saúde
Lígia Bahia: Consensos e omissões na saúde
Programas de candidatos são imprecisos e medrosos
As cidades são responsáveis diretas por parte da oferta de serviços e financiamento das ações de saúde. Em 2019, 23% das internações, 44% dos procedimentos ambulatoriais e 30% dos recursos financeiros para o SUS foram originados nos municípios brasileiros. Além da geração de atividades e receitas próprias, os municípios recebem repasses da União e estados e realizam convênios com instituições públicas, filantrópicas e privadas.
Como a procura por cuidados e a insatisfação com o atendimento ocorrem nos municípios, as eleições para prefeitos e vereadores propiciam um debate objetivo sobre saúde, especialmente ao coincidirem com uma crise sanitária global. A maioria dos 14 programas que concorrem à prefeitura do Rio de Janeiro menciona consequências da transmissão da Covid-19 e contém propostas concretas e coincidentes para ampliar a saúde pública.
São pontos de convergência entre candidaturas situadas em qualquer ponto do gradiente esquerda-direita: a expansão das unidades de atenção básica; a adoção de tecnologias de informação, seja no âmbito administrativo, seja como complemento ao atendimento presencial; e a disposição para organizar e dinamizar o complexo de pesquisas e produção de vacinas, testes e equipamentos. A valorização de necessidades especificas de saúde para a população negra e LGBT é quase consensual. Fica explícita, inclusive, no programa do PSL (ex-partido do presidente Bolsonaro) e escondida na plataforma do prefeito, candidato à reeleição.
Segundo os programas eleitorais, o SUS carioca ficará maior, terá informações mais acessíveis por meios digitais e assistência digna, decorrente da redução de preconceitos e estigmas, bem como da articulação da prefeitura com as universidades, Fiocruz e indústrias setoriais. Mas as justaposições sobre a importância do SUS não se repetem na definição sobre como, com quem e quando essas medidas serão efetivadas. Os documentos programáticos são obrigatórios para o registro de candidatos a cargos executivos, mas não existem regras sobre conteúdo e forma. Cada partido político ou coligação decide sobre a divulgação de suas proposições. Existem programas-livros e outros com menos de dez páginas. Apesar das diferenças de tamanho, as ideias sobre a execução das políticas propostas são quase sempre difusas, apenas se examinadas detidamente permitem detectar divergências.
Todos são favoráveis ao SUS, ao crescimento das atividades de saúde pública, mas as soluções variam desde gastar mais R$ 5 bilhões com saúde no primeiro ano de mandato até a redução de despesas. Tampouco existe concordância sobre os profissionais de saúde. As promessas incluem a contratação de seis mil para a rede pública, aumentar salários e realizar concursos, mas também retomam a velha acepção — comprovadamente inviável desde os anos 1970 — de credenciar consultórios médicos particulares. Críticas às organizações sociais unem as candidaturas de esquerda e a de Crivella. A defesa do modelo de delegação da gestão a terceiros ficou a cargo dos partidos Novo, Socialista Cristão e Social Liberal. As filas de espera para consultas especializadas, exames e internações são motivo de preocupação, mas seguem não equacionadas. O único candidato que avança nas metas para fazer a fila andar afirma que, no final de seu mandato, a demora será 30% menor. Um desconto com pouco sentido prático. Pessoas com catarata, que não conseguem sair de casa porque não enxergam, em vez de permanecer assim durante 365 dias, serão condenadas a ficar nessa condição durante 255 dias em 2024. A espera seguiria sendo interminável
Temas tabus estão ausentes. São cinco mulheres candidatas, e praticamente zero palavra sobre aborto. A cidade “pestilenta”, denominada túmulo dos estrangeiros no final do século XIX, foi objeto de políticas efetivas de saúde pública. Em 2020, a cidade com a mais elevada taxa de letalidade por Covid-19 entre os municípios brasileiros tem um SUS degradado, concentrado nas áreas de maior renda. Os programas eleitorais estabelecem um terreno comum para o debate sobre saúde, mas são imprecisos e medrosos. Temos tempo até novembro para exigir coerência e elucidação das plataformas eleitorais.
Maria Hermínia Tavares: Na pandemia, obrigados a ser fortes
Experiências de solidariedade deveriam inspirar políticas públicas
Perdendo a enésima oportunidade de ficar calado, Bolsonaro chegou não faz muito a desdenhar dos que ficam em casa para se proteger da pandemia. "É para os fracos", decretou, quando já passavam de 135 mil os mortos pela Covid-19. Na realidade, os "fortes", expostos diariamente ao novo coronavírus, são muitos —e muito diversos em estilo e condições de vida.
A grande maioria é formada por aqueles para os quais o isolamento não é opção, por lhes faltarem renda, moradia adequada, acesso a saneamento e água potável. São os milhões de pobres, predominantemente negros, que vivem nas periferias ou nos centros degradados de nossas cidades.
É difícil saber ao certo como vêm passando e de que modo têm reagido à pandemia. O pouco que se conhece de sua dor e de sua força deve-se à Rede de Pesquisa Solidária, que reúne mais de uma centena de estudiosos de diferentes formações e filiações acadêmicas, engajados em levantar dados que ajudem a melhorar a ação dos governos durante e depois da pandemia.
Um grupo de membros dessa rede, coordenado pela socióloga Graziela Castello, vem coletando periodicamente informações junto a lideranças comunitárias de várias capitais brasileiras sobre os principais problemas enfrentados pelas populações mais vulneráveis.
O que angustia antes de tudo os ativistas das comunidades são as famílias que passam fome, uma ameaça sempre presente. Segue-se a perda do emprego ou do trabalho e da renda. Depois, a dificuldade de acesso a serviços públicos como educação, justiça e atendimento funerário; finalmente, a expansão do contágio e a dificuldade de conseguir a adesão das pessoas às medidas de proteção.
Os mesmos temas aparecem nos relatos de três ativistas participantes do evento "A pandemia nas favelas", organizado pela Fundação Fernando Henrique Cardoso e disponível no YouTube. Eles contam como líderes e entidades comunitárias se mobilizaram para suprir carências de toda ordem. Distribuíram cestas básicas, material de higiene, máscaras; organizaram atividades para gerar renda e fizeram podcasts para difundir informações úteis sobre a pandemia; auxiliaram os agentes comunitários de saúde e saíram em busca de espaços para o isolamento dos doentes e proteção dos mais velhos.
Dor, luto e incerteza —mas também solidariedade, força e inovação— aparecem nos depoimentos dos participantes do encontro, assim como naqueles coletados pela Rede Solidária. São experiências que poderiam inspirar parcerias inovadoras e políticas públicas mais adequadas a um país onde o isolamento não é para quem quer, porém para quem pode.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap
Elio Gaspari: Mandetta contou quase tudo
Como em todo livro de memórias, ele fala bem de si e escolhe aqueles de quem fala mal
O ex-ministro Luiz Henrique Mandetta publicou suas memórias do poder. O livro chama-se “Um paciente chamado Brasil”. Seria mais preciso denominá-lo “Dois pacientes chamados Bolsonaro e Mandetta”.
Mandetta ficou 16 meses no Ministério da Saúde, teve um desempenho estelar durante a pandemia e acabou demitido por suas virtudes e por defeitos alheios. Como em todo livro de memórias, fala bem de si e escolhe aqueles de quem fala mal: Bolsonaro, Paulo Guedes e Onyx Lorenzoni, nessa ordem.
Sua análise do comportamento do capitão diante da pandemia é exemplar. Médico, ele pensou em ser psiquiatra e cursou um ano dessa matéria, até se decidir pela ortopedia. Diante da Covid, Bolsonaro passou por três fases de manual. Primeiro a negação (“uma gripezinha”), depois a raiva do médico (Mandetta), finalmente o milagre (a cloroquina). É um retrato perfeito, no qual o médico-ministro tenta mostrar ao presidente o tamanho do problema, não consegue ser ouvido e entra num desastroso processo de fritura. Quando avisava que poderiam morrer mais de cem mil pessoas, os áulicos contavam ao presidente que essa conta era exagerada. Seria coisa de quem queria derrubar o governo. Quem? O embaixador chinês.
O paciente Bolsonaro está exposto com precisão. Já o paciente Mandetta precisa ser decifrado pelos leitores. O ministro Mandetta endossou todos os procedimentos corretos para o controle do vírus, já o ex-deputado Mandetta (DEM-MS) foi temerário, metendo-se onde se meteu.
Entrou para um governo que prometia um ministério técnico, livre de quaisquer influências. Mandetta tinha duas semanas na cadeira quando foi informado de que o palácio queria a cabeça de quatro de seus colaboradores. Vá lá que houvesse motivo, mas ele informa: “Quem articulou as exonerações e impôs os novos nomes mirava o controle de mais de 80% do orçamento do Ministério da Saúde”. Basta.
Mandetta conta que, em 2016, o deputado Onyx Lorenzoni gravou uma conversa de parlamentares na casa de Rodrigo Maia. Deve-se a ele essa revelação, indicativa dos métodos do atual ministro da Cidadania. Pela sua narrativa, “ele tirou o celular do bolso e me disse: ‘Ouve isso’ ”.
“Você gravou escondido a reunião?, perguntei. Ele respondeu que havia gravado sem querer.”
Tudo bem, mas por que chamou-o para ouvir o grampo? Mandetta guardou essa história por quatro anos. Lorenzoni estava com o deputado num passeio de barco no final de 2018, quando o governador de Goiás, Ronaldo Caiado, obteve de Flávio Bolsonaro a promessa de que ele seria o ministro da Saúde. (Os filhos de Bolsonaro são mostrados no livro como patronos do gabinete do ódio, mas pode-se dizer tudo deles, menos que tenham radicalizado suas ideias só depois da eleição do pai.)
O livro de Mandetta é o primeiro retrato da disfuncionalidade do capitão na Presidência e vai além. Mostra Paulo Guedes tonitruante contra o adiamento da remarcação do preço dos remédios (“não admito tabelamento”), sem saber que os fármacos são tabelados. O bate-boca dos dois ministros é um dos bons momentos do livro.
Feitas as contas, Mandetta entrou mal no ministério e saiu bem. Seu sucessor, Nelson Teich, cometeu o mesmo erro, mas conseguiu sair melhor porque foi-se embora em apenas 28 dias.
Luiz Carlos Azedo: A segunda onda
Alguma transferência de renda precisa ser assegurada à população mais pobre no próximo ano, e o Congresso precisa encontrar uma saída. O governo não quer cortar na própria carne
Tudo indica que realmente está havendo uma segunda onda da pandemia na Europa — principalmente na Inglaterra, na Espanha e na Itália —, mas não se pode afirmar, ainda, que o mesmo esteja ocorrendo no Amapá, no Amazonas e em Roraima, onde o número de casos voltou a subir. A média nacional de transmissão da pandemia abaixo de 1/1 indica que o pior já passou, realmente, embora o número de casos confirmados continue muito alto. A sensação é de que estamos no meio de uma montanha russa, que parece não tem fim. São 142, 2 mil mortes e 4,7 milhões de casados confirmados até ontem, número só ultrapassado pelos Estados Unidos.
A média móvel de mortes nos últimos sete dias foi de 678 óbitos, o que dá uma média de 28 mortos por hora. Mas é um número 15% menor do que o da semana anterior, o que realmente representa um alento. O presidente Jair Bolsonaro não está nem aí para essa discussão sobre segunda onda, naturalizou o número de mortes como fizeram os generais e políticos italianos em Trento e Trieste, até que a História, muitos anos depois, cobrou-lhes a responsabilidade.
Já comentei esse assunto por aqui, mas não custa relembrar. Quando a Itália entrou na I Guerra Mundial, em 1915, ao lado da “Entente” (aliança entre França, Inglaterra e Rússia), os políticos e militares italianos acreditavam que seria uma oportunidade de libertar Trento e Trieste do jugo estrangeiro e declararam guerra ao Império Austro-Húngaro. Centenas de milhares de jovens foram recrutados e lançados à batalha.
No primeiro confronto, porém, o exército inimigo manteve as suas linhas de defesa de Izonso e o ataque foi contido. Morreram 15 mil italianos. Na segunda batalha, foram 40 mil mortos; na terceira, 60 mil. Os italianos lutaram “por Trento e por Trieste” em mais oito batalhas, até que, em Caporreto, na décima-segunda, foram derrotados fragorosamente e empurrados pelas forças austro-húngaras às portas de Veneza. Citado no livro Homo Deus, de Yuval Noah Harari (Companhia das Letras), o episódio ficou conhecido como a síndrome “Nossos rapazes não morreram em vão”. Foram contabilizados 700 mil italianos mortos e mais de 1 milhão de feridos ao final da guerra.
Por que isso aconteceu? Por que a autocrítica não é o forte dos militares nem dos políticos. Depois de perder a primeira batalha de Izonzo, havia duas opções: admitir o erro e assinar um tratado de paz com o Império Austro-Húngaro, que enfrentava outros três exércitos poderosos; ou continuar a guerra e apelar para o patriotismo. Prevaleceu a segunda, porque a primeira tinha o ônus de ter que explicar para os pais, as viúvas e os filhos dos 15 mil mortos de Izonso por que eles morreram em vão.
Bolsonaro não teme um segundo ciclo da covid-19, já anda criticando o prefeito de Manaus, Arthur Virgílio Neto (PSDB), que estuda fazer um novo lockdown para conter o aumento do número de casos na capital do Amazonas, que desmente a tese de que já haveria “imunização de rebanho” no estado. O presidente da República naturalizou as mortes por covid-19, a “gripezinha”, e culpa governadores e prefeitos pelo desemprego em massa. Na sua avaliação, a política de isolamento social é responsável pela desorganização da economia e não o novo coranavírus, como acreditam sanitaristas e economistas.
Renda Cidadã
Na verdade, teme — com razão — uma segunda onda de desemprego, maior do que a primeira, em decorrência da recessão e do fim do auxílio emergencial. Mesmo com a flexibilização do isolamento social na maioria das cidades — a razão da lenta queda do número de casos e de mortes —, a atividade econômica não se recuperou nos níveis esperados. O governo arrecada menos, os investidores foram embora, e muitas atividades econômicas deixaram de existir, por falta de consumidores. Houve uma revolução nos hábitos pessoais, com grande impacto na mobilidade urbana, fazendo com que muitos negócios desaparecessem.
É nesse contexto que a discussão sobre o Renda Cidadã, o programa que Bolsonaro pretende lançar para substituir o Bolsa Família, está sendo posta. Existe um ingrediente eleitoral inequívoco, cuja digital é a extinção do Bolsa Família, mas a preocupação de Bolsonaro com a situação das pessoas que ficaram sem trabalho e perderão toda a renda faz sentido. Alguma transferência de renda precisa ser assegurada à população mais pobre do país no próximo ano, e o Congresso precisa encontrar uma saída. O governo não quer cortar na própria carne, reduzindo gastos desnecessários — está mais do que provado que existem — e privilégios do serviço público; prefere meter a mão nos precatórios, empurrando as dívidas judiciais para as calendas, e pongar o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educaçao Básica (Fundeb), desviando recursos para o Renda Cidadã.
O curioso nessa história é que o ministro da Economia, Paulo Guedes, passou de cavalo a burro. Antes, era a política econômica que ditava as propostas do governo, aos políticos cabia defendê-las no Congresso; agora, são os líderes do governo na Câmara e no Senado que dão as cartas, a equipe econômica corre atrás de soluções técnicas para viabilizá-las, o que geralmente não acontece. As reformas tributária e administrativa colapsaram. O mercado está reagindo: alta do dólar e queda na Bovespa. Os investidores estão cada vez mais cabreiros com o Brasil.
Celso Rocha de Barros: A história de Mandetta
Em "Um Paciente Chamado Brasil", ex-ministro da Saúde conta história que se encerra com sua saída do governo
O ex-ministro da saúde Luiz Henrique Mandetta acaba de publicar um relato de sua passagem pelo ministério durante a pandemia de 2020.
Em “Um Paciente Chamado Brasil”, conta a história que começa na reunião de Davos de janeiro deste ano, em que a pandemia começou a entrar na agenda internacional, e termina com sua demissão, voltando para casa ouvindo Jimmy Hendrix no carro.
Mandetta é cotado para ser candidato a presidente ou vice-presidente (talvez em chapa com Sergio Moro) em 2022. Por isso, algum cuidado com a versão que conta sempre é aconselhável.
Mas também é verdade que sua versão bate muito melhor com o que dizem fontes independentes, a ciência e os números da pandemia do que, por exemplo, a versão de Jair Bolsonaro, que também será candidato em 2022 e já fez coisa muito pior para garantir sua reeleição do que escrever um livro.
A trama central de “Um Paciente Chamado Brasil” já é conhecida, mas é muito importante que tenha sido registrada e assinada por um participante-chave da história: Jair Bolsonaro ignorou completamente a pandemia, não demonstrou qualquer interesse em salvar vidas e só se preocupou com o efeito da quarentena sobre suas chances de ser reeleito.
Alimentava ilusões paranoicas como a de que o embaixador chinês trabalhava para derrubar governos de direita na América Latina.
No que se refere à cloroquina, Mandetta é taxativo: Bolsonaro nunca se interessou pela sua capacidade de curar ninguém. Queria que, com a caixinha de cloroquina no bolso, os brasileiros voltassem a trabalhar, morresse quem morresse.
Via na quarentena uma conspiração dos governadores, em especial de João Doria, para derrubá-lo. E sabotou o Ministério da Saúde em diversos momentos.
Entre os outros personagens, o livro permite a construção de uma espécie de escala que, sempre na opinião de Mandetta, vai dos razoáveis como Campos Neto, os generais Braga Neto e Fernando Azevedo, aos criminalmente irresponsáveis como Osmar Terra e Eduardo Bolsonaro.
Paulo Guedes teria chegado atrasado no entendimento sobre a gravidade da pandemia, o que teria forçado, inclusive, o Congresso a assumir protagonismo na criação do auxílio emergencial.
Além da distribuição de responsabilidades, o livro tem outro interesse: é um relato do choque de um direitista tradicional (Mandetta) diante do extremismo de Bolsonaro, e de como fracassaram as manobras para moderar o presidente.
Mandetta lamenta, por exemplo, que o DEM não tenha encampado Bolsonaro na campanha de 2018.
Imagino que Mandetta o lamente por achar que isso poderia tê-lo moderado.
Já escrevi aqui que a aproximação com o DEM no começo do governo teria sido um sinal forte de moderação por Bolsonaro.
Ele nunca a quis, e, à luz do que Mandetta conta no livro, parece que o DEM teve razão em não bancar Bolsonaro em 2018: ele não parece aceitar moderação nenhuma.
Permanece, entretanto, o fato de que nem a direita tradicional nem os militares nem Guedes nem Moro se mobilizaram com o ânimo necessário para forçar Bolsonaro a agir como um adulto responsável durante a maior crise sanitária do Brasil em cem anos, ou para puni-lo por não tê-lo feito.
Mas mesmo que o tivessem feito, essa era a hora do líder. E Bolsonaro falhou como nenhum outro líder brasileiro já havia falhado.
*Celso Rocha de Barros, servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
Luiz Carlos Azedo: Biruta de aeroporto
Bolsonaro transferiu para o Congresso a criação do Renda Brasil, e a desindexação das aposentadorias, ampliando o conflito entre a base do governo e a equipe econômica
O governo parece biruta de aeroporto. Um dia após o presidente Jair Bolsonaro declarar que não pretende mexer com o Bolsa Família e outros programas de transferência de renda para as populações mais pobres antes de 2022, cancelando o projeto de programa Renda Brasil, o relator do Orçamento da União, senador Marcio Bittar (MDB-AC), anunciou que foi autorizado pelo presidente da República a incluir no seu relatório um novo programa social, para auxiliar a população de baixa renda, após o fim do auxílio emergencial.
Disse Bittar: “Tomei café da manhã com o presidente da República. Antes do almoço conversamos mais um pouco, e eu fui solicitar ao presidente, se ele me autorizava a colocar dentro do Orçamento a criação de um programa social que possa atender a milhões de brasileiros que foram identificados ao longo da pandemia e que estavam fora de qualquer programa social. O presidente me autorizou”. O secretário de Fazenda do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, cuja cabeça está a prêmio por ter anunciado o congelamento das aposentadorias por dois anos para financiar o programa, continua no cargo, depois de receber “cartão vermelho”de Bolsonaro.
Traduzindo a conversa com Bittar, o presidente Bolsonaro transferiu para o Congresso a responsabilidade pela criação do Renda Brasil, ampliando o conflito entre as lideranças da base do governo e a equipe econômica. O problema central continua existindo: a falta de recursos para criar o novo programa sem inviabilizar o funcionamento da administração federal. O pulo do gato para isso é a chamada desindexação, palavra mágica para acabar com os reajustes automáticos de despesas decorrentes da inflação oficial. Isso significa congelar ou reduzir o valor real de todos os programas que estão vinculados ao salário mínimo, o caso das aposentadorias e o do Benefício de Prestação Continuada (o salário mínimo destinado aos idosos sem nenhuma fonte de renda) para criar um novo programa que sirva de bandeira para a reeleição de Bolsonaro, no lugar do Bolsa Família.
Tudo indica que estamos caminhando para um orçamento de fantasia, no qual a estimativa de arrecadação é aumentada e a projeção da inflação, reduzida, para permitir um encontro de contas artificial entre receitas e despesas. No Congresso Nacional, não será a primeira vez que isso pode acontecer, mas é uma contradição com tudo o que Paulo Guedes anunciou até agora e uma ameaça à manutenção do chamado “Teto de Gastos”. Depois da conversa com Bolsonaro, o relator do Orçamento se recusou a “especular” sobre a origem dos recursos para viabilizar o novo programa, mas prometeu apresentar um relatório na próxima semana com a essa definição do novo programa.
Bolsonaro também participou de um almoço com a bancada evangélica, organizada pelo deputado Fábio Ramalho (MDB-MG), no qual se discutiu a derrubada do veto presidencial à anistia das dividas das igrejas evangélicas com a Receita Federal, aprovada pelo Congresso. Bolsonaro vetou a emenda aprovada com o argumento de que era inconstitucional e que poderia ser punido por irresponsabilidade fiscal se não agisse dessa forma. Mas recomendou a seus aliados no Congresso que derrubassem o veto, o que reiterou duramente esse encontro.
Saúde
Entretanto, o evento mais concorrido do Palácio do Planalto, ontem, foi a posse do ministro Eduardo Pazuello como titular do Ministério da Saúde, depois de quatro meses de interinidade. Foi um oba-oba, no qual o presidente Bolsonoro reiterou tudo o que já disse sobre a pandemia, fez apologia da hidroxicloroquina, criticou prefeitos e governadores por causa do isolamento social, condenou o fechamento das escolas e encheu a bola do ministro, convidando-o para saltar de pára-quedas no Lago Paranoá. Pazuello fez um balanço baluartista de sua própria atuação à frente do ministério, mas destacou o papel do SUS e a atuação do pessoal da saúde na linha de frente do combate à pandemia. Disse que a pandemia está em declínio, principalmente no Norte e no Nordeste.
Pazuello entrou na pasta em meados de abril. “Literalmente, tivemos que trocar a roda do carro andando. A responsabilidade era enorme e tivemos a liberdade total para implementarmos as medidas que eram necessárias”, disse. O ministro destacou “a solidariedade de todo o povo brasileiro, mostrando o valor de nossa nação, onde empresários, cidadãos e entidades das mais diversas se mobilizaram e continuam mobilizados na certeza de que, juntos, estamos vencendo essa guerra”. O general assumiu o ministério depois da saída do ministro Nelson Teich, que substituiu Luiz Henrique Mandetta e teve uma passagem relâmpago pela pasta. Na ocasião, o Brasil contabilizava 14 mil mortes; hoje, são 133,3 mil. A média móvel de mortes nas últimas semanas, porém, caiu para 813 mortos/dia nas duas últimas semanas, e 31.311 novos casos no mesmo período.
Eliane Brum: Os humanos que o vírus descobriu no Brasil
Só poderá haver luto dos mortos pela covid-19 se houver luta – por investigação, responsabilização e justiça
Tenho peregrinado pelos memoriais e por páginas desconhecidas de redes sociais em busca dos fragmentos da vida dos mortos, em busca dos testemunhos dos enlutados, para que também eu possa acreditar com eles que houve uma morte. E então empresto o meu corpo e escrevo a partir destes fragmentos. Essa crônica que faço a partir do real me ajuda a ficar em pé. É o meu jeito de estar junto num velório que não velou, num enterro que sepultou também os vivos, porque sem despedida, num sepultamento em que os familiares foram compelidos a mentir a causa da morte para não serem estigmatizados pela vizinhança. Sim, porque também isso está acontecendo no Brasil. Morrer de covid-19 tornou-se uma vergonha a ser ocultada, assim como subnotificados são os números oficiais.
Perambulo pela história dos outros para costurar fiapos de vida. Não reportagens ou depoimentos, como costumo fazer, mas pequenas crônicas como estas a seguir.
Era o pijama azul, aquele que tinha a mancha de vinho no peito. Ele sempre derramava coisas na roupa quando comia ou bebia. Queria enterrá-lo com ele, pra que possuísse algo seu que pudesse reconhecer na travessia, para que não fosse para a escuridão sem algo familiar, para que as minhas tentativas sempre fracassadas de tirar a mancha fossem uma lembrança de que tinha sido tão amado. Mas você me foi arrancado, eu não pude acariciar sequer o seu rosto. Eu não perdi apenas a sua vida, eu perdi também a sua morte.
Quando ria, ela tentava esconder um dente amarelado, uma escultura estragada por um dentista barato, que não prestou atenção no seu sorriso. E agora, quando ela é arrancada de mim, é este dente torto, abalroado pela vida, que me falta mais. Como se só ele pudesse me devolver alguma sanidade na insanidade de não poder dizer a você que eu nunca me esforcei para lhe ajudar a pagar o dentista porque não queria perder nem um pedacinho de você, nem mesmo aquele dente que a constrangia, mas que eu amava mais porque era a prova de que você era deste mundo e não escaparia. Sim, eu sempre achei que você era perfeição que eu não merecia, mas queria. E então, sequestraram você de mim. E eu, que contava tudo a você, só a você, não tenho a quem contar que até seu dente ruim me faz falta.
Eles disseram que as crianças tinham muito muito muito menos chance de pegar o vírus. Eu me agarrei a isso. Você, minha filha, tinha bochechas grandes demais, rosadas demais, para caber um vírus. E quando corria, você tinha uma confiança absoluta em seus passos incertos. E quando caía, você apenas ria, anunciando que não temeria as quedas que viriam. Eu, sim. Eu temia todas as suas quedas. E agora que você é só uma foto num porta-retratos, agora que nem me permitiram embalar o seu corpo, agora que você passou naquele pequeno caixão fechado onde eu não poderia reconhecer você, a minha menina, eu queria só ter a chance de ver você cair e ajudá-la a levantar. Preciso te dizer que não acredito. Como vou saber que não era outra naquele caixão? Como vou saber que você não está viva caindo de bunda em outro chão e rindo como se tudo isso fosse apenas mais uma graça do mundo que você apenas começava a descobrir? À noite eu sonho, minha filha, que caminho até o cemitério e a arranco de lá. Abro aquele caixão como se fosse um porta-joias e resgato da escuridão e assim também eu saio do escuro onde estou desde que você passou numa caixa. E nunca mais, nunca, você sairá de novo do meu útero.
Disseram que você poderia morrer, afinal você era velho. Ouvi aquele animal falar coisas assim. Morrer os que têm que morrer. Deixaram você morrer, como deixaram tantos morrer. Não sabiam nada das suas pequenas delicadezas, nem das maldades, às vezes você gostava de ser mau, como quando ria ao me ver andando encurvada. Mas os que assim falavam não sabiam que você também me cobria, passava a noite me cobrindo, porque depois de velha meu sono se tornou errático e agitado, e eu jogava tudo longe como se tivesse raiva do cobertor. E você acordava para que meu pé não gelasse, e às vezes, nunca te contei, eu apenas fingia para ser cuidada por ti. E eu não pude. Não pude cuidar de você. Você teve febre, desapareceu dentro da boca do hospital e de lá foi vomitado num caixão lacrado. Eu não consigo explicar por que tenho medo de seguir o teu caminho, e o presidente do meu país diz que os velhos estão autorizados morrer. Não sei o que se passou comigo, eu queria te contar e talvez você soubesse, mas murchando entre dobras de pele enrugada (você lembra como a minha pele era lisa? Já não há ninguém para lembrar que a minha pele foi lisa), chorando dia após dia umas lágrimas secas que me esfolam os olhos ruins, eu ainda quero viver. E não sei para quê. Você saberia, você sempre sabia dos meus porquês.
Desde que ela desapareceu, porque para mim haverá de ser sempre um sequestro, já que não a vi, não a preparei, não a abracei, não pude dizer nada perto dos ouvidos dela. Desde que ela desapareceu só consigo pensar naquela penugem que ela tinha na nuca. Como se uma parte dela nunca tivesse desistido de ser bebê apesar de já ser uma mulher adulta. Quando ela era dura, no trabalho, eu ria para dentro de mim, porque só eu sabia da penugem que ela escondia. Só eu conhecia aquela verdade mais absoluta que qualquer outra que ela vendia ao mundo. E era isso que fazia com que me sentisse especial. Mesmo que ela fosse dura também comigo mais vezes do que seria necessário, ela me deixou chegar onde ninguém mais tinha alcançado, como um pico do Everest só meu, e me deixou ver. E agora, também a penugem está no silêncio dos mortos que não conseguem descansar porque não foram velados.
Eu cresci lendo histórias sobre a pandemia, em especial na Idade Média. As grandes pestes que devastavam um continente inteiro. Eu tentei convencer os Médicos Sem Fronteiras a me deixar acompanhá-los numa epidemia de ebola em Uganda anos atrás. Eu testemunhei como a doença de Chagas tinha se tornado uma maldição que atravessava ― e matava e marcava ― gerações de camponeses bolivianos porque poucos se interessavam em barrar aquelas mortes e assim aquilo que é evitável vai se tornando imutável. Eu já era repórter quando a Aids matou alguns dos meus ídolos. Ser jornalista é também aceitar que terá sua vida assinalada por mortes de quem nunca conheceu.
Quando a pandemia de covid-19 chegou, ela não me surpreendeu. Quem escreve sobre a destruição da natureza, sobre a emergência climática, sabia que o tempo das pandemias chegaria. Gritamos há anos, e os indígenas, que sabem mais, há décadas. Quando as primeiras notícias chegaram eu estava num navio do Greenpeace, na Antártida, e ouvia as explosões dos icebergs. O que pode ser mais aterrador do que o continente gelado sem gelo? E então os jornalistas chineses que nos substituiriam na próxima etapa não puderam vir. E quando chegamos ao aeroporto, no Chile, havia pessoas de máscaras por todo canto.
Há muito eu tento me preparar para o abismo que a minoria dominante do planeta, as grandes corporações, os bilionários que arrancaram suas fortunas da natureza, os governantes e os executivos que os servem, cavaram para todos nós. Mas eu nunca me preparei para o que está acontecendo no Brasil agora. E é com isso que não consigo lidar. Eu não consigo lidar com a indiferença.
Há dois acontecimentos simultâneos e conectados no Brasil, o que o torna diferente de outros países do mundo nesta pandemia. Um é a covid-19, que aqui atingiu proporções de catástrofe, tornando o Brasil um dos países mais afetados do mundo. O outro é a ação deliberada de Jair Bolsonaro e de pessoas, militares e civis, que ocupam cargos no seu Governo para, por um lado, deixar a covid-19 avançar e matar, por outro ampliar as condições para que ela mate mais.
Já escrevi bastante sobre os atos governamentais, sobre a campanha oficial de desinformação, sobre as declarações públicas de Bolsonaro. Não há como analisar o impacto da covid-19 no Brasil sem relacioná-lo com a ação intencional do Governo Federal de deixar morrer: a população em geral, e por consequência os mais pobres, o que significa os negros (pretos e pardos), que representam tanto a maioria da população quanto a maioria dos mais pobres. E sem relacionar com a ação deliberada de ampliar as condições para que a doença mate mais, caso explícito dos povos indígenas, bem fundamentada nos pedidos de investigação de Bolsonaro por genocídio e outros crimes contra a humanidade que já chegaram ao Tribunal Penal Internacional. Nesta semana, o TPI arquivou “temporariamente” as denúncias com relação à pandemia, até que “novos fatos ou evidências” apareçam. Nada foi fechado, mas será preciso descobrir o que mais Bolsonaro precisa fazer — ou quantos mais precisam morrer — para que os juízes da Corte internacional sigam adiante. Com relação aos indígenas e à Amazônia, as denúncias seguem em aberto.
A covid-19 e a suspeita de crimes contra a humanidade praticados por Bolsonaro e por seu Governo estão intimamente relacionadas no Brasil e não há como dissociá-las em qualquer análise sem promover o apagamento de fatos documentados. O que eu não imaginava é que, diante das evidências de um genocídio, a maior parte da sociedade silenciaria. O que eu não imaginava era ouvir: “Você está banalizando a palavra genocídio”. Não seria você que estaria banalizando a morte?, eu respondo. A dos outros, claro. São sempre os outros os que podem ser sacrificados.
Um negro, uma negra, talvez dissesse à branca que eu sou. Como você acha que nos sentimos todos esses anos, enquanto nossos filhos morriam à bala e as pessoas se limitavam a “tocar a vida”? Um indígena, uma indígena talvez lembrasse à branca que eu sou. Como você acha que nos sentimos em todos esses cinco séculos, enquanto sua sociedade ora nos exterminava, ora tentava nos assimilar, ora ambos, até hoje?
Sim. Essas perguntas, que apontam para a normalização do genocídio pela minoria dominante da sociedade, respondem. Efetivamente respondem. Mas, ainda assim. Ainda assim há um limite que foi ultrapassado no Brasil da covid-19. Se a pandemia acabasse hoje, e está longe de acabar, o que temos diante de nós é uma população de mais de 130.000 cadáveres de mulheres e de homens, a maioria deles adultos, mas também crianças e bebês recém-nascidos, uma população maior do que a da maioria das cidades brasileiras feita de corpos mortos. De vidas interrompidas. E cada uma destas vidas interrompidas deixou, segundo as projeções estatísticas, cerca de 1 milhão de enlutados, o equivalente a população inteira de algumas capitais do Brasil e do mundo que perderam pai, mãe, irmão, irmã, tio, tia, filhos, amigos íntimos.
E sabemos ― é inaceitável que alguém possa ainda mentir que não sabe ― que parte destas pessoas poderiam ainda estar vivas se Bolsonaro e seu Governo tivessem: 1) combatido a covid-19 seguindo as normas da Organização Mundial da Saúde; 2) liberado aos estados os recursos existentes no momento necessário, em vez de retê-los para alimentar disputas políticas; 3) mantido no ministério da Saúde um ministro que conhece o assunto e uma equipe gabaritada de sanitaristas e epidemiologias que já estavam lá; 4) agido emergencialmente em vez de negar a gravidade da doença; 5) orientado corretamente a população em campanhas responsáveis e bem fundamentadas; 6) feito todos os esforços para barrar a chegada da pandemia às terras indígenas, em vez de vetar água potável, leitos emergenciais e campanha de informação, entre outros barbarismos; 7) agido como chefe de Estado e dado o melhor exemplo.
O Brasil tem hoje uma nova geografia humana. E ela não é acidental. Temos essa cratera de mais de 130.000 pessoas a menos, como luzes que se apagam num curto espaço de tempo, deixando aqueles que as amavam no escuro de um luto que sequer é reconhecido. Uma cratera que segue se ampliando na velocidade de centenas de mortos por dia. Isso já é algo para além do possível.
Mas há mais. Há muito mais.
Em minha última coluna, eu perguntava: Como poderá barrar seu próprio genocídio um povo que se acostumou a morrer? Que naturalizou todas as formas de morte a ponto de tornar a covid-19 mais uma delas? Que normalizou que são os mesmos de sempre os que mais morrem e então tipo tudo bem? Que naturalizou o inominável que nos governa? Era uma pergunta difícil, a pergunta de quem vive num país em que o futuro foi negado à maioria, consumida pela mera reprodução das forças num presente contínuo.
Agora, minha pergunta é mais delicada. O que será dos que restarem quando a pandemia acabar? O que será dos que vivem esse luto que ninguém mais na história dessa humanidade viveu?
Em todos os países do mundo há pessoas lidando, nas mais diversas línguas e culturas, não apenas com a perda de quem amavam, mas com a despedida que não houve, com o cuidado que foi vetado pelo risco de contaminação, lidando com caixões lacrados e túmulos que não escolheram, quando não com a indignidade das valas comuns. Lidando com os abraços que não puderam acontecer. Essa tragédia ― ainda que com a evidência de que houve uma série de abusos e de descuidos evitáveis nos processos e nos sistemas de saúde ― é intrínseca a uma pandemia que só pode ser barrada impedindo a replicação do vírus em outros corpos, só pode ser barrada com isolamento físico (não social) e protegendo-se fisicamente (não socialmente) do outro.
A questão, no caso do Brasil, é que há mais.
Os enlutados enfrentam uma dor extra, que é a da invisibilidade pela negação da gravidade da pandemia. Famílias inteiras se dilaceram enquanto tantos festejam nos bares, buzinam nas ruas, desrespeitam o distanciamento, aglomeram-se. Se aqueles que escolheram ignorar a pandemia soubessem da dor dos que foram atingidos pela morte, será que mudariam, será que cuidariam, será que fariam o gesto?
“É atroz”, diz uma mulher que perdeu o marido, assistir a esse espetáculo das ruas cheias. Faz com que pareça que a morte do meu marido não existiu. Onde está ele então, ele que eu deixei no hospital e nunca mais vi? O que então é real? As ruas cheias onde a pandemia é uma ‘gripezinha’ ou meus filhos e eu, perdidos numa casa onde ele não está? Como as pessoas podem estar nas ruas festejando enquanto uma parte da população está morrendo?".
Liguei para Bruna Tabak, para que ela me ajudasse a compreender o que vivemos. Psicóloga especializada em cuidados paliativos, ela e outras duas profissionais atuam com grupos de familiares na Rede Apoio Covid-19 – acolhimento, escuta e memórias da pandemia, formada inteiramente por voluntários. “A palavra que se repete em muitas falas é arrancada”, conta Bruna. “Os familiares sentem que tiveram aqueles que amam arrancados. Com o arrancamento, é um rombo que se abre.”
Como fechar esse buraco numa sociedade que normalizou tanto a morte quanto a dor de quem perde, fazendo com o mais real de uma vida, que é a morte, seja encoberto por uma aura de irrealidade pela negação compartilhada da crise sanitária mais grave em um século? Bruna teve a generosidade de compartilhar algumas frases surgidas nos grupos de vivência do luto. Outras, encontrei em depoimentos na internet.
“Foi a pior coisa que nos aconteceu. Me senti devastada, sem rumo e sem chão. E como estamos vivendo dias anormais, ainda penso que não foi real.”
“Entreguei meu marido no hospital e recebi de volta três papeizinhos.”
“Eu não deveria ter levado o meu marido ao hospital. Nunca mais o vi.”
No hospital aquele que amamos é colocado fora do alcance, nem uma prisão de segurança máxima seria tão efetiva. A ligação prometida para aquele mesmo dia, com notícias, acontece três dias depois.
“O vírus não passa pelo telefone. Por que não ligaram pra gente?”
E nestes três dias tudo aconteceu, e ele estava sozinho.
Outra queria pelo menos ter a Bíblia de volta, ele era pastor. Aquela Bíblia, não outra, mas sim aquela, que o acompanhou por toda uma vida. Informaram à família que o livro estava contaminado, que fora “descartado”, a palavra terrível. Ele também teria sido “descartado”?
Vocês têm cinco minutos para se despedir. Pelo tablet. A pessoa que era tudo morria. O que você diz em cinco minutos? Como se vive com essa última imagem em um tablet? E o que você diz para a pessoa que te chama de “privilegiado” porque você pôde pelo menos ter uma imagem, enquanto ela atravessa as noites sem certeza do que havia naquele caixão que não pôde abrir? Quem te abraça diante do horror se agora você é também um risco, um possível vetor? Quem dá o contorno do seu corpo que se perdeu?
“Será que ninguém vê que eu sangro, aqui, bem aqui, onde ele me foi arrancado?”
“Como alguém que perdeu um familiar por covid-19 faz para sobreviver.” Ela preenche o espaço de busca do Google com esse pedido de socorro. E espera por uma resposta.
“Eu sou um milagre”, ela se espanta. “Como estou sobrevivendo só com metade do coração?”
“Não poder me despedir me causa uma dor que vou carregar para o resto da minha vida.”
No momento do sepultamento, “sem despedida, sem poder olhar ele pela última vez, sem poder tocar as mãos e agradecer por tudo”.
“Na última vez que falei com a minha mãe ela me pediu, pelo celular, que a buscasse, que a tirasse do hospital. Nunca mais a vi, nem pela tela.”
“Não, não me diga para ter pensamento positivo. Não me diga para ser forte. Ser frágil é a prova de que sou humana. Me permita ser humana.”
Receber a notícia daquela maneira, “me matou viva”.
Ela sequer encontrou o caminho de volta para casa, nem sabe para onde levará os filhos, quando é atingida pela cidadã de bem: “Você tem certeza de que seu marido tomou cloroquina? Porque se tivesse tomado ele estaria vivo”.
Bruna Tabak fala de “uma dor que não descansa”. A voz da paliativista, a voz daquela que escuta, dói. Não é verdade que o verbo doer só tem a terceira pessoa. Eu doo, tu dóis, ele/ela dói, nós doemos, vós doeis, eles/elas doem. Gente dói. O que são então todos esses outros que fingem não nos ver?
A tragédia do Brasil é que os mortos são tratados com a mesma indiferença reservada aos vivos. Quem estuda o morrer sabe que a forma como a morte é tratada reflete o valor reservado à vida. O vírus revelou-nos. De uma vez, como um esparadrapo arrancado com apenas um gesto.
Essa é a diferença no Brasil. O luto pela morte dos que amamos é parte inescapável da experiência de viver. Este luto é elaborado de forma singular, própria, por cada pessoa que perde. Mas, no Brasil da covid-19, o direito ao luto é violado por uma dupla perversão. A doença que matou seu pai, sua mãe, seu irmão ou irmã, avô ou avó, filho ou filha tem sua gravidade negada pela autoridade máxima do país. Para piorar, essa autoridade não está sozinha. A aberração de negar a gravidade de uma pandemia é compartilhada por milhões de pessoas, os milhões que lotam os espaços públicos sem necessidade, fazendo com que o real da morte se torne algo irreal. O delírio, quando coletivo, corrompe a realidade.
Torna-se muito mais difícil fazer luto quando esse luto não é reconhecido ― e não é reconhecido em frases de Jair Bolsonaro como “E daí?”, ou “Vamos tocar a vida”, ou “Está morrendo gente? Tá. Lamento. Mas vai morrer muito mais se a economia continuar sendo destroçada” ou “A gente lamenta todos os mortos, mas é o destino de todo mundo”. No luto da covid-19, os brasileiros que perderam não tem o reconhecimento da magnitude da sua perda porque a morte pela doença foi normalizada. Sua dor, então, torna-se uma carta que não chega ao seu destino, uma carta que não é aberta pelo outro. É esse buraco que os memoriais tentam preencher, sabendo que podem apenas tecer uma rede em volta dele.
Essa negação da dor que silencia os enlutados e os condena ao ostracismo, mesmo entre seus vizinhos, é da ordem do traumático. Mas o que acontece hoje, no Brasil, é ainda pior do que o pior. Sobram indícios de que as mortes por covid-19 podem estar conectadas aos crimes de genocídio ou de extermínio, como já foi amplamente mencionado neste texto. Esses indícios também são negados por uma significativa parcela da população. E mesmo por alguns estudiosos do tema, que preferem, por razões que a razão não desconhece, afirmar que é “apenas incompetência” de Bolsonaro.
Se há fortes indícios de que a pessoa que você perdeu poderia estar viva não fosse o processo genocida em curso, o que isso faz com o seu luto? Se os responsáveis por investigar as ações do presidente e dos ministros e funcionários de seu Governo não investigam e o Judiciário não julga, o que isso faz com o seu luto? Se o presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM), não vê nas suspeitas que envolvem o tratamento da covid-19 pelo Governo nenhuma razão para levantar o traseiro da pilha de pedidos de impeachment de Bolsonaro, o que isso faz com o seu luto? Como você faz para que seu cérebro “esqueça” que sua mãe ou seu filho podem ter sido vítimas de um crime contra a humanidade e, caso “apague” essa informação, o que isso fará com a sua sanidade? Sem justiça, o luto está sendo convertido em violência. Só haverá luto para aqueles que perderam os que amavam na pandemia se houver luta por responsabilização.
As instituições já se mostraram incapazes ― ou sem vontade ― de investigar e julgar Bolsonaro mais de uma vez, tanto no plano do Judiciário quanto no do Legislativo. A negação de justiça, que é o que hoje vivemos no Brasil, violenta o luto dos familiares de mortos por covid-19. Sem possibilidade de encontrar justiça no Brasil, organizações da sociedade civil moveram petições no Tribunal Penal Internacional, mas este processo é lento e, como se viu na decisão recente de “arquivamento temporário”, não imune às pressões políticas. A dor, porém, demanda urgência.
Não sei como lidaremos com o fato de testemunhar um genocídio e, com exceção de alguns núcleos de resistência, não realizar como sociedade o esforço mínimo para barrá-lo. Ao deixar de fazê-lo, abandona-se vizinhos, familiares, parentes. Mas abandona-se, individualmente, algo constituinte do que é ser uma pessoa humana. E, coletivamente, quando abdicamos de barrar os horrores que são feitos em nosso nome, abdicamos do coletivo. Já não somos mais nada então, para além de um amontoado de quase 212 milhões de pessoas circunscritas por uma convenção político-geográfica. O Brasil, que já vinha se destroçando, terá de se haver então com algo ainda não nomeável no âmbito do horror. Não se pode passar por cima de algo desse tamanho sem se perder por completo.
Temo, porém, o rearranjo caso não seja feita justiça e não exista reconhecimento dos mortos nem do luto dos que perderam. Será que a sociedade vai imitar os militares da ditadura e falsificar o passado para se absolver dos horrores feitos em seu nome? Será que apagarão a história, deixarão os mortos desaparecerem nas valas comuns, silenciarão as viúvas, esperarão que os órfãos se suicidem? É assim que finalmente se fará o desacerto de contas deste país com sua desmemória?
Bolsonaro, assim como todos os apagamentos que ele representa, terá então vencido, porque conseguiu fazer de cada brasileiro um cúmplice, um igual a ele. E agora a maioria já não poderá falar sem denunciar a si mesma. Onde você estava? O que você fez? A sociedade brasileira vai recusar essas perguntas, cada indivíduo vai recusar essas perguntas. E tratará de destruir quem insistir em seguir perguntando.
Há bem pouco do que se orgulhar na história do Brasil, esse país construído sobre corpos humanos e costurado com o fio interminável da violência. Mas isso, isso que estamos deixando acontecer, isso é terrível demais até para nós.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago).
Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum
Luiz Carlos Azedo: Mais mulheres e negros no pleito
A maior distribuição de recursos do fundo eleitoral para as mulheres e os negros deve aumentar a participação feminina nos espaços de poder e combater o “racismo estrutural”
Não existe tradição política mais forte no Brasil do que as eleições de vereadores. Elas antecederam tudo o que existe institucionalizado em nosso país, a partir da formação da primeira Câmara Municipal, em 1532, na Vi-
la de São Vicente. Vêm de uma tradição medieval portuguesa, que foi fundamental para a consolidação de seu império colo- nial, da conquista de Ceuta (1415) à devolução de Macau à China (1999), ao lado das beneficências e santas casas. No caso de São Vicente, foi a alternativa encontrada por Martim Afonso para sedimentar a presença portuguesa, depois do fracasso de suas expedições à bacia do Prata por terra, na qual desapareceram 70 homens, e por mar. Ele próprio naufragou num baixio, frustrando o objetivo de subir o Rio Paraná e penetrar no continente, como o rei Dom João III ordenara.
Depois que Martim Afonso voltou a Portugal,a vila de São Vicente ficou completamente abandonada por duas décadas. Era um povoado formado por náufragos, degradados e marinheiros, o isolamento fez com que seus moradores adotassem os costumes indígenas e a língua franca tupi-guarani, sem a qual seria impossível o escambo serra acima, em conexão com os caciques Tibiriça, Caiubi e Piquerobi, todos tupi, e os náufragos João Ramalho e Antônio Rodrigues, que comandavam um exército de 20 mil homens pelo sertão adentro, a partir da localidade de Piratininga, às margens do rio Anhembi (Tietê). Tibiriça e os genros transfeririam-se para o campo de São Bento, onde se instalou o Colégio São Paulo, catequizados pelo jesuíta Manoel da Nóbrega, para fundar a maior cidade do país, São Paulo.
Conta-nos Jorge Caldeira, em História da Riqueza no Brasil (Estação Brasil), que um único ritual das Ordenações do Reino foi preservado na vila de São Vicente: “As autoridades eleitas governaram, distribuíram títulos mal escritos pelos raríssimos alfabetizados, prenderam, multaram e julgaram. Passados os três anos dos mandatos regulares, os vereadores convocaram eleições, os eleitos tomaram posse, aqueles que deixaram o governo voltaram para a condição de simples governados, os novos governantes passaram a exercer a autoridade.” Quase todos analfabetos, genros de índios, renderam-se à autoridade dos governos dos costumes, eleita e provisória, competente na busca do consenso, com a vida doméstica organizada em torno da linhagem feminina. Eis “o milagre da multiplicação das eleições e do governo cuja autoridade derivava da escolha dos governados.”
É dessa tradição que as atuais eleições municipais herdariam o voto uninominal, que a competência de Assis Brasil canalizou para os partidos com a adoção do sistema proporcional. A propósito, há três grandes novidades nas eleições municipais deste ano: a primeira é o fim das coligações proporcionais, que obrigou os partidos a concorrerem com a chapa completa, o que aumentou muito o número de candidatos a prefeito e, principalmente, a vereador; a segunda, a destinação dos 30% dos fundos eleitorais para candidatas mulheres, o que as tornou mais competitivas e estimulou o lançamento de candidaturas majoritárias femininas; a terceira, a recente deci- são do ministro Ricardo Lewandowski, que determinou a distribuição proporcional dos recursos do fundo eleitoral entre candidatos negros e brancos, de ambos os sexos (mérito do movimento negro, da deputada Benedita da Silva, do PT-RJ, e do PSol, que recorreram à justiça).
Fusões e incorporações
A melhor distribuição de recursos do fundo eleitoral para incluir as mulheres e os negros, que já cobram maior fiscalização para evitar o/as laranjas (candidatos inscritos regularmente, mas que não fazem campanha e repassam os recursos do fundo, ilegalmente, para os caciques partidários), deve contribuir para aumentar a participação feminina nos espaços de poder e combater o “racismo estrutural”. O benefício deveria ser estendido ou pleiteado pelos candidatos indígenas, que em muitos municípios são sub-representados e sofrem grande discriminação.
Nas eleições passadas, o tsunami eleitoral que levou Jair Bolsonaro à Presidência elegeu grande número de candidatos militares, policiais e evangélicos, que reproduziram na campanha eleitoral sua narrativa contra a esquerda e disseminaram ideias conservadoras e reacionárias que pautam o atuam governo, em relação à cultura, aos costumes, à educação, ao meio ambiente e à segurança pública. Entretanto, o que pesou mesmo na eleição foi a linha divisória traçada pela Operação Lava-Jato entre a ética na política e a corrupção, o patrimonialismo e o fisiologismo, que foram associados à esquerda de um modo geral.
Muito provavelmente, essa linha divisória da ética se manterá nas eleições municipais deste ano, acrescida do desempenho dos prefeitos durante a pandemia, mas será menos ideológica e mais “fulanizada”. As pesquisas estão mostrando que a oferta de emprego está mais presente nas aspirações dos eleitores do que, por exemplo, a segurança e a educação, que compõem com a saúde, tradicionalmente, a tríade de prioridades da maioria da população. É muito provável que os candidatos majoritários, na maioria dos municípios, procurem estabelecer vínculos políticos com governadores e o presidente Bolsonaro, principalmente nas cidades onde houver segundo turno.
A tendência de fragmentação partidária nas eleições municipais, em decorrência do grande número de candidatos majoritários e proporcionais, porém, é apenas aparente, temporária. Após as eleições, haverá um processo de fusões e incorporações entre os partidos cujos resultados eleitorais revelarem pouca representatividade para ultrapassar a cláusula de barreira em 2022. Segundo estimativas do ex- deputado Saulo Queiroz, uma velha raposa política, estudioso do assunto, com as regras atuais, o espectro partidário deverá se reduzir a sete ou oito partidos. Até mesmo o PSDB, o MDB, o PSD, o PP, o DEM e o PR que, somados, elegeram 3.417 prefeitos nas eleições passadas, se nada fizerem, correm risco de desaparecer.
Luiz Carlos Azedo: Verde, amarelo, branco, azul anil
“Crise sanitária, recessão econômica, crise fiscal, desemprego em massa e sinais da volta da inflação nos preços da cesta básica. Entretanto, Bolsonaro está cada vez mais populista”
Tivemos um inédito Dia da Independência sem desfiles militares, por causa da pandemia. O presidente Jair Bolsonaro desfilou em carro aberto, cercado de crianças, no velho Rolls-Royce presidencial, comprado pelo presidente Getúlio Vargas em 1952, em si uma atração à parte. A Esquadrilha da Fumaça, como sempre, riscou o céu de Brasília. Estamos a dois anos do Bicentenário da Independência. Quem tiver mais certezas do que dúvidas sobre o futuro estará errado. São tempos de mudanças vertiginosas em meio a grandes adversidades.
Olhando para metade do caminho percorrido, a década de 1920, houve um turbilhão de coisas que deixaram de pernas para o ar a chamada República Velha. O mundo saía da maior carnificina até então ocorrida na História, a I Guerra Mundial. Pode-se dizer que tudo o que ocorreu depois, no século passado, de alguma forma, foi marcado pelo conflito. Há 110 anos, havia uma grande inquietação cultural e artística, além da radicalização ideológica na qual se confrontaram o comunismo e o fascismo, como alternativas à social-democracia e ao liberalismo, respectivamente. A II Guerra Mundial foi quase uma consequência inevitável, cujo grande ensaio no teatro europeu foi a Guerra Civil espanhola.
No Brasil, havia uma profunda crise de identidade; as instituições republicanas, que constituíam um sistema federativo e a nossa democracia representativa, eram contestadas. Dizia-se que eram estruturas artificiais, não se coadunavam com a realidade social e cultural do país. A Semana de Arte Moderna questionaria os padrões culturais tradicionais, impostos por uma elite formada por ex-senhores de escravos e seus descendentes, propunha a busca de uma identidade nacional moderna, “digerindo” as novas correntes filosóficas e artísticas europeias para produzir uma cultura nacional autêntica. O tenentismo eclodiria com o heroísmo dos 18 do Forte Copacabana, questionando o coronelismo, as fraudes eleitorais, o sistema político. Na mesma época, surgia o Partido Comunista, formado por intelectuais e operários de origem anarquista, cristãos-novos do marxismo. Eram prenúncios de uma crise que iria desaguar na Revolução de 1930 e no Estado Novo.
Muitas incertezas
Olhando para o futuro, o que nos aguarda nos próximos dois anos? É difícil a resposta, já mergulhamos num turbilhão das incertezas. Qualquer análise precisa partir da constatação de que estamos vivendo uma crise múltipla, cuja origem difere de todas as anteriores, em razão da pandemia da covid-19: contabilizamos até ontem 126 mil óbitos e 4,137 milhões de casos desde o início da pandemia, com uma taxa de 60,5 mortos por 100 mil habitantes. Estado mais rico e mais populoso, com o melhor sistema de saúde, São Paulo registra 855.722 casos e 31.353 mortes, o que explica a profundidade da recessão econômica, com a queda na produção industrial de 17,7% no segundo trimestre, em relação a igual período de 2019. O único setor com resultado positivo foi o agronegócio, que cresceu 1,2% no trimestre passado, por causa da recuperação chinesa e do aumento do consumo de alimentos, cujos preços dispararam.
Ninguém sabe quanto tempo a pandemia permanecerá, pois há sinais de uma segunda onda na Itália e na Espanha, mas há esperança de que quatro das vacinas em desenvolvimento no mundo estejam liberadas para aplicação em massa até o final do ano: a americana, a inglesa, a russa e uma das chinesas. O Brasil corre atrás delas, mas é improvável que possamos imunizar a população em menos de um ano. Enquanto a vacina não vem, é melhor ter juízo e manter o isolamento social; porém, não é o que acontece no Brasil. O mau exemplo vem de cima. O presidente da República naturaliza a pandemia e mantém uma ocupação militar no Ministério da Saúde que entrará para os anais da nossa história sanitária, repetindo o triste papel que tiveram na epidemia de meningite, durante o regime militar.
Crise sanitária, recessão econômica, crise fiscal, desemprego em massa e sinais da volta da inflação nos preços da cesta básica. Entretanto, Bolsonaro está cada vez mais populista, para desespero da equipe econômica, que agora lida com uma anistia fiscal no valor de R$ 1 bilhão para as igrejas evangélicas, que o presidente da República quer sancionar. Ou seja, todos os contribuintes terão de pagar o calote dos pastores na Receita Federal. Na política, Bolsonaro só pensa na eleição; nos bastidores, trabalha para liquidar com a Operação Lava-Jato, moeda de troca para livrar os filhos das investigações sobre o caso Fabrício Queiroz. Com o ministro Luiz Fux na presidência do Supremo (tomará posse na quinta-feira), será muito difícil.
Pasmem! A anulação da condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silvia, que ontem fez um pronunciamento nas redes sociais com pompa de estadista e cara de candidato, para emular com o de Bolsonaro em cadeia de radio e tevê, passou a ser vista com bons olhos pelos estrategistas do Palácio do Planalto. Já consideram os petistas fregueses de carteirinha e sonham com uma polarização com o petista Lula para reeleger Bolsonaro, sem risco de ter de enfrentar uma candidatura de centro no segundo turno. Até o Bicentenário da Independência, teremos dois anos emocionantes. Oremos!
Eliane Brum: 7 de Setembro: Morte
Brasil chega ao Dia da Independência com um genocida no poder e negacionistas do genocídio em todas as partes
Se este 7 de Setembro transcorrer como se o Brasil vivesse algum tipo de normalidade, enterremos nossos corações, porque já estarão mortos. Devemos então parar de fingir que estamos vivos e assumir nossa condição de zumbis. Não o dos filmes, que tentaram escapar dessa condição. Mas os que escolhem ser contaminados pela normalidade criminosamente anormal. A covardia é uma forma de existência a qual se escolhe. Este país está cheio de oportunistas, sim. Mas também está cheio de covardes incapazes de defender qualquer território para além da sua família, porque também o sentimento de comunidade foi persistentemente destruído. Em 7 de Setembro de 1822, quando se aliviava de uma diarreia insistente no riacho Ipiranga, em São Paulo, o príncipe português Dom Pedro I teria gritado: Independência ou Morte! Depois de 198 anos, já entendemos que o Brasil sempre escolheu a morte. Mas jamais, em nenhum outro momento de sua história, o país havia alcançado esse nível de perversão sob o título formal de democracia. Negros e indígenas vivem uma longa história de extermínio, mas esta é a primeira vez em que um Governo construiu uma máquina de morte. Temos um genocida no poder, e ele está matando tanto quanto deixando morrer. Tem intenção, tem plano e tem ação sistemática.
Os quatro pedidos de investigação de Jair Bolsonaro por genocídio e outros crimes contra a humanidade que já chegaram ao Tribunal Penal Internacional não são um jogo político de retórica. São a denúncia de que o judiciário brasileiro não consegue ou não quer barrar os crimes de Bolsonaro e de outras pessoas com cargos de poder no Governo, sejam generais ou civis. Se conseguisse ou quisesse, como os fatos já mostraram, Bolsonaro nem poderia ter sido candidato. Ele é o resultado, como já escrevi, de uma longa série de impunidades iniciada ainda quando era militar. Foi absolvido no Tribunal Superior Militar, em um julgamento povoado de indícios de fraudes, de planejar um ato terrorista com um motivo corporativo: botar bombas em quartéis para pressionar por melhores salários. Só se tornou presidente pela vocação característica do sistema judiciário brasileiro: a de punir severamente os pretos e pobres e despachá-los para um sistema carcerário incompatível com qualquer ideia de civilização, mas perdoar ou deixar de julgar os ricos e brancos. Especialmente se estes forem militares e tiverem o privilégio de uma justiça paralela que escolhe inocentes e culpados com base não nos fatos, mas nos interesses corporativos de uma instituição que se considera acima da Constituição.
Bolsonaro é brasileiríssimo. A criatura que está matando os Brasis que considera obstáculos ao seu projeto de poder, assim como as populações que despreza (indígenas e negros), é a versão mais bem acabada – e por isso tão terrivelmente mal acabada – de todas as deformações. As que os governos anteriores não quiseram corrigir, pelas mais variadas razões, as que as diferentes elites estimularam, para manter seus privilégios, as que o povo se acostumou a conviver.
O Brasil chega a este 7 de Setembro com os símbolos nacionais sequestrados pelo bolsonarismo. A bandeira foi sequestrada, o hino foi sequestrado, as cores foram sequestradas. Porque o bolsonarismo não se coloca como uma parte do Brasil, mas como o todo. Os outros Brasis e brasileiros que se opõem a ele são considerados e tratados como não brasileiros, como aqueles que precisam ser expulsos ou eliminados porque não deveriam estar aqui. O seu discurso no telão da Paulista, pouco antes do segundo turno das eleições de 2018, quando a vitória já era certa, é explícito: “Vamos varrer do mapa os bandidos vermelhos do Brasil (...) Essa turma, se quiser ficar aqui, vai ter que se colocar sob a lei de todos nós. Ou vão para fora ou vão para a cadeia”. Percebam. Não a lei do Brasil, que é a Constituição, mas “a lei de todos nós”. E esclareceu quem são “nós”: “O Brasil de verdade”.
O bolsonarismo é, em sua gênese e na sua estrutura, incompatível com a democracia. Na minha opinião, também incompatível com a civilização. O fato de Bolsonaro ter sido eleito não altera sua vocação totalitária nem sua lógica de eliminação dos opositores como “falsos brasileiros”. Ao contrário. Ao ser candidato, apesar de todos os crimes que já tinha cometido, a começar pelo de apologia à tortura, Bolsonaro desmoraliza e destrói uma combalida democracia que jamais foi capaz de julgar os crimes da ditadura e por isso jamais foi capaz de se proteger de criminosos como Bolsonaro.
Bolsonaro não apenas leva os generais de volta ao Governo e militariza toda a máquina pública, o que pareceria impossível apenas alguns anos atrás, para um país que viveu uma ditadura militar de 21 anos. Ele também carrega para o Planalto a lógica de guerra dos regimes totalitários. Na ditadura iniciada com o golpe de 1964, os “inimigos da pátria” eram os opositores políticos, especialmente os estudantes que a ela resistiram também com luta armada. No regime criado pelo bolsonarismo, que já não podemos chamar de democracia, os inimigos da Pátria são ampliados para todos aqueles que se opõem democraticamente a ele e a todos aqueles que são obstáculos ao projeto econômico de grupos no poder. Os opositores, como ele disse, devem ser levados à “Ponta da Praia”, referindo-se a um local de tortura e desova de cadáveres na ditadura, no Rio de Janeiro. Já os indígenas, principal obstáculo ao projeto de exploração da Amazônia, são tratados como uma espécie inferior: “cada vez mais humanos iguais a nós”. Aos quilombolas, outro obstáculo, ele se refere com termos usados para animais: “nem para procriadores servem”.
De certo modo, Bolsonaro vai além da ditadura militar na qual se inspira ao tornar “brasileiros de verdade” apenas os fiéis de seu culto político ― e falsos todos os outros. Porque ele não é apenas um “mau militar”, como definiu o ditador e general Ernesto Geisel. Bolsonaro está também aliado aos pastores de mercado e ao ruralismo mais predatório. Bolsonaro emprestou à lógica da guerra dos generais uma versão bíblica do bem contra o mal, explicitada pelos brasileiros de verdade e pelos brasileiros de mentira. Estes devem ser expulsos ou eliminados não apenas como inimigos, mas como infiéis da pátria. Para consolidar sua vitória colocou em campo uma máquina de propaganda, o chamado “gabinete do ódio”, que poderia ser elogiada por Joseph Goebbels, ministro da propaganda de Hitler. O bolsonarismo converteu todos aqueles que se opõem a ele em inimigos da pátria, do mesmo modo que o nazismo fez com os judeus num primeiro momento. Com os indígenas e com os negros, ele já entra numa segunda etapa, ao considerá-los apenas quase humanos como “nós”.
Bolsonaro e o bolsonarismo, que vai muito além dele, faz uma colagem dos totalitarismos do século 20 com a versão bíblica do evangelismo de mercado que se consolidou na política partidária neste século e alcançou o poder central com a eleição de 2018. Se fossem contemporâneos, Adolf dificilmente teria prazer em se sentar à mesa com Jair, porque a vulgaridade do presidente brasileiro o escandalizaria. Hitler queria criar sua própria arte e estética. Bolsonaro, pelo menos por enquanto, só quer destruir qualquer forma de arte. É o supremacista que prega (também) a supremacia da estupidez como a vingança dos ressentidos.
Bolsonaro não precisou criar seus campos de morte. Deixou a covid-19 avançar e agiu para reter recursos públicos destinados ao enfrentamento da doença, para afastar os quadros técnicos com experiência em saúde pública e epidemias, para vetar medidas decisivas de prevenção e para tumultuar o combate ao vírus. Também incentivou a invasão das terras indígenas e das áreas protegidas por grileiros e garimpeiros. Se a pandemia acabasse hoje, este já é um Brasil sem muitas das grandes lideranças que lideraram seus povos na luta pelo direito a viver em suas terras ancestrais e para manter a floresta amazônica e outros biomas em pé. Parte dos opositores de Bolsonaro, na Amazônia que mais uma vez volta a queimar, morreram nos últimos meses. E a pandemia ainda está longe de acabar.
A mais recente liderança indígena morta por covid-19, em 31 de agosto, foi Beptok Xikrin, 78 anos, conhecido como Cacique Onça. Voltou à sua aldeia, no Médio Xingu, em um caixão fechado, enfiado em uma lona, amarrado a uma caminhonete como se coisa fosse, na mais abjeta indignidade. Não basta matar ou deixar morrer, é preciso humilhar, quebrar a espinha dos povos indígenas também pelo insulto e pela desonra.
Mesmo para quem tem baixa expectativa com relação à decência das várias elites brasileiras, é custoso compreender como ainda chamam o que hoje há no Brasil de democracia. O que aí está não é bom nem mesmo para o “mercado”, essa entidade pronunciada com reverência. Que tipo de crença leva alguns setores, mesmo da imprensa, a considerar, depois de um ano e meio de governo, que há alguma composição possível com o bolsonarismo? A ação das elites não foi diferente nos processos totalitários do século 20, mas ainda assim é espantoso.
Muitos dos que votaram em Bolsonaro usaram o discurso anticorrupção como desculpa para votar num homem que se anunciava publicamente como defensor da ditadura e da tortura e que festejava como herói Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel, assassino e o único torturador reconhecido pelo judiciário brasileiro. E agora, quando não há mais desculpa? Quando Bolsonaro se abraça ao Centrão para se proteger de um impeachment? Quando Bolsonaro se abraça a Michel Temer para se aproximar do MDB? Quando o procurador-geral da República, escolhido fora da lista tríplice, se tornou office-boy de Bolsonaro, cobrindo de vergonha a instituição chamada Ministério Público Federal? Quando o herói da Lava Jato foi expelido do Governo? Quando Adriano da Nóbrega, miliciano chefe do grupo de assassinos de aluguel Escritório do Crime, foi morto e enterrado com tudo o que sabia sobre as ligações perigosas da família Bolsonaro? Quando Fabrício Queiroz, depois de meses escondido em uma das casas do advogado de Bolsonaro, e sua mulher, Márcia Aguiar, foragida, conseguem uma surpreendente prisão domiciliar? Quando um desembargador, sozinho, é capaz de afastar um governador do Estado inimigo de Bolsonaro e com poder para decidir os cargos de quem vai tocar (ou não) os processos sobre a família presidencial? Quando as denúncias de corrupção batem no peito de Bolsonaro, na forma da pergunta que faz Bolsonaro querer “encher a boca” do repórter “de porrada”? Esta pergunta aqui:
“Presidente Bolsonaro, por que a sua esposa, Michelle, recebeu 89 mil de Fabrício Queiroz?”
Agora, quando há duas enormes perguntas assombrando a família Bolsonaro. Esta e a outra, que se repete há mais de 900 dias sem nenhuma resposta:
“Quem mandou matou Marielle Franco? E por quê?
A pauta anticorrupção como justificativa para votar em um homem com o passado e o presente de Bolsonaro sempre foi fingimento. Desconfio que alguns fingiram tanto que até acreditaram. E assim chegamos ao 7 de Setembro com uma oposição partidária fraca, a esquerda ocupada brigando entre si e a direita buscando se consolidar como uma espécie de poder moderador da extrema direita no poder. Dilma Rousseff (PT) foi arrancada da presidência supostamente por ter praticado “pedaladas fiscais”. A folha corrida de crimes de responsabilidade muito mais graves de Bolsonaro está dando volta no quarteirão. E, mesmo assim, Rodrigo Maia (DEM) acomodou seu traseiro sobre uma pilha de dezenas de pedidos de impeachment, um deles da Coalizão Negra por Direitos, com base no agravamento do genocídio dos negros.
Gostaria de dizer que há momentos em que um povo decide se é um povo ou um amontoado de gente “tocando a vida”, como mandou o déspota eleito que nos carrega para a morte. Gostaria de dizer, mas não digo. Porque não acredito que temos um povo, no sentido de uma massa de pessoas com a mesma nacionalidade que luta por valores comuns. Talvez não tenhamos um povo. Mas temos povos. Nas periferias e favelas urbanas deste país há gente se organizando e lutando e criando possibilidades de viver apesar de todas as formas de morte. Se ainda existe a Amazônia é porque camponeses e povos da floresta lutam, mesmo sendo abatidos a tiros ― e agora também pela covid-19. Nas cidades, os movimentos de sem-teto se organizam pelo direito da ocupação da cidade para a vida e não para a especulação imobiliária. No campo, os agricultores familiares insistem em alimentar o país sem agrotóxicos enquanto Bolsonaro libera mais de um veneno por dia. Há homens e mulheres barrando a destruição da natureza com seus corpos em cada dobra do país. Há rebeliões por todos os Brasis, avançando nas fissuras, pelas bordas.
Não são os mais frágeis que se mantêm em pé. São os fortes. Há 500 anos há um Brasil tentando matar todos os indígenas ― pela assimilação, pela contaminação ou por bala. E, ainda assim, a população indígena cresceu nas últimas décadas. Desde a abolição formal da escravidão, os negros foram deixados para morrer, e ainda assim os negros se tornaram a maioria ― 56% ― da população brasileira. Viver ― contra todas as formas de extermínio ― tem sido o ato mais radical de resistência das populações invisibilizadas, oprimidas e tratadas como subalternas.
Neste momento, as gerações que hoje vivem enfrentam seu maior desafio. Bolsonaro converteu o Estado numa máquina de morte. Tão perversa que viu na covid-19 uma maneira de eliminar aqueles que barravam com seus corpos seu projeto de poder. Suas ações deliberadas são encobertas com aparições midiáticas, discursos golpistas, o jogo de cena da cloroquina e a falácia da defesa da economia. O bolsonarismo controla quase que totalmente o noticiário enquanto o genocídio é a política persistente que avança na camada atrás dos holofotes dos factoides, sem encontrar oposição capaz de pará-la.
Hoje, Bolsonaro alcançou mais do que o seu sonho. Ele queria que a ditadura militar, que formou os generais que o apoiam, “tivesse matado pelo menos mais uns 30 mil”. Sua negligência intencional na resposta à covid-19, sua campanha oficial de desinformação, seu exemplo pessoal de irresponsabilidade são a principal causa da ampla disseminação da doença no Brasil. Também neste momento, a Amazônia queima mais uma vez e se aproxima velozmente do ponto de não retorno. O Parlamento Europeu já estuda considerar a destruição da maior floresta tropical do mundo, praticada deliberada e sistematicamente por Bolsonaro, um crime contra a humanidade.
Neste 7 de Setembro, chegamos ao ponto no Brasil em que afirmar que o presidente é “apenas” incompetente significa ajudá-lo a se safar de ser responsabilizado por crimes contra a humanidade. Incompetência é terrível e traz graves consequências, mas não é crime. Os fatos mostram que Bolsonaro foi deliberadamente incompetente, intencionalmente negligente, sistematicamente irresponsável. Bolsonaro e seu Governo planejaram e agiram, como mostra o Diário Oficial da União, suas manifestações nas redes e os vídeos com suas declarações públicas.
A data mais simbólica do Brasil não pode passar como se fosse normal ter um genocida no poder. Se deixarmos o genocídio se normalizar, não haverá vida neste país nem mesmo para aqueles que, por sua posição na cadeia alimentar da desigualdade brasileira, acreditam sempre estar a salvo. Neste 7 de Setembro, há movimentos de resistência dos Brasis insurgentes se levantando contra a máquina de morte do bolsonarismo. Há gente com coragem de nomear o que está acontecendo no Brasil. Não sei se seremos muitos ou poucos. Provavelmente poucos, mas, como os mortos da covid-19, inumeráveis. Há momentos em que tudo o que podemos fazer é lutar, mesmo sabendo que vamos perder porque a maioria vai estar tocando a vida ― e seguirá tocando a vida enquanto considerar que é só a vida do outro que está em risco. Talvez a pergunta mais importante deste 7 de Setembro seja: como pode barrar seu próprio genocídio um povo que se acostumou a morrer?
Resistindo. Declarando sua independência, porque morte já há demais. No momento, quase 125 mil corpos. Rebelando-se. Não porque agora seja possível ganhar. Mas para não ser obrigado a baixar os olhos quando as crianças perguntarem no futuro próximo de que lado você estava e o que você fez para impedir Bolsonaro de seguir matando.
Eliane Brum é escritora, repórter e documentarista. Autora de Brasil, Construtor de Ruínas: um olhar sobre o país, de Lula a Bolsonaro (Arquipélago). Site: elianebrum.com Email: elianebrum.coluna@gmail.com Twitter, Instagram e Facebook: @brumelianebrum
Luiz Carlos Azedo: Bolsonaro recrudesceu
“O caso Fabrício Queiroz tira o presidente do sério, porque a história da rachadinha chegou ao Palácio da Alvorada. Não pode ser investigado, mas a primeira-dama pode”
No Dicionário Houaiss, o significado de recrudescer é “exacerbar-se”, “agravar-se”, se tornar mais intenso. A palavra ficou famosa durante o regime militar, quando o presidente João Batista Figueiredo, que era grosseiro pra caramba, brandiu o verbo. Outro dia, o cronista da Folha de S.Paulo Ruy Castro, grande biógrafo de Garrincha, Nelson Rodrigues e Carmem Miranda, além de historiador da bossa nova, na base da gozação, resgatou a frase enigmática do último presidente do regime militar: “Reagindo às tremendas pressões sobre ele, vindas tanto dos civis quanto da linha-dura militar, Figueiredo explodiu: ‘Olha que eu recrudesço!’. O país parou, expectante. Parecia uma ameaça — mas de quê, como e contra quem? No Pasquim, Jaguar botou seus dois calunguinhas para discutir. Um deles pergunta: ‘O que é ‘recrudesço’?’. E o outro: ‘Não sei. Mas tem cru no meio’”. Apesar da censura e das prisões, a turma do Pasquim não refrescava o general Figueiredo.
Pois bem, Bolsonaro recrudesceu nas grosserias. Irritado com um repórter do jornal O Globo, que havia lhe feito a pergunta que não quer calar nas redes sociais — “Presidente, por que a sua esposa recebeu R$ 89 mil do Fabricio Queiroz?” —, Bolsonaro partiu para a ignorância: “Vontade de encher sua boca de porrada”, respondeu. Estava em silêncio obsequioso desde quando o tempo fechou no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Congresso, contra sua escalada para intimidar os demais poderes. Na semana passada, porém, voltou a ficar à vontade, fortalecido pela bem-sucedida articulação de sua nova base na Câmara e por pesquisas de opinião que, depois de longo tempo, registram aprovação popular maior do que a desaprovação. O caso Queiroz, porém, é seu calo inflamado. O senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ), seu filho mais velho, está cada vez mais enrolado no escândalo das rachadinhas da Assembleia Legislativa e nas movimentações financeiras suspeitas de Queiroz, o amigo do presidente e seu ex-assessor parlamentar, que arrasta o clã para as relações perigosas com o submundo das milícias do Rio de Janeiro.
A ameaça de agressão ao jornalista virou meme nas redes sociais, com a pergunta sendo repetida não só por grande número de seus colegas, como também por formadores de opinião e influenciadores digitais. É óbvio que a base de Bolsonaro, que é truculenta e não suporta a mídia tradicional, vibrou com a resposta do presidente. Mas a sua repercussão política foi péssima, tanto no Congresso como internacionalmente. O presidente vinha cultivando a imagem “Jair paz e amor”, para alegria dos militares que formam seu estado-maior no Palácio do Planalto e dos líderes do Centrão, que dão sustentação ao governo. A declaração explosiva foi um banho de água fria nas expetativas de uma distensão com a mídia.
Rachadinha
O governador de São Paulo, João Doria, desafeto do presidente, ironizou: “Bolsonaro voltou a ser Bolsonaro”. O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz, também não deixou barato: “O presidente vinha muito bem nas últimas semanas. Com sua moderação estava contribuindo para a pacificação do debate público. Lamentável ver a volta do perfil autoritário que tanta apreensão causa nos democratas”, disparou no Twitter. O caso Queiroz tira Bolsonaro do sério porque a história da rachadinha chegou ao Palácio da Alvorada. Bolsonaro não pode ser investigado por fatos ocorridos antes do seu mandato, salvo se atuar para obstruir a Justiça, mas a primeira-dama pode. E seu filho mais velho, o senador Flávio, está cada vez mais enrolado na Justiça. O envolvimento de Michelle tira o sono de Bolsonaro, porque cada vez mais a história tece um enredo de não-conformidades na atuação parlamentar de todo o clã.
Se alguém pensava que o caso fosse parar por aí, ontem, Bolsonaro voltou a atacar os jornalistas: “Aquela história de atleta, né, que o pessoal da imprensa vai para o deboche, mas quando pega (covid-19) num bundão de vocês, a chance de sobreviver é bem menor”. Deu a declaração durante discurso no Palácio do Planalto, no evento batizado de “Brasil vencendo a covid-19”. Como assim? Estamos levando uma surra do vírus letal. O Brasil registrava 3,6 milhões de casos e 115 mil mortes, até ontem à tarde. Depois de desafiar a doença até contraí-la, Bolsonaro passou de vilão a vítima da pandemia, à qual sobreviveu, segundo diz, se tratando com cloroquina e outros medicamentos. Mas a pandemia não acabou, o trauma causado pela doença atinge um número cada vez maior de famílias. De certa forma, o silêncio e a doença descolaram Bolsonaro da pandemia, mas o desgaste de sua imagem por causa da peste também pode recrudescer.
Ribamar Oliveira: Remanejar verbas para garantir investimentos
Saúde e educação sofrerão cortes neste ano
O ministro da Economia, Paulo Guedes, encontrou uma forma de atender ao desejo das alas militar e política do governo por mais investimentos em infraestrutura neste ano, sem furar o teto de gastos. A equipe econômica está finalizando um projeto de lei, que deverá ser enviado ao Congresso Nacional nos próximos dias, remanejando verbas orçamentárias no valor de até R$ 5 bilhões. A estratégia é reduzir as dotações de alguns setores, que não ainda não foram empenhadas, como as da saúde e da educação, e aumentar os investimentos.
Tudo será feito, segundo fonte credenciada ouvida pelo Valor, respeitando os gastos mínimos previstos na emenda constitucional 95/2016 para a saúde e a educação. O projeto de lei (PLN) em elaboração será submetido ao Congresso, que dará a última palavra. Está descartada, portanto, a edição de medida provisória abrindo crédito extraordinário para fugir do teto de gastos, como inicialmente foi pensado pelo ministro chefe da Casa Civil, Braga Netto, e pelo ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho.
As Secretarias de Orçamento Federal e do Tesouro Nacional estão fazendo levantamentos para identificar as áreas do governo que estão com “excesso” de verbas e que podem ser remanejadas para outros ministérios, particularmente o da Infraestrutura e o do Desenvolvimento Regional. As alas militar e política querem concluir investimentos em rodovias e em obras de combate à seca no Nordeste. Apenas as dotações que ainda não foram empenhadas poderão ser remanejadas. Ou seja, só aquelas para as quais o governo ainda não autorizou o gasto, que é a primeira fase da execução orçamentária.
A área de educação deverá perder recursos, pois a dotação para este setor está bem acima do mínimo constitucional, como informou a fonte do governo. A área da saúde também está bem acima, pois o governo destinou uma grande quantidade de recursos para o setor no combate aos efeitos da pandemia da covid-19, por meio de créditos extraordinários.
Outros setores do governo também poderão perder recursos. Em defesa de sua estratégia, o governo alega que, se as verbas não forem remanejadas, haverá um “empoçamento”, ou seja, mesmo que o gasto seja autorizado, o Ministério ou órgão não conseguirá gastar os recursos neste ano e o dinheiro ficará no caixa, sem uso. Até junho, o “empoçamento” já atingia R$ 31,1 bilhões. Desse total, o Ministério da Cidadania tinha R$ 8,1 bilhões, o Ministério da Saúde, 6,1 bilhões e o Ministério da Educação, R$ 3,9 bilhões.
Com a estratégia, a equipe econômica espera diminuir as pressões de ministros e aliados políticos contra o teto de gastos. Mas, certamente, enfrentará resistências da oposição ao governo no Congresso, pois deputados e senadores terão dificuldade, especialmente em ano eleitoral, em cortar verbas para a saúde e a educação, mesmo que seja para aumentar investimentos em áreas estratégicas.
Agora, o problema da área econômica é encontrar espaço dentro do Orçamento de 2021 para os investimentos. A proposta orçamentária ficou muito difícil de fechar, pois o teto de gastos foi reajustado em apenas 2,13%. As despesas discricionárias (investimento e custeio da máquina administrativa, exceto gasto com pessoal) ficarão abaixo de R$ 100 bilhões, de acordo com fontes do governo, ante um valor de R$ 120 bilhões previsto para este ano.
O governo só conseguirá fechar a proposta sem cortar ainda mais os investimentos se o Congresso adiar a derrubada do veto do presidente Jair Bolsonaro à desoneração da folha de salários de 17 setores da economia e se conseguir adiar algumas despesas para 2022, como é o caso do Censo Demográfico, feito pelo IBGE, previsto para o próximo ano.
No caso do veto à desoneração, os aliados do governo estão tentando adiar a decisão do Congresso para setembro, após o envio da proposta orçamentária no dia 31 de agosto, pois, nesse caso, caberá aos parlamentares dizer onde cortarão outras despesas para compensar esse gasto. A desoneração representa uma despesa para o Tesouro, submetida ao teto. Ele é obrigado, por lei, a compensar a Previdência Social pela perda de receita com a desoneração.
Inadimplência histórica
Neste mês, poderá ocorrer uma das maiores inadimplências de tributos federais da história, pois as empresas terão que pagar duas parcelas do PIS/Cofins (referentes a março e julho) e duas parcelas da contribuição patronal de 20% sobre a folha de salários ao INSS (referentes a março e julho).
Como todos se recordam, uma das medidas de combate aos efeitos da recessão econômica provocada pela pandemia foi o adiamento do pagamento de alguns tributos, o que é conhecido na área técnica como diferimento. O PIS/Cofins referente a março, que seria pago em abril, foi adiado para agosto, o mesmo acontecendo com a contribuição patronal ao INSS devida em março.
A medida representou um alívio naquele momento para as empresas, mas agora chegou o momento de pagar a conta. O Valor perguntou à Receita Federal se não teme um elevado grau de inadimplência em agosto, devido ao fato de que as empresas ainda estão em fase de recuperação e muitas delas não terão condições de pagar duas parcelas das três contribuições no mesmo mês.
Por meio de sua assessoria de imprensa, a Receita disse que “diversos indicadores já apontam em direção a uma recuperação da economia”. Segundo ela, as vendas no Brasil no mês de junho mostraram o maior patamar do ano de 2020, pois tiveram um resultado 15,6% maior que o de maio deste ano e de 10,3% superior ao de junho de 2019. Além disso, observou, em junho, todas as regiões brasileiras mostraram recuperação no ritmo de vendas, tanto em valor como em quantidades de notas emitidas.
De qualquer forma, é uma aposta, cujo resultado saberemos mais adiante. O ideal talvez fosse encarar o problema e propor o pagamento parcelado dos atrasados.