesmo tempo, a omissão do governo federal começa a produzir indicadores objetivos que responsabilizam o presidente Jair Bolsonaro e o ministro interino da Saúde, o general Eduardo Pazuello, pelo fato de a pandemia permanecer sem controle. Tudo tem seu preço.
A deliberada “descoordenação” do Ministério da Saúde no combate à pandemia se traduz na execução orçamentária da pasta, questionada, ontem, no Tribunal de Contas da União (TCU). O ministro Benjamin Zymler afirmou que é muito “baixa” a execução dos recursos destinados ao combate à pandemia. Segundo seu relatório, o Ministério da Saúde gastou 29% do dinheiro que recebeu. Dos R$ 39 bilhões disponíveis, R$ 11,5 bilhões foram efetivamente pagos. Interino na pasta, o general Eduardo Pazuello está arrumando sarna para se coçar, pois pode ser responsabilizado judicialmente pelo fracasso no combate à pandemia, bem como seus principais assessores, por não empregarem os meios disponíveis para contê-la.
O primeiro sinal de que esse risco é real foi dado, ontem, pelo ministro Luís Roberto Barroso, do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) o monitoramento das reuniões entre o governo e lideranças indígenas. A conselheira Maria Thereza Uille Gomes passará a acompanhar a “sala de situação”, que monitora a epidemia nas aldeias. A decisão foi tomada porque integrantes da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) se queixaram ao STF de que foram ameaçados e humilhados por integrantes do governo numa reunião. Há 10,2 mil índios contaminados nas aldeias, que registram 408 mortes. O cacique Aritana, do Alto Xingu, contraiu coronavírus e está em estado grave, hospitalizado em Goiânia. A morte dos idosos nas aldeias indígenas representa perda da identidade étnica desses povos, que é preservada por transmissão oral de suas culturas.
Luiz Carlos Azedo: Estado de choque
“Guedes propõe solução simples para um problema complexo: mais um imposto. Como sabe que é isso, pode ser para criar um cavalo de batalha, justificar seu fracasso e deixar o cargo”
A ideologia de livre mercado do vienense Friedrich August Von Hayek, paradigma da política liberal conservadora do pós-guerra, foi historicamente associada às doutrinas de choque. Embora originárias das décadas de 1920/1930, suas ideias somente ganhariam força após a II Guerra Mundial. Esse caráter de “choque” foi resultado do envolvimento de Hayke com regime ditatoriais da América Latina, entre os quais a ditadura sanguinária do general Augusto Pinochet, no Chile. A doutrina de choque funciona como uma chantagem, porque as pessoas são persuadidas de que a única opção é aceitar o “mal menor” diante das crises, o que se traduz em soluções selvagens para a desregulamentação da economia e alienação patrimonial, assim como a naturalização do desemprego em massa e da chamada “destruição criativa”.
Obviamente, Hayke foi um crítico das teorias de John Maynard Keynes, o que dificultou muito sua vida no imediato pós-guerra, por causa do sucesso das políticas keynesianas nos Estados Unidos, depois da Grande Depressão de 1929, e na reconstrução da Europa Ocidental, com o Plano Marshall, no imediato pós-guerra. Entretanto, Hayke ganhou o prêmio Nobel de 1970 e conquistou corações e mentes dos dois principais líderes ocidentais da década seguinte, Ronald Reagan, presidente republicano dos Estados Unidos, e Margareth Thatcher, primeira-ministra conservadora do Reino Unido. Com isso, sua figura controversa deixou de ser associada aos ditadores latino-americanos e passou ser identificada com a bem-sucedida política “neoliberal” desses dois líderes.
Com o colapso da antiga União Soviética e do comunismo no Leste Europeu, o mundo ingressou num período de aparente unipolaridade, até a Rússia de Putin se reerguer como potência energética, a aliança franco-alemã se consolidar na Europa e a China, emergir como novo player da economia mundial, cujo eixo comercial se deslocou do Atlântico para o Pacífico. Simultaneamente, um filósofo norte-americano, John Rawls, que cresceu em Baltimore e havia servido no Pacífico — Nova Guiné, Filipinas e Japão —, durante a II Guerra Mundial, começou a ser muito discutido nos Estados Unidos, por causa de suas teses sobre a justiça, o direito dos povos e a equidade. Formado em Princeton, no começo dos anos 1950, estudou na Universidade de Oxford, no Reino Unido, onde conviveu com outro gigante do liberalismo, Isaiah Berlin.
Equidade
Justiça, equidade e desigualdades eram as principais preocupações de Rawls, que questionava a forma como os princípios de justiça se baseavam. Ele estava preocupado com a relação entre a política e as desigualdades, que ultrapassa os julgamentos morais individuais. Por essa razão, estabeleceu uma correlação entre os princípios da justiça e a forma como os sistemas educacional, sanitário, tributário e eleitoral funcionam. Crítico da guerra do Vietnã e simpático aos movimentos de direitos civis das minorias, concluiu que todos têm as mesmas demandas para as liberdades básicas e que as desigualdades sociais e econômicas deveriam ter um limite razoável, que fossem associados a cargos e posições acessíveis a qualquer um, de forma a que todos pudessem sobreviver com dignidade. Nesse aspecto, o Estado deveria ser garantidor da justiça com equidade. Suas palestras sobre o tema foram reunidas num livro por ele revisado em 2001: Justiça como equidade: uma reformulação (Martins Fontes), muito adotado nas escolas de direito no Brasil. Sua Teoria da Justiça era o livro de cabeceira do presidente Bill Clinton, do Partido Democrata.
O ministro da Economia, Paulo Guedes, é um discípulo da Escola de Chicago, liderada por Milton Friedman, outro prêmio Nobel de Economia, de quem foi aluno e apadrinhado na ida para a equipe econômica do general Pinochet. A essência do seu pensamento se baseia na formação de preços, livre mercado e expectativas racionais dos agentes econômicos. Há um ano, o ministro anuncia uma reforma tributária, sem apresentá-la, enquanto o Congresso discute dois projetos, um no Senado, de autoria do ex-deputado Luiz Carlos Hauly (PSDB-PR), e outro na Câmara, do deputado Baleia Rossi (MDB-SP), com base em estudos do economista Bernard Appy.
Como já vimos, é preciso compatibilizar nosso liberalismo com a justiça social. O que a pandemia escancarou foi o sucateamento da saúde e da educação e a brutal violência e iniquidade social nas favelas, periferias e grotões do país. Entretanto, agora, Guedes anuncia uma proposta de reforma tributária cujo eixo é a criação de imposto com tributação automática de operações digitais, para arrecadar mais de R$ 100 bilhões. Na prática, é uma exumação da antiga CPMF, que foi criada originalmente para viabilizar recursos para a Saúde.
O problema de Guedes é o crescimento da dívida pública por causa da pandemia, que deve elevar o deficit fiscal de R$ 134 bilhões para, aproximadamente, R$ 700 bilhões, o que inviabiliza as políticas de transferência de renda e pode provocar o colapso financeiro do governo federal, se não houver uma reforma administrativa e nova reforma previdenciária no próximo ano. Guedes propõe uma solução simples para um problema complexo: mais um imposto. Política de choque. Como sabe que é isso mesmo, pode ser, também, para criar um cavalo de batalha, justificar seu fracasso e deixar o cargo.
Luiz Carlos Azedo: Cai fora, cai fora!
“Passou da hora de o general Pazuello, interino na Saúde, voltar para o seu comando na 12ª Região Militar, que cuida dos suprimentos, embarcações e hospitais do Exército na Amazônia”
O pior acidente aéreo de todos os tempos aconteceu em 1977, na Ilha de Tenerife, na Espanha. No dia 27 de março daquele ano, uma bomba explodiu no aeroporto de Gran Canaria, umas das Ilhas Canárias, e todos os voos foram desviados para o aeroporto de Los Rodeos, na ilha de Tenerife. Por conta da confusão no controle de pousos e decolagens, dois Boeing 747, um da KLM Royal Dutch Airlines, holandesa, e outro da Pan América Word Airways, norte-americana, se chocaram próximo ao solo do aeroporto. Morreram 583 pessoas, 248 passageiros da KLM e 335 dos 396 passageiros da Pam Am, cujo copiloto sobreviveu. Da cabine de seu avião, enquanto taxiava para decolar, o comandante americano Victor Grubbs viu outra aeronave vindo em sua direção, acelerando para levantar voo, em meio às névoas que cobriam a pista. “Esse filho da mãe está vindo para cima da gente!”, disse. “Cai fora, cai foral!”, gritou Robert Bragg, o copiloto que escapou da tragédia, com mais 60 pessoas.
O Brasil registrou 1.261 mortes pela covid-19 nas últimas 24 horas, isso é mais do que dois acidentes de Tenerife juntos. Se formos considerar os acidentes ocorridos no Brasil, o número de mortos é seis vezes maior do que o da queda do Airbus A-320 da TAM em Congonhas, na noite chuvosa de 17 de julho de 2007. Vinda de Porto Alegre, a aeronave ultrapassou a pista principal do aeroporto durante o pouso, passou sobre a Avenida Washington Luís, colidiu com o prédio da TAM Express e explodiu, matando todos os 187 passageiros e tripulantes a bordo e mais 12 pessoas em solo. O total de 75.523 óbitos por coronavírus registrado na pandemia equivale a 403 acidentes de Congonhas, ou um avião caindo no Brasil a cada três dias, se considerarmos que a primeira morte ocorreu em 17 de março.
Esse tipo de comparação é um recurso jornalístico para evitar que as estatísticas sejam banalizadas em razão da frequência com que os fatos ocorrem. É o que está acontecendo com a pandemia de coronavírus, cujas mortes estão sendo naturalizadas pelo governo federal desde que o presidente Bolsonaro disse que “todos nós vamos morrer um dia”. Na ocasião, 25 de março, eram 139 mortes. Quando o Brasil passou a China, com 5 mil mortos, em 28 de abril, Bolsonaro disparou: “E daí? Lamento. Quer que eu faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagre”. Agora, a média móvel de novas mortes no Brasil na última semana foi de 1.067 por dia, uma variação de 8% em relação aos óbitos registrados em 14 dias. Os últimos sete dias foram os mais letais no país. Com 39.705 casos registrados nas últimas 24 horas, chegamos a 1.970.909 de brasileiros infectados pelo novo coronavírus.
Desembarque
No Distrito Federal, no Paraná, em Santa Catarina, em Minas Gerais, em São Paulo, em Mato Grosso do Sul, em Mato Grosso, no Acre, em Rondônia, em Tocantins e no Piauí a pandemia continua seu avanço; o relaxamento do distanciamento social nesses estados está sendo desastroso, apesar de ter havido mais tempo para o sistema de saúde se preparar, o pessoal técnico ter mais conhecimento e experiência e os cuidados paliativos para reduzir o número de mortes também terem evoluído. O problema maior no combate à epidemia, porém, é que o Ministério da Saúde virou cabeça de camarão: não tem ministro, apesar dos elogios que o presidente Jair Bolsonaro faz ao general Eduardo Pazuello, que há 60 dias ocupa interinamente o cargo. “Predestinado” era o copiloto da Pam Am, que pulou da cabine do avião acidentado a quatro metros do solo, antes que ele explodisse, não Pazuello, como disse Bolsonaro.
Passou da hora de o general Pazuello voltar para o seu comando na 12ª Região Militar, na Amazônia, que cuida dos suprimentos, embarcações e hospitais do Exército no Pará, no Amazonas, no Acre, no Amapá, em Roraima e em Rondônia. Sua presença no ministério virou sinônimo de fracasso, porque o Sistema Único de Saúde (SUS) precisa de um líder, que coordene e oriente todos o pessoal da saúde pública no Brasil, como fazia o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, demitido por Bolsonaro no auge de seu prestígio. E também porque os dois meses de interinidade criam um problema para o próprio Exército, que mantém, interinamente, no comando da 12ª Região Militar, o coronel Luís Moisés de Oliveira Braga Otero.
Pazuello teve uma conversa amigável, por telefone, com o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), a propósito do contencioso provocado pelas declarações do magistrado sobre a presença do Exército no Ministério da Saúde. O imbróglio mostra que está tudo errado. O coronel Antônio Élcio Franco Filho, que anda com uma faca ensanguentada na lapela, é o secretário executivo do Ministério da Saúde. O secretário de Atenção Especializada à Saúde é Luiz Otávio Franco Duarte, outro coronel. O major Angelo Martins Denicoli ocupa o cargo diretor de monitoramento e avaliação do SUS, enquanto o tenente-coronel Reginaldo Machado Ramos comanda a Gestão Interfederativa e Participativa. Nenhum deles entende de saúde pública.
Luiz Carlos Azedo: Ora, o impeachment…
“O desgaste de Bolsonaro é mitigado pela estratégia de pôr os militares à frente da Saúde, e responsabilizar o Supremo, os governadores e os prefeitos pelo fracasso na pandemia”
Um expressivo grupo de artistas e intelectuais subscreve o pedido de impeachment do presidente Jair Bolsonaro encaminhado, ontem, ao presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), entre os quais o cantor e compositor Chico Buarque, o escritor Fernando Morais, as atrizes Lucélia Santos e Dira Paes, o ator Gregório Duvivier, o ex-ministro Luiz Carlos Bresser-Pereira e os comentaristas esportivos Juca Kfouri e Walter Casagrande, todos personalidades relevantes da esquerda brasileira. Com 133 páginas, os autores citam ataques contra a imprensa, direcionamento ideológico de recursos no audiovisual, más condutas na área ambiental e atuação falha do governo durante a epidemia da covid-19 como motivos suficientes para caracterizar crime de responsabilidade.
Não é o primeiro nem será o último pedido de impeachment, porque não há a menor possibilidade de Maia acolher a proposta e abrir o processo agora. Houve até um momento em que um amplo conjunto de forças cogitou afastar Bolsonaro da Presidência, diante da agressividade com que atacava os demais poderes e mobilizava seus partidários contra o Congresso e o Supremo Tribunal Federal (STF). Mas não o suficiente para transformar essa ideia num fato político concreto, não havia nenhuma garantia de que a iniciativa seria uma solução para a crise institucional iminente; pelo contrário, a possibilidade maior era que legitimasse a retórica autoritária e golpista de Bolsonaro e seus partidários.
Em política, entretanto, tudo tem suas consequências. Descolada de uma conjuntura favorável, sem povo na rua, a proposta submete o presidente da Câmara a um desgaste desnecessário, ao engavetar ou arquivar o pedido, e expõe a fraqueza da oposição na Câmara. Além disso, partindo de setores que classificaram o impeachment de Dilma Rousseff como um “golpe de Estado”, deslegitima essa narrativa, porque o reconhece esse instituto como um mecanismo constitucional legítimo para afastar um presidente da República incapaz. Não existe impeachment legítimo de direita ou de esquerda, o crime de responsabilidade tem amplo espectro, e o impeachment é um julgamento político previsto na Constituição.
Para usar uma linguagem futebolística, a oposição perdeu o tempo da bola. Bolsonaro safou-se desse risco quando recuou da escalada contra o Supremo Tribunal Federal (STF). As investigações em curso na Corte sobre as ameaças aos seus ministros e ao próprio tribunal e sobre as fake news chegaram muito perto do gabinete do presidente da República, envolvendo seus familiares, assessores e aliados próximos. A prisão do seu amigo Fabrício Queiroz, ex-assessor do senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) na Assembleia Legislativa fluminense, teve um efeito catalisador no processo político: Bolsonaro foi obrigado a recuar; ao mesmo tempo, isso desanuviou o cenário adverso nos demais poderes.
Pandemia
Nesse processo, os militares do Palácio do Planalto conseguiram operar uma aliança com os partidos do Centrão, na base do velho toma lá, dá cá, que garantiu a Bolsonaro uma base parlamentar em condições de barrar qualquer proposta de impeachment. Os grandes partidos tradicionais — MDB, DEM e PSDB —, que não haviam aderido ao impeachment, se encarregaram de moderar o debate na Câmara e sepultaram de vez essa possibilidade a curto prazo. A estratégia desses partidos é manter a autonomia do Congresso e conviver com Bolsonaro, aos trancos e barrancos, até as eleições de 2022.
Só há uma variável que pode reacender a chama do impeachment antes disso: a pandemia da covid-19 sair completamente do controle, e o país o país entrar em colapso econômico. O Brasil, logo logo, ultrapassará 2 milhões de casos confirmados e 100 mil mortos. A média móvel de mortes continua num patamar acima de mil, e mais de 29 mil infectados por dia. É muita coisa. O relaxamento desordenado e descoordenado da política de distanciamento social ainda pode ser desastroso para os estados onde a epidemia estava entrando em descenso. O Distrito Federal e nove estados apresentaram alta de mortes: PR, RS, SC, MG, GO, MS, RO, TO e CE.
O desgaste de Bolsonaro, porém, está sendo mitigado pela estratégia de pôr os militares à frente do Ministério da Saúde, responsabilizar o Supremo, os governadores e os prefeitos pelo fracasso no combate à pandemia e naturalizar o número de mortes, banalizando o conceito de grupo de risco, idosos e portadores de comorbidades. De certa forma, a polêmica entre o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes e os militares da ativa, liderados pelo ministro da Defesa, general Fernando de Azevedo e Silva, traz no seu bojo essa questão.
O ministro põe o dedo na ferida ao afirmar que a presença de quase três dezenas de oficiais e um general da ativa no comando interino do Ministério da Saúde é uma extravagância administrativa. O uso do termo genocídio pelo ministro, porém, foi um exagero. A dura cobrança de retratação do vice-presidente Hamilton Mourão, ontem, refletiu o estado de ânimo da corporação, mas é chumbo trocado na política. Quem está nela não pode ter canela de vidro.
José Casado: Hora do toque de retirada
Forças Armadas se meteram numa confusão institucional
Pode-se criticar o tom do comentário, mas o juiz Gilmar Mendes tem razão na essência da crítica ao envolvimento das Forças Armadas, sobretudo o Exército, na anarquia governamental de Jair Bolsonaro.
O erro original foi cometido na campanha de 2018, quando o então deputado, ex-capitão paraquedista, informou ao Forte Apache — o QG do Exército em Brasília— sobre o plano de saltar da planície política para o topo do poder no Planalto.
Um dia, talvez, seja resgatada a memória das conversas e a extensão do respaldo do comando do Exército ao candidato. Sabe-se que nem tudo obedeceu ao protocolo, mas há reconhecimento da eterna gratidão do beneficiário em discurso: “Obrigado, comandante (Eduardo) Villas Bôas. O que nós já conversamos morrerá entre nós. O senhor é um dos responsáveis por (eu) estar aqui.”
O generalato sabe o que fez nas quatro estações eleitorais de 2018 ao abstrair o passado do ex-capitão, preso e processado por anarquia pelo Exército 33 anos antes, por um plano de bombas na Vila Militar, no Rio.
O projeto era reescrever o passado, a história do regime militar de 1964, numa nova hegemonia fardada, com aumento do orçamento total (de 1,5% para 2% do PIB). Permitiu-se a Bolsonaro enquadrar o governo numa moldura militarista e transformar as Forças Armadas em peças do seu jogo predileto, a confusão institucional. É eloquente a imagem do comício no portão do Forte Apache, com o presidente incitando aliados que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo.
O resultado está na ocupação da Saúde, com laboratórios militares (R$ 520 milhões para produzir 1,2 milhão de doses de cloroquina) engajados na politização de um vírus, moldada para a campanha de reeleição.
Pode-se ver exagero do juiz Gilmar Mendes ao dizer que “o Exército está se associando a esse genocídio” (o desgoverno na pandemia). Se há crime — no caso, gravíssimo — será revelado em breve. Nada oculta o óbvio: as Forças Armadas se meteram numa confusão institucional com Bolsonaro. É hora do toque de retirada.
Merval Pereira: Crítica a Bolsonaro, não aos militares
É inegável que os erros cometidos no combate à pandemia atingem a imagem do Exército
Quem deveria estar processando o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes por tê-lo acusado de genocídio era o presidente Jair Bolsonaro, não as Forças Armadas. Quando disse que o Exército se associou ao genocídio, em crítica à maneira como o governo vem tratando da pandemia do Covid-19, o ministro alega que estava justamente alertando que os malefícios das decisões governamentais cairiam inevitavelmente na conta dos militares, pois estamos, há meses, na maior crise sanitária já registrada no século, sem ministro da Saúde.
A pasta está sendo comandada por um General de Brigada da ativa, Eduardo Pazuello, e é inegável que os erros cometidos atingem a imagem do Exército. O debate sobre genocídio tem cunho político, apesar de existirem queixas em tribunal internacional acusando o presidente Bolsonaro de genocídio contra os povos indígenas muito antes da pandemia, pela política de fim da demarcação das reservas e permissão para garimpo em terras indígenas.
Com a Covid-19, justamente devido à falta de proteção durante a pandemia, essas acusações foram reforçadas. Há também acusações de crimes contra a humanidade devido às políticas de combate à Covid-19 contrárias às orientações da Organização Mundial de Saúde. O próprio ministro Gilmar Mendes já teve conversas pessoais com o presidente Bolsonaro advertindo-o de que a política de meio ambiente coloca o Brasil em posição fragilizada na Europa, e alcança ainda a política indigenista brasileira, que é classificada por ONGs e organismos internacionais de genocida.
Em uma dessas conversas, Gilmar Mendes chegou a lembrar que o caminho está aberto para uma denúncia no Tribunal Penal Internacional, em Haia. O ministro Gilmar Mendes preocupa-se com a imagem do Brasil na Europa, onde se encontra no momento. “Brasil se tornou tóxico”, lamenta.
Sua crítica ecoou um sentimento que existe nas Forças Armadas, de que militares da ativa não deveriam ocupar postos civis, e por isso o General Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Secretaria de Governo, anunciou que foi para a reserva este mês.
A crítica do ministro tem o mesmo sentido das que advertiam os militares palacianos de que não deveriam avalizar as manifestações antidemocráticas que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo. Sobrevoar as manifestações de helicóptero junto ao presidente Bolsonaro, como fez o ministro da Defesa Fernando Azevedo e Silva, passa a ideia errônea de que estava ali apoiando uma manifestação política, o que não poderia fazer.
Na live em que fez essa crítica que levou as Forças Armadas a uma representação junto à Procuradoria-Geral da República, o ministro Gilmar Mendes ouviu o ex-ministro Luiz Henrique Mandetta fazer duras acusações ao desmonte do ministério da Saúde, citando que já estão alocados lá mais de 20 militares, que substituíram os quadros técnicos que estavam à frente das ações contra a pandemia.
Os ministros militares e o da Defesa tiveram a anuência do presidente Bolsonaro para fazer a representação contra o ministro do STF, e esta crise representa mais um passo na confrontação do governo Bolsonaro com o Judiciário.
O decano do Supremo, ministro Celso de Mello, já provocara a irritação dos militares, e do próprio Bolsonaro, ao comparar o período que vivemos no governo Bolsonaro, sem citá-lo diretamente, àquele em que Hitler destruiu a ordem democrática da Constituição de Weimar.
Esse confronto teve seu ponto alto quando o STF decidiu que governadores e prefeitos têm autonomia para definir suas políticas contra a Covid-19. Com isso, o presidente Bolsonaro perdeu a capacidade de impor suas ideias de como combater a pandemia, especialmente o uso da cloroquina e seus derivados, e a abertura mais rápida da economia.
A presença de um general da ativa à frente do ministério da Saúde seria, na percepção de Gilmar Mendes, uma maneira de Bolsonaro usar as Forças Armadas como um escudo para suas decisões que se tornaram exemplares de como não agir no momento da maior crise de saúde pública que já tivemos.
Ricardo Noblat: Com quem as Forças Armadas preferem se associar
O que diz a Constituição é quase letra morta
Fica combinado assim: este é o governo que mais emprega militares da ativa e da reserva desde o fim da ditadura de 64, mas nem por isso as Forças Armadas o apoiam ou com ele se confundem. As Forças Armadas são uma instituição do Estado.
O fato de serem militares todos os ministros com gabinetes no Palácio do Planalto não quer dizer nada, tampouco que o presidente seja um ex-capitão afastado do Exército por indisciplina, e o vice-presidente um general da reserva.
Há quase 3 mil militares em demais escalões da administração pública federal – só no Ministério da Saúde, comandado por um general de brigada, são mais de 20. Fez-se uma versão branda da reforma da Previdência só para beneficiar os militares. Mas, e daí?
Quer dizer nada. Como nada quer dizer um reajuste salarial que está sendo concedido aos oficiais das três armas no momento em que falta ao governo dinheiro para gastar com a pandemia que já matou quase 73 mil brasileiros e infectou mais de 1,8 milhão.
Por sinal, quando assumiu o Ministério da Saúde como ministro interino, o general Eduardo Pazuello, especialista em logística, herdou 14 mil mortos dos que o antecederam no cargo. Tentou esconder os números sobre mortos e contaminados.
Não se acanhou de regulamentar o uso da cloroquina no tratamento de doentes, embora no resto do mundo a droga tenha sido desprezada porque não serve para a cura do vírus. A remessa de remédios e equipamentos aos Estados também não funcionou.
Do contrário, o coronel, braço direito do general, não teria orientado governadores e secretários de Saúde a irem às compras mesmo pegando preços superfaturados. Aconselhou-os a pagarem o quanto for, denunciando depois os vendedores à justiça.
É por tais razões que as Forças Armadas reagiram com uma dura nota assinada por seus três comandantes, além do general que é ministro da Defesa, à crítica do ministro Gilmar Mendes de que o Exército associou-se ao genocídio do Covid-19.
“Comentários dessa natureza, completamente afastados dos fatos, causam indignação. É uma acusação grave, além de infundada, irresponsável e, sobretudo, leviana. O ataque gratuito a instituições de Estado não fortalece a democracia”, diz a nota.
Gilmar não atacou o Exército. Atacou o governo por associar sua imagem à imagem do Exército na política genocida de combate ao coronavírus. O Ministério da Defesa pedirá à Procuradoria-Geral da República “a adoção de medidas cabíveis” contra Gilmar.
Há poucos meses, os militares se revoltaram com a comparação feita pelo ministro Celso de Mello, colega de Gilmar no Supremo Tribunal Federal, entre o momento que o Brasil atravessa com o momento que antecedeu a ascensão do nazismo na Alemanha.
Se apenas o governo tivesse ficado furioso com a comparação feita por Celso e a crítica feita por Gilmar, seria compreensível. Mas por que as Forças Armadas reagiram tão mal às palavras dos dois ministros se elas nada têm a ver com o governo?
A continuarem a tomar as dores de um governo que não apoiam nem representam, reforçarão as suspeitas de que o apoiam, sim, de que com ele se identificam, e de que essa história de “instituições do Estado”, como está na Constituição, não passa de letra morta.
Sem vacina contra o coronavírus, adeus carnaval!
Doença ameaça a folia
Quem disse primeiro foi o prefeito Bruno Covas (PSDB), de São Paulo: carnaval vai depender do recuo da pandemia. Depois foi ACM Neto (DEM), prefeito de Salvador. Agora, Mangueira, Imperatriz Leopoldinense, Vila Isabel, São Clemente e Beija-Flor, escolas de samba do Rio, anunciaram: sem vacina, adeus desfile.
ACM Neto acha difícil esperar até agosto para que se tome uma decisão a respeito. “Antes disso, muitas ações de investimento terão que ser adotadas, bem como liberação de recursos para as agremiações”, explica. “E se o vírus não for detido? E se a Justiça, mais adiante, proibir o carnaval? O prejuízo será grande”.
No caso das escolas de samba do Rio e de São Paulo, elas dependem da mão de obra voluntária ou paga para a confecção das fantasias, adereços e carros alegóricos. São meses a fio com centenas de pessoas trancadas nos barracões. Não há como separá-las para evitar que se contaminem. E aí? O que fazer?
A José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão do Rio Branco, atribui-se a frase: “Existem no Brasil apenas duas coisas realmente organizadas: a desordem e o carnaval”. E morreu aos 66 anos de idade às vésperas do carnaval de 1902. O presidente Hermes da Fonseca transferiu a folia para o início de abril.
Foi o ano de dois carnavais. O primeiro depois da missa de sétimo dia de Rio Branco. O segundo, na nova data marcada pelo governo ainda de luto. Parecia impossível haver carnaval em 1919 porque no ano anterior a gripe espanhola dizimara 50 milhões de pessoas no mundo. No Rio, cadáveres foram recolhidos nas ruas.
Pois se brincou carnaval, sim, em 1919 – e que carnaval! Conta a história: “Os desfiles das grandes sociedades tiveram a doença como tema. Os Fenianos exibiram um carro com caveiras que representavam a “dançarina espanhola”, cercada de pierrôs, arlequins e colombinas”.
Marchinha que fez sucesso dizia: “Quem não morreu da espanhola, quem dela pôde escapar, não dá mais tratos à bola, toca a rir, toca a brincar”. Segundo o escritor Nelson Rodrigues, “a espanhola trouxera no ventre costumes jamais sonhados. E, então, o sujeito passou a fazer coisas, a sentir coisas inéditas e demoníacas”.
Luiz Carlos Azedo: Cuidado com a palavra
“Na opinião pública mundial, os heróis não são os militares, são os índios, que têm suas terras invadidas e, agora, de novo, estariam ameaçados de extinção. Como? Pela covid-19”
A palavra genocídio, substantivo masculino, significa extermínio de uma comunidade, grupo étnico, racial ou religioso (Houaiss). O maior de todos, no século passado, foi o Holocausto, o assassinato em massa de judeus pelos nazistas, que defendiam a superioridade racial dos arianos. Genocida era, por exemplo, o médico alemão Josef Menguele, que morreu em Bertioga (SP), em 1979, com o nome falso de Wolfgang Gerhard. Ele realizava experiências genéticas no campo de concentração de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, durante a II Guerra Mundial. Estima-se que morreram no Holocausto 6 milhões de judeus, de um total de 21 milhões de prisioneiros assassinados pelos nazistas na II Guerra Mundial.
O genocídio foi tipificado como crime contra a humanidade em 1951, quando foi criada a Convenção para a Prevenção e Repressão do Crime de Genocídio. A partir daí, assassinatos em massa como consequência de diferenças étnicas, nacionais, raciais e religiosas passaram a ser qualificados como tal, especialmente quando se trata de limpeza étnica. Houve genocídio na colonização das Américas e da África; no século passado, na Turquia (armênios), Camboja (oposição ao regime comunista), Timor Leste (nacionalistas), Kosovo (albaneses), Ruanda (tutsis), Bósnia (muçulmanos) e Iraque (curdos). O Brasil reconhece o genocídio como crime desde 1956.
Por isso mesmo, não foi gratuita a reação dos militares às declarações do ministro do Supremo Tribunal Federal Gilmar Mendes, que criticou duramente o general de divisão Eduardo Pazzuelo, um graduado oficial da ativa, por sua atuação à frente do Ministério da Saúde: “Não podemos mais tolerar essa situação que se passa no Ministério da Saúde. Não é aceitável que se tenha esse vazio. Pode até se dizer: a estratégia é tirar o protagonismo do governo federal, é atribuir a responsabilidade a estados e municípios. Se for essa a intenção é preciso se fazer alguma coisa. Isso é péssimo para a imagem das Forças Armadas. É preciso dizer isso de maneira muito clara: o Exército está se associando a esse genocídio, não é razoável. É preciso pôr fim a isso”, disse.
Povos indígenas
O Ministério da Defesa anunciou, em nota, que encaminhará uma representação na Procuradoria Geral da República (PGR) contra o ministro. O presidente Jair Bolsonaro, o vice-presidente Hamilton Mourão e o chefe do gabinete de Segurança Institucional (GSI), general Augusto Heleno, manifestaram apoio à nota, no mais novo contencioso entre as Forças Armadas e um ministro da Corte. A nota foi assinada pelo ministro Fernando de Azevedo e Silva, que é general da reserva do Exército, e pelos comandantes do Exército, general Edson Leal Pujol; da Marinha, almirante Ilques Barbosa Junior; e da Aeronáutica, brigadeiro Antonio Carlos Bermudez.
Os bombeiros de sempre entraram no circuito para circunscrever a crise à nota dos militares, que o ministro Gilmar Mendes tirou por menos. No Twitter, disse que tem apreço pelas Forças Armadas, mas reiterou a crítica à presença de Pazuello no Ministério da Saúde, um assunto que também não é pacífico entre os militares da ativa. O general comanda a pasta interinamente. A pretexto de cuidar da logística do combate à epidemia, na prática, opera a “imunização de rebanho”.
É aí que mora o perigo. Estados Unidos e Brasil são responsáveis por metade dos novos casos de coronavírus registrados nas últimas 24 horas em todo mundo. Pazzuelo está perdendo a guerra, camuflado de burocrata no seu gabinete da Esplanada, por mais que a nota do Ministério da Defesa enalteça seu trabalho. No plano internacional, o Brasil virou um pária ambiental e sanitário. Na opinião pública mundial, os heróis nessa história não são os militares, são os índios, que têm suas terras invadidas e, agora, de novo, estariam ameaçados de extinção. Como? Pela covid-19. Bolsonaro é demonizado por seu desapreço pelas florestas e pelos índios.
A população indígena em 1500 era de aproximadamente 3 milhões, divididos entre 1.000 povos diferentes, sendo 2 milhões no litoral. Em 1650, esse número caiu para cerca de 700 mil indígenas, chegando a 70 mil em 1957. Cerca de 80 povos indígenas desapareceram no Brasil no século XX. Segundo o IBGE, atualmente, há no Brasil cerca de 817 mil indígenas. Desse total, 502 mil encontram-se na zona rural e 315 mil nos centros urbanos. Em apenas 10 das 505 reservas indígenas (12,5% do território brasileiro), somente dez apresentam uma população indígena maior do que 10 mil habitantes.
Luiz Carlos Azedo: Aposta na hidroxicloroquina
“Com covid-19, Bolsonaro tenta fazer do limão uma limonada, pois se iguala aos brasileiros que contraíram a doença; antes, era visto por eles como vilão da pandemia”
O presidente Jair Bolsonaro testou positivo para covid-19. Sentiu-se mal no domingo, teve febre e dores musculares na segunda-feira e, ontem, ele próprio confirmou o diagnóstico. Aproveitou a oportunidade para anunciar que está se tratando com hidroxicloroquina, desde a segunda-feira. Chegou, inclusive, a divulgar um vídeo no qual toma a terceira dose e incentiva a população a recorrer ao medicamento para se tratar da doença. Com um sorriso irônico, disse que está se sentindo muito bem. O exemplo do presidente da República não deve ser subestimado, para o cidadão comum é como se sua aparente melhora fosse a prova dos nove em relação à eficiência do medicamento, que, até agora, não tem nenhuma comprovação científica. O que têm comprovação são seus efeitos colaterais.
A hidroxicloroquina é um remédio muito utilizado na Região Norte do país, por causa da malária; nas demais regiões, em tratamentos para afecções reumáticas e dermatológicas; artrite reumatoide e lúpus. Seus efeitos colaterais mais comuns são: anorexia, porfiaria, labilidade emocional, cefaleia, visão borrada, arritmia, enjoo, dor abdominal, diarreia e vômito, erupção cutânea e prurido. Deve ser utilizado com muita precaução em pacientes que estejam recebendo medicamentos antiarrítmicos, antidepressivos, antipsicóticos e alguns anti-infecciosos, devido ao aumento do risco de arritmia ventricular. Drogas antiepilépticas podem ser prejudicadas pela hidroxicloroquina.
Como um jogador compulsivo, Bolsonaro se expôs permanentemente ao risco de contaminação, desobedecendo de todas as formas as recomendações de distanciamento social, até contrair a doença. Demitiu dois ministros da Saúde e nomeou um general da ativa para o cargo, Eduardo Pazuello, por causa da não-adoção do medicamento como política de governo. Ordenou ao Exército produzir em seus laboratórios uma quantidade imensa do medicamento, com um estoque suficiente para combater a malária por 18 anos.
O Ministério da Saúde passou a distribuir o medicamento em grande escala, para tratamento precoce, recomendado por médicos que adotam esse procedimento. A maioria dos estudos científicos realizados sob patrocínio da OMS não comprovou a eficácia do medicamento, mas apontou os riscos de seus efeitos colaterais. Mesmo assim a polêmica continuou; muita gente acha que se curou graças à hidroxicloroquina, associada a outros medicamentos. Agora, a polêmica foi novamente intensificada pelo presidente da República.
Limonada
Bolsonaro defende a “imunização de rebanho”, menospreza o isolamento social, critica governadores e prefeitos que adotaram a quarentena e naturaliza as mortes por covid-19, que já comparou a uma “gripezinha”. Ontem, disse que a pandemia é como uma chuva, todo mundo vai se molhar. Estava perdendo a batalha das narrativas sobre a doença na opinião pública, com seu prestígio em baixa nas pesquisas, mas começou uma lenta recuperação de imagem graças ao auxílio emergencial de R$ 600 distribuídos à população de baixa renda, principalmente no Nordeste.
Agora, acometido da covid-19, tenta fazer do limão uma limonada, pois se iguala a todos os brasileiros que contraíram a doença, quando antes era visto como uma espécie de vilão da pandemia. Já se apresenta como pioneiro na defesa do uso de hidroxicloroquina como medicamento eficaz no tratamento precoce. É uma posta de alto risco, que depende mais de suas condições físicas e resistência ao vírus do que da eficácia do remédio. Se a hidroxicloroquina fosse realmente a solução para evitar os casos graves, não haveria tanta letalidade na pandemia e ela já teria sido adotada em todo o mundo, inclusive, nos Estados Unidos, onde seu uso foi defendido pelo presidente Donald Trump, mas não pelas autoridades médicas.
Bolsonaro pretende despachar por videoconferência na residência oficial do Palácio da Alvorada e, talvez, receba auxiliares para assinar documentos. Cancelou as viagens que faria a Bahia e Minas Gerais. No Palácio do Planalto, todos os ministros e funcionários com quem teve contato estão sob observação, mas até agora ninguém testou positivo. Ao todo, 62 pessoas estão sendo monitoradas e rastreadas. Oito governadores e alguns prefeitos já contraíram a doença; nenhum havia se exposto tanto quanto Bolsonaro.
No momento, o caso mais grave é o do prefeito de Manaus (AM), Arthur Virgílio Netto, que está internado no Hospital Sírio-Libanês, em São Paulo. Bolsonaro foi atendido no Hospital das Forças Armadas (HFA), em Brasília, e é acompanhado pelos médicos da Presidência da República. Pelo protocolo do Ministério da Saúde, o paciente que utiliza hidroxicloroquina precisa autorizar seu médico a adotar a prescrição e correr os riscos dos efeitos colaterais por sua própria conta. Ontem, o Brasil registrou mais de 66 mil mortes por coronavírus, com 1,643 milhão de casos.
Luiz Carlos Azedo: Resumo da ópera
“Enquanto uma parte da população corre do coronavírus e outra vai atrás do pão de cada dia, “como uma nau dos insensatos, o governo Bolsonaro continua sem ministros da Saúde e da Educação”
O governo comemorou, ontem, os resultados da arrecadação de maio e junho, que indicam uma reação da economia. Os analistas do mercado avaliam que o país já teria sido ejetado do fundo do poço. Em economia, otimismo faz muita diferença; por isso mesmo, esse é o tipo de avaliação que todo mundo torce para que seja verdadeira, exceto os adeptos do “quanto pior, melhor”, que torcem para tudo dar errado. Segundo dados da Receita Federal, a emissão de notas fiscais no mês de junho chegou a R$ 23,9 bilhões em vendas/dia, o que representa um crescimento de 10% em relação a junho de 2019. Nas redes sociais, o Palácio do Planalto comemorou, lançando uma campanha no estilo “pra frente, Brasil”.
O aumento de arrecadação em maio (9,1%) e junho (15,6%) coincide com um aumento da produção industrial de 7% em maio, depois de um tombo acumulado de 26,3% em março e abril, o que já foi suficiente para os analistas reverem as projeções para a recessão deste ano, reduzindo-as para 6,4%, quando se dizia que seria de 9% a 12%. O boletim Focus do Banco Central, que avalia os humores do mercado financeiro, estimou a recessão em 6,5%. De qualquer maneira, uma recessão dessa ordem não é para fritar bolinho. A rápida adaptação dos setores de comércio e serviços ao home office e às vendas pela internet, a dinâmica do agronegócio e a manutenção de certo nível das atividades industriais, aliada à injeção de recursos no mercado por meio do auxílio emergencial de R$ 600, nos últimos três meses, contribuíram para que a economia não parasse.
Não se pode descartar o impacto do afrouxamento da política de distanciamento social nesses resultados, ainda que o outro lado da moeda seja o alto custo em termos de impacto no sistema hospitalar e no número de mortes. O Brasil já tem mais de 65 mil mortes, sendo o segundo do mundo em número de óbitos e infectados, com 1,6 milhão de casos confirmados, segundo a Universidade Johns Hopkins, atrás apenas dos Estados Unidos. Isso representa 12% das mortes e 14% dos casos no planeta, com grande número de mortes por milhão de habitantes: mais de 300. Com quase 700 mil casos de infecções pelo novo coronavírus, a Índia é o país que mais se aproxima de nós, com 24 mil novos casos nas últimas 24h. O número de mortes na Índia ainda é relativamente baixo: 19,6 mil. Desde 1º de junho, porém, a epidemia cresceu exponencialmente naquele país, por causa das medidas de relaxamento da quarentena. Mumbai, Nova Déli e Madras, as principais cidades indianas, são os centros de propagação exponencial da epidemia. Um templo da capital foi transformado em hospital de campanha para 10 mil pessoas.
E la nave va
Enquanto uma parte da população corre do coronavírus e outra vai atrás do pão de cada dia, o governo Bolsonaro continua sem ministro da Saúde: interino na pasta, o general Eduardo Pazuello é um capacete sobre a cadeira. A “imunização de rebanho” dispensa um ministro de verdade. A situação na Educação também é caótica, pois o governo ainda não tem um ministro para a pasta. O cargo é alvo de uma queda de braços entre os filhos de Bolsonaro, os militares e os partidos do Centrão. São mais de 100 dias sem aulas, sendo que apenas 15 estados mantêm efetivo controle sobre a frequência dos alunos, que é muito baixa. Como no Sistema Unificado de Saúde (SUS), a pandemia também escancarou, na Educação, as abissais desigualdades sociais existentes no Brasil.
Como na alegoria de Federico Fellini sobre a nau dos insensatos (a sátira de Sebastian Brant), e la nave va. Lembrei-me do filme por causa da morte do grande compositor e maestro Ennio Morricone (Era uma vez no Oeste), o favorito do diretor Sérgio Leoni. O compositor preferido de Fellini era Nino Rota, que morreu em abril de 1979. Em vez de chamar Morricone para fazer as músicas de sua obra-prima, Fellini optou por sua única trilha não-original. Deu à película um caráter de cortejo fúnebre, operístico, com personagens excêntricos como passageiros do navio Glória: matronas, palhaços, tenores, sopranos, pervertidos sexuais, uma equipe de jornalismo e um rinoceronte são embalados pela La Forza del Destino, de Giuseppe Verdi, e outras óperas, de Bellini, Tchaikovsky e Rossini. Diria Machado de Assis (Dom Casmurro), Deus criou o planeta para que Satanás encenasse a ópera. Com febre alta e muitas dores, o presidente Bolsonaro está com suspeita de Covid-19. Pode ser dengue.
Luiz Carlos Azedo: Poderia ser pior
“O afrouxamento do distanciamento social, por descoordenação entre os entes federados e forte pressão social, mostra o risco da imunização de rebanho”
Em meados de março passado, um estudo da Universidade de Oxford, no Reino Unido — a mesma que desenvolve a vacina que está sendo testada por aqui — previa a ocorrência de 478 mil mortes pelo novo coronavírus no Brasil, o que foi e ainda é considerado um exagero. Chegaram a essa conclusão analisando os casos da Itália e da Coreia do Sul e comparando os perfis demográficos desses países com os do Brasil e da Nigéria.
Na mesma época, dois pesquisadores brasileiros montaram um modelo matemático em Python, que previa a ocorrência de 2 milhões de mortes no Brasil, caso o isolamento social não fosse adotado. José Dias do Nascimento Júnior, professor e doutor em astrofísica da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e astrônomo associado ao Harvard-Smithsonian Center for Astrophysics, e Wladimir Lyra, doutor da New Mexico State University, compartilharam os dados com o conceituado Centro de Ciências de Sistemas e Engenharia (CSSE, em inglês) da Universidade Johns Hopkins.
Então, os indicadores de contaminação da Itália registravam que um infectado passava o vírus a três ou quatro pessoas, em média, antes de se curar ou morrer pela doença; com isso, o número de casos dobrava a cada quatro dias. Diante das projeções, Lyra concluiu que haveria duas maneiras de finalizar essa epidemia. A primeira é quando muitas pessoas fossem infectadas e desenvolvessem a imunidade ao se curar. Obviamente, nesse caso, o número de mortos poderia ser assustador. A segunda maneira seria quando a taxa de infecção fosse menor do que a taxa de remissão. A quarentena (ou vacina) funciona por diminuir a taxa de infecção. O tratamento aumenta a taxa de remissão. Sem capacidade de tratamento ou vacina, temos apenas a quarentena como medida eficaz.
Na época, no Brasil, cada pessoa infectada estava, em média, infectando seis. Caso nada fosse feito, em dois meses, 53% da população estaria infectada ao mesmo tempo. Isso significaria mais de 100 milhões de casos e 2 milhões de mortos. Esses e outros estudos foram decisivos para a adoção da estratégia de isolamento, com objetivo de achatar a curva da epidemia e permitir que o sistema de saúde se estruturasse para enfrentar a doença.
Caso a estratégia de “imunização de rebanho” tivesse sido adotada, como o presidente Jair Bolsonaro ainda defende, a situação atual seria muito pior, diria o humorista Barão de Itararé, na sua Teoria das duas hipóteses, segundo a qual tudo pode piorar. Apparício Fernando Brinkerhofer Torelly, genial criador do jornal A Manha, sabia das coisas. Ou seja, é falsa ideia de que a quarentena não funcionou, mesmo aos trancos e barrancos. E o afrouxamento da política de distanciamento social, por descoordenação entre os entes federados e forte pressão social sobre governadores e prefeitos, está mostrando o risco que a imunização de rebanho ainda representa.
Tragédia anunciada
Quando os estudos foram divulgados, o Brasil tinha 413 casos confirmados, sendo 291 em São Paulo, e registrava a primeira morte, um homem de 62 anos, na capital paulista. Hoje, estamos próximos de 1,5 milhão de brasileiros infectados, com quase 50 mil novos contaminados e mais de 1.200 mortes por dia. Somente o estado de São Paulo confirmou mais 12.244 casos nas últimas 24 horas e mais 321 óbitos.
Metade das unidades federativas do país já registrou mais de mil mortes pelo novo coronavírus. O Rio de Janeiro tem 116.823 casos e 10.332 mortes. O Pará bateu mais de cinco mil perdas, com 5.004 registros. O Ceará tem 6.284; Pernambuco, 4.968 mortes. Amazonas, 2.862; Maranhão, 2.119; Bahia, 1.947; Espírito Santo, 1.728; Rio Grande do Norte, 1.103; Alagoas, 1.091; Minas Gerais; 1.059; e Paraíba, 1.044. A epidemia, agora, avança nos estados do Centro-Oeste e no Distrito Federal.
Como na economia o estrago é enorme — a massa salarial perdeu R$ 52 bilhões, segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea)—, prefeitos e governadores entraram numa espécie de salve-se quem puder. Em muitas cidades, o isolamento social está sendo substituído pela distribuição de um coquetel à base de hidrocloroquina, para a população de baixa renda, que se contamina na volta ao trabalho.
Luiz Carlos Azedo: A pandemia e a vida banal
“Como será a via da igualdade de oportunidades e do acesso público à saúde, à educação, à cultura, ao saneamento e à mobilidade no pós-pandemia?”
Números do Cadastro Geral de Empregados e Desempregados, divulgados ontem pelo Ministério da Economia, revelam que 331.901 vagas de trabalho com carteira assinada foram fechadas em maio. No trimestre, foi 1,478 milhão de empregos formais, desde março. Reflexo da pandemia no Brasil, que registrou a primeira morte em 17 daquele mês. O agravante é o fato de que o coronavírus também destruiu atividades produtivas no mercado informal, que funcionavam como válvula de escape para 36 milhões de trabalhadores sem carteira assinada.
Apenas uma parcela desses atingidos será capaz de se reinventar, porque economizou recursos para travessia, dispõe de conhecimentos ou condições de adquiri-los ou tem uma vocação inata para empreender e se adaptar às circunstâncias. Outra, a grande maioria, permanecerá dependendo da ajuda do governo para sobreviver, até que a economia volte a crescer numa escala capaz de absorvê-los, novamente, no mercado de trabalho, o que pode não acontecer. Infelizmente, nosso país tem uma tradição de descartar mão de obra e substituí-la nos ciclos de modernização, desde a abolição da escravatura.
É aqui que a relação entre o chamado “novo normal” e a “vida banal” se bifurcam. A superação das dificuldades pela via do esforço pessoal faz parte do imaginário da nossa sociedade, seja pelo serviço público, seja pela carreira profissional bem-sucedida no setor privado, ou por meio do empreendedorismo. Em época de confinamento, palestras e debates sobre esse assunto se multiplicam, com dicas e recomendações que funcionam como uma espécie de manual de sobrevivência na pandemia. Entretanto, a maioria dos que foram expelidos do mercado não terá a menor chance de encontrar uma saída imediata por essa porta. Uma dimensão da crise é o escancaramento da relação entre pobreza e desigualdades; a outra, como se sabe, são as ameaças à nossa democracia.
A propósito, o professor Pedro Cláudio Cunca Bocayuva, do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas em Direitos Humanos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), um velho amigo, me fez observações instigantes sobre a conexão entre os efeitos da pandemia e a chamada “vida banal” no cotidiano das periferias e favelas das grandes cidades brasileiras. É aí que o drama econômico e social da pandemia está se desenrolando da forma mais iníqua. Sem a esfera pública e suas políticas, adverte, a cautela no consumo, o empreendedorismo e a filantropia não dão respostas à pobreza, porque não levam em conta as desigualdades. E ainda prescindem da democracia.
Bandeira velha
Como será a via da igualdade de oportunidades e do acesso público à saúde, à educação, à cultura, ao saneamento e à mobilidade no pós-pandemia? A nova agenda proposta pela crise sanitária e econômica, segundo Bocayuva, passa não apenas pela renda básica, pressupõe o cooperativismo, a solidariedade no uso dos bens públicos, o compartilhamento de conhecimento e das inovações tecnológicas, as mudanças de padrão energético, de preservação ambiental e de garantia dos direitos sociais, em bases democráticas. Por toda a economia de serviços, cultura, educação, pesquisa, ensino, infraestrutura. Como num rap, conexões, fluxos, trânsitos, controles, uso do espaço, planejamento e instalação de equipamentos urbanos, retomada das atividades sociais, a produção, o consumo, os resíduos, a reposição e a reciclagem, para ele, tudo precisa ser repensado, no contexto das grandes mudanças em curso, das relações humanas à pesquisa.
De certa forma, o que está acontecendo nas favelas do Rio de Janeiro e periferias de São Paulo, em termos de busca de respostas e de autoproteção contra as iniquidades em que essas comunidades vivem, diante do avassalador avanço da pandemia, aponta para uma nova agenda, que não está sendo considerada. A velha agenda social-democrata e social-liberal para a pobreza, ou seja, a focalização dos gastos sociais nos mais pobres e os programas de transferência de renda, como o Bolsa Família, por incrível que pareça, está sendo capturada eleitoralmente pelo presidente Jair Bolsonaro.
Primeiro, com a distribuição do auxílio emergencial de R$ 600 aprovado pelo Congresso, que já lhe garantiu uma mudança de base de apoio, conquistando uma parcela do eleitorado de baixa renda do Nordeste, que lhe era hostil e tinha saudades do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. É gente que não se identificava com Bolsonaro pela via da narrativa ideológica — centrada na família, na fé e na ordem —, mas foi atraída naturalmente, pelo interesse material imediato. Ou seja, a velha agenda da esquerda está tão superada que passou às mãos de Bolsonaro. Como nos governos anteriores, porém, isso não significa uma solução duradoura para a população de baixa renda, porque não garante a superação das desigualdades e, sem outras medidas, a médio prazo, estreita ainda mais os gargalos da economia.