saúde
Bruno Boghossian: Decreto mostra que Bolsonaro prefere assinar primeiro e perguntar depois
Presidente parece não conhecer planos de subordinados ou não tem coragem de bancá-los
Em outubro do ano passado, Jair Bolsonaro editou um decreto que abria caminho para vender a operação da Casa da Moeda. A empresa era uma das prioridades na lista de privatizações do governo, mas o plano não saiu do papel. Depois de assinar a medida, o próprio presidente reclamou da proposta.
“Queriam privatizar a Casa da Moeda. Aí, o pessoal fala, eu interferi”, disse Bolsonaro, há poucas semanas. “Eu achei que não era o caso, tendo em vista informações que eu tive de outros países que privatizaram e depois voltaram atrás.”
Bolsonaro pode até dizer que considera a venda da estatal uma má ideia. Mas ele também poderia explicar por que saíram do gabinete presidencial dois documentos que abriam caminho para a privatização: aquele texto de outubro e uma medida provisória que quebrava o monopólio da empresa, no mês seguinte.
A desordem se repetiu agora, com o decreto do governo que incluiu as unidades básicas de saúde num programa de parcerias com a iniciativa privada. O documento assinado pelo presidente foi publicado na última terça (27) e revogado um dia depois.
Dessa vez, Bolsonaro não criticou a própria decisão. Ele afirmou que aquele não seria um movimento de privatização do SUS e que o objetivo era concluir obras e permitir que os cidadãos fossem atendidos na rede privada. Mas resolveu revogar a medida e prometeu reeditar o decreto “em havendo entendimento futuro dos benefícios propostos”.
O presidente mostrou mais uma vez que prefere assinar primeiro e perguntar depois. Em vez de discutir os tais “benefícios propostos” com gestores do Sistema Único de Saúde, o governo se apressou. Caso ninguém tivesse percebido, o decreto teria continuado de pé.
A equipe econômica entregaria até as emas do Palácio da Alvorada à iniciativa privada, se pudesse. O presidente endossou essa agenda na campanha, mas parece não conhecer os planos de seus subordinados ou não tem coragem de bancá-los. Bolsonaro governa por acidente.
Sergio Fausto: O delírio contra a ‘vacina chinesa’
Sem imunização em massa corremos o risco de o novo coronavírus persistir entre nós
O maior risco na política é o delírio. Quando fomentado por um líder, pode arrastar grande contingente de pessoas a adotar comportamentos destrutivos para si e/ou para os outros. Quando mobiliza o poder do Estado, as consequências podem ser catastróficas.
Na semana que passou tivemos um pequeno exemplo dos graves problemas que o delírio pode provocar quando passa a condicionar decisões de política pública. Não merece outro nome a recusa presidencial de adquirir a vacina contra a covid-19 ora em produção na China, em fase final de testes para comprovar a sua eficácia.
Por trás da recusa está uma teoria conspiratória com duas versões: a mais amalucada sustenta que a vacina altera o material genético das pessoas e pode servir de veículo para a inoculação de chips capazes de controlar o pensamento dos indivíduos vacinados; a menos endoidecida, mas ainda assim disparatada, vê na vacina produzida pela Sinovac, em parceria com cientistas e governos de distintos países do mundo, um instrumento a serviço da projeção global do poder da China. Num caso ou no outro, é incitada a fantasia paranoica de que nos estaríamos submetendo ao comando do Partido Comunista daquele país.
A versão tosca do delírio é disseminada nas mídias sociais pela rede de apoiadores do presidente Bolsonaro. A versão supostamente sofisticada da maluquice é articulada pelo chanceler Ernesto Araújo, o mesmo que enxerga em Donald Trump a salvação da cultura judaico-cristã e na China, o motor do globalismo e do marxismo cultural.
Não é preciso gastar muita tinta para demonstrar a insânia da referida teoria conspiratória, tampouco para mostrar as consequências desastrosas da eventual recusa, se definitiva, de se adquirir uma vacina, venha ela de onde vier, desde que comprovadas sua segurança e sua eficácia, em meio à maior pandemia dos últimos cem anos. A rigor, as consequências, neste caso, vêm antes do fato, uma vez que as declarações presidenciais atiçam o irracionalismo antivacina que ganha fôlego no Brasil e no mundo.
Basta observar a queda na cobertura vacinal da população brasileira nos anos mais recentes para se dar conta da tempestade que pode estar se formando. Sem imunização em massa, corremos o risco de que o novo coronavírus persista entre nós, junto com o ressurgimento de doenças já erradicadas, das quais o sarampo é apenas um exemplo. Vale a analogia com o que vem acontecendo no meio ambiente, visto que os sinais emitidos pelo candidato e pelo presidente Bolsonaro tiveram inegável papel no aumento dos incêndios na Amazônia e no Pantanal.
Diante desse quadro me pergunto o que significa a “normalização” do governo Bolsonaro. Outro exemplo: seria “normal” a aliança que selamos, sob a liderança dos Estados Unidos, com outros 30 países que não apenas criminalizam o aborto, como também as relações homoafetivas?
A cegueira ideológica, beirando o fanatismo, é um grande mal, em particular quando passa a condicionar decisões sobre questões essenciais à vida, como são a proteção contra doenças contagiosas e o controle sobre a mudança climática.
Não fosse trágica, a cegueira ideológica do governo nessas matérias seria patética. Mimetizam-se, como bichinho amestrado, as ações e os gestos da política externa de Trump. Nem sempre o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil, muito menos quando o governo americano se move exclusivamente em função de seus interesses unilaterais de curto prazo. Menos ainda quando se está em meio a uma eleição que, tudo leva a crer, provocará importante mudança política naquele país.
Países não têm amigos, têm interesses, disse originalmente lorde Palmerston, ministro da Guerra do Reino Unido no início do século 19. Certo, mas os países têm interesse em cooperar entre si quando se veem diante de desafios que não podem resolver sozinhos. Em nenhuma época da História houve competição tão acirrada quanto na guerra fria, entre Estados Unidos e União Soviética. Confrontavam-se duas ideologias distintas que buscavam arregimentar os demais países em blocos antagônicos. Ainda assim, americanos e soviéticos cooperaram em questões vitais.
Na área nuclear, a construção de acordos e mecanismos formais e informais de consulta e verificação impediram que a guerra fria evoluísse para uma guerra quente de consequências devastadoras. Em momentos decisivos, como na crise dos mísseis, em outubro de 1962, a racionalidade pragmática prevaleceu na Casa Branca e no Kremlin e o mundo se salvou da mútua destruição nuclear entre as duas grandes potências.
Menos conhecida é a cooperação entre Estados Unidos e Rússia na erradicação da varíola, doença que na década de 1960 ainda matava cerca de 2 milhões de pessoas nos países do então chamado Terceiro Mundo. Os soviéticos contribuíram com centenas de milhões de doses da vacina, os americanos com outras tantas e com a logística de distribuição.
Não se tem notícia de que o comunismo se tenha espalhado nos países que receberam as vacinas soviéticas. Em tempos de delírio, cabe esclarecer: isso é uma ironia.
*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP
Ricardo Noblat: Bolsonaro, um presidente acidental, outra vez dá meia volta volver
Marcha soldado, cabeça de papel
Bolsonaro nada aprendeu em 30 anos de vida pública. Em compensação, nada esqueceu. De duas, uma. A inclusão das unidades básicas de saúde num programa de parcerias com a iniciativa privada era uma boa ideia, e por isso ele assinou o decreto publicado, anteontem, no Diário Oficial. Ou então era uma má ideia, e por isso ele revogou o decreto 24 horas depois.
Algo semelhante aconteceu na semana passada quando Bolsonaro disse que a vacina chinesa contra a Covid-19 jamais seria comprada. Foi uma humilhação para o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, especialista em logística, que anunciara a compra da vacina. Mas, em seguida, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária desautorizou Bolsonaro, e ele calou-se.
O ator Ronald Reagan foi um dos presidentes mais aclamados da história dos Estados Unidos. Detestava pegar no pesado. Não gostava de governar. Entendia de poucas coisas. Soube cercar-se, porém, de auxiliares competentes. Bolsonaro é quase tão ignorante quanto Reagan. Pegar no pesado não é com ele. Gosta do poder, de governar, não. Cercou-se de auxiliares incompetentes.
Onde já se viu assinar um decreto de tal importância, que necessariamente alcançaria larga repercussão como era fácil de prever, sem antes discuti-lo com os mais diretamente interessados e também com representantes do distinto público? Por unanimidade, os secretários estaduais de Saúde rechaçaram o decreto. O distinto público matou-o a pau sem dó nem piedade.
O movimento nas mídias sociais em defesa do Sistema Único de Saúde registrou a maior repercussão negativa via Twitter de uma medida do governo Bolsonaro desde janeiro de 2019. Dados levantados pela consultoria Arquimedes registram que 98,5% das menções feitas sobre o tema foram desfavoráveis ao decreto. A consultoria analisou mais de 150 mil referências.
Se não liga para o que lhe diz o ministro da Saúde, Bolsonaro liga em demasia para o que lê nas redes. Ali, estava acostumado a ver suas decisões aprovadas sem grandes discussões. De uns tempos para cá, parte delas passou a ser rejeitada. Foi o caso da demissão de Sérgio Moro, do seu comportamento na batalha contra o coronavírus e da aliança com o malsinado Centrão.
O mais bizarro: ao anunciar a revogação do polêmico decreto, Bolsonaro afirmou que ele era muito bom, sim senhor, e que poderá mais tarde ser reeditado. É mais fácil concluir que ele simplesmente não sabe direito por que assina certas coisas. Só sabe por que recua depois – mas isso não conta. Recua com medo de não se reeleger. É só o que lhe importa e orienta.
Luiz Carlos Azedo: Ideia de jerico
Faltou um memento mori, por exemplo, na hora em que Bolsonaro assinou o decreto autorizando estudos para privatização das unidades básicas de atendimento do SUS
Tem razão o general da reserva Rêgo Barros, ex-porta-voz da Presidência: falta alguém ao lado do presidente Jair Bolsonaro para dizer-lhe no ouvido: “Memento Mori!” — lembra-te que és mortal! A sentença latina intitula o artigo publicado, na terça-feira, pelo Correio Braziliense, com a assinatura do militar. É a mais dura crítica feita ao ex-capitão por um dos generais que apoiaram sua eleição e agora se arrependem. “Os líderes atuais, após alcançarem suas vitórias nos coliseus eleitorais, são tragados pelos comentários babosos dos que o cercam ou pelas demonstrações alucinadas de seguidores de ocasião. É doloroso perceber que os projetos apresentados nas campanhas eleitorais, com vistas a convencer-nos a depositar nosso voto nas urnas eletrônicas, são meras peças publicitárias, talhadas para aquele momento. Valem tanto quanto uma nota de sete reais.”
Rêgo Barros não cita Bolsonaro, mas é a ele que se refere quando alerta que os demais Poderes da República “precisarão, então, blindar-se contra os atos indecorosos, desalinhados dos interesses da sociedade, que advirão como decisões do ‘imperador imortal’. Deverão ser firmes, não recuar diante de pressões. A imprensa, sempre ela, deverá fortalecer-se na ética para o cumprimento de seu papel de informar, esclarecendo à população os pontos de fragilidade e os de potencialidade nos atos do César”. Rêgo Barros foi defenestrado do cargo depois de uma longa queda de braço com o vereador carioca Carlos Bolsonaro, filho do presidente da República, que dá as cartas na Comunicação Social do Palácio do Planalto.
Seu artigo reflete o pensamento de uma parcela dos altos oficiais das Forças Armadas, principalmente depois da humilhação a que foi submetido o general Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, desautorizado por Bolsonaro e, depois, constrangido a dar uma declaração, ao lado do chefe, dizendo que Bolsonaro manda e ele obedece. Na semana passada, no Dia do Aviador, durante a solenidade de entrega dos novos caças F-39E Gripen da Aeronáutica, era visível o constrangimento dos generais presentes, inclusive do comandante do Exército, general Edson Leal Pujol, para quem o cerimonial da Presidência reservou a cadeira mais distante do presidente da República, entre todas as autoridades presentes.
Entretanto, nada disso muda o fato de que Bolsonaro manda e os militares, de fato, obedecem, por dever constitucional. São poucos os militares que se manifestam contra Bolsonaro, a maioria apoia o governo incondicionalmente. Além de abrigar muitos oficiais no governo — estima-se que sejam em torno de sete mil, inclusive, alguns generais da ativa —, Bolsonaro poupou os militares na reforma da Previdência, mantendo o salário integral dos oficiais ao se aposentar, sem idade mínima obrigatória, e a contribuição máxima de 10,5% ao INSS, contra o teto de 11,68% na iniciativa privada.
Atendimento em massa
A propósito, faltou um memento mori, por exemplo, na hora em que Bolsonaro assinou o decreto autorizando a realização de estudos para privatização das unidades básicas do Sistema Único de Saúde (SUS), a cargo dos municípios, para espanto dos sanitaristas, dos prefeitos e da população que utiliza os serviços públicos, a maioria por não ter plano de saúde. A reação foi tão negativa nas redes sociais que Bolsonaro teve de cancelar o decreto, que incluía o sistema de atendimento básico — considerado um dos melhores do mundo — no programa de privatizações e parcerias público-privadas do Ministério da Economia. Como filho feio que não tem pai, ninguém assume a ideia de jerico. O governo divulgou a versão de que a proposta era do Ministério da Saúde. E que seria uma solução para conclusão de 4 mil UBS inacabadas, que já consumiram R$ 1,7 bilhão de recursos do SUS, obras de responsabilidade do governo federal.
Bolsonaro não levou em conta que o SUS atende 190 milhões de brasileiros, contra 46 milhões dos planos de saúde. Antes de sua criação, eram apenas 30 milhões. Produz 7,8 bilhões de medicamentos, sendo 163 milhões de antiretrovirais. Realiza 2 milhões de partos por ano, tem mais de 30 mil equipes de saúde da família e 248 mil agentes comunitários de saúde em 5.393 municípios. Graças a essa estrutura, com todas as suas deficiências, a tragédia da pandemia do novo coronavírus, que já matou 157,8 mil brasileiros, não é maior. Dos 5,4 milhões de infectados — Bolsonaro disputa com o atual presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, para ver quem lidera o país com maior número de casos —, 4,9 milhões recuperaram-se e 375,2 mil estão em recuperação. A esmagadora maioria utiliza os serviços do SUS.
Hélio Schwartsman: E quando a ordem é absurda?
Civis ou militares, estamos todos obrigados a avaliar a moralidade de nossas ações
Em junho, o presidente Jair Bolsonaro proclamou que as Forças Armadas não cumprem ordens absurdas. Penso que ele tem razão. O direito internacional também. Pelo menos desde os Julgamentos de Nuremberg, ficou estabelecido que a obediência a ordens de superiores não isenta o agente de responsabilidade penal por suas ações.
Assim, se o tenente manda e o soldado atira na nuca do suspeito rendido, ambos cometem homicídio qualificado. Se o presidente manda e o ministro some com a papelada incriminadora, os dois infringem a lei. Estar abaixo na hierarquia pode no máximo ser considerado circunstância atenuante.
Não há escapatória, civis ou militares, estamos todos obrigados a avaliar o tempo todo a moralidade de nossas ações.
Diante disso, o general Eduardo "um Manda e o Outro Obedece" Pazuello, ministro da Saúde, pode ficar em maus lençóis. O militar, ainda nos quadros da ativa do Exército, acatou determinação do presidente de encerrar colaboração com o Instituto Butantan para a aquisição de uma vacina chinesa contra a Covid, a Coronavac. Foi uma ordem absurda?
A questão é traiçoeira. Não penso que governos precisem fazer compras antecipadas de um imunizante que ninguém sabe se vai funcionar. O terreno é suficientemente incerto para não gerar obrigações. Mas é importante atentar para o fato de que a administração Bolsonaro já firmara um acordo desses para obter a vacina da Universidade de Oxford.
O presidente até pode sustentar que o acerto deve valer num caso e não no outro, mas precisaria oferecer uma justificativa racional para isso. Sem essa justificativa, que não apareceu, a ordem se torna de fato absurda, o que daria a Pazuello, seja como ministro, seja como militar, o direito de desobedecê-la.
Ordens absurdas até podem ser executadas, mas só se forem inócuas o suficiente para não causar danos. Caso contrário, o executor se torna coautor.
Marco Aurélio Nogueira: Ainda o futuro
Difícil voltar ao que havia antes. Mas não sabemos bem o que virá nem o que queremos
A notícia de que uma segunda onda de disseminação do coronavírus atingiu diversos países europeus dramatizou a questão que nos perturba desde o início do ano: que futuro teremos? Em que medida ele será afetado pelas medidas que acompanharam a marcha da covid-19 pelo mundo? Quando virão as vacinas e que efeitos terão?
No Brasil, em particular, tudo ganha maior proporção, dado o caráter atrabiliário e anticientífico do presidente da República. Seus esgares ideológicos sugerem uma preferência explícita pela morte e pelo descaso, menosprezam vacinas e põem planos eleitorais à frente de providências médicas e sanitárias. Colidem com o bom senso e a responsabilidade. Embaçam ainda mais o futuro.
Não restam dúvidas de que a vida já sofre mudanças importantes. Estamos sendo obrigados a alterar hábitos e comportamentos às pressas, sem o devido processamento mental, prático e organizacional. Em dez meses vivemos como se houvessem transcorrido vários anos. Pulamos do mundo físico, material, analógico para o mundo digital. A casa passou a ser refúgio valorizado e os filhos, acompanhados mais de perto. O delivery aumentou e novas atividades produtivas brotaram. A mal chamada “uberização” invadiu setores bem estruturados.
Ingressamos com vigor no teletrabalho. A flexibilidade de horários articula-se com maiores doses de informalidade. Novos padrões infiltraram-se inapelavelmente na vida cotidiana, com vantagens e desvantagens: menos movimentação e deslocamentos, mas mais percepção de que se trabalha 24 horas por dia, de que ficamos mais dependentes de celulares e computadores, mais estressados e angustiados. A torrente de informações que desaba sobre nós provoca pasmo e confusão. A informalização crescente desprotege, causa insegurança e medo.
Tudo, porém, é seletivo e tem um claro corte de classe: as maiorias sofrem para se adaptar, ficam desempregadas com facilidade e sentem na pele a corrosão da renda. Cada passo no processo de digitalização produz uma modificação no plano do trabalho. Há mais produtividade e a mão de obra passa a ser substituída com rapidez. Máquinas de inteligência artificial deslocam os humanos, competem com eles, terminam por vencê-los. A obsolescência surge em cada curva da estrada. A exigência de qualificação torna-se a porta de entrada do mundo do emprego, que, no Brasil, paga alto preço pela baixa qualidade do sistema educacional. A nova economia pede a incorporação de recursos técnicos e intelectuais de novo tipo, cria exigências atitudinais e de formação continuada. A maioria da população está longe disso. Tudo é arrastado pela voracidade do mercado. A “desregulamentação” é do tipo arrasa-quarteirão: desmonta o que existia e de algum modo protegia.
Difícil imaginar que possamos voltar ao que havia antes. Estamos amarrados a um presente que se modifica incessantemente sem que consigamos atravessar a névoa que embaça o futuro.
Não se trata de uma “nova normalidade”. Mudanças socioculturais transcorrem quase sempre em silêncio, de modo molecular, e nos espasmos de seus fluxos vão se impondo aos indivíduos, convencendo-os de que é preciso adotar novos hábitos e valores. Mesmo quando há uma metamorfose social não há modificações repentinas. Não serão os condicionantes da covid, nem o modo como a pandemia está sendo administrada, que farão a vida ser virada de ponta-cabeça num átimo. Os efeitos dos vigorosos processos em curso amadurecerão aos poucos, em decantação. Com mais sofrimento que prazer.
Porque a política está congelada no tempo. Os partidos continuam aprisionados à mesmice. No Brasil, são desafiados pelos movimentos de renovação política, que fazem intenso trabalho pedagógico. Há protestos variados pelo mundo, mais lutas contra o racismo, a discriminação, a violência policial. A agenda eleitoral permanece ativa, a defesa da democracia agrega vozes, formando uma retórica de indignação que poucos resultados produz. Os governos continuam inoperantes, líderes “populistas” seguem se multiplicando, sem que a política consiga confrontá-los. A situação é terrível para os partidos mais à esquerda, que sofrem por estar numa posição antissistêmica sem terem uma ideia clara de sistema alternativo e sem terem, também, sustentação social consistente, o que decorre da desconstrução a que está submetida a estrutura de classes.
Ainda não se pôs em movimento uma política dedicada a pensar o futuro. Sem ela ficamos às cegas, agarrados às nossas fantasias, aos nossos fantasmas, às narrativas impulsionadas pelas redes.
Não sabemos bem o que virá pela frente, nem o que queremos. Talvez consigamos deslindar o que não desejamos: o autoritarismo, as discriminações, o racismo, a violência, a insegurança. Mas a forma do futuro permanece imprecisa, uma esfinge perturbadora. E assim permanecerá enquanto não surgir uma proposição política democrática que organize o presente e elabore uma carta de navegação que nos una e nos leve ao futuro.
*Professor titular de teoria política da UNESP
Luiz Carlos Azedo: A teoria do dano e a vacina
Bolsonaro não leva em conta que uma pessoa infectada, por se recusar a tomar a vacina, pode contaminar as outras, com consequências trágicas e irreparáveis
A ideia de que um presidente eleito por maioria pode tudo é profundamente autoritária e colide com os fundamentos do liberalismo moderno, apesar de agora ter virado moda em algumas democracias do Ocidente, inclusive a nossa. O filósofo e economista John Stuart Mill, um liberal utilitarista britânico que se inspirou nas ideias dos iluministas franceses, em meados do século XIX já classificava essa visão como uma “tirania da maioria”, expressão que causa certo espanto, porque muitos acham que maioria e democracia são exatamente a mesma coisa. Não são.
Sobre a Liberdade (Saraiva), um clássico da ciência política, é um libelo de Mill em defesa da liberdade de expressão e da autonomia dos cidadãos. Nascido em Londres, em 1806, destacou-se também pela defesa do civismo público e dos direitos das mulheres. Era um liberal progressista. Acabou preso por defender o direito ao aborto, a reforma agrária e a democratização da propriedade por meio de cooperativas, ideias social-liberais. Tentou definir um modelo para regular as ações entre os cidadãos, a sociedade e o Estado, que deveria ser capaz de preservar a autonomia individual e, ao mesmo tempo, evitar a “tirania da maioria”, a partir de um conceito simples: tudo é permitido ao indivíduo, desde que as suas ações não causem danos a terceiros.
Mill defendia a legitimidade da mobilização da opinião pública para convencer as pessoas a não tomarem certas atitudes, mas condenava a repressão direta a ações individuais que afetam apenas a própria vida. É possível desenhar a sua “teoria do dano”: todas as pessoas podem desenvolver de maneira autônoma o seu projeto de vida; a sociedade deve proteger a liberdade de indivíduos se desenvolverem de modo autônomo e, em troca, os seus membros não devem interferir nos direitos legais alheios; os danos eventualmente causados por um indivíduo a outras pessoas têm como consequência uma punição proporcional. Mill morreu em 1873, mas suas ideias sobre a liberdade individual continuam atuais.
Rebanho
No Brasil, a “teoria do dano” foi introduzida na nossa jurisprudência no Código Civil de 1916, que estabeleceu um nexo causal entre o dano e o fato que o produziu, e foi consagrada no artigo 403 do Código Civil de 2002. Segundo a teoria do dano direto e imediato, o Estado pode ser processado pelos prejuízos causados aos cidadãos. Por ironia, em tempos de pandemia e de “imunização de rebanho”, ou seja, da necessidade de vacinação em massa para combater o novo coronavírus, um caso analisado pelo jurista Robert Joseph Pothier, um dos autores do Código Civil francês de 1808, é estudado ainda hoje nas escolas de direito: a aquisição de uma vaca pestilenta, que contamina os bois do comprador, impedindo-o de cultivar suas terras. Ciente do vício oculto, o vendedor responde pelo perecimento da vaca como também pela morte do restante do rebanho do comprador.
No caso da vacina contra o coronavírus, que na sua opinião não deve ser obrigatória, o presidente Jair Bolsonaro não leva em conta o dano que pode ser causado voluntariamente por uma pessoa infectada, ao contaminar as outras, por se recusar a tomar a vacina. O governo também pode ser responsabilizado por não utilizar uma vacina disponível. Apesar disso, cancelou o acordo feito entre o Ministério da Saúde e o Instituto Butantã, do governo de São Paulo, para a compra de 46 milhões de doses da vacina da Sinovac, que serão produzidas por aquela consagrada instituição científica, em parceria com o laboratório chinês, com previsão para estar pronta para imunização já em dezembro.
Anulou o protocolo assinado pelo ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, com todos os governadores, para aquisição e aplicação da vacina, com o argumento absurdo de que o “povo brasileiro não será cobaia” da “vacina chinesa do João Doria”, o governador tucano de São Paulo. Alguém precisa avisar ao presidente que isso pode gerar uma enxurrada de pedidos de indenização por “dano direto e imediato” e caracterizar um “crime de responsabilidade”.
Luiz Carlos Azedo: Dinheiro na cueca pode?
A verdade pode ser distorcida para obter vantagem política, aproveitar o momento mais conveniente, obter a resposta desejada, favorecer pessoas, priorizar fatos e reescrever a História
Coluna boi com abóbora, como diria meu querido Noca da Portela, rende polêmicas inesperadas. Foi o que aconteceu na sexta-feira, comigo, por causa da grana na cueca do senador Chico Rodrigues (DEM-RR), flagrado pela Polícia Federal, supostamente, tentando ocultar provas e obstruir a ação da Justiça durante uma operação de busca e apreensão em sua residência, em Boa Vista. Vice-líder do governo Bolsonaro no Senado, a notícia se espalhou pelo mundo e virou meme nas redes sociais, porque o parlamentar governista tentara esconder R$ 33,1 mil no calção do pijama, uma parte nas nádegas, dentro da cueca. Havia pedido para ir ao banheiro, e o delegado desconfiou do grande volume dentro do pijama. A versão vazada era de que o senador se borrou todo, nervoso, quando sofreu a revista íntima.
Diz um velho jargão das redações: um homem ser mordido por um cachorro não é notícia (não é bem assim), ela só existe quando o homem morde o cachorro, fato que nunca vi registrado nos jornais. Já vi atirar ou espancar um animal. Era óbvio que a história do senador Chico Rodrigues seria o assunto político do dia, a ponto de ofuscar o julgamento no Supremo Tribunal Federal (STF) do polêmico habeas corpus do traficante André de Oliveira Macedo, o André do Rap, que havia sido concedido pelo ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal (STF), e fora suspenso pelo presidente daquela Corte, ministro Luiz Fux. Como vinha acompanhando o julgamento, tive de tratar dos dois assuntos na mesma coluna, intitulada “O traficante e o senador”.
O julgamento do caso de André do Rap terminou 9 a 1, a favor da excepcionalidade da suspensão do habeas corpus, mas gerou muita discussão entre os ministros sobre: a) o poder de Fux no comando do tribunal para sustar liminares dos pares, contestado pela maioria; b) as fragilidades do sistema de distribuição de processos (o advogado entrou com nove habeas corpus sucessivos e os retirava sempre que julgava que o ministro escolhido não o concederia, até ser distribuído para Marco Aurélio, que já havia concedido mais de 70 liminares com a mesma interpretação literal da lei); c) a sucessão de omissões da Justiça, do Ministério Público e das autoridades policiais quanto ao caso de André do Rap; e d) a libertação automática dos presos preventivamente, caso o juiz não faça a revisão a cada 90 dias, que, no entendimento da maioria, com exceção de Marco Aurélio, não deve ocorrer mais.
Toda a confusão deu-se por causa da exegese do artigo 316 do Código de Processo Penal, que diz, em seu parágrafo único: “Decretada a prisão preventiva, deverá o órgão emissor da decisão revisar a necessidade de sua manutenção a cada 90 (noventa) dias, mediante decisão fundamentada, de ofício, sob pena de tornar a prisão ilegal”. Marco Aurélio Mello interpretava ao pé da letra o citado artigo e mandava soltar todos os presos nessa situação, cujos casos fossem parar em suas mãos, inclusive, André do Rap, segundo o princípio do direito germânico-romano, predominante na legislação brasileira, de que a lei precede o fato, não importa o “paciente” nem as consequências. É o que os advogados chamam de “bom direito”.
Ombudsman
Voltemos ao dinheiro na cueca, que entrou para o nosso folclore político mais escatológico. Ao ler a coluna de sexta-feira, um querido amigo, em mensagem pela mesma rede social pela qual havia lhe enviado a coluna, indagou: “Mas o crime é carregar dinheiro na cueca?”. Dei-me conta de que estava diante de um questionamento ético, uma discussão muito séria. Tentei explicar: ocultação de prova e obstrução da justiça. E arrematei: vai acabar cassado e preso, por causa do desvio do dinheiro das emendas. Aí veio o questionamento definitivo: “Aí, sim. Mas levar dinheiro na cueca, eu fiz muitas vezes, quando viajava sem cartão de crédito. Mas a manchete tem sido: ‘Dinheiro na cueca’. Pois é. Não é crime. É bullying! ”
Meu ombudsman acidental tem razão. Não é crime mesmo, quem já não viajou com dinheiro e documentos numa pochete sob as vestes para evitar furtos? Eis a questão, estamos diante de uma situação em que a notícia não é o crime, a investigação ainda tem de provar a origem ilícita do dinheiro. Penso que isso acabará acontecendo, mas, quem acha vive se perdendo, advertia Noel Rosa. O parlamentar já foi lançado ao mar pelo presidente Jair Bolsonaro, de quem era próximo, e não será surpresa se seu mandato for cassado por seus pares no Senado, como já aconteceu outras vezes, porque a situação é muito desmoralizante para a vetusta instituição. Tanto que o ministro Luís Roberto Barroso, sem pestanejar, afastou-o do mandato por 90 dias, decisão monocrática que causou mal-estar entre os políticos. A cúpula do Congresso tem ojeriza a isso, porém, não reage, para não afrontar a opinião pública.
Os fatos ocorrem e são registrados como História, os meios de comunicação têm um papel fundamental nisso. Entretanto, como já advertiu Hanna Arendt, a verdade desses eventos pode ser distorcida para justificar uma ação política particular, garantir a revelação dos fatos num momento mais conveniente, assegurar a resposta desejada em determinados momentos e reescrever a história para favorecer certas pessoas ou priorizar certos fatos. A ação policial na casa do senador Chico Rodrigues foi documentada e está anexada aos autos do processo, mas os vídeos da revista íntima foram mantidos em sigilo de Justiça, trancados num cofre, por determinação do ministro Barroso. A divulgação de que o senador estava com dinheiro nas nádegas, o que, por si, não é crime, como já foi dito, fez da operação de busca e apreensão um fenômeno midiático mundial. Entretanto, se não for comprovada a origem ilícita do dinheiro, nada poderá ser feito contra ele, além de exigir o pagamento do Imposto de Renda. Quem se desgasta com a tese de que a polícia prende e a justiça solta, como no caso de André do Rap? O Supremo.
Luiz Carlos Azedo: O traficante e o senador
O julgamento do habeas corpus de André do Rap foi o assunto político da semana, mas acabou ofuscado pelo flagrante no senador Chico Rodrigues (DEM-RR), com R$ 37 mil na cueca
O Supremo Tribunal Federal(STF), por 9 a 1, confirmou a decisão do presidente da Corte, ministro Luiz Fux, que cassou a liminar que soltou o traficante André de Oliveira Macedo, o André do Rap, da lavra do ministro Marco Aurélio Mello. Um dos chefões do Primeiro Comando da Capital (PCC), o traficante fugiu para o exterior. A decisão era pedra cantada, assim como o bate-boca no final do julgamento entre os dois ministros. Novo decano, Marco Aurélio sustentou sua posição, embora tenha negado um habeas corpus de um comparsa do fugitivo, cujo advogado alegou as mesmas razões acolhidas no caso de André do Rap, para pedir sua libertação.
Apesar do resultado dilatado, a sessão de ontem foi tensa. Todos ressaltaram a necessidade de o presidente da Corte respeitar as liminares dos ministros, e trataram o caso de André do Rap como excepcionalidade. O ministro Ricardo Lewandowski chegou a criticar Fux por ter sustado uma de suas liminares, durante um plantão, quando era vice-presidente do Supremo. Houve críticas dos ministros à proposta de mudanças no sistema de distribuição de processos por ato administrativo feita por Fux.
O ministro Gilmar Mendes destacou as falhas no caso de André do Rap, uma vez que a liminar concedida por Marco Aurélio foi dada após o advogado do traficante ter peticionado pela segunda vez; antes, havia retirado outro pedido de habeas corpus, que fora distribuído para a ministra Rosa Weber. Também criticou a omissão do juiz de primeira instância, que deveria ter se pronunciado no prazo de 90 dias, e o Ministério Público Federal (MPF), que somente recorreu da decisão no sábado passado, o que também facilitou a fuga do traficante, que não foi devidamente monitorado pela polícia.
O julgamento do habeas corpus de André do Rap foi o assunto político da semana, mas acabou ofuscado pela operação de busca e apreensão da Polícia Federal que flagrou o senador Chico Rodrigues (DEM-RR), vice-líder do governo no Senado, tentando esconder R$ 37 mil dentro da cueca. O delegado que comandava a operação desconfiou do volume do calção do pijama que o senador usava em sua casa e resolveu fazer uma revista íntima no parlamentar. O vexame foi notícia no mundo inteiro e virou meme nas redes sociais. O ministro Luís Roberto Barroso, que determinou a operação, depois do flagrante, decidiu afastar Chico Rodrigues do mandato por 90 dias, mas não concedeu o pedido de prisão feito pela Polícia Federal. Os vídeos que registram o momento do flagrante não foram divulgados e estão trancados num cofre da PF.
Dinheiro da Saúde
Com lugar agora garantido no folclore político da pior maneira possível, Chico Rodrigues criou grande constrangimento para o presidente Jair Bolsonaro, de quem era amigo desde os tempos em que ambos foram deputados na Câmara. Por recomendação do Palácio do Planalto, o líder do governo no Senado, Fernando Bezerra, aconselhou o parlamentar a renunciar ao cargo de vice-líder do governo, o que foi feito ontem mesmo. O senador está sendo pressionado pela cúpula do DEM, inclusive o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (AP), a renunciar ao mandato, mas resiste. Não quer perder a imunidade parlamentar, com medo de ser preso imediatamente.
GuesChico Rodrigues, segundo as investigações, articulou a remessa de recursos federais destinados ao combate à covid-19 em Roraima, sob condição de que fosse contratada a empresa Quantum Empreendimento em Saúde, controlada por Jean Frank Padilha Lobato, apontado como seu operador. Segundo relatórios da CGU, a empresa assinou um contrato de R$ 3,2 milhões com o governo de Roraima, para fornecimento de kits de testes de covid-19, com superfaturamentos da ordem de R$ 956,8 mil. O senador chegou a solicitar um avião da FAB para transportar materiais da Quantum, o que está sendo investigado, pois o ônus do transporte deveria caber à empresa e não ao Ministério da Defesa.
Com acesso direto ao presidente Jair Bolsonaro, Chico Rodrigues era muito influente, com vários apadrinhados indicados para órgãos federais em Roraima. Integraria um esquema que desviou mais de R$ 20 milhões em emendas parlamentares, que seriam destinadas ao combate da covid-19 no estado. Roraima já recebeu, em 2020, cerca de R$ 171 milhões repassados pelo Fundo Nacional de Saúde (FNS). Desse valor, R$ 55 milhões eram especificamente para combate à covid-19.
Luiz Carlos Azedo: Não existe vírus grátis
A fatura chegou primeiro para os desempregados e trabalhadores “por conta própria”, que dependem do auxílio emergencial do governo; mas virá para todos, à prestação
Desculpe-me o trocadilho, mas tem tudo a ver com a velha frase dos bares norte-americanos que nas décadas de 1930 e 1940 ofereciam a refeição para quem pagasse a bebida. Ficou mundialmente famosa porque intitulou um dos livros do economista liberal Milton Friedman, guru do ministro da Economia, Paulo Guedes. A lembrança não tem nenhuma relação direta com suas frases de efeito, até porque, ele tem evitado declarações polêmicas, mas, com o artigo publicado, ontem, pela economista Mônica de Bolle no jornal O Estado de S. Paulo, a propósito dos custos econômicos do negacionismo de Donald Trump em relação à pandemia. Os custos políticos podem inviabilizar a reeleição dele.
Segundo os economistas norte-americanos David Cutler e Lady Summers, citados no artigo, a queda do PIB norte-americano deve chegar a US$ 16 trilhões até outubro do próximo ano, ou seja, 90% do PIB, se a pandemia for controlada até lá. Nos cálculos dos dois economistas, foram incluídos os indicadores econômicos, como o aumento dos pedidos de seguro desemprego, mas, também, estimativas relativas aos prejuízos causados pela liquidação de vidas humanas, ou seja, de força de trabalho geradora de riqueza.
O Brasil não tem indicadores que possibilitem esse tipo de cálculo, mas tem estatísticas que podem servir de referência para um razoável balanço de perdas e danos. Pesquisadora do Peterson Institute for International Economics e professora da Sais/Johns Hopkins University, Mônica De Bolle destaca que o nosso Sistema Único de Saúde (SUS), posto à prova pela pandemia, pode nos dar uma noção, por exemplo, de quanto será preciso investir na Saúde em razão das sequelas da covid-19 nas pessoas que se recuperaram da doença. Como a população está envelhecendo, a pandemia também agrava, por falta de tratamento, as doenças associadas à idade — diabetes, câncer, cardiopatias —, que se somam àquelas que são consideradas endêmicas, como tuberculose, dengue, hanseníase, malária e Aids, que já pressionavam o sistema de saúde.
Crediário
O número de casos graves com longas internações é sete vezes maior do que o de óbitos; 30% dos que sobreviveram apresentam sequelas. Projetam-se 350 mil pessoas nessa situação, a grande maioria dependente do SUS. Com mais de 150 mil mortos, Mônica de Bolle estima que o custo econômico da pandemia no Brasil, por baixo, pode chegar a R$ 9 bilhões, sem considerar as mortes prematuras, ou seja, dos jovens que não faziam parte da população de risco. Coincidentemente, ontem, num evento da Federação das Indústrias do Rio de Janeiro (Firjan), o presidente Jair Bolsonaro disse que a pandemia da covid-19 no Brasil foi superestimada. Bolsonaro insiste que o vírus e o desemprego devem ser tratados de igual maneira, simultaneamente.
O Brasil é o 2º país com mais mortes por covid-19. Só os Estados Unidos têm mais vítimas: 220.694. Até o final da tarde de ontem, eram 150.998 óbitos de brasileiros causados pela doença. Segundo o Ministério da Saúde, 5.113.628 pessoas foram infectadas pelo novo coronavírus no país, 10.220 a mais nas últimas 24 horas. O número de mortes, felizmente, está caindo: foram 309.
Aproximadamente 4,5 milhões de pessoas se recuperaram da doença até o momento. Outras 436 mil estão em acompanhamento. São 713 vítimas a cada milhão de habitantes, o que coloca o Brasil na 3ª posição de letalidade da pandemia no ranking mundial. O Peru é o país onde a covid-19 mais mata em relação ao número de habitantes (1.008 pessoas para cada milhão), o segundo é a Bélgica (880 pessoas).
As advertências de Mônica de Bolle são importantes porque as pesquisas de popularidade do presidente Jair Bolsonaro, com a recuperação de seu prestígio, reforçam o discurso negacionista oficial, robustecido pelo fato de que o pior já passou e a redução das taxas de contaminação permite que a política de isolamento social seja flexibilizada, como está sendo, na maioria das cidades. A fatura do vírus chegou primeiro para os desempregados e trabalhadores “por conta própria”, que perderam sua fonte de renda e dependem do auxílio emergencial do governo. A ideia de uma recuperação econômica rápida, acalentada pelo ministro Paulo Guedes, porém, não tem sustentação técnica. A conta está chegando para os demais à prestação.
Luiz Carlos Azedo: Dia das Crianças
Passou da hora de as crianças terem uma vida quase normal, o confinamento doméstico prejudica o desenvolvimento infantil, ainda mais com o liberou geral do celular e eletrônicos
Vivemos tempos sem beijos nem abraços, entre amigos, familiares e até mesmo os amantes. A vida virou uma roleta-russa, todo dia chega uma notícia triste de alguém que morreu e, em maior número, para nossa alegria, das pessoas queridas que sobreviveram à Covid-19. O isolamento social está sendo quebrado à medida em que a taxa de transmissão da doença diminui e as pessoas ficam mais confiantes de que podem desenvolver certas atividades essenciais, com os devidos cuidados. Todos torcem pela vacina eficaz, chinesa, russa, inglesa ou norte-americana, e se arriscam um pouco mais.
Tempos darwinistas sob todos os pontos de vista: sanitário, econômico, social. A sobrevivência humana não está ameaçada, muitos tiram a doença de letra, como se fosse uma “gripezinha”, mas a capacidade de adaptação às contingências do momento é mais importante do que a resistência física de cada um para sobreviver à pandemia. Para isso servem a ciência e a consciência humana. Como diz o ditado, cautela e canja de galinha não fazem mal a ninguém. Depois de tanto tempo, as comorbidades começam a se tornar um problema muito grave, porque as pessoas deixaram de ir ao médico e ao dentista, reduziram as atividades físicas, alimentam-se por ansiedade, adiaram ou interromperam tratamentos, subestimam pequenos sintomas, enfim, não dão importância aos sinais que o corpo nos envia. E têm os nervos à flor da pele, o que agrava conflitos familiares e problemas psicomentais.
Mas, há muita esperança e fé. Amanhã é dia das crianças, os clubes estão abrindo para recebê-las em relativa segurança, apesar da pandemia. Os templos também promovem cultos, recebendo as famílias com maior ou menor distanciamento social, dependendo da fé na ciência de cada padre ou pastor. Criança é sinônimo de futuro. As escolas, porém, estarão fechadas. Desperdiçam a oportunidade de virar o jogo, jogar todos para cima. Por um desses mistérios da criação, desculpem-me o trocadilho, crianças têm menos vulnerabilidade ao coronavírus, quando não têm comorbidades, é claro; porém, podem ser agentes transmissores da doença, porque geralmente são assintomáticas quando contaminadas, dizem os especialistas. Por causa disso, os adultos estão com inconfessável medo das crianças, isso é um problema.
— Azedo, você não vai escrever sobre as crianças?
A pergunta foi feita por um amigo querido, o pediatra carioca Ricardo Chavez, parceiro de muitos blocos e passeatas, preocupado com o fato delas não estarem frequentando a escola. Entre os primeiros a defender o isolamento social, avalia que já passou da hora de as crianças terem uma vida quase normal, o confinamento doméstico prejudica o desenvolvimento infantil, ainda mais com o liberou geral do celular e outros equipamentos eletrônicos. Mandou-me um artigo excelente sobre o tema, da colega Ruth de Aquino, de quem foi um dos interlocutores, que recomendo. Repassei o texto e a pergunta para outro amigo querido, Luciano Rezende, prefeito de Vitória, que conclui o segundo mandato com reconhecido êxito administrativo e zero escândalos em oito anos. Médico também, respondeu-me dizendo a mesma coisa. Seu problema é convencer diretores de escola, professores e pais de alunos, na rede pública.
Pacto perverso
De memória, porque emprestei o livro e não me devolveram ainda, lembro de certa passagem de A quarta revolução (Portfólio/Penguin), de John Micklethwait e Adrian Wooldridge, sobre a desilusão da sociedade com os governos. O Ocidente está ficando para trás. Não se trata da chamada indústria 4.0, como o título induz, mas da necessidade de uma nova revolução política para reinventar o Estado. Vivemos uma corrida em busca de eficiência e eficácia, não apenas nas inovações tecnológicas. Estão em jogo os valores políticos que triunfarão no século XXI. Vem daí a tensão no mundo entre forças reacionárias e democráticas.
Quando o livro fala dos lobbies corporativos, cita dois exemplos da Califórnia. O dos agentes penitenciários, focado na luta contra a violência e a criminalidade, que conseguiu endurecer a legislação e multiplicar o número de presídios e a população carcerária, sem reduzir a violência, é claro. E o dos professores, que tem muito mais poder de pressão sobre os políticos, porque conseguem mobilizar os pais de alunos. Pesquisando, vi que em abril do ano passado, por exemplo, pais de alunos de São Francisco promoveram uma campanha para arrecadar fundos para uma professora, após descobrirem que ela, além de lutar contra um câncer de mama, pagava seu próprio substituto na escola. O relato do caso no San Francisco Chronicle gerou indignação em escala nacional, chegando ao Senado. Ao jornal The Washington Post, Eric Heins, presidente da Associação dos Professores da Califórnia, denunciou que o sistema de financiamento da educação sobrecarrega os professores e não os poupa, nem mesmo em momentos críticos, como períodos de doença grave.
Desde 1970, na Califórnia, o acordo coletivo dos professores garante 10 dias de folga para tratamento de saúde, que podem ser prorrogados por mais 100 dias, mas são descontadas do salário as despesas com o substituto, entre US$ 174 e US$ 240 a diária. Um educador infantil recebe por mês, em média, US$ 4.931,67; um professor primário, US$ 4.971,67; no ensino médio, US$ 5.138,33. Segundo a Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em relatório de terça-feira passada, no ensino infantil brasileiro os professores receberiam por mês o equivalente a US$ 2.063,75; no primeiro grau do ensino fundamental, US$ 2.083,75; e no segundo, US$ 2.089,33. A alta do dólar, com certeza, distorceu esses números. O piso do Fundeb é de R$ 2.886,24, sendo que apenas 11 estados cumprem essa regra, segundo o Dieese. No câmbio oficial, isso equivale a US$ 521,04. Por isso, desconfio que as nossas escolas públicas já não estão fechadas por causa da pandemia; estão sem aulas por causa dos salários e, em muitos casos, das condições em que se encontram. Quem paga o pato são as crianças.
Bernardo Mello Franco: O sincericídio do paraquedista
No dia em que Jair Bolsonaro disse ter acabado com a corrupção no governo, outra declaração causou espanto em Brasília. Esta, pela sinceridade.
No lançamento da campanha Outubro Rosa, o ministro Eduardo Pazuello admitiu seu completo despreparo ao assumir a pasta da Saúde. “Eu não sabia nem o que era o SUS”, confessou.
O Brasil pagou caro pela ignorância do general paraquedista. Quando ele pousou na Esplanada como ministro interino, em maio, o país contava 13 mil mortos pela Covid. Entre hoje e amanhã, deve ultrapassar a marca de 150 mil vidas perdidas.
A tragédia seria menor se o governo tivesse agido com o mínimo de seriedade, confiando a gestão da pandemia a gente qualificada. Bolsonaro preferiu entregar a tarefa a um militar inapto, que não sabia nem o que era o Sistema Único de Saúde.
Pazuello admitiu seu desconhecimento na quarta-feira, dia em que o Brasil ultrapassou os cinco milhões de casos confirmados da Covid. Especialistas alertam que o número está subestimado. Como nunca fez testes em massa, o país não sabe ao certo quantas pessoas já pegaram o coronavírus.
Em abril, Paulo Guedes anunciou que “um amigo na Inglaterra” forneceria 40 milhões de testes por mês. As promessas do ministro da Economia já viraram folclore, mas essa foi especialmente infeliz. Segundo o IBGE, 17,9 milhões de brasileiros fizeram algum tipo de exame até o fim de agosto. Isso significa que os testes não haviam chegado a 91,5% da população.
O sincericídio não foi o único vexame de Pazuello na solenidade de quarta. Sem saber o que dizer, o general se referiu ao câncer como “uma doença muito complicada”. “Então o câncer tá aí. Ele é… ele está aí. E isso precisa ser compreendido”, enrolou-se.
O militar foi a única autoridade a entrar no auditório sem máscara. Sentou-se entre a primeira-dama Michelle Bolsonaro e a ministra Damares Alves, a quem definiu como uma “parceira de todos os dias”. A pastora e o paraquedista têm mais em comum que a obediência cega ao chefe.