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Waldemar Mariz de Oliveira Neto: A responsabilidade do presidente da Câmara dos Deputados
Não lhe incumbe obstar ou diferir a apreciação das denúncias por crime de responsabilidade
O Regimento Interno da Câmara dos Deputados, em seu artigo 218, delega ao seu presidente a função de deferir ou indeferir o recebimento de denúncias por crimes de responsabilidade eventualmente cometidos pelo presidente da República, pelo vice-presidente ou por ministros de Estado.
Em caso de deferimento, a denúncia será lida no expediente da sessão seguinte e despachada para a comissão especial eleita para esse fim, da qual participam, proporcionalmente, representantes de todos os partidos com representação na Casa. Em caso de indeferimento, cabe recurso ao plenário.
A norma não fixa prazo para que sejam adotadas quaisquer dessas duas providências, mas o artigo 15 da Lei n.º 1.079/1950 esclarece que a denúncia só pode ser recebida enquanto o denunciado não tiver deixado definitivamente o cargo.
Como é permitido a qualquer cidadão apresentar a denúncia, a faculdade conferida exclusivamente ao presidente da Câmara dos Deputados tem sua razão de ser, servindo como um primeiro filtro para evitar que acusações absolutamente esdrúxulas e desprovidas de adequação tenham seguimento automático, paralisando o Legislativo e trazendo instabilidade à sociedade.
Nesses casos, o indeferimento não traz ônus político, dada a patente teratologia da denúncia. Ainda que seja possível eventual recurso ao plenário, a votação pode ser realizada com celeridade e sem maiores solavancos para a estabilidade institucional.
Todavia, quando tem bons fundamentos, o deferimento ou indeferimento da denúncia obriga o presidente da Câmara a tomar posição, o que implica considerável gravame político, razão pela qual pedidos podem permanecer intocados até que o denunciado deixe o cargo e a denúncia não possa mais ser recebida.
Acontece que a inexistência de prazo legal não deve ser interpretada como uma licença para que o presidente da Câmara escolha o momento político que lhe pareça mais adequado para decidir pelo recebimento ou não da denúncia. Tal conduta apenas indica omissão e complacência. Se a denúncia não é descabida a ponto de ser indeferida de plano, deve ser admitida para permitir que a comissão especial exerça seu papel institucional.
É dessa comissão, em suma, a função de emitir um primeiro parecer sobre se a denúncia deve ser ou não julgada objeto de deliberação. Em sendo, abre-se prazo para que o denunciado conteste o parecer. Ao fim, após a instrução e produção de provas, a comissão especial profere novo parecer, dessa vez sobre a procedência ou improcedência da denúncia, que será levado a votação pelo plenário da Câmara dos Deputados, podendo acarretar no encaminhamento da acusação por crime de responsabilidade para julgamento pelo Senado Federal, com o afastamento do denunciado de seu cargo.
Somente assim se permite que os representantes do povo deliberem a respeito da conduta denunciada, expondo publicamente suas posições e prestando contas aos seus eleitores, pouco importando se a denúncia tem condições políticas para ser ou não admitida.
Ainda que a conjuntura política tenda para determinado resultado, é preciso que sucessivas denúncias sejam analisadas, caso a caso, arcando o denunciado com eventual desgaste político decorrente de suas ações, mesmo que como mera medida dissuasória, para que repense a adequação de sua conduta.
Não importa, portanto, se a denúncia tem chances de sucesso naquele momento. Não importa se é melhor que o ambiente político aqueça ou que a denúncia arrefeça. Independentemente disso, é preciso que seja permitida sua discussão e apreciação. É preciso que os deputados que apreciarão a denúncia também enfrentem as consequências de suas decisões, especialmente perante a opinião pública. É também fundamental que o denunciado possa responder no foro adequado pelas acusações que lhe forem formuladas, ainda que seja para demonstrar sua inocência.
Por outro lado, é necessário que denúncias inconsistentes sejam objeto de indeferimento, permitindo a apreciação de eventual recurso pelo plenário, afastando a possibilidade de utilização para expedientes obscuros, quando politicamente conveniente.
A ausência de decisão do presidente da Câmara acerca do recebimento da denúncia, ainda que se admita sua legalidade, transfere para ele, exclusivamente, o ônus moral de impedir a responsabilização do denunciado, aproximando-o da condescendência. A ausência de decisão acerca do indeferimento revela oportunismo.
Ao deixar de decidir, o presidente da Câmara dos Deputados furta para si as prerrogativas da comissão especial e do plenário. Ao deferir ou indeferir, afasta de si o ônus de sua omissão, dando efetividade à sua missão institucional, repassando à comissão especial e ao plenário o encargo que efetivamente lhes cabe, de aceitar ou rejeitar a denúncia.
Portanto, não incumbe ao presidente da Câmara obstar ou diferir a apreciação das denúncias por crime de responsabilidade, sob pena de deixar como legado histórico as marcas de sua omissão.
Afonso Benites: A receita de Bolsonaro para vencer no Congresso de braços dados com o Centrão
O deputado Arthur Lira e o senador Rodrigo Pacheco são favoritos para ganharem as presidências do Legislativo na próxima segunda-feira. Com popularidade de presidente em queda, mas ainda alta, impeachment fica em segundo plano
Ao custo de quatro ministérios e da liberação de dezenas de bilhões de reais em emendas parlamentares, o presidente Jair Bolsonaro está em vias de ter aliados no comando da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Seus candidatos, respectivamente, Arthur Lira (Progressistas-AL) e Rodrigo Pacheco (DEM-MG), caminham para serem eleitos para as presidências das duas Casas na próxima segunda-feira, dia 1º de fevereiro. Caso se confirmem essas vitórias, Bolsonaro abraça de vez a velha política que sempre criticou. E exatamente da maneira que prometeu que não o faria, liberando recursos, negociando cargos por apoio. Não é uma vitória menor para um presidente que enfrenta queda de popularidade, ainda que mantenha um patamar alto de apoio. Com ela, Bolsonaro consegue deixar um eventual processo de impeachment em stand by e pode progredir com sua pauta conservadora no Legislativo. Nesse sentido, estão previstos projetos de lei que pretendem ampliar o armamento da população, o avanço da proposta de prisão após condenação em segunda instância e a que vincula as polícias militares à União.
Na Câmara, na tentativa de frear o avanço de Bolsonaro, o principal adversário de Lira na disputa, Baleia Rossi (MDB-SP), usou seu padrinho político, o presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), para denunciar a compra de votos em troca de emendas parlamentares. Nos últimos dias, Maia tem dado seguidas declarações criticando o Palácio do Planalto. Afirmou que Bolsonaro liberaria 20 bilhões de reais em emendas extraorçamentárias para os parlamentares. E chegou a ligar para o ministro Luiz Eduardo Ramos, da Secretaria de Governo, para reclamar da tentativa de interferência do Governo.
“A forma com o Governo quer formar maioria não vai dar certo, porque essas promessas não serão cumpridas em hipótese alguma. Não há espaço fiscal”, reclamou Maia. “Todos estão legitimados para exercer suas funções, nenhum parlamentar pode ser prejudicado por ser a favor ou contra o Governo”.
Outro concorrente ao cargo e que tem chances quase nulas de vencer, o deputado Alexandre Frota (PSDB-SP), reforçou esse avanço do Governo entre os congressistas. “Os deputados estão se vendendo para o Bolsonaro. Claramente trocam votos por cargos, por emendas”, disse ao EL PAÍS. Uma reportagem publicada nesta quinta-feira pelo jornal O Estado de S. Paulo mostrou que, nas últimas semanas, o Governo já abriu a torneira para abastecer prefeituras e governos indicados pelos parlamentares nas emendas extraorçamentárias. Foram 3 bilhões de reais destinados a afilhados de 250 deputados e de 35 senadores.
Com apoio dos partidos de esquerda, Rossi insiste no discurso da independência do Legislativo. A expectativa na Casa é que ele atinja cerca de 200 votos. Para ser eleito são necessários ao menos 257, entre os 513 deputados. Já Lira, conta com aproximadamente 240. Nessa contabilidade, deve haver segundo turno. Há pelo menos outros seis concorrentes ―Frota, Luiza Erundina (PSOL-SP), André Janones (AVANTE-MG), Fábio Ramalho (MDB-MG), Marcel Van Haten (NOVO-RS) e Capitão Augusto (REP-SP).
Além das emendas palacianas, Lira tem dito aos seus eleitores que terá o poder de indicar até quatro ministros, além de seu séquito de assessores. É o que se chama de ministérios com porteiras fechadas onde é possível administrar primeiro, segundo e terceiro escalões. Na conta estariam os ministérios da Saúde, do Turismo e mais dois que ainda estão sendo discutidos. Para acomodar o grupo de Lira, o Centrão, há ainda a possibilidade de se recriar o Ministério da Previdência, que hoje está sob o guarda-chuva da Economia.
“O Lira joga com a máquina do Governo em seu favor, que culminaria até em uma reforma ministerial”, diz o cientista político Leonardo Barreto. Como seu ativo, ainda é apontado o fato de conhecer “a alma dos deputados do baixo clero”, como diz esse especialista, e por ser um “cumpridor de acordos”. “É aquela coisa de fio do bigode. Por isso, o Centrão está hermético com ele”.
Os ventos do Centrão
Em Brasília, o Centrão costuma seguir dois ventos: o da aprovação/rejeição popular e o do dinheiro. Onde houver recursos, lá estará esse grupo. A eleição de Eduardo Cunha (MDB-RJ) e de Rodrigo Maia para a presidência da Câmara, assim como o impeachment de Dilma Rousseff (PT) da Presidência da República tiveram a digital desse grupo fisiológico. Na prática, isso quer dizer que, nas atuais circunstâncias, uma destituição de Bolsonaro dificilmente ocorrerá com Lira no comando da Câmara. Já há ao menos 63 pedidos de impeachment esperando a análise do presidente da Casa. Só haverá uma mudança de rumos se as duas condições primeiras para o Centrão mudem: as promessas ao grupo não seja cumpridas e Bolsonaro sofrer uma desidratação severa de aprovação.
Ainda assim, o termo impeachment voltou ao vocabulário de Brasília, ao menos como instrumento de pressão. Nesta quarta, o vice-presidente Hamilton Mourão afirmou que irá exonerar o chefe da assessoria parlamentar da Vice-Presidência da República, Ricardo Roesch, depois que o site Antagonista revelou que ele trocou mensagens com o chefe de gabinete de um deputado federal sobre articulações no Congresso Nacional para um eventual impedimento de Bolsonaro. É bom estarmos preparados”, diz uma das mensagens. Roesch diz que as mensagens não são suas, mas Mourão não cedeu: “Esse assessor avançou o sinal”.
Na quarta-feira, Bolsonaro admitiu que tinha o objetivo de influir na eleição da Câmara. Disse ainda que Lira seria “o segundo homem na linha hierárquica do Brasil” ―na verdade, é o terceiro e com problemas porque é réu em ações penais, e Bolsonaro pulou justamente o vice Mourão da sua conta. Quando indagado sobre essa afirmação do mandatário, Lira disse que “na presidência da Câmara ninguém influi”. “Se eleito, serei independente, altivo, autônomo e harmônico”, afirmou o parlamentar nesta quinta.
Baleia é classificado como uma pessoa com pouca experiência e que ficou presa a Maia, que demorou a definir o seu candidato. “Em seu favor ele tem apoio de 20 dos 27 governadores que entendem que ele terá mais condições de encaminhar uma reforma tributária que seja benéfica aos Estados”, avalia Barreto.
As diferenças entre eles podem ser vistas nas postagens que fazem nas redes sociais. O discurso de Lira é dirigido aos deputados. “Para simplificar: eu sou o candidato da palavra cumprida e do aperto de mão”, disse em uma mensagem o membro do PP. Enquanto que Baleia fala para o público externo e reforça a necessidade de se desvincular do Planalto. “Quem se incomoda com o protagonismo da Câmara nos últimos tempos, na verdade, deseja um Parlamento de joelhos para o Executivo. Somos diferentes”, afirmou.
Dobradinha Bolsonaro-Alcolumbre
No Senado, a atuação do presidente conta com o apoio e a articulação do atual presidente da Casa, Davi Alcolumbre (DEM-AP). O candidato deles, Rodrigo Pacheco, já conta com apoio de mais de 45 dos 81 senadores, o que seria suficiente para garantir a eleição. O número pode ultrapassar os 50 votos. Parte desse suporte ocorreu porque o MDB rachou e abandonou a própria candidata, Simone Tebet (MDB-MS). Neste caso, a cisão ocorreu porque Pacheco e Alcolumbre negociaram com emedebistas um cargo na Mesa Diretora e a presidência de comissões relevantes da Casa, como a de Constituição e Justiça.
Nesta quinta-feira, ela manteve sua candidatura, dizendo que seria uma candidata independente. Reforçou que o jogo atual é muito pesado. E, sem citar nomes afirmou: “Quererem transformar o Senado da República em um apêndice do Executivo”. A imagem de sua entrevista coletiva simbolizava exatamente o momento em que ela vive. Estava sozinha. No dia em que o MDB anunciou que apresentaria o seu nome para a disputa, ela estava cercada de correligionários.
Dois anos atrás, quando abriu mão de ser candidata para apoiar o atual presidente em uma apertada disputa com Renan Calheiros (MDB-AL), Tebet ouviu as seguintes palavras de Alcolumbre da tribuna do Senado: “Se você tivesse vencido em sua bancada, eu não estaria aqui [disputando a presidência]”. No mesmo discurso, disse que ela era “gigante, uma guerreira”. Agora, foi ele quem articulou para derrubá-la.
“Ela é a candidata de um grupo que diz ser diferente e que ajudou a eleger Alcolumbre. Agora, esse grupo está órfão, depois que o atual presidente cedeu aos antigos grupos que sempre comandaram o Senado”, diz o cientista político Leonardo Barreto.
A união Pacheco/Alcolumbre/Bolsonaro conseguiu ainda reunir antagonistas na política nacional. No mesmo barco estão o senador Flávio Bolsonaro (REP-RJ), filho do presidente e investigado pelo esquema de rachadinhas, Ciro Nogueira, o presidente do PP que é investigado por corrupção, e estridentes opositores do Planalto, como senadores do PT, da REDE e do PDT, que volta e meia bradam por impeachment.
Para o líder do PT no Senado, Rogério Carvalho (PT-SE), essa insólita união é pontual, representa um rechaço de seu partido a Simone Tebet e a uma aprovação à garantia que Pacheco teria dado à oposição para ocupar espaços em comissões e ter voz no plenário. “Uma coisa é a política eleitoral daqui para fora. A outra é a que ocorre aqui. Nossas diferenças ideológicas não estão em jogo nesta eleição”, afirmou Carvalho.
Flávia Oliveira: Não há vacina para o Brasil
Não é uma nação um país onde autoridades e servidores, em benefício próprio, furam a fila da imunização
Nenhuma nação ostenta sem motivo, e por tanto tempo, o título de mais desigual do mundo. Tampouco o supera rapidamente — nem mesmo com a pior crise sanitária em um século. A semana desoladora nos fez lembrar por que um país do grupo das dez maiores economias do planeta é o 84º em desenvolvimento humano, conceito que mescla renda, escolaridade e longevidade da população; e segundo em mortes por Covid-19 — mais de 220 mil óbitos e contando. Ficaram para trás os dias festivos pela (demorada) aprovação pela Anvisa do uso emergencial das vacinas CoronaVac e AstraZeneca e pelo (atabalhoado) início da imunização. Vibramos com a enfermeira negra Mônica Calazans, primeira pessoa vacinada no Brasil, para nos entristecermos na sequência. Contra a desigualdade, não há antídoto.
Minha mãe, Dona Anna, uma mulher que passou não mais de cinco anos nos bancos escolares na primeira metade do século XX, me educou com ditos populares. Em frases curtas, imensos saberes. Uma delas não me tem saído da cabeça no Brasil de 2021, esse prolongamento do 2020, o ano que não terminará: “Farinha pouca, meu pirão primeiro”. Cinco palavras que resumem o descalabro de uma sociedade que deixou de lado a empatia para se atracar, sem vergonha, à incompetência e, sem decoro, ao privilégio.
Quando a pandemia da Covid-19 alcançou o território nacional, idealistas — eu entre eles — previram que a tragédia nos guiaria a um contrato social mais solidário, fraterno, generoso. Vêm aí, sonhamos, a valorização da saúde pública, a cooperação entre sociedade civil e Estado, o fortalecimento das políticas de assistência social, um modelo de desenvolvimento respeitoso com as pessoas e o meio ambiente. Aconteceu, como sempre, no precário. Favelas, aldeias, quilombos e organizações a eles vinculados se irmanaram em redes de proteção materializadas em água e alimentos, sabão e álcool gel, máscaras e até algum dinheiro. Livraram famílias, comunidades inteiras da fome, da doença, da morte, enquanto governos, por atos e omissões, tomavam goleada do vírus. O Rio de Janeiro teve o governador afastado por suposto envolvimento em fraudes na saúde.
No micro, um país gigante; no macro, um verme — vai ver, por isso, o presidente da República e seu ministro da Saúde passaram meses recomendando ivermectina como tratamento precoce contra a Covid-19, mesmo sem comprovação científica. Não é uma nação um país onde autoridades e servidores, em benefício próprio, furam a fila das vacinas que podem salvar a vida de profissionais de saúde da linha de frente do combate à pandemia e de idosos do grupo de risco prioritário.
Não é uma nação o lugar em que o setor privado busca a simpatia da opinião pública anunciando a compra de 33 milhões de doses de vacina, tendo como contrapartida a subtração de metade do lote para aplicar nos próprios colaboradores. Aos empregados com carteira assinada do topo do mercado corporativo, a imunidade; aos brasileiros excluídos, cloroquina, doença e morte. Não é uma nação quando o chefe de Estado e seu vice festejam a proposta indecorosa, por excludente.
No Amazonas, onde a população morre asfixiada por falta de oxigênio, e uma nova cepa do coronavírus se espalha, ameaçando o país e o mundo, especialistas propõem imunização coletiva. Urgente. Mas a vacinação foi suspensa, mais de uma vez, pela Justiça, para tentar frear o trem da alegria das aplicações indevidas. No Hospital Federal de Bonsucesso, parcialmente desativado após um incêndio que interrompeu em fins de outubro passado o atendimento de emergência, 720 doses da CoronaVac foram recolhidas pela prefeitura do Rio, após uma queda de energia deixá-las sem a refrigeração adequada por alguns minutos. Não havia gerador no laboratório que abrigava o ativo mais valioso do Sistema Único de Saúde no momento — há escassez de vacinas no país e no mundo.
Não é uma nação o lugar em que governo e instituições, depois de um ano letivo perdido, ignoram o apelo de milhões de jovens para adiar a realização do exame que é porta de entrada para o ensino superior. Numa consulta do Ministério da Educação, a maioria dos estudantes votou pela realização do Enem 2020 em maio deste ano. Mas a prova foi aplicada em dois domingos de janeiro, em plena segunda onda da doença que voltou a matar mais de mil pessoas por dia no país. Metade dos inscritos faltou à mais excludente edição da prova. Aos bem-nascidos, vagas na universidade; aos empobrecidos, decepção, frustração, evasão. Contra a desigualdade patológica não há vacina.
Ruy Castro: Novas definições para Bolsonaro
Outros 146 substantivos e adjetivos que têm sido aplicados a ele
Na quarta-feira (27), arrolei 24 epítetos para definir Jair Bolsonaro, recolhidos por mim nos mais diversos veículos. Alguns leitores acharam a lista insuficiente. Um deles, meu amigo João Augusto, grande produtor musical, me mandou sua própria lista, que ele começou a compilar já no dia da posse de Bolsonaro. Eis:
Abjeto, abominável, abutre, achacador, acintoso, alimária, amoral, animal, asno, asqueroso, assassino, atroz. Babaca, baderneiro, belicista, beócio, besta-fera, biltre, boçal, boca-suja, bosta, brega, bronco, bufão. Cabotino, cafajeste, cafona, canalha, canastrão, cancro, capadócio, carbonário, cascavel, catastrófico, cavalgadura, charlatão, chulo, cínico, complexado, contagioso, crasso, cruel. Daninho, dantesco, debochado, degenerado, degradante, delinquente, demagogo, depravado, desbocado, desequilibrado, desleal, déspota, desprezível, desqualificado, destrutivo, desumano, doente.
Ególatra, embusteiro, energúmeno, estafermo, esterco, estúpido, execrável. Falso, fanfarrão, farsante, frio, funesto. Grotesco. Hediondo, hiena, hipócrita, histérico, horroroso. Ignóbil, imbecil, imoral, ímpio, indecente, indecoroso, indefensável, indigno, inescrupuloso, infame, iníquo, insano. Jerico, Judas, jumento. Lesivo, lixo, lunático. Malévolo, malfeitor, mesquinho, mitomaníaco, monstruoso, mula sem cabeça. Narcisista, nauseabundo, necrófilo, nefasto, néscio, nojento.
Obsceno, obscurantista, odioso, oportunista. Paranoico, parasita, pária, parvo, patife, peçonhento, pernicioso, perverso, pilantra, pornográfico, primário, pulha, pústula. Rastaquera, recalcado, reles, repelente, réprobo, repulsivo. Safado, selvagem, sociopata, sórdido. Tétrico, tirano, torpe, tosco, traíra, trambiqueiro. Ultrajante. Vândalo, vigarista, vulgar. Xarope. Zoilo.
Com o perdão dos assassinos, necrófilos, bestas-feras e quaisquer categorias que se sintam ofendidas.
Maria Cristina Fernandes: Fim do auxílio congestiona miséria
Pesquisador vê o surgimento de novos pobres, egressos da classe média, que, sem emprego ou vacina, pressionam pela retomada do benefício governamental
Em dois domingos consecutivos de janeiro, o historiador Raphael Ruvenal, de 31 anos, saiu de casa, em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense, às 5h45 para, depois de três horas de trem, ônibus e barca, chegar a um colégio estadual em Niterói, a mais de 50 km dali, onde foi fiscal do Enem. Apesar de as provas só terem início às 13h30, todos os fiscais deveriam se apresentar às 8h45. Liberado às 19h, Raphael chegou em casa às 22h.
Por cada um dos dias do Enem, recebeu R$ 90. Descontado o transporte, sobraram R$ 73. Se as provas tivessem acontecido dez dias depois, seus vencimentos teriam sido 25,5% menores por causa do reajuste no transporte metropolitano já confirmado para o início de fevereiro. O ganho líquido só não foi mais reduzido porque a direção da escola ofereceu lanche para a jornada de 16 horas.
Para ser selecionado como fiscal, ele teve que se submeter a um curso on-line de 20 horas e a uma avaliação. Formado, com a ajuda do Prouni, e pós-graduado em história, roteirista e escritor, Raphael está desempregado há mais de um ano e tem penado para dar aulas particulares remotamente. Os R$ 146 que lhe renderam o Enem foram sua única renda ao longo de janeiro.
Falante, articulado e lido, Raphael resume numa frase a pedreira que enfrentou como fiscal do Enem: “Recusa trabalho quem pode”. Filho de uma diarista e de um agente administrativo do Ministério da Saúde, com renda de R$ 3,5 mil, Raphael não entrou para a fila da miséria porque vive com os pais. Beneficiário do auxílio emergencial até dezembro, o historiador da Baixada Fluminense é parte das mudanças no perfil da pobreza que emergiram com o fim do benefício.
Pesquisador do Centro de Estudos da Metrópole na USP e estudioso de desigualdade social, Rogério Barbosa apenas começou a mapeá-los, mas já descobriu que os novos empobrecidos pelo fim do auxílio estão no meio da distribuição de renda. Em sua maioria, são egressos do mercado formal que ainda não se recuperou e tinham, antes da pandemia, uma renda domiciliar per capita média de R$ 859. O pesquisador vê os pobres apenas de volta ao assento de baixo de uma gangorra da qual não saem desde 2015. Quem grudou no chão com o fim do auxílio, e não sabem como nem quando poderão sair, foram os mais remediados.
Morador do Chapéu Mangueira, comunidade da zona sul do Rio, Eduardo Henrique Baptista levava uma vida de classe média até o início do ano passado. Tocava, junto com a mulher, o bar do sogro, de onde a família tirava, por mês, uma renda de até R$ 4 mil. Com a pandemia, resolveu fechá-lo. Quem se manteve aberto continua faturando na comunidade, mas ele não quis ter o vírus por sócio.
Eduardo só continuou a vender água para dar conta do aluguel do imóvel de R$ 600. Para pagar o da casa em que mora, de R$ 800, se valeu mesmo foi do auxílio emergencial que ele e a mulher receberam. Em janeiro, não entrou mais nada. Para dar conta dos três filhos de 16, 11 e 8 anos, faz bicos no gerenciamento de redes sociais e na produção de eventos da pandemia, como “lives” e “streamings”, enquanto a mulher vende produtos de bronzeamento e faz sobrancelhas no Chapéu Mangueira. Mesmo com os bicos, o casal não consegue chegar na renda de R$ 1,2 mil que lhes garantia o auxílio.
Nas planilhas de Rogério Barbosa, o ano de 2020, sem auxílio emergencial, poderia ter deixado 28% das famílias com um rendimento aquém de um terço do salário mínimo per capita, que é a linha de pobreza no Brasil. E é a este patamar de miséria que o Brasil pode chegar sem a renovação do benefício, o que é mais do que o dobro da média de famílias abaixo da linha de pobreza registrada ao longo de 2020.
Como nas crises brasileiras sempre se descobre que dá para cavar mais o fundo o poço, Leandro Ferreira, presidente da Rede Brasileira de Renda Básica, foi atrás e encontrou um alçapão: a perda dupla do auxílio e do Bolsa Família. Com a calamidade pública foi suspensa a exigência da atualização cadastral do BF para a renovação bienal do benefício. Finda a calamidade, o bloqueio de beneficiários que não se recadastrarem passará a ser automático. A exclusão de dezenas de milhares de famílias do cadastro do Bolsa Família engordaria ainda mais a fila do programa, que já passa de 1,5 milhão.
No auge do auxílio emergencial, quando o programa incluía 68 milhões de pessoas, o valor injetado diretamente na veia dos consumidores passou de R$ 50 bilhões mensais. Em janeiro, ainda há beneficiários de parcelas em atraso. A partir de fevereiro, porém, essa transferência de renda mensal totalizará apenas R$ 2,7 bilhões. Por esse despenhadeiro, rola muito mais gente do que os beneficiários do auxílio. Foi na sua vigência, por exemplo, que a indústria de alimentos, construção civil e varejo tiveram o melhor ano da história.
Em meio à renda que despenca, o secretário de Fazenda de Alagoas, George Santoro, encontrou uma caverna. O fisco alagoano já foi impactado negativamente pela arrecadação do ICMS, mas o baque definitivo só é esperado para abril. Santoro calcula que, do saldo positivo de mais de R$ 166 bilhões em contas de poupança, R$ 100 bilhões tenham vindo da poupança digital aberta pela Caixa Econômica Federal, ao longo de 2020, para cada beneficiário do auxílio emergencial. Até abril os beneficiários que tiverem feito poupança vão queimá-la. Depois disso, acabou.
Gestores públicos, parlamentares, acadêmicos e os próprios beneficiários tendem a concordar, reservadamente, que teria sido preferível um auxílio de valor mais baixo e duração mais alargada. Santoro lamenta que tenha sido perdida a oportunidade de se aproveitar esse momento da pandemia para oferecer treinamento em larga escala para melhorar a empregabilidade dos beneficiários do auxílio para o pós-pandemia.
A volta do emprego sempre foi o maior escudo do Ministério da Economia contra a renovação do auxílio emergencial. As evidências de que essas expectativas não se confirmarão, no entanto, já arrefece a rejeição ao benefício. Ao longo da pandemia Rogério Barbosa passou a confiar tanto nos dados do Caged, cadastro informado pelos empregadores, quanto numa nota de 30. Prefere se guiar pelos dados da Pnad Contínua. E aposta até um lobo-guará numa onda de demissões em massa com o fim dos acordos de redução de jornada e salário a partir da caducidade da regra no fim de 2020. O que suas planilhas mostram é desolador: uma pobreza que caminha para repetir a da crise dos anos 1980.
No Congresso, dos quatro principais postulantes, Rodrigo Pacheco (DEM-MG) e Simone Tebet (MDB-MS), no Senado, e Baleia Rossi (MDB-SP) e Arthur Lira (PP-AL), na Câmara, apenas este último se mostrava resistente ao auxílio. Temia afugentar, precocemente, o apoio que tem hoje no mercado financeiro, mas passou a aceitá-lo e a catequizar suas plateias bem postas a fazer o mesmo.
A chave virou depois que cresceu a ameaça do impeachment. É uma conta de padaria. Sem o auxílio, cresce a insatisfação e a chance de ter povo na rua. O Datafolha (22/01) registrou queda de dez pontos percentuais entre aqueles que deixaram de receber o benefício. Com 40% de rejeição na primeira grande pesquisa de 2021, Bolsonaro só perde para Fernando Collor de Mello como o presidente de pior avaliação, desde a redemocratização, no início do segundo biênio do mandato. A mesma pesquisa mostrou que sete em cada dez brasileiros não têm uma renda alternativa ao auxílio.
O impeachment, que ainda não tem apoio majoritário entre os entrevistados, passa a ser um desfecho provável se a imagem do governo Bolsonaro continuar a se deteriorar pelo duplo desgaste do fim do auxílio e da demora na vacina. É tudo o que Lira não quer. Os dois impeachments de presidente da República registrados na história nacional, o de Fernando Collor de Mello (1992) e de Dilma Rousseff (2016), foram seguidos da cassação dos presidentes da Câmara, Ibsen Pinheiro (1994) e Eduardo Cunha (2016), que comandaram a degola dos chefes da nação. Para não ser o próximo da lista, corre para evitar a todo custo o impeachment. Nem que, para isso, Arthur Lira tenha que dar um cavalo de pau no ministro da Economia, Paulo Guedes. É este o cálculo político que faz com que a chance de renovação do auxílio emergencial já estivesse mais longe.
No outro lado do balcão, de quem vive sob o cerco das planilhas fiscais, a conta não fecha. O país hoje tem um perfil de dívida mais alongado a taxas mais baixas, mas o endividamento causado pela renovação do auxílio apavora as expectativas de aceleração da espiral de juro, inflação e (mais) desemprego. O resto do discurso já se conhece. O de que se dá com uma mão e se tira com a outra, embora beneficiários e prejudicados não sejam necessariamente os mesmos.
A renovação do auxílio também mantém de prontidão a guarda sobre os deslizes fiscais do governo. Uma nova calamidade pública autorizaria a abertura de novos créditos extraordinários, mas a gestão do “Orçamento de Guerra” em 2020 mostrou que as brechas fiscais dependem do tamanho da lupa que se use - e da chuva que caia sobre o teto. No limite, a despeito dos pavores do mercado e dos riscos fiscais, o auxílio é a alternativa que resta para o presidente ganhar tempo.
A PEC Emergencial, que corta gastos do governo, volta ao noticiário como tábua de salvação para possibilitar a adoção do auxílio sem apavorar os fiscalistas. Pouco têm importado as evidências de que, quanto mais enrolado fica o presidente, mais difícil é cortar gasto público. É neste pandemônio que o auxílio emergencial ensaia sua volta. Não pela consciência de que a fome não pode ganhar a macabra corrida contra o vírus, mas pela sobrevivência política de quem está no comando do espetáculo.
O Estado de S. Paulo: Planalto libera R$ 3 bi em obras a 285 parlamentares em meio à eleição no Congresso
Estadão teve acesso a planilha interna do governo com nomes de 250 deputados e 35 senadores contemplados; Luiz Eduardo Ramos, articulador político do Planalto, está à frente das negociações
Breno Pires e Patrik Camporez, O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA – Diante da disputa pelos comandos da Câmara e do Senado, o governo abriu o cofre e destinou R$ 3 bilhões para 250 deputados e 35 senadores aplicarem em obras em seus redutos eleitorais. O dinheiro saiu do Ministério do Desenvolvimento Regional. O Estadão teve acesso a uma planilha interna de controle de verbas, até então sigilosa, com os nomes dos parlamentares contemplados com os recursos “extras”, que vão além dos que já têm direito de direcionar.
A oferta de recursos foi feita no gabinete do ministro Luiz Eduardo Ramos. A Secretaria de Governo, que o general comanda, virou o QG das candidaturas dos governistas Arthur Lira (Progressistas-AL), que disputa o comando da Câmara, e de Rodrigo Pacheco (DEM-MG), do Senado. Nesta quarta, 27, o presidente Jair Bolsonaro disse que “se Deus quiser vai participar e influir na presidência da Câmara”, com a eleição de Lira para a vaga ocupada hoje por seu adversário Rodrigo Maia (DEM-RJ). Além de verbas, o governo também tem oferecido cargos a quem aceite votar nos dois nomes do governo, segundo relatos de parlamentares.
Dos 208 deputados que já declararam apoio a Lira, conforme o “Placar da Eleição” do Estadão, 125 nomes já estão na planilha da Secretaria de Governo, considerando apenas os que já garantiram fatias do Orçamento para projetos de seus interesses. Ao todo, 41 dos parlamentares estiveram em ao menos uma reunião no Palácio com Ramos desde dezembro, quando começaram as campanhas nas Casas. Na comparação com o placar da eleição para o Senado, dos 33 votos declarados para Pacheco, 22 nomes de senadores aparecem na planilha.
A planilha, informal e sem timbre, inclui repasses de recursos do orçamento da União que não são rastreáveis por mecanismos públicos de transparência. São os chamados “recursos extra orçamentários”, no linguajar usado no Congresso. Neste tipo de negociação, os valores são repassados a prefeitos indicados por deputados ou senadores sem que o nome do deputado fique carimbado, como ocorre com a emenda parlamentar tradicional. Desta forma, se houver alguma irregularidade na aplicação dos recursos não é possível saber se há algum envolvimento do parlamentar que direcionou a verba para determinada obras.
Na condição de líder do Progressistas, Lira foi priorizado com o direcionamento de R$ 109,5 milhões para serem distribuídos a projetos indicados por seus colegas de partido. Ele direcionou outros R$ 5 milhões a obras de pavimentação e drenagem de ruas no município de Barra de São Miguel (AL), onde seu pai, Benedito Lira, é prefeito. Procurado pela reportagem, o deputado não quis responder às perguntas relacionadas à planilha.
PARA ENTENDER
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A Casa Civil também foi procurada para comentar e se Bolsonaro tem conhecimento da planilha. A pasta se limitou a dizer que, “sobre este tema, a reportagem deveria procurar a Secretaria de Governo”, chefiada por Ramos. O ministro afirmou que as planilhas não são da sua pasta. “Não está havendo nenhuma conversa relativa a negociação de voto. Seria até ofensivo, de minha parte, negociar voto em troca de cargos e emendas”, disse o general.
Ter aliados nos comandos da Câmara e do Senado é considerado determinante nos planos de reeleição de Bolsonaro, em 2022. O presidente admite interferir na disputa para conseguir impor sua agenda ideológica nos dois últimos anos de mandato. Como mostrou o Estadão, a intenção é também barrar eventuais CPIs que mirem seu governo, filhos e apoiadores ou o avanço de pedidos de impeachment.
O “toma lá, dá cá” de recursos públicos em troca de apoio, porém, vai de encontro ao que o presidente pregou durante a campanha eleitoral de 2018. “O nosso maior problema é o político. São as indicações políticas. É o ‘toma lá dá cá’ e as consequências desse tipo de fazer política são a ineficiência do Estado e a corrupção", afirmou Bolsonaro na época, em um dos vídeos de sua campanha.
Os recursos comprometidos pelo balcão de negócios do Planalto saíram das conversas entre Ramos, articulador político de Bolsonaro, e congressistas. Os valores já estão empenhados no Orçamento, a primeira etapa para que o pagamento seja efetivamente feito. A engenharia do ministro supera em volume, em muitos casos, as tradicionais emendas parlamentares – limitadas a um total de R$ 16,3 milhões por parlamentar – e compartilha, num acordo sem transparência, a gestão orçamentária de ministérios. Para efeito de comparação ao montante gasto nestas negociações, o governo federal empenhou, em todo o ano de 2020, R$ 3,9 bilhões em emendas para a área da atenção básica da saúde pública.
Lira tem influência em todas as etapas do processo de liberação de recursos. Ele negocia diretamente com o Planalto e tem apadrinhados em postos chaves no próprio Ministério de Desenvolvimento Regional e órgãos vinculados, como na Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf) e o Departamento Nacional de Obras contra as Secas (Dnocs). O secretário nacional de Mobilidade e Desenvolvimento Regional e Urbano, Tiago Pontes Queiroz, listado como autoridade competente para alguns dos contratos da Codevasf, foi indicado à pasta no ano passado por Lira e pelo presidente do Progressistas, senador Ciro Nogueira (PI).
Deputados ouvidos pela reportagem relataram que o grupo político de Lira tem orientado os parlamentares a se dirigirem pessoalmente ao gabinete de Ramos no Planalto. Em reunião a portas fechadas, contam, o ministro questiona se o parlamentar estaria disposto a declarar voto no candidato do PP em troca do empenho de dinheiro do orçamento em obras em seu reduto. Após sinalizar interesse no acordo, o nome do deputado é imediatamente incluído na planilha de monitoramento dos repasses das verbas.
‘É muito mais’
Uma parte dos nomes citados na planilha do governo é dissidente de partidos que apoiam a campanha do deputado Baleia Rossi (MDB-SP), adversário de Lira na disputa. Nela estão os deputados da bancada baiana do DEM ligados ao ex-prefeito de Salvador ACM Neto, como Leur Lomanto (R$ 12 milhões), Arthur Oliveira Maia (R$ 7,5 milhões) e Paulo Azi (R$ 6,5 milhões). Os parlamentares posaram para fotos com Lira na segunda-feira passada, durante jantar em Salvador. Na manhã de quarta-feira, Lomanto foi ao Planalto conversar com Ramos. Por sua vez, Paulo Azi, presidente do partido na Bahia, esteve com o chefe da Secretaria de Governo em dezembro. PARA ENTENDERVeja o placar da eleição para presidente do SenadoRodrigo Pacheco (DEM), Simone Tebet (MDB), Major Olímpio (PSL) e Jorge Kajuru (Cidadania) são os candidatos à presidência da Casa; saiba como estão distribuídos os votos para a sucessão de Davi Alcolumbre por Estado e por partido
À reportagem, Arthur Maia admitiu que o envio de fatias do orçamento aos Estados foi tratado com os deputados. Ele, no entanto, negou que as conversas tivessem relação com a eleição na Câmara. O parlamentar disse ainda desconhecer a citação de seu nome na planilha. “Da minha parte não tem nada a ver”, afirmou. Em relação aos recursos atrelados a ele, o deputado citou que, além desse valor, conseguiu outros recursos. “Está errado, é muito mais do que isso ao longo de 2020. Porque você sabe: tem as emendas parlamentares, mas depois tem algumas liberações. Agora, não tem nada a ver com a candidatura de Arthur Lira”, disse. “Me perdoe, você está me humilhando dizendo que só consegui R$ 7,5 milhões para a Bahia”, ironizou.
Planilha mostra modelo de gestão sem regras
A planilha informal de controle de recursos extras da Secretaria de Governo revela, pela primeira vez, a impressão digital de deputados e senadores em contratos que são divulgados sem citações de nomes. Diferentemente das emendas parlamentares, os sistemas de rastreamento do dinheiro público não vinculam as verbas extraordinárias ao deputado ou ao senador que as indicou. O Estadão só chegou à identidade dos congressistas porque eles estão nominados nessa planilha informal. A destinação do crédito extra, que deveria primar por critérios técnicos, expõe um modelo de gestão sem critérios claros e formais.
Para formalizar o direcionamento dos recursos, o governo aproveitou os Projetos de Lei do Congresso (PLN) 29 e 30, aprovados em novembro e dezembro do ano passado, que totalizaram um crédito suplementar de R$ 12,4 bilhões a diversas áreas da administração. Foi desse valor que o Planalto retirou os recursos empenhados a obras sugeridas pelos parlamentares, isto é, reservados para aplicação sem necessidade de novas autorizações.
Parlamentares ouvidos pela reportagem observam que a distribuição de recursos em meio a disputas no Legislativo vai além e ocorre também em pastas como Turismo e Infraestrutura. O presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), chegou a estimar, em entrevista, um gasto total do governo de R$ 20 bilhões para eleger Lira. Ele questiona de onde o governo vai tirar esse dinheiro para cumprir as promessas feitas parlamentares, uma vez que Orçamento deste ano está bastante limitado.
Datada de 12 de janeiro, a planilha obtida pela reportagem junto a interlocutores do governo tem 71 páginas com descrições - muitas vezes em linguagem informal - de propostas de contratos que foram indicados pelos parlamentares. O documento detalha a situação atual de cada proposta. Ao lado do valor acordado, estão citadas as origens dos recursos - na maior parte deles, os projetos de lei do Congresso (PLNs) 29 e 30, além de outros de números não descritos. Os PLNs são usados pelo governo para abrir créditos extras no Orçamento sem desrespeitar regras fiscais. A reportagem confirmou no Portal Mais Brasil, que concentra as informações de repasses de verbas federais a Estados e municípios, que os contratos citados na planilha estão em execução.
Pela portaria 424 do Ministério do Planejamento, de 2016, as normas de transferências de recursos da União para prefeituras preveem que os projetos devem ser selecionados de maneira técnica e recomendam que haja chamamento público no prazo mínimo de 15 dias para que interessados apresentem as propostas. A planilha “Segov 2020 Extra”, no entanto, indica que esse prazo não foi obedecido em muitos casos. Os contratos e convênios para obras foram assinados, às pressas, em dezembro, muitos deles somente dois dias após serem indicados pelos parlamentares.
Além desses recursos já empenhados, a planilha da Secretaria de Governo aponta uma série de indicações feitas por deputados que não tiveram o dinheiro garantido, em valores somados de R$ 707 milhões. Desse volume, R$ 585 milhões não foram empenhados ou redirecionados "por falta de tempo hábil".
Num jantar com deputados de diversas siglas, na segunda-feira passada, no Espírito Santo, Lira foi questionado sobre a possibilidade de o Planalto não conseguir manter os acordos com os parlamentares. O candidato prometeu que, assim que for eleito, vai colocar para votação um novo PLN para abrir mais créditos extraordinários. Por meio de sua assessoria, Lira disse que a “campanha” não irá rebater “invenção sem cabimento com o único propósito de baixar o nível nesta reta final”.
Influência
Deputados e senadores buscam verbas federais para aumentar a influência em seus redutos e garantir a reeleição nas urnas. Com os recursos, eles passam a ter liderança em relação a prefeitos e outros chefes políticos locais. É, por conhecer esse atalho na busca de poder político, que o próprio presidente Jair Bolsonaro tem usado o telefone na cobrança de apoios explícitos a Lira. No começo da semana, ele exigiu que o senador Fernando Bezerra (MDB-PE) impedisse o filho, o deputado Fernando Bezerra Filho (DEM-PE), de participar de um evento público da campanha de Baleia Rossi.
O senador foi contemplado com R$ 125 milhões. Mas, no seu caso, a presença na lista não tem ligação direta com as disputas das mesas diretoras do Legislativo. Ele já é líder do governo no Senado. Esse é a situação ainda dos deputados licenciados e ministros Tereza Cristina e Fábio Faria (Comunicações), que indicaram R$ 24 milhões e R$12,8 milhões, respectivamente. Assim como de aliados influentes do Planalto, como os senadores Davi Alcolumbre (DEM-AP) – R$ 277 milhões – e Ciro Nogueira – R$ 135 milhões –, cujos apoios vão além das alianças nas eleições do Congresso.
As transferências de valores previstos na planilha do governo incluem também partidos que ainda não decidiram qual candidato vão apoiar. É o caso do Podemos, que terá uma reunião com Lira no domingo à tarde. O deputado José Nelto (GO) esteve com o ministro da Secretaria de Governo nesta quarta-feira, 27. À reportagem, o parlamentar relatou que o ministro não pediu apoio ao candidato do Planalto, mas o questionou se a bancada do partido havia definido em quem votaria. Nelto teve R$ 13 milhões liberados no fim do ano. A destinação seriam obras na cidade de Formosa-GO. “Uma obra técnica”, disse.
O deputado afirmou à reportagem que a liberação de recursos extras tem sido comum no governo Bolsonaro. “Isso não foi feito só agora, foi feito em 2019, foi feito em 2020, eu comandava a bancada (do Podemos) e liberei no fim de ano R$ 50 milhões de cada parlamentar. Era de PLN, o mesmo modus operandi. Não sei se tinha em governos anteriores, porque este é meu primeiro mandato”, disse. O parlamentar avalia que não se trata de compra de apoio político. “Eu não tenho compromisso algum. Não há posição ainda. Qualquer candidato terá de assumir compromisso de colocar em votação as pautas do nosso partido, para obter nosso apoio.”
Os demais parlamentares citados na reportagem também foram procurados, mas não se manifestaram até o momento.
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Míriam Leitão: Mundo paralelo da equipe econômica
No ano passado o mercado de trabalho encolheu, fortemente. É até óbvio. Aqui e no mundo a pandemia foi devastadora para o emprego. A equipe econômica de Jair Bolsonaro quer fazer crer que houve criação de emprego e que ao fim do ano o país tinha 142.690 de vagas a mais com carteira assinada do que em 2019. No mesmo dia, no mesmo governo, a informação do IBGE é que no trimestre terminado em novembro havia 3,5 milhões de trabalhadores a menos com carteira assinada em relação a 2019. No mercado como um todo, a queda é de 8,8 milhões de pessoas ocupadas.
O Caged, divulgado pelo Ministério da Economia, registra as demissões e contratações do mercado formal. O IBGE faz a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad). Eles medem coisas diferentes, mas quando o IBGE diz que são empregados com carteira está, teoricamente, medindo a mesma parcela do mercado de trabalho que o Caged. Em algum momento, deveriam convergir, mas estão discrepantes.
O ministro Paulo Guedes anunciou o número do Caged, que registrava perda de emprego, 67 mil em dezembro, mas que terminava o ano com o saldo positivo. E o fez repetindo discurso político com comparações com o pior período petista.
Uma perda de tempo, porque ele poderia até contar uma boa história comparando esse ano singular que foi 2020 com o que poderia ter sido. As medidas do governo de fato atenuaram as demissões e a recessão. O PIB deve ter uma queda em torno de 4,5%. As previsões iniciais eram bem piores. Mas não há como negar que foi um ano terrível para o mercado de trabalho.
O economista Daniel Duque, do Ibre/FGV, que foi um dos primeiros a alertar para a diferença que estava acontecendo entre o Caged e o IBGE, tinha no começo duas hipóteses para a discrepância: subnotificação e metodologia.
— A subnotificacão aconteceu mais no meio da pandemia, lá para abril a junho — explicou.
O Caged é feito a partir da informação das empresas. Muitas fecharam as portas e nada informaram. Houve dificuldade de registro também por causa de mudança na metodologia que houve em janeiro do ano passado. Emprego intermitente antes não era obrigado a informar. Agora no novo Caged é. Há outras alterações que parecem confusas até para os especialistas.
— A questão toda é que quando a gente tem uma série é preciso ter referência sobre como ela se comporta. O Caged sempre teve correspondência boa com o PIB e nível de atividade. Quando acelera, tem emprego e vice-versa. O novo Caged a gente não sabe mais a referência. Num ano de queda do PIB, há geração líquida de 142 mil vagas — diz Daniel Duque.
E o IBGE, o que disse ontem? A Pnad mostra dados trimestrais. De setembro a novembro o Brasil chegou a uma taxa de 14,1% de desocupação, ligeiramente menor do que no trimestre anterior terminado em agosto. Mas representando 14 milhões de pessoas desempregadas, ou seja, procuraram emprego e não encontraram. Com a pandemia, a necessidade de distanciamento social, as medidas restritivas mais severas, muita gente nem procura emprego. Então não entra na estatística. Os desalentados, que nem pensam em procurar, são 5,7 milhões. Há uma grande tragédia no mercado de trabalho. Não adianta agarrar-se a um dado que deu positivo para elogiar-se e atacar o adversário político. Ademais, Ministério da Economia deveria ser técnico, e não ficar todo o dia atravessando a rua para brigar do outro lado.
Daniel Duque ajuda a entender essa complexidade que está sendo medir o que acontece no mercado de trabalho no meio da pandemia:
— Pnad e Caged contam histórias muito diferentes. Desde o início da pandemia, o Caged mostrava uma queda muito menor do emprego, e depois passou a mostrar uma recuperação mais forte do que o dado da Pnad para o emprego formal. O IBGE, quando mostra a recuperação do emprego, é principalmente do informal. Eu tendo a acreditar mais na Pnad Contínua por vários motivos. Um deles é que tem maior correspondência com a atividade econômica.
Equipe econômica que se agarra a um número parcial positivo e não vê o todo não ajuda muito a enfrentar a crise. Até porque nós estamos em novo agravamento do número de mortes e contágios, e há muita incerteza na economia. O país tem um outro ano duro pela frente em que a capacidade de formulação de políticas para atenuar os problemas será novamente exigida.
Alon Feuerwerker: Teste de resiliência
Adversários vão trabalhar com afinco o desgaste de Bolsonaro
Este ano de 2021 vai merecer um rótulo já bem usado: “decisivo”. Atravessar politicamente vivo é condição sine qua non para Jair Bolsonaro chegar a 2022 competitivo. E vai ser um ano daqueles. Mesmo que a vacinação se prove um sucesso, seus efeitos macro só devem ser sentidos em (muitos) meses. Um período suficientemente longo para os adversários trabalharem com afinco o desgaste presidencial.
Três ameaças rondam o Palácio do Planalto. Um agravamento da Covid-19, um repique da recessão e uma instabilidade institucional — essa última podendo vir do Legislativo ou do Judiciário. Para atravessar o ano, o presidente e seu governo precisarão mostrar capacidade operacional e política num cenário de turbulências, em que deixar o avião no piloto automático não será opção.
Sobre o agravamento dos índices da pandemia aqui no Brasil, mesmo países com vacinações muito mais agressivas enfrentam pioras de curto prazo nos índices da Covid-19. E há as novas variações do Sars-CoV-2. E junto vem a dúvida sobre se as vacinas produzidas a partir do vírus “velho” servem para combater os novos. Ou quanto tempo levará para adaptar os imunizantes, se isso for necessário para que sejam eficazes contra as novas variantes.
A segunda onda da Covid-19 terá necessariamente impacto na economia. Pois a reação natural das autoridades locais vai ser apertar o torniquete do isolamento e do distanciamento sociais. Haverá reação popular, então se pode prever movimentos de sístole e diástole, por um período em que a única certeza será a incerteza sobre que medida governadores e prefeitos vão tomar no dia seguinte ao anúncio de novos números.
E tem o fim do auxílio emergencial e demais medidas protetoras da economia popular na pandemia. Aqui, é previsível o Congresso Nacional recriar algo parecido. Mas os parlamentares tentarão impedir que Jair Bolsonaro, ao contrário da vez anterior, fature politicamente sozinho as benesses para o povão. A dúvida? Qual será a reação do mercado financeiro a um eventual furo no teto de gastos?
E a chacoalhada institucional? Ela estará contratada se os candidatos apoiados pelo presidente não vencerem as disputas pelo comando das duas Casas do Congresso Nacional. Principalmente a da Câmara dos Deputados. Saberemos em dias o que vai acontecer. Mesmo vitórias oficialistas não devem impedir que a oposição, agora anabolizada pela aliança entre a esquerda e a direita não bolsonarista de olho em 2022, coloque minas prontas a explodir no campo presidencial.
Se Jair Bolsonaro sair vitorioso das votações do dia 1º de fevereiro, poderá contar com a pressão do empresariado para o Legislativo voltar a dar foco à agenda liberal, em vez de paralisar-se numa guerra política sem solução de curto prazo. Já os políticos, mais ainda os que disputam com o presidente o apoio do establishment, têm planos próprios e não vão dar trégua.
Também por saberem que Bolsonaro mostrou em ocasiões anteriores possuir resiliência, ou seja, a capacidade de voltar à forma e ao tamanho originais depois de uma crise.
E talvez ele nunca tenha precisado tanto disso quanto vai precisar agora.
*Alon Feuerwerker é jornalista e analista político/FSB Comunicação
Publicado em VEJA de 3 de fevereiro de 2021, edição nº 2723
Murillo de Aragão: O jogo do impeachment
Tema renasce em razão dos pedidos contra Bolsonaro
Desde 1992, como analista político, convivo com a questão do impeachment. Naquele ano, quando Fernando Collor entrou na mira do Congresso, nosso call foi o de que o impeachment seria inevitável. No caso do mensalão, escândalo envolvendo a compra de apoio no Congresso pelo governo que veio a público em 2005, tivemos uma abordagem mais cautelosa. O impeachment de Lula, então presidente da República, não era óbvio, apesar da gravidade das acusações.
No final do primeiro mandato do governo Dilma Rousseff, por causa da Operação Lava-Jato e da mastodôntica incompetência política da presidente, o impeachment reapareceu como possível no radar político. Deu no que deu. Já no governo de Michel Temer, quando ocorreu o episódio JJ (Joesley Batista e Rodrigo Janot), muitos apostaram que o impeachment seria aprovado. Nosso call foi o de que isso não aconteceria. E não aconteceu.
Para avaliar a questão, devemos examinar três aspectos críticos: a popularidade do presidente, sua base política e o motivo do pedido. Obviamente, um presidente popular é menos vulnerável ao impeachment, independentemente da gravidade do motivo. Temer, porém, embora não fosse popular, sobreviveu aos pedidos de abertura do processo contra ele por causa de um aspecto fundamental: ele tinha uma base política no Congresso.
O terceiro elemento da equação é o motivo. Por incrível que pareça, esse é o menos importante. Salvo um motivo extravagante e inquestionável, um presidente da República não sofre impeachment apenas por ter cometido uma falta ou um crime. Em se tratando de julgamento político — e não jurídico —, a conjuntura e as circunstâncias, assim como o seu apoio político, são o que mais pesam no início e ao longo da tramitação.
Nos casos de Collor e Dilma, houve uma conjunção de fatores determinantes: baixa popularidade; fragilidade política no Legislativo; e existência de motivo. Collor e Dilma eram impopulares nas ruas, na imprensa e no Parlamento. Já Lula era popular nas ruas e entre deputados e senadores. Temer era impopular na imprensa e na opinião pública, mas forte o suficiente no Congresso para impedir o avanço do processo.
No alvorecer de 2021, o tema volta ao debate pela existência de dezenas de pedidos de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro no Congresso. No entanto, a questão não é simples. Muitos desses pedidos visam apenas ao desgaste político pensando no futuro. Outros são feitos na base do “vai que cola”.
A possibilidade de impeachment de Jair Bolsonaro, no momento, não parece viável, já que o apoio político a ele e a sua popularidade lhe servem de proteção. As circunstâncias teriam de piorar muito para que tanto a sua base política quanto a sua popularidade se tornassem tóxicas à sua permanência no Palácio do Planalto.
Deixando a fria análise de lado, acredito que, para o país, mais um processo de impeachment seria extremamente desgastante. Por outro lado, as crises políticas devem ser resolvidas. E de preferência com negociação, entendimento e sempre dentro das regras constitucionais.
Publicado em VEJA de 3 de fevereiro de 2021, edição nº 2723
Eliane Cantanhêde: Vitória do chiclete
Como Pazuello e Forças Armadas, Congresso adere ao ‘Bolsonaro manda, todos obedecem’
Parabéns, presidente Jair Bolsonaro! Quanto mais erra escandalosamente em todas as frentes de combate à pandemia, com um saldo macabro acima de 220 mil mortos e 9 milhões de infectados, mais ele vai se revelando um craque sem escrúpulos no jogo da velha política. Interfere em outro Poder, não desperdiça em emendas e cargos e está a dias de botar no bolso os presidentes da Câmara e Senado. De quebra, embaralhou o tabuleiro da oposição para 2022.
O Centrão e a direita estão unidos e de barriga cheia, enquanto o PT trincou vergonhosamente as esquerdas no Senado e o DEM da Bahia traiu miseravelmente Rodrigo Maia na Câmara. É assim que o PT vai inviabilizando uma frente de esquerdas, ao mesmo tempo em que o DEM do ex-prefeito ACM Neto dá as mãos ao DEM de Davi Alcolumbre para queimar a largada de uma candidatura de centro em 2022. A reeleição de Bolsonaro agradece.
Nunca se viu o presidente irritado, ao menos chateado, diante do avanço do coronavírus e das mortes de milhares de brasileiros. Sempre que ele aparece bravo, aos palavrões, é porque a PF e o Ministério Público descobriram mais uma dos filhos ou porque a imprensa revelou mais um chiclete e um leite condensado milionários. O País que se dane. Só importa o que dói nele e na família.
Depois de “cuidar” dos órgãos de investigação do governo, Bolsonaro agora avança pelos outros Poderes. O ministro Kássio Nunes está a postos no Supremo, o deputado Arthur Lira (PP-AL) vai trancar o impeachment na Câmara e o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG) se prepara para enquadrar o Senado.
O Congresso vira a página de independência do Executivo e abre capítulos de vitórias de Bolsonaro. A CPI da Saúde é natimorta, a das Fake News perde fôlego, a “boiada” do Meio Ambiente vai passar e os retrocessos em armas, gênero e orientação sexual são favas contadas. Ficará evidente a simbiose entre Legislativo e Executivo, ou a submissão da pauta do Congresso aos interesses e crenças pessoais de Bolsonaro.
Na economia? Bem... Desde a campanha, a dupla personalidade do governo é óbvia, basta confrontar a vida e obra de Bolsonaro no Exército e na Câmara com o discurso dele como candidato e depois presidente. E, assim como Pazuello é escudo na Saúde, Ernesto Araújo na política externa e Ricardo Salles no Meio Ambiente, Paulo Guedes é na economia.
Nada anda. As reformas administrativa e tributária estão amarelando e dois símbolos das privatizações jogaram a toalha, o secretário de Desestatização e agora o presidente da Eletrobrás. Guedes engole as desfeitas do chefe e rebate a culpa para Rodrigo Maia, o Congresso, a esquerda. Todo mundo tem culpa, menos o presidente – que a vida inteira agiu na direção exatamente oposta à do seu ministro da Economia.
Quanto mais a popularidade cai e a pressão por impeachment sobe, mais Jair Bolsonaro adapta seu discurso às conveniências, joga o governo nas mãos de ministros e assessores e vai se revelando o verdadeiro Jair Bolsonaro. Bom de lábia, palavrão, velha política, estatização e ideologia de fundo de quintal. E ele tem estratégia e alvo certo, o Congresso, sem se descuidar do Supremo. Em julho, Kássio Nunes ganha reforço.
Até agora fundamentais contra as investidas golpistas e retrocessos bolsonaristas, Congresso e Supremo serão os pilares de Bolsonaro, apesar da absurda incompetência e da má-fé na contratação de vacinas, na condução da pandemia, no investimento em cloroquina, nas rachadinhas e chicletes. Em vez de impeachment, Bolsonaro colhe vitórias. Como Pazuello e Forças Armadas, o Congresso adere ao “um manda, o outro obedece”. O próximo deve ser o Supremo. Depois, não adianta chorar sobre o leite derramado. Nem condensado.
Merval Pereira: A incerteza continua
A decisão do ministério da Saúde de não garantir a compra das 54 milhões de doses de Coronavac produzidas pelo Instituto Butantan não tem explicação, a não ser essa interminável guerra política entre o governo central e o governador de São Paulo João Dória. Não há vacina suficiente no mundo até o momento, mesmo os países desenvolvidos estão com problemas para vacinar seus cidadãos, e o Brasil parece menosprezar a possibilidade de adquirir milhões de doses, simplesmente por sua origem, não mais chinesa, mas paulista.
Essa birra está dando oportunidade a que Dória amplie o alcance de seu nome a nível nacional, prometendo vender as vacinas para outros estados, que lutam para conseguir as doses que o governo central não teve capacidade de garantir. A incerteza é tamanha que ontem, ao anunciar o calendário para vacinação na cidade do Rio de Janeiro de pessoas acima dos 80 anos em fevereiro, o secretário de Saúde Daniel Soranz avisou que as datas dependem da chegada das doses das vacinas da AztraZeneca da Fiocruz, e Coronavac do Instituto Butantã.
Nós, que não somos do primeiro mundo, estamos arriscados a ficarmos sem vacina por um bom tempo, já que a escassez de produção no mundo está obrigando a que várias mudanças sejam feitas na entrega das doses, e na utilização das vacinas. Já há países que pretendem dar apenas a primeira dose das vacinas, para conseguir começar a imunizar mais cidadãos. Aqui no Brasil, esta possibilidade foi aventada, mas o Instituto Butantan insiste em que as doses da Coronavac devem ser aplicadas com uma diferença máxima de 15 dias.
A vacina da AztraZeneca pode levar até três meses entre as doses, o que a torna mais atraente para o momento inicial da produção. Mas a União Européia pode exigir que a farmacêutica inglesa não exporte suas vacinas antes de garantir a vacinação nos países europeus. Isso dificultaria a chegada das vacinas a países periféricos como o Brasil. Vem da Alemanha também a advertência de que a vacina da AstraZeneca não é aconselhável para pessoas acima de 65 anos, o que, se confirmado pela União Européia, pode causar problemas até mesmo por lá, onde já começou a vacinação em alguns países com ela, justamente entre os idosos.
Além de toda a trapalhada que o governo fez nas negociações e nas compras, existe esse problema real, com a União Européia já ameaçando proibir a AstraZeneca de exportar antes de servir aos países do continente. É uma situação que não deveria ser assim, mas é. Quem tem mais dinheiro, leva. Isso já se evidenciou no início da pandemia, quando respiradores e material médico foram disputados em leilões onde os países mais ricos levaram vantagens.
Devido à inépcia do governo, estamos nas mãos de duas farmacêuticas produtoras de vacinas, embora existam várias outras sendo aplicadas no mundo. A vacina da Pfizer, por exemplo, foi recusada pelo governo brasileiro sob a alegação de que as condições para a venda eram inaceitáveis. A vacina está sendo aplicada em diversos outros países, e possivelmente as condições são as mesmas. Só seria cabível a decisão de recusar a vacina se tivéssemos certeza de que a farmacêutica alemã não exigiu de outros países que assumissem os riscos de efeitos colaterais, livrando-a de processos judiciais. A FIFA também fez essa exigência para a realização da Copa do Mundo de 2014, e o governo brasileiro aceitou.
A política correta seria comprar qualquer vacina que estivesse à mão, desde que aprovada por organismos internacionais de controle reconhecidos no mundo. Tivemos uma negociação mal feita e pretensiosa, achando que o mercado brasileiro seria atraente. Ora, o mundo tem 7 bilhões de pessoas e os mercados dos EUA e da União Européia são muito maiores do que o nosso, sem contar a China e a Índia. Há mais demanda que oferta, e, portanto, não temos margem de barganha em compras que custam vidas.
Foram erros de estratégia, de negociação e de avaliação, porque o governo não teve, nem tem, a dimensão exata da crise, que vai se aprofundar nos próximos meses, enquanto continuamos com uma vacinação muito lenta e precária, o que faz com que o vírus se espalhe mais rapidamente, especialmente a nova variante encontrada em Manaus.
Ricardo Noblat: Os fatos teimam em contrariar as falas do presidente
Diário do dia de ontem
O dia em que o presidente Jair Bolsonaro disse que “está fazendo a coisa certa e que não é fácil fazer a coisa certa “foi também o dia em que ele, em live no Facebook, reforçou o desejo de que as torcidas voltem a frequentar os estádios. Em suas palavras:
Temos que voltar a viver, pessoal. Sorrir, fazer piada, brincar. Voltar (o público) nos estádios de futebol o mais cedo possível, que seja com uma quantidade menor, 20%, 30% da capacidade do estádio.
Foi também o dia em que Bolsonaro aconselhou a um grupo de devotos admitido nos jardins do Palácio da Alvorada:
Se eu fosse um dos muitos de vocês, obrigados a ficar em casa, ver a esposa com três, quatro filhos, e eu não ter, como chefe do lar, como levar comida para a casa, eu me envergonharia. Sempre disse que a economia anda de mãos dadas com a vida.
E foi também o dia que em visita a Propriá, na divisa entre Sergipe e Alagoas, ele discursou para uma pequena multidão:
A Europa e alguns países aqui da América do Sul não têm vacina. Sabemos que a procura é grande. Nós assinamos convênios, fizemos contratos desde setembro do ano passado com vários laboratórios. As vacinas começaram a chegar. E vão chegar, para vacinar toda a população em um curto espaço de tempo.
Nesse dia, o Brasil registrou o terceiro maior número de novas mortes por covid-19 em um intervalo de 24 horas. Foram 1.439 óbitos e 60.301 novos casos da doença. No total são 221.676 óbitos até agora e 9.060.786 pessoas contaminadas.
E o Instituto Butantã revelou que tem 54 milhões da vacina Coronavac em estoque, mas que o governo federal não quer dizer se irá comprá-las ou não. Há Estados e países interessados em comprar, mas o silêncio do Ministério da Saúde é um empecilho.
E o Lowy Institute, centro de estudos baseado em Sydney, na Austrália, apontou em relatório que o Brasil foi o país que teve a pior gestão pública durante a pandemia. Ficou na última posição entre 98 governos avaliados.
Ainda nesse dia, recém-nomeado assessor especial do Ministério da Saúde, o general Ridauto Fernandes afirmou que Manaus tem quase 600 pacientes de Covid-19 na fila de atendimento e que, caso evoluam para quadros graves, “vão morrer na rua”.
Em reunião da comissão externa do coronavírus na Câmara dos Deputados, Fernandes enfatizou que o gargalo está na falta de oxigênio. “Abre o leito, bota o paciente e ele vai morrer asfixiado no leito. E aí, vai adiantar abrir o leito?”.
O alerta do general foi ampliado por Luiz Henrique Mandetta, ex-ministro da Saúde, em entrevista à TV Cultura. Ao comentar a disseminação da nova variante do coronavírus detectada em Manaus, Mandetta previu:
Provavelmente, a gente vai plantar essa cepa em todos os territórios da federação e daqui a 60 dias a gente pode ter uma mega epidemia.
Pergunta que não cala: a quem os militares devem obediência?
Pandemia é uma guerra
O presidente da República manda a imprensa enfiar latas de leite condensado (você sabe onde) e desce ao nível mais baixo da cadeia alimentar dos seres vivos. Para manter o mesmo diapasão: alguém aqui imaginou ver general e coronéis interventores do Ministério da Saúde fazendo c* doce para comprar mais vacinas do Butantan?
Logo as únicas que o país produz até agora no decorrer de uma pandemia que não para de piorar. Não passa pelo terreno baldio que eles carregam em cima do pescoço que, se demorar a comprar, a China e a Sinovac não terão mais insumos para fornecer este ano? E que a produção é limitada e todo o mundo corre atrás?
Existe corte marcial no Brasil, como em todos os países do mundo que têm forças armadas, para julgar crimes de guerra e contra a humanidade? Combater a pandemia é um tipo de guerra. Angela Merkel, chanceler da Alemanha, disse que a pandemia é o pior evento enfrentado pela humanidade desde a Segunda Guerra.
O povo brasileiro ainda faz parte da humanidade? Os generais e coronéis do Ministério da Saúde não enfrentarão nenhum julgamento? Ou vamos, de novo, anistiar geral e criar outra Comissão Nacional da Verdade para expor seus crimes daqui a cinquenta anos em cima de uma montanha de cadáveres?
O pretexto da luta contra o comunismo absolveu no passado torturas e mortes. E agora? Alegar “obediência devida” a um superior hierárquico no limite da insanidade absolverá outra vez? O Exército acredita mesmo que está desvinculado do ministério militarizado da Saúde e comandado por um general da ativa?
Se o Brasil estivesse em um conflito bélico, e as vidas dos soldados corressem grave risco, os generais refugariam mais munição e armamento? Pediriam quatro meses para pensar a respeito? Os soldados ainda teriam uma vantagem sobre nós: poderiam desertar e sumir no mundo. Nós não temos para onde fugir.
As Forças Armadas brasileiras juram obediência à Constituição e lealdade ao povo ou a um indivíduo que, por palavras, exemplos e ações induz à morte os que o elegeram e também os que votaram contra ele?