saúde
Cacá Diegues: O Natal do menino Brasil
Nunca fomos o paraíso anunciado, enganamos todo mundo
Não se pode deixar de reconhecer que, vítimas de um equívoco, fomos meio largados no mundo por quem financiou a nossa “descoberta”. Nos primeiros anos depois de Cabral, os reis de Portugal nos ignoraram, mais preocupados com o fim da Inquisição que os havia tornado decisivos nos costumes da Idade Média europeia, encerrada com os huguenotes de Lutero e Calvino na fogueira.
Fomos colonizados por pés-rapados, valentes aventureiros, sonhadores que não tinham nada a ver com a tensa elite lusitana. Queriam era atravessar o Mar Tenebroso e chegar ao Novo Mundo para começar vida nova em nome de Cristo e do futuro financeiro da família. Só pensavam em encontrar terras cultiváveis, madeiras de valor como o pau-brasil, escravos indígenas a mancheias, valores que os tornariam quem sabe até festejados pela sociedade europeia que respirava uma Renascença iluminista, os novos tempos.
Com a Independência e o Império dos dois Pedros, depois que, em 1808, dom João VI fugira de Lisboa com amigos e familiares para não ter que enfrentar a ocupação francesa de Napoleão Bonaparte, o Brasil foi obrigado a descobrir (ou a escolher) quem era. O príncipe fujão criara o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves, com capital no Rio de Janeiro, e foi daí que, preocupados com o futuro, começamos a construir nosso passado. Um passado de fantasias, criado por intelectuais e artistas submetidos às ideias do imperador.
Dom Pedro II encomendara a Victor Meirelles a tela que se tornou famosa e popular da “Primeira Missa no Brasil”, uma espécie de nascimento do Brasil (ou o Natal do menino Brasil), concluída em Paris. No quadro, a chegada dos europeus à Bahia era um amável encontro de raças e costumes. Nada mais distante das invasões bárbaras do século XVI e dos genocídios que então passaram a ocorrer. A outro jovem, Pedro Américo, o imperador encomendara outra tela, igualmente popular e famosa, a reprodução do Grito de Independência protagonizado pelo pai do produtor, dom Pedro I. Nada do que está ali corresponde ao que de fato acontecera, Pedro Américo apenas copiava a grandeza e o espírito de exaltação de uma tela de Ernest Meissonier, pintor na moda, em homenagem a Napoleão Bonaparte e seu exército.
As duas obras foram concluídas e expostas ao público de Paris e do Rio na primeira metade da década de 1860, no auge do sucesso político de dom Pedro II e seus ideólogos, como José de Alencar, ou militantes, como Manuel Antônio de Almeida. (Por pura distração, no artigo da semana passada, troquei a tensão paradisíaca da Missa pela proclamação política do Ipiranga, trocando o nome de um pintor pelo do outro, pelo que peço desculpas ao eventual leitor.) Nas duas obras, dom Pedro II e seus artistas pretendiam unir todas as classes num país que deixava de ser formalmente uma colônia. A base dessa narrativa está no livro que já citei aqui, “A conquista do Brasil”, de Thales Guaracy, da Editora Planeta, de São Paulo.
O Brasil não gosta de seu passado, e sempre achamos que não temos direito a futuro nenhum. Para disfarçar, mentimos alegremente sobre o que somos e o que queremos ser. Nunca fomos o paraíso anunciado, enganamos todo mundo com pandeiros, palmeiras e sabiás, com nossos carnavais. Como Pigafetta, viajante italiano que, em 1519, enquanto a corte lisboeta se distraía queimando protestantes, informava que os brasileiros viviam até os 140 anos.
Subestimado durante quase todo o seu primeiro século de vida, o Brasil foi inventado por caçadores de homens (que escravizavam os índios), um exército de exterminadores (que saqueavam a terra), um padre gago (Manoel da Nóbrega) e outro meio cínico (José de Anchieta), além de famílias como os Sás e os Souzas. Como o que interessa é o presente, e este é a consequência do passado concreto e do futuro que sonhamos, ainda é preciso perder as ilusões para entender o Brasil de hoje.
Os pensadores ocidentais sempre trataram nossa diferença como a ausência de alguma coisa que eles reconhecem e cultivam como civilização. Mas é justamente dessa ausência que podemos construir o único Brasil possível, o Brasil que vale a pena. Quem sabe então poderemos ser enfim felizes. O grande poeta russo Vladimir Maiakóvski (ai, meu Deus, vou pra cadeia por elogiar um poeta comunista!) dizia, num de seus poemas mais pessimistas, que haviam finalmente encontrado um homem feliz no planeta. E ele vivia no Brasil.
Affonso Celso Pastore: O grau de incerteza na economia
Coube ao presidente do BC dizer que a vacina custa menos do que a ajuda emergencial
Não basta que existam vacinas com eficácia comprovada. Para salvar vidas e restabelecer a normalidade da economia, é preciso vacinar 100% da população no prazo mais curto possível, como já está ocorrendo na Europa e nos EUA. Infelizmente, em vez de agir com rapidez e eficiência, reduzindo o número de mortes e a incerteza, o governo se comporta como se o problema não existisse. É surpreendente, mas coube ao presidente do Banco Central, e não ao presidente da República, explicar que “a vacina custa menos do que uma ajuda emergencial”.
De fato, além de prolongar a crise sanitária a ausência de um plano eficiente de vacinação expõe a economia a nova desaceleração, aumentando a pressão para que ocorram mais gastos e aumente o desemprego, fechando-se um círculo vicioso que precisaria ser rompido. Mas meu propósito neste artigo não é expressar mais uma vez minha indignação pelo desrespeito do governo com a vida humana, e, sim, abordar como a elevada incerteza retarda a recuperação econômica.
A FGV constrói um índice de incerteza da economia. Quando ele está abaixo de 100, o grau de incerteza é baixo, o que significa que há uma elevada previsibilidade que é essencial para planejar os investimentos em capital fixo, que contribuem para o crescimento econômico. Observa-se que nas três recessões que precederam a “recessão da covid” sempre ocorreu uma forte queda da taxa de investimentos associada a elevações do índice de incerteza da economia para próximo de 130 pontos.
Na recessão de 2002, por exemplo, o risco de que o governo Lula não manteria o compromisso assumido por FHC, de gerar superávits primários suficientemente elevados para reduzir a relação dívida/PIB, provocou o aumento do índice de incerteza ao lado de uma queda da taxa de investimento de 18% para 16% do PIB. Porém, a rápida adesão do governo às metas de superávits primários derrubou o índice de incerteza abaixo de 100, ocorrendo uma elevação de dois pontos porcentuais na taxa de investimento e uma rápida recuperação da economia. Na crise de 2008, o índice de incerteza também se elevou acima de 130, e a taxa de investimentos caiu de 20% do PIB para 18%. Foi uma recessão curta que também se encerrou com a rápida recuperação dos investimentos associada à queda do índice de incerteza abaixo de 100.
Precedida pela malfadada experiência da “nova matiz macroeconômica”, em 2014 iniciou-se uma recessão que durou até o final de 2016. Embora desta vez o pico do índice de incerteza também tenha atingido em torno de 130, manteve-se persistentemente elevado – acima de 110 pontos – até o final de 2019 e, como não poderia ser diferente, a taxa de investimentos manteve-se em nível histórico de baixa. Contrariamente às duas recessões anteriores, cuja recuperação foi liderada pelo aumento da formação bruta de capital fixo, desta vez ela foi liderada pelo consumo, que não tem a mesma força propulsora, ou o mesmo “efeito multiplicador”, dos investimentos em capital fixo. Foram três anos consecutivos de crescimento do PIB a uma taxa média de apenas 1% ao ano, pouco acima da taxa de crescimento populacional, de 0,8% ao ano, mantendo deprimida a renda per capita.
Logo que a covid atingiu o Brasil, o índice de incerteza da economia saltou para 210 pontos, recorde absoluto da série. Recuou em seguida, mas vem se mantendo em 150 pontos, que é bem superior aos valores máximos anteriormente atingidos por este indicador. Com tal nível de incerteza, é literalmente impossível admitir que a retomada dos investimentos em capital fixo será uma força motriz da recuperação da economia em 2021. A exemplo do ocorrido na saída da longa recessão iniciada em 2014, teremos de nos beneficiar da recuperação do consumo, que além da esperança nos efeitos de uma suposta e questionável “desova” da assim chamada “poupança precaucional” terá de enfrentar os freios impostos pelo fim da ajuda emergencial a 66 milhões de pessoas, e uma elevada taxa de desemprego.
Os dados mais recentes confirmam que a “recessão da covid” foi bem menor do que se temia, já que não se imaginava tamanho estímulo fiscal, provocando “apenas” uma contração entre 4% e 4,2% do PIB. Mas para crescer acima de 4% em 2021, que é apenas o efeito estatístico herdado de 2020, é preciso reduzir o grau de incerteza da economia, o que exigiria vacinação rápida da população e o delineamento de uma estratégia de crescimento. Com este governo, há pouca ou nenhuma esperança que isto ocorra.
*Ex-presidente do Banco Central e sócio da A.C. Pastore & Associados.
Vinicius Torres Freire: Como pode ser a vida depois das primeiras vacinas de Covid-19
Se vacinação e distanciamento funcionarem, vida passa a melhorar no meio do ano
Em abril, o número de mortes por Covid-19 em São Paulo deve começar a cair graças à vacina, se der certo o plano do governo paulista. Com base em premissas otimistas, a vacinação pode derrubar o morticínio em 64%. Atualmente, morrem 154 pessoas por dia no estado; em abril, morreriam então mais de 50 (no início de novembro, eram 85 mortes diárias).
Os números importam, mas dizem pouco sobre como pode ser a vida depois da primeira onda de vacinação: ainda difícil. Até 22 de março, terão sido vacinadas pessoas com mais de 60 anos, gente da saúde, indígenas e quilombolas, nove milhões de pessoas, apenas um quinto da população.
Mas, com vacina e com os cuidados de distanciamento que tomávamos em outubro, poderíamos reduzir o número de mortes diárias à casa da dezena em meados de 2021. Se a Coronavac também evitar contágios, a menos ainda.
As vacinas derrubariam o número de mortes em abril porque em grande parte seriam aplicadas no grupo que padece mais da doença. Cerca de 77% dos mortos em São Paulo tinha 60 anos ou mais. Quase 0,5% dessa população morreu de Covid-19, uma pessoa em duzentas, um horror.
A hipótese otimista depende de premissas esperançosas sobre taxa de vacinação e da eficácia da Coronavac.
Supôs-se que a eficácia dessa vacina seja de 86%, similar à da sua prima Sinopharm, número até agora não publicado com rigor técnico, porém. Supôs-se ainda que sua efetividade na vida real seja idêntica à da eficácia na fase de testes. Supôs-se também, de modo heroico, que a Coronavac seja aplicada em tantos idosos quanto aqueles que receberam a vacina de gripe no ano passado (97,6%, em São Paulo). Mas Jair Bolsonaro faz campanha criminosa de desmoralização da vacina. Pode ser que a adesão caia para 75%.
Eficácia e efetividade de 86% significa que uma de cada sete pessoas vacinadas estará sem proteção. Os hospitais ficarão menos cheios, mas o risco individual ainda será relevante.
Por eficácia entende-se por ora a capacidade da vacina de proteger as pessoas dos efeitos graves da doença. Não se sabe se as vacinas disponíveis evitam (ou limitam) a transmissão. Cientistas acreditam que, em alguma medida, as vacinas em geral possam limitar o contágio. Isto é, fazer com que o vacinado e infectado espalhe menos o vírus. Assim, mesmo sem terem sido vacinadas, menos pessoas adoeceriam, tudo mais constante. Por tabela, haveria menos padecimento econômico.
Tão cedo não haverá informação sobre isso. Será preciso acompanhar grupos de vacinados por uns quatro meses, fazendo testes de contaminação algo complicados.
Em suma, em abril a vida ainda estará prejudicada. Para diminuir o prejuízo, será preciso vacinar o grupo de 40 a 59 anos, que conta quase 20% das mortes (e equivale a 27,5% dos paulistas).
A fim de conter a tragédia educacional, social e psicológica do fechamento das escolas, talvez seja preciso vacinar os 470 mil professores do ensino básico (e quantos mais funcionários de apoio?). Não haveria vacina bastante na primeira rodada. Uma segunda rodada de mesmo tamanho e velocidade da primeira estaria completa apenas em fins de maio.
Até abril ainda estaremos sujeitos a um aumento pavoroso do número de mortes. Até agora, não temos vacina. Assim que tivermos, não podemos dar ouvidos a genocidas. Temos de nos vacinar tanto quanto nas campanhas antigripe e seguir os cuidados que em outubro ajudaram a reduzir o morticínio. Com menos casos, talvez enfim possamos testar, rastrear e isolar os doentes.
Há jeito de dar cabo da peste.
Hélio Schwartsman: Guerra, militares e boas histórias
Se desempenho de oficial à frente da Saúde equivale ao de nosso Exército, então Bolívia pode conseguir saída para oceano Atlântico
Na tentativa de entender melhor a cabeça dos militares, que ocupam espaço cada vez maior no governo brasileiro, comprei, baixei e comecei a ler "War" (guerra), da historiadora Margaret MacMillan. Não me arrependi.
A tese central da autora é simples. A guerra é muito mais central para o ser humano do que estamos dispostos a admitir. E ela não serve só para matar gente. Muitos dos avanços científicos, tecnológicos e até de organização da sociedade resultaram de conflitos. O forte do livro, porém, não são teorias, e sim as boas histórias que conta sobre guerras, militares e os que teorizaram sobre isso.
Examinemos o caso da intendência. O general alemão Erwin Rommel não foi nada ambíguo em relação ao que achava dela: "A condição essencial para um exército ser capaz de suportar batalhas é um estoque adequado de armas, combustível e munição. Na verdade, as batalhas são travadas e vencidas pelos oficiais de intendência antes de os tiros serem disparados".
E, se sempre foi vital garantir armas a guerreiros, a intendência ganhou ainda mais importância nos conflitos modernos. Foi a introdução de serviços de higiene, como a lavanderia, na 1ª Guerra que fez com que, pela primeira vez, doenças não causassem mais baixas que o fogo inimigo.
A intendência alterou a natureza do conflito, já que permite que ele tenha duração indeterminada. Nas batalhas antigas, a peleja não podia ir além da comida disponível nas imediações. Pior, ao fazer a ligação entre a capacidade de produção de um país e sua performance na guerra, a logística borra a distinção entre alvos legítimos e ilegítimos. O operário civil de uma fábrica de uniformes pode ser abatido?
Bolsonaro entregou o Ministério da Saúde a um oficial de intendência. Se seu desempenho à frente da pasta é representativo do de nosso Exército, então a Bolívia poderá conseguir sua tão sonhada saída para o mar, pelo Atlântico...
Luiz Carlos Azedo: A grande sabotagem
Países de dimensões continentais têm inércia de manobra comparada aos grandes navios. Erros estratégicos na economia e nas políticas públicas têm graves consequências
A história universal tem inúmeros exemplos de tragédias humanitárias, causadas por fenômenos geológicos, climáticos, biológicos e/ou decisões políticas equivocadas, às vezes a combinação de duas ou mais causas. Essas tragédias deixam traumas sociais e provocam mudanças culturais e políticas. Uma das calamidades mais devastadoras da humanidade foi a peste negra, entre 1347 e 1351, que matou 50 milhões de pessoas na Europa e na Ásia. Causada por uma bactéria (Yersinia Pestis), a doença foi transmitida ao ser humano por meio das pulgas dos ratos e outros roedores. A peste disseminou o antissemitismo, provocou revoltas camponesas e a Guerra dos 100 Anos, mas, também, deu origem ao Iluminismo, em contraposição às teses místicas que atribuíam a doença ao castigo divino.
Em 1755, o grande terremoto de Lisboa resultou na destruição da capital portuguesa. O número exato de vítimas da tragédia é desconhecido, mas estima-se que pode ter chegado a 90 mil pessoas. Como consequência, o primeiro-ministro Sebastião José de Carvalho e Melo, o Marquês de Pombal, precisando de recursos para reconstruir Lisboa, acabou com as capitanias hereditárias no Brasil, transferiu a capital de Salvador para o Rio de Janeiro, criou o Distrito Diamantino, aumentou a cobrança de impostos nas Minas Gerais e fortificou as fronteiras na Amazônia, entre os quais o grande Forte Real do Príncipe da Beira, à margem direita do Guaporé, em Rondônia. Em contrapartida, a “derrama” deflagrou o movimento de Independência, cujo marco histórico foi a Inconfidência Mineira.
Em abril de 1986, um reator da central nuclear de Chernobyl explodiu e liberou uma imensa nuvem radioativa, contaminando pessoas, animais e o meio ambiente de uma vasta extensão da Europa. Na Ucrânia, Belarus e Rússia foram evacuadas e reassentadas 200 mil pessoas. O negacionismo e a censura agravaram a tragédia. Mais de 90 mil pessoas ainda poderão morrer de câncer, causado pela radiação do acidente nuclear. O episódio foi decisivo para Gorbatchov iniciar a glasnost (transparência) e desistir da corrida nuclear, o que acabou com a guerra fria com os Estados Unidos e foi um dos catalisadores do fim da própria União Soviética.
Pandemias e fome
No final da I Guerra Mundial, em 1918, uma pandemia do vírus Influenza se espalhou por quase todo o mundo. A gripe espanhola afetou 50% da população mundial. O número de mortos pode ter chegado a 100 milhões de pessoas. O vírus Influenza A, do subtipo H1N1, matou mais gente do que qualquer outra enfermidade na história e desapareceu tão misteriosamente como surgiu, mas ajudou a acabar com o conflito, provocou grandes reformas urbanas, uma revolução nas pesquisas médicas e nas políticas de saúde pública.
A maior tragédia humanitária do século passado, porém, não teve nada a ver com eventos geológicos, climáticos ou biológicos. Foi fruto do nacionalismo extremado de algumas nações e da ambição de poder de Adolf Hitler. A II Guerra Mundial, entre 1939 e 1945, mobilizou mais de 100 milhões de militares e deixou mais de 70 milhões de mortos. Foi a única vez que armas nucleares foram utilizadas em combate, resultando na morte de mais de 140 mil pessoas no Japão, nos bombardeios feitos pelos Estados Unidos nas cidades de Hiroshima e Nagasaki. Além disso, a loucura de Hitler resultou no Holocausto. Dos 6 milhões de judeus mortos somente em Auschwitz, o mais conhecido campo de concentração nazista, 1 milhão foi assassinado nas câmaras de gás e cremados.
Mortes em massa também foram provocadas por decisões políticas e econômicas equivocadas de líderes comunistas. As coletivizações forçadas de Josef Stálin, na antiga União Soviética, nos anos de 1932-33, mataram de fome 10 milhões de camponeses na Ucrânia, e 1,25 milhão no Cazaquistão. O Grande Salto Adiante de Mao Tse Tung, na China, de 1958 a 1961, matou de fome 20 milhões de chineses. Entre 1994 e 1998, na Coreia de Norte, o fim da ajuda soviética, fatores climáticos e erros de planejamento de Kim Jong-un provocaram a morte de, pelo menos, 600 mil pessoas por desnutrição (fala-se em até 3 milhões de norte-coreanos).
Países de dimensões continentais, por sua escala demográfica, têm inércia de manobra comparada aos grandes navios. Erros no rumo estratégico, principalmente na economia e políticas públicas, têm consequências de grande envergadura. O que está acontecendo nos EUA, por exemplo, devido ao negacionismo de Donald Trump, entrará para os anais da história como uma dessas grandes tragédias. O país é o epicentro da pandemia de covid-19, com 17 milhões de casos confirmados e 300 mil mortos pelo novo coronavírus, mais do que o número de soldados americanos mortos na II Guerra.
Aqui, no Brasil, com quase 7 milhões de infectados e 190 mil mortos, o presidente Jair Bolsonaro vai pelo mesmo caminho, com seu negacionismo, que chega a aponto de se recusar a tomar a vacina contra a covid-19. Sabota, assim, os esforços realizados por autoridades de saúde, prefeitos, governadores e até mesmo pelo governo federal — cuja atuação deixa muito a desejar — para conter a epidemia e imunizar a população contra a doença, única maneira de salvar a economia de profunda recessão e do desemprego em escala sem precedentes, ou seja, de voltar à vida normal. A história não perdoa erros dessa magnitude.
Ascânio Seleme: Quem vai pagar a conta?
Custos serão altos, mas ainda mais grave é o número assustador de mortes que a doença continuará produzindo, por causa e entre os negacionistas
Não se preocupe, se você se vacinar direitinho, tomar as duas doses como recomendado, não vai ser infectado por negacionistas, seja um vizinho, um parente, um amigo ou um desconhecido com quem esbarrar na rua. Você estará imune. Do ponto de vista da sua saúde ou da sua família, não precisa fazer mais nada, embora seja conveniente manter o uso de máscaras por ainda algum tempo. Também não custa nada lavar sempre as mãos com bastante água e sabão. Seu problema será outro e terá natureza financeira. Você vai solidariamente pagar a conta que os que se negaram a tomar a vacina contra a Covid acabarão gerando para os cofres públicos. E ela não será pequena.
Imagine o cenário final, pós-vacinação. Neste momento, 46 milhões de brasileiros, ou 22% da população, não estarão imunizados e continuarão a exercer pressão sobre a rede pública de saúde. Se hoje os leitos dos hospitais estão quase 100% ocupados por pacientes com Covid, no futuro terão 22% da sua capacidade tomada por pessoas infectadas por uma doença que poderia ser evitada. Quem vai pagar esta conta? Você e eu. Na verdade, este volume pode ser maior, se os planos de saúde corretamente se recusarem a pagar internações hospitalares e remédios de quem se recusou a se vacinar. Se a doença era evitável, os planos vão recorrer e os pacientes com planos poderão acabar na rede pública.
Se a Justiça acabar obrigando os planos de saúde a pagar as contas dos negacionistas, o que sempre é possível, mesmo assim você e eu arcaremos com um custo adicional. Ninguém aqui é bobo, claro que os planos repassarão a conta para toda a sua clientela. Nós.
Haverá ainda outros custos indiretos gerados pelos negacionistas mas que serão arcados por nós. Primeiro, calcule o impacto que terão sobre a cadeia produtiva quando o mundo voltar ao normal. Se uma gripezinha de influenza afasta uma pessoa por dois ou três dias do trabalho, uma infecção pela Convid pode tirar o funcionário por até 14 dias da linha de produção, quando não o afastar definitivamente. Isso tem um custo que as empresas pagam e repassam aos preços dos produtos e serviços que você e eu iremos consumir.
Os não vacinados vão também compor uma nova estatística de morbidade no Brasil. Com a vida de volta ao normal, os 22% de não vacinados serão eventualmente contaminados e muitos vão morrer. Aos números. Mantida a média de 1.000 óbitos por dia, morrerão então 220 negacionistas a cada 24 horas. Em um ano, serão 80 mil. Mais do que os 12 mil que falecem a cada ano por câncer de próstata ou mama, os 44 mil que morrem em razão de doenças hipertensivas ou os 54 mil que são acometidos de diabetes. Trata-se de índice igual ao de mortes por infarto, que também somam 80 mil por ano.
Sim, há os que já foram infectados e dizem que não vão se vacinar porque já têm anticorpos, como afirma o magnífico Jair Bolsonaro. Estes ignoram a potencialidade da reinfecção ou o surgimento de cepas diferentes que podem lhes acometer. Vejam o caso da gripe influenza, que já exige quatro vacinas diferentes para ser obstruída. Na rede pública, as vacinas aplicadas são as trivalentes, que imunizam contra até três variações da doença. Na rede privada já estão sendo aplicadas as tetravalentes.
Claro que os custos serão altos, mas ainda mais grave é o número assustador de mortes que a doença continuará produzindo depois da vacinação em massa, por causa e entre os negacionistas. E elas ocorrerão por todos os lados, mas serão maiores nos grotões bolsonaristas. São os seguidores fiéis de Sua Excelência que mais se rebelam contra a vacina. Seguem o líder cegamente, como ratos ao flautista de Hamelin, mesmo que seja em direção ao hospital ou ao cemitério.
Rebanho
O que vai acontecer com aqueles que se recusarem a ser vacinados? Certamente perderão alguns direitos, como o de frequentar escolas, academias e clubes. Devem também perder o acesso a bolsas e outros auxílios oficiais, o direito de participar de concursos públicos e de votar. Podem ainda ser proibidos de viajar de avião e ônibus. E também não serão imunizados. Serão apenas parte do rebanho.
Eles erram
Presidentes erram. Sarney errou na economia, mas foi o presidente que avalizou a reabertura democrática. Collor errou ao confiscar a poupança dos brasileiros e ao permitir que seu contador PC Farias trocasse influência por dinheiro, muito dinheiro. Mas é verdade também que abriu a economia brasileira para o mundo. Fernando Henrique errou ao fazer aprovar o instituto da reeleição, mas estabilizou a moeda nacional. Lula deixou seu governo e seu partido se corromperem, mas distribuiu renda como nenhum dos seus antecessores. Dilma errou feio na economia e ao tentar falsear seus resultados acabou afastada. Bolsonaro erra como jamais se viu. Erra no atacado, desde o primeiro dia de seu mandato e em todas as frentes. Como Dilma, e ao contrário de seus antecessores, não deixou até aqui qualquer legado.
Falando em Collor
O governo de Jair Bolsonaro mergulhou de corpo e alma na política de negociação de cargos por apoio político. Um dos membros da tropa de choque de Fernando Collor no Congresso, o deputado Ricardo Fiuza, batizou este tipo de operação com um trecho da Oração de São Francisco: “É dando que se recebe”. Uma prática comum na política nacional ganhava um apelido. Fiuzão, que era um conhecido “caneleiro”, morreu em 2005, mas sua criação sobreviveu. Hoje, o capitão dá cargos para receber em troca votos para o deputado Arthur Lira (desvio de dinheiro público, enriquecimento ilícito, rachadinhas, violência doméstica) na sucessão da Câmara. E, para não perder a coerência, Bolsonaro mantém Roberto Jefferson, o segundo líder da velha tropa de choque de Collor, como seu brucutu de plantão.
Extrapolei
Foi engraçado ver Bolsonaro tentando representar o papel de estadista, que se desculpa com o país quando erra. Na cerimônia de divulgação do plano (?) de vacinação, o capitão disse que se alguém extrapolou foi na busca de resultados. Uma piada. A frase deveria ser lida assim: “Se algum de nós extrapolei ou até exagerei, foi no afã de buscar solução”. O pior é que mesmo que tivesse sido franco, o presidente não teria sido honesto. Ele exagerou e extrapolou por outras razões, você sabe, não porque queria encontrar saídas.
E há o Rio
No Brasil, vices seguidamente ocupam o posto principal pelo impeachment, a desincompatibilização ou a morte do titular. Em alguns casos tivemos sorte. Itamar Franco, por exemplo, substituiu Fernando Collor e devolveu dignidade ao cargo. Em São Paulo, Bruno Covas era vice de João Doria, assumiu a prefeitura e fez uma boa gestão, a ponto de ser reeleito. Há outros exemplos no país. E há o Rio. Por aqui, parece que não tem remédio. O governador em exercício Cláudio Castro fica melhor quando não fala, ou quando não faz nada. Esta semana ele quis fazer alguma coisa e falou. Foi uma calamidade. Num discurso ao lado do zero das rachadinhas, Castro disse para quem quisesse ouvir: “Eu confio no general Pazuello”. Pasmem, há alguém que confia no general. E acrescentou: “Não é fazendo politicagem com a saúde que vamos sair dessa”. Embora seja o presidente quem faz politicagem rasteira com o vírus, o recado de Castro era para seu colega João Doria. Puxou tanto o saco do governo Bolsonaro que até mesmo o zerinho que ouvia tudo calado não conseguiu esconder seu constrangimento.
Mais mortes
Um estudo feito pelo jornal The New York Times mostra que o crescimento do número de mortes por Covid é maior em cidades universitárias depois do retorno das aulas presenciais. A pesquisa do NYT foi feita em 203 cidades cuja população estudantil é maior do que 10% do total. Também cresceu exponencialmente o número de infectados nestas localidades, bem acima da média nacional. No Rio, as aulas nas escolas públicas estaduais voltam em janeiro. Em São Paulo, as escolas estaduais funcionam com até 35% da sua capacidade desde setembro. Doria anunciou que começará a vacinar em janeiro. Aqui, vacinação só em fevereiro, março, sei lá, já que Claudio Castro diz que vai seguir seu líder, o general paradão.
Assédio
O assédio do deputado Fernando Cury à deputada Isa Penna é uma demonstração absurdamente explícita do desrespeito e do abuso. Como pôde o deputado imaginar que podia se esfregar assim numa mulher sem o seu consentimento e que não aconteceria nada? Ainda mais em se tratando de uma parlamentar do PSOL, partido conhecido por sua constante luta contra este tipo de abuso. O partido de Marielle Franco, convenhamos. E, depois, o local do assédio era o plenário da Assembleia Legislativa de SP, local monitorado por câmeras o tempo todo. Cury deve ser punido por importunação sexual, falta de decoro e burrice atroz.
Eliane Cantanhêde: Aos trancos e barrancos
Bolsonaro é Bolsonaro, mas o STF e as instituições sabem defender o Brasil. Até dele
A vacinação contra a covid-19 preserva vidas, é um direito e uma obrigação coletiva e “não permite demagogia, hipocrisia, ideologias, obscurantismo, disputas político eleitoreiras e, principalmente, não permite ignorância”. Essa enxurrada de bom senso, que serve como uma verdadeira aula para todos e cada um, foi dada ontem pelo ministro Alexandre de Moraes, em mais um julgamento memorável do Supremo nesses nossos tempos tão sombrios, às vezes macabros.
Na votação a favor da vacina obrigatória, por bem ou por mal, Moraes mandou um claro recado ao presidente, ao ministro da Saúde, a governadores, prefeitos e seguidores desses lunáticos de internet que são contra vacinas, especialmente contra a “vacina da China”. Isso começa “de cima”, quando o presidente Jair Bolsonaro, não satisfeito em guerrear contra isolamento social, máscaras e “maricas”, declara: “Não vou tomar a vacina. Ponto final”.
Quantos, por ideologia ou ignorância, não acataram o grito de guerra do presidente contra as vacinas? Quantos, por se acharem “de direita”, sendo simplesmente burros, não começaram a ver demônios e “interesses geopolíticos” na Coronavac, chamada de “vacina da China” ou “do Doria” por Bolsonaro? Assim como isolamento e máscaras eram as únicas saídas para escapar do vírus e reduzir a contaminação, as vacinas são o único instrumento científico capaz de salvar vidas, trazer de volta a normalidade, os negócios e os empregos. Bolsonaro atacou aqueles, tentou combater estes.
As instituições, porém, salvam o País e o Supremo, que erra no varejo, nas brigas comezinhas, acerta no atacado, na defesa da democracia e da racionalidade. Foi assim contra golpistas, extremistas e fake news e quando decidiu que governadores e prefeitos não estariam sujeitos às maluquices de Bolsonaro na pandemia. E é assim, agora, ao permitir que União, Estados e municípios garantam, direta ou indiretamente, a obrigatoriedade da vacina. E que os pais sejam obrigados a imunizar seus filhos.
A decisão do Supremo – com o voto contrário, ora, ora, de Kassio Nunes – é um tanto confusa: o que é vacina obrigatória, mas não forçada? A melhor explicação é que ninguém vai ser puxado pelos cabelos ou “sofrer condução coercitiva” para se vacinar, como disse o procurador-geral, Augusto Aras, mas aqueles que se recusarem a fazê-lo sabem que vão sofrer as consequências.
Na prática, o Supremo autoriza empresas públicas e privadas, escolas e supermercados, cinemas e companhias aéreas, por exemplo, a recusarem funcionários e clientes que não sejam vacinados. Se você não toma vacina contra a febre amarela, é proibido de viajar a vários países. Se não tomar contra a covid-19, poderá sofrer sanções diferentes formas. Logo, onde se lê que o Supremo determinou a “obrigatoriedade”, leia-se que criou “mecanismos indutores” para a vacinação.
E para que tudo isso? Para, mais uma vez, botar o pé na porta e impedir, ou prevenir, arroubos insanos do presidente e do seu governo contra os interesses e os direitos à vida e à saúde da Nação. Assim como não se ouve falar mais em manifestação e convocações golpistas pela internet, o presidente mudou o tom, o tal ministro da Saúde foi obrigado a agir.
Aos trancos e barrancos, o governo lançou um plano nacional de vacinação e uma medida provisória para liberar R$ 20 bilhões, encomendou vacinas, engoliu a do Butantã (de origem chinesa), reincluiu os presos entre os prioritários e até convocou o Zé Gotinha. Bem, nenhuma das vacinas é por gotinhas, mas deixa para lá... O importante é que Bolsonaro continua sendo Bolsonaro, irrita, cansa, ameaça, desperdiça tempo, mas é obrigado a recuar e se render à realidade. Apesar dos pesares, o Brasil sabe se defender. Inclusive dele.
Fernando Abrucio: Um 2021 a favor da vida
A mudança política nos EUA e na União Europeia, com o enfraquecimento da extrema-direita, e a ascensão de novos líderes vão colocar uma nova agenda nos próximos anos
Ao refletir sobre 2020 e imaginar como pode ser 2021, um verso não sai da minha cabeça: “Ano passado eu morri, mas nesse ano eu não morro”. A canção é de Belchior (“Sujeito de Zorte”) e reapareceu gravada recentemente por Emicida, numa belíssima parceria com Pablo Vittar e Majur. Não há nada mais atual para definir o que passamos nos últimos meses, marcados pela desesperança e pela morte, e a chance que temos de mudar esse cenário, abrindo as portas a favor da vida. Muitos sinais mostram que o mundo pode trilhar esse caminho, mas no Brasil a escolha pela vida ou pela morte, num sentido literal e num plano mais amplo, ainda não foi feita pelo governo Bolsonaro.
A principal causa da desesperança que marcou 2020 foi a pandemia. Já houve mais de 70 milhões de casos em todo o mundo e quase um milhão e setecentas mil mortes. São números de guerra. A covid-19, no entanto, não só foi uma arma de destruição em massa. A doença foi além disso, tendo dois outros importantes efeitos.
O primeiro ocorreu nas principais organizações e formas de sociabilidade contemporâneas, como escolas, empresas e a própria vida social dos indivíduos e famílias. Nada funcionou como antes e tivemos de nos adaptar. Só que no final das contas ninguém mais quer ficar neste mundo pandêmico, com milhões de reuniões e aulas por videoconferência, precarização do trabalho e afastamento das pessoas queridas. Quase todos estão gritando: “Tragam meu mundo de volta!”
Junto com esse efeito negativo da pandemia na vida de cada um e nas principais organizações contemporâneas, a desgraça trouxe reflexão. Isso porque os problemas trazidos pela covid-19 escancararam temas que a humanidade tinha jogado para debaixo do tapete. A mudança política nos EUA, com a eleição de Biden, e na União Europeia, com o enfraquecimento da extrema-direita, além da ascensão de novos líderes sociais, vão gerar uma nova agenda para os próximos anos. O Brasil precisa prestar a atenção a esse processo, para não perder o trem da história.
Destacaria cinco temas que serão colocados no centro da agenda na maior parte do mundo a partir de 2021: a revalorização da ciência, a questão ambiental vista como emergencial, a busca de soluções humanizadoras para as organizações, a preocupação com a desigualdade em suas múltiplas dimensões e, por fim, a luta para reconfigurar a comunicação de massas, dominada hoje por redes sociais polarizadas e muito influenciadas pela lógica das “fake news”. O crescimento da importância de tais temáticas não quer dizer que haverá soluções para tudo no curto prazo, pois haverá muitos conflitos e dificuldades no processo político. Todavia, os grupos defensores dessas mudanças vão ganhar força e o clima de opinião irá mudar substancialmente.
A revalorização da ciência é filha direta da esperança com as vacinas contra a covid-19. No momento, há uma discussão inútil sobre a obrigatoriedade da vacinação. Ora, se mais gente for imunizada e ficar livre da doença, surgirão barreiras contra os que não se vacinarem. Países fecharão as suas portas para os estrangeiros não vacinados e o mesmo será feito por empresas multinacionais, com o argumento de resguardar a saúde coletiva de seus funcionários. E o sucesso nem precisa ser de 100% porque muita gente morreu com a pandemia. Isso não será esquecido. Quem tem dúvida, veja o que a história diz de outras epidemias famosas.
Uma vitória científica como essa pode afetar profundamente o negacionismo. Como consequência, será alavancado um segundo tema ao centro da agenda: a questão ambiental. Empresas, consumidores e governos em quase todo o mundo vão bater de frente contra aqueles que desdenham da mudança climática, que insistem em manter padrões que não são ambientalmente sustentáveis e que defendem atividades econômicas atrasadas, que destroem a natureza, afetando nosso futuro no planeta. Cabe frisar que as soluções nesse campo demandam um certo tempo, porém, quem fugir da cartilha básica será punido internacionalmente, especialmente no campo econômico. E isso ocorrerá mais cedo do que se imagina.
A pandemia realçou o lado sombrio de várias organizações e modos de vida atuais. A morte de tanta gente, combinada com a dificuldade de sobrevivência econômica ou psíquica de boa parte da humanidade, colocou uma palavra no topo do dicionário contemporâneo: empatia. Daí que, como terceira temática que vai crescer na agenda pública, empresas, escolas e governos vão ser pressionados a levar mais em conta os aspectos humanos. A educação, por exemplo, precisa ser vista como um processo fundamental para garantir o aprendizado de conhecimentos básicos a crianças e jovens, mas é muito mais do que isso. Ela é responsável pela formação de boa parte da personalidade de cada um e da noção de coletividade que vigora numa comunidade ou num país. As escolas nutrem nossos sonhos para a vida adulta. Educar é formar seres humanos melhores, desenvolver seus talentos e fazê-los entender que o outro é a coisa mais fantástica da vida.
O maior obstáculo da transformação humanística está no mundo empresarial, pois a lógica econômica atual ainda privilegia o individualismo exacerbado. Não obstante, muitas empresas começam a mudar seus processos seletivos para captar gente com habilidades socioemocionais mais favoráveis ao trabalho em equipe e à consciência social. Além disso, as pessoas como consumidoras e cidadãs vão exigir cada vez mais uma postura diferente de quem lhe vende bens e serviços. Por essa razão, assuntos como responsabilidade social e diversidade do corpo de funcionários vão ser alavancas para ganhar mercado.
A pressão pela maior humanização da sociedade contemporânea virá certamente de uma herança da pandemia: aumentou a percepção das múltiplas formas de desigualdade. Foi graças a políticas públicas como sistemas de saúde públicos e do trabalho de abnegados profissionais da educação, da segurança pública e assistência social que as mortes e calamidades produzidas pela covid-19 não foram maiores. No mesmo momento histórico, injustiças causadas contra negros e mulheres em várias partes do mundo mobilizaram milhões de pessoas em torno de um não rotundo contra a ordem desigual atual.
Essa quarta temática vai gerar muitos conflitos, mas já ganhou um lugar especial na agenda pública. Que os bilionários dividam mais suas riquezas, que a justiça não tenha mais cor nem gênero, que todos possam ter acessos a oportunidades mais iguais (afinal, como disse antes, a boa educação deve ser uma fábrica de sonhos), que a diversidade nos faça melhores como seres humanos. Para quem acha que essa pauta é muito utópica, pergunte aos jovens atuais o que eles pensam. Você irá se surpreender.
A agenda transformadora em favor de mais vida para todos tem um último elemento que é a batalha da comunicação. A internet produziu, inegavelmente, maior acesso à informação e aproximação de pessoas em várias partes no mundo. Contudo, essa mesma fonte emancipadora gerou redes sociais marcadas pela polarização política e pela expansão da mentira pública como estratégia política. Como remédios a esse mundo distópico, devemos alimentar a tolerância, a capacidade de ouvir o outro, de respeitar e aprender com a discordância. Ademais, só há democracia quando os fatos públicos se guiam por uma noção de transparência e verdade. Ou seja, é possível ter opiniões diferentes, mas a realidade factual não pode ser tão ampla que fuja de critérios mínimos de veracidade.
E como ficará o Brasil quando toda essa agenda estiver sendo puxada para o centro do debate em 2021? Por ora, o que se pode dizer que o governo Bolsonaro optou, nos últimos dois anos, pela destruição e pela desesperança como bussolas de sua ação. Isso antes da pandemia, quando se defendia que a solução para os problemas do país passava por armar a população, pela ocupação econômica desenfreada da Amazônia, por desprezar políticas a favor das minorias ou dos mais pobres e pela disseminação criminosa de mentiras contra os adversários e as instituições.
O pior de tudo é que o bolsonarismo não aprendeu muito com o espelho de problemas que nos estão sendo apresentados pela covid-19. Ao contrário, fechou os olhos para a profusão de mortes e lutou incansavelmente contra a ciência. É por essa razão que ninguém tem certeza se teremos, o mais rápido possível, vacinas suficientes para salvar pessoas, recuperar a economia e trazer de volta nossa vida em sociedade. Mas esse cenário pode ser transformado pela construção de uma nova agenda, antenada com as mudanças internacionais que vão sacudir o mundo nos próximos anos.
Inaugurar um novo ano marcado pela defesa da vida no Brasil, entretanto, vai além de ser contra o governo Bolsonaro. É preciso que a sociedade brasileira e suas elites se incomodem com a morte cotidiana não só dos atingidos pela covid-19, mas também por aqueles majoritariamente jovens, negros e pobres que morrem numa quantidade absurda, ano após ano. Segundo o Fórum Nacional de Segurança Pública, policiais mataram 2.215 meninos e meninas entre 2017 e 2019, o que representa mais de duas crianças ou jovens por dia. Desejar um Ano Novo melhor significa dizer aos brasileiros: tenham vergonha dessa carnificina e assim estaremos dando o primeiro passo para transformar o país.
*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getulio Vargas.
Ricardo Noblat: O dia amargo em que Bolsonaro só colheu derrotas
Seus seguidores estão ficando impacientes
Para o gosto do presidente Jair Bolsonaro, a quinta-feira 17 de dezembro até que começara bem. Em cerimônia no Palácio do Planalto, ele deu posse ao novo ministro do Turismo, Gilson Machado, líder de uma banda de forró em Pernambuco, e sanfoneiro que costuma tocar o instrumento nas lives semanais do presidente no Facebook. Uma vez até cantou a Ave-Maria.
O que disse Machado no seu discurso soou como música aos ouvidos de Bolsonaro e o deixou feliz a poucas horas de ter que voar para inauguração de obras em Minas Gerais e na Bahia. Refratário, como seu chefe, a medidas de isolamento social, Machado defendeu que festas de fim de ano reúnam ao menos 300 pessoas. Assim as aglomerações seriam evitadas.
“A gente tem que viver a vida, não morrer por antecipação”, argumentou o ministro, e recebeu aplausos. Em seguida, derramou-se em elogios a Bolsonaro: “O senhor está recuperando a autoestima do povo” (mais aplausos). “Aonde o senhor vai, o povo o aclama” (nesse momento, Bolsonaro sorriu). A cerimônia foi curta. O dia seria estafante para o presidente, e de fato foi.
Ele ainda estava em Jacinto, município de Minas Gerais, para o lançamento da pedra fundamental da implantação e pavimentação da BR-367, quando começou a receber notícias que o indignaram. O Supremo Tribunal Federal decidira que a vacinação contra a Covid-19 seria obrigatória. E também que governadores e prefeitos poderão impor restrições a quem não se vacinar.
Em Porto Seguro, na Bahia, segunda escala da viagem, Bolsonaro ficou sabendo que uma liminar concedida pelo ministro Ricardo Lewandowski autorizara Estados e municípios a comprar vacinas registradas por agências sanitárias de outros países. Foi em Porto Seguro que Bolsonaro resolveu passar recibo do seu desconforto. Sem referir-se às notícias, discursou:
– Se o cara não quer ser tratado, que não seja. Eu não quero fazer uma quimioterapia e vou morrer, o problema é meu, porra.
Ao desembarcar de volta a Brasília, seu humor só fez piorar. Foi quando conheceu trechos dos votos dos ministros do Supremo no julgamento das ações sobre a vacinação. Todos, à exceção do único ministro indicado por ele para o tribunal, Kássio Nunes Marques, bateram de frente com o que Bolsonaro pensa, fala e repete à exaustão país afora, dia sim e o outro também.
“A preservação da vida, da saúde individual ou pública, em país como Brasil com quase 200 mil mortos pela Covid-19, não permite demagogia, hipocrisia, ideologias, obscurantismo, disputas eleitoreiras e ignorância” (Alexandre de Moraes). “O egoísmo não é compatível com a democracia. A Constituição não garante liberdade a uma pessoa para ela ser egoísta” (Cármen Lúcia).
Para amargar ainda mais o dia de Bolsonaro, a Câmara endossou decisão do Senado e rejeitou ampliar o repasse de recursos do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica para escolas ligadas a igrejas. E, nas redes sociais, seguidores dele ocuparam-se em criticá-lo a pretexto de qualquer coisa – uma delas, o não pagamento este ano da 13ª parcela do Bolsa Família.
Bolsonaro jogou a culpa no deputado Rodrigo Maia (DEM-RJ), presidente da Câmara. Que retrucou chamando-o de “mentiroso”. O presidente só foi dormir depois de responder pessoalmente aos ataques dos que antigamente se limitavam a lhe dar razão em tudo ou em quase tudo:
– Impressionante, os caras descem a lenha em mim. Lógico que a esquerda bate palma para essa direita burra, direita idiota. Bateram palmas para vocês. Vocês não sabem, não interpretam, não conseguem saber o que foi votado e descem o cacete. Não fica agindo como papagaio, repetindo o que um idiota escreve.
A certa altura, cairá a ficha da maior parte dos brasileiros e eles descobrirão que o presidente acidentalmente eleito lhes fez muito mal. O risco é de que tal momento de iluminação só se dê depois de ele ser reeleito daqui a dois anos. Seriam mais quatro anos perdidos – e a que preço? Preservar o meio ambiente não lhe interessa como já demonstrado. Tampouco educação e cultura.
Reforma do Estado foi promessa para atrair o voto dos liberais. A combater a corrupção, prefere aliar-se a políticos corruptos. Segurança pública resume-se a facilitar o acesso a armas – e os milicianos agradecem. Enfrentar a pandemia é deixar o vírus livre para infectar o maior número de pessoas. Vidas não importam porque todos haverão de morrer um dia, e ele não é coveiro.
Helena Chagas: A resiliência não tão resiliente de Bolsonaro
É falta de honestidade intelectual acreditar nas pesquisas quando seus resultados nos agradam e contestá-las quando trazem dados adversos. É o que muita gente está fazendo hoje, decepcionada com os números do Datafolha que mostram certa resiliência na popularidade de Jair Bolsonaro, que segue com o seu nível mais alto de aprovação, na casa dos 37% de ótimo e bom. Vamos e convenhamos, não é lá essa Brastemp. É um resultado medíocre, o pior, com um ano de 11 meses de mandato, entre os presidentes eleitos diretamente na redemocratização — com a exceção de Fernando Collor, que a esta altura do campeonato já estava entrando pelo cano do impeachment.
Mas pesquisa é assim mesmo: temos a pesquisa e a narrativa da pesquisa, e ganha quem conseguir torcer melhor os números para comprovar sua tese. No caso de Bolsonaro, é forçoso reconhecer que o número dos que o avaliam como ruim ou péssimo (32%) está menor do que os que o aprovam, enquanto o regular está estável em 29%.
Só que é o próprio Datafolha que traz em si os germes do que pode representar a destruição da popularidade estável do presidente. As pesquisas vem mostrando há meses a relação direta entre o crescimento da aprovação de Bolsonaro junto aos setores de menor renda – teve uma alta de 11 pontos percentuais na faixa até dois mínimos – e a injeção de recursos do auxílio emergencial e outros benefícios dados durante a pandemia.
PANDEMIA
Esse auxílio, porém, foi reduzido à metade e acaba a partir de 31 de dezembro. É razoável supor que, junto com fatores como o desemprego e a segunda onda da pandemia, essa situação se reflita na aprovacão de Bolsonaro. E de forma ainda mais forte do que no primeiro semestre de 2020, início da pandemia, quando houve uma queda na popularidade presidencial, revertida em agosto.
A segunda onda da Covid-19 está sendo tratada pelo governo com o mesmo desleixo mostrado na primeira, mas com o agravante de que, desta vez, outros países do mundo começam a ter acesso à vacinação, enquanto as autoridades brasileiras continuam no bate-cabeças.
Sem vacina disponível, como estará a população daqui a alguns meses?. O Planalto deve estar festejando que 52% dos entrevistados não atribuam ao presidente da República a culpa pelas 181 mil mortes registradas. Mas 46% acham que ele tem responsabilidade por elas.
O resiliente Bolsonaro, a mais de dois anos da sonhada reeleição, pode até comemorar a popularidade medíocre que registra hoje nas pesquisas telefônicas. Mas a realidade é que sua posição é frágil e o horizonte cheio de previsões negativas.
Luiz Carlos Azedo: Maia articula centro-esquerda
Do ponto de vista prático, o Centrão conseguiu se unificar em torno de Lira, e o bloco de centro-esquerda que Maia organiza ainda não tem um nome de consenso
O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), articula com os partidos de esquerda um nome de centro que possa derrotar a candidatura governista de Arthur Lira (PP-AL), o candidato do presidente Jair Bolsonaro. Ontem, em reunião com os partidos de esquerda — PT, PDT, PSB, PSol e PCdoB —, fechou acordo para uma composição ampla, evitando candidaturas avulsas, para formar um bloco majoritário na Câmara. Com isso, fracassaram as articulações de Lira com setores desses partidos. O PT, com 54 deputados, ou seja, a maior bancada, teve um papel decisivo. Com o PSB (31), o PDT (28), o PSol (10) e a Rede (1), o bloco soma 124 deputados.
Entretanto, Maia ainda precisa coesionar os partidos do seu próprio bloco em torno dessa aliança. Caso consiga um nome de consenso, que também seja aceito pela esquerda, pode se formar um bloco majoritário na Câmara, pois o grupo de Maia soma 158 deputados, dos seguintes partidos: DEM (28), MDB (34), PSDB (31), PSL (53), Cidadania (8) e PV (4). Em tese, os dois blocos juntos podem chegar a 282 deputados, ou seja, a maioria da Câmara, que tem 513 deputados. O problema é que essa contabilidade é formal, pois os acordos de bancada precisam ser confirmados por cada deputado e o índice de traição é grande, principalmente quando envolve a negociação de cargos e a liberação de verbas federais, como está acontecendo.
Do ponto de vista prático, o Centrão conseguiu se unificar em torno de Lira, e o bloco de centro-esquerda que Maia organiza ainda não tem um nome de consenso. Baleia Rossi (SP), o líder do MDB, continua sendo o candidato mais forte, mas não é o que tem melhor trânsito junto aos partidos de esquerda. Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) teria mais passagem, porém não tem apoio de seu próprio partido, cujo candidato é Lira. Havia conjecturas em torno do nome do vice-presidente da Câmara, Marcos Pereira (Republicanos-SP), mas ele descolou do bloco e decidiu apoiar Lira, supostamente em troca de uma vaga na Esplanada. Tereza Cristina (DEM-MS), atual ministra da Agricultura, com ampla passagem na bancada do agronegócio, por hora, é uma articulação da cúpula do DEM.
Aprovação
Uma das variáveis que influenciam a disputa na Câmara é a popularidade do presidente Jair Bolsonaro. Segundo pesquisa CNI-Ibope, divulgada ontem, a aprovação de Bolsonaro (bom e ótimo) caiu de 40% para 35%, de setembro a dezembro. No entanto, é seis pontos maior que a registrada em dezembro de 2019, quando chegou a 29%. Os números apontam, também, que a confiança no presidente praticamente não mudou, oscilando de 46% para 44%, dentro da margem de erro. A aprovação da maneira de governar do presidente diminuiu, no limite da margem de erro, de 50% para 46%, e a desaprovação subiu, de 45% para 49%. A pesquisa CNI-Ibope ouviu 2 mil pessoas entre 5 e 8 de dezembro, em 126 municípios. A margem de erro é de dois pontos percentuais para mais ou para menos, e a confiança, de 95%.
O número dos que avaliam o governo como ruim ou péssimo cresceu, no limite da margem de erros, de 29% para 33%. A aprovação na área de segurança pública despencou 7 pontos, era a única com saldo positivo. A atuação do governo é desaprovada em temas como juros, que nunca estiveram tão baixos, inflação, saúde e combate à fome e à pobreza. A popularidade de Bolsonaro é maior entre os residentes das cidades pequenas e da Região Sul, enquanto é menor entre os jovens, sobretudo aqueles que têm de 16 a 24 anos de idade e os que moram nas cidades grandes.
As regiões Sudeste e Nordeste reúnem a maior parcela descontente com o presidente. Para 36%, no Sudeste, e 34%, no Nordeste, o governo está sendo ruim ou péssimo; 52% dos residentes no Sudeste e 51% dos que moram no Nordeste não aprovam a maneira de governar do presidente Bolsonaro. No Sul, 44% dos entrevistados consideram o governo como ótimo ou bom, 52% afirmam confiar no presidente e 55% aprovam sua maneira de governar. Mais da metade dos moradores de cidades pequenas — aquelas com até 50 mil habitantes — confia em Jair Bolsonaro e aprova sua maneira de governar, com índices de 53% e 55%, respectivamente.
Eugênio Bucci: Seu desaforista!
O novo Odorico leva o povo para o altar do sacrifício. Que morram muitos mais. E daí?
Em 1973 não havia liberdade de expressão no Brasil. A ditadura militar torturava dissidentes, exterminava guerrilheiros no Araguaia e tolhia a imprensa. Nas redações dos jornais, censores cortavam reportagens inteiras poucas horas antes de os cadernos começarem a ser impressos nas rotativas. Preencher os vazios abertos pela tesoura da repressão política era um tormento. Este jornal, O Estado de S. Paulo, encontrou uma solução heterodoxa: no lugar do material censurado, passou a publicar trechos de Os Lusíadas, de Luís de Camões. Entre 2 de agosto de 1973 e 3 de janeiro de 1975, foram 655 inserções do épico lusitano nas páginas do Estado, conforme levantamento feito pelo jornalista José Maria Mayrink.
Pois no mesmo ano 1973, em meio a tantas trevas, entrou no ar uma criação primorosa do dramaturgo brasileiro Dias Gomes: O Bem-Amado. Sob a vigência da mordaça absoluta, O Bem-Amado estreou com a força de uma apoteose libertária e satírica. Era um contrassenso: como podia haver espaço na televisão para tamanha exuberância criativa, e tão crítica, sob uma tirania tão estupidamente violenta?
Dias Gomes era um autor de esquerda, com ligações históricas com o Partido Comunista, e dono de um talento assombroso. O protagonista que ele inventou para O Bem-Amado, Odorico Paraguaçu (interpretado pelo ator Paulo Gracindo), comandava com mão de ferro, sem nenhum constrangimento de ordem moral, a prefeitura da fictícia Sucupira. Odorico era um canalha corrupto e truculento que, sob o gênio de Dias Gomes, ganhava ares despudoradamente cômicos. Nisso residia seu carisma. Falastrão semianalfabeto, posava de orador erudito à custa de expressões incultas, mas empoladas, que proclamava em tons triunfais. Gostava de xingar os adversários de “desaforistas” e quando queria humilhar os subordinados dizia que eram “desapetrechados de inteligência”.
Se diante dos noticiários de TV a sociedade prestava silêncio obsequioso aos ditadores que se sucediam, diante da novela podia rir deles sem medo da cana. Graças a Odorico Paraguaçu, o país vilipendiado caçoava do arbítrio, da demagogia e da estultice. Foi um sucesso instantâneo e impune. Os homens da ditadura, que se viam como agentes “modernizantes” e “urbanos”, não percebiam que o prefeito de Sucupira, de feitio rural, regionalista, antiquado e ridículo, era o retrato escarrado deles mesmos. A ditadura era burra, tão burra que batia palmas para a televisão que a fazia de palhaça. Contrassenso total.
Odorico se impôs de tal maneira que nunca mais saiu de cartaz. A Rádio CBN andou usando diálogos da antiga novela para ilustrar a desconversa de políticos da vida real acusados de corrupção. Agora, nos dias que correm – embora corram sem sair do lugar –, recortes de cenas impagáveis viajam nas redes sociais para delícia dos públicos mais diversos,
As semelhanças com o presente são efetivamente cômicas, mas também estarrecem. Numa das cenas que hoje circulam nas redes, Odorico aparece conversando com seu assessor direto, o igualmente antológico Dirceu Borboleta, interpretado por Emiliano Queiroz. O assunto é uma epidemia que ameaça Sucupira. O prefeito armou uma tramoia para impedir que o dr. Leão (Jardel Filho), seu desafeto político, distribua a vacina. Dirceu não se conforma. Sabendo que Odorico vai interceptar o carregamento das vacinas do dr. Leão, interpela o chefe para expressar sua discordância exasperante.
Com a voz medrosa, em titubeios que vão e vêm, Borboleta empreende enorme esforço para externar seu protesto. Ele, sempre submisso, está quase fora de controle. Aquilo não pode ser. Dirceu se exalta. Como deixar sem proteção o povo de Sucupira?
O prefeito reage, impaciente: “E daí, seu Dirceu?”. Esse “e daí?” soa chocante. O espectador descobre que a pergunta retórica vem de entranhas imemoriais da política nacional. O “e daí?”, como expressão de desprezo pela vida, não é de hoje.
Dirceu não se cala. Tomado de furor cívico, aumenta a voz: haverá um “assassinato em massa, um genocídio”. Passa a mão direita sobre a manga da camisa no antebraço esquerdo, como se acometido de comichões, dizendo que isso lhe dá “até arrepio”.
Então Odorico se põe em brios patrióticos, ralha com o assessor e começa a explicar seu plano. Diz que não vai impedir a vacinação, mas apenas desviar o carregamento para o posto de saúde que planeja inaugurar na cidade. Aí, sim, entregará a salvação sanitária a todos e todas. O herói será ele, Odorico, e não o dr. Leão, esse tal “que está do outro lado, do lado da oposição”. Dirceu vai se resignando, vai se rendendo, compreende o plano e fica aliviado. De um jeito ou de outro, a vacina virá e, para ele, está bom assim.
É fato que hoje, na Sucupira Central, há um Odorico pior, assumidamente genocida, que quer exterminar a vacina da oposição sem ter nada para oferecer no lugar. O novo Odorico seguirá levando o próprio povo para o altar do sacrifício ritual. Que morram mais, muitos mais. “E daí?”.
Dias Gomes talvez tenha sido um humorista profético. Ou um charadista. Em que chave cômica se explica a tragédia brasileira?
*Jornalista, é professor da ECA-USP