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O Estado de S. Paulo: Falta de valorização da ciência prejudicou combate à pandemia, diz presidente do Einstein
Um ano após registro do primeiro caso de covid no País, detectado no hospital, Sidney Klajner critica a postura de médicos, do CFM e de governantes que negaram evidências científicas no combate à doença
Fabiana Cambricoli, O Estado de S.Paulo
SÃO PAULO - Há pouco menos de um ano, em 25 de fevereiro de 2020, o Brasil registrava seu primeiro caso de covid-19. O paciente, vindo da Itália, teve o diagnóstico confirmado no Hospital Israelita Albert Einstein, que viu o número de internados explodir nos dois meses seguintes, chegando a 135 em abril. Passado quase um ano do início da pandemia no País, o hospital registrou, em janeiro, um pico ainda maior de hospitalizações pela doença (155) e sua ocupação alcançou os 102%. O País, por sua vez, já acumula mais de 10 milhões de casos e 246 mil mortos, e vive uma segunda onda, com a propagação de novas cepas e um ritmo de vacinação aquém do desejado.
Presidente do hospital, o cirurgião Sidney Klajner conta que não esperava que o País perderia totalmente o controle da pandemia e se tornaria um dos campeões em casos e óbitos pela doença. Em entrevista exclusiva ao Estadão, ele diz que a falta de valorização da ciência e de atitudes pautadas em evidências científicas foram os principais fatores que levaram o País à situação atual. Ele criticou também a postura do Conselho Federal de Medicina (CFM) em autorizar a prescrição de tratamentos ineficazes, como a hidroxicloroquina, e disse acreditar que ainda viveremos as restrições impostas pela pandemia por um longo período.
"A gente vai ter uma presença endêmica do coronavírus por um tempo extremamente longo. A gente pode até controlar essas infecções endêmicas em determinados países ou regiões onde a gente tem um poder maior de imunização, mas sempre vai ter o risco de ela ser trazida por alguém que vem de fora dessas comunidades. Eu não vejo muito próximo o retorno a uma vida normal", opinou.
Em um ano de pandemia, 3.045 pessoas foram internadas com covid no Einstein, das quais 149 morreram. Considerando só a mortalidade entre os pacientes que passaram pela UTI, o índice foi de 16,6%, muito inferior a índices de mais de 50% registradas em redes hospitalares do Brasil e do exterior.
Para Klajner, a fórmula para reduzir a mortalidade passa por investir em UTIs com boa estrutura, equipamentos adequados e profissionais capacitados. As condições prévias de saúde da população e a facilidade de acesso à assistência também têm impacto, diz ele.
O principal aprendizado destes 12 meses de pandemia , diz o presidente do Einstein, é a necessidade de pautar as estratégias de enfrentamento à doença no conhecimento científico, e não em ideologias. Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
Em fevereiro do ano passado, quando o Einstein diagnosticou o primeiro caso, qual era a sua expectativa para duração e evolução da pandemia?
A minha expectativa naquele momento era a de que a gente teria um controle das pessoas que viessem a adquirir o vírus, um controle do isolamento desses pacientes e, por conta disso, a gente atingiria só uma pequena parcela da população. E que tomando os devidos cuidados, como higienizar as mãos, não espirrando nas mãos, evitando locais fechados, a gente teria um controle total da pandemia. Eu costumo ter uma visão mais otimista do que pessimista, então eu lembro que. naquele momento, a gente falava do clima tropical, da diferença do perfil epidemiológico do idoso da Itália, que é diferente do nosso País. Então, a minha visão de otimismo era que a gente teria uma coisa mais controlada.
Na sua opinião, quando as coisas desandaram no País para uma falta de controle completa? Quanto disso pode ser atribuído à falta de conhecimento que tínhamos sobre o vírus no início da pandemia e quanto é responsabilidade da falta de comando dos gestores e autoridades políticas?
Primeiro, a gente está diante de uma infecção por um vírus que ainda carece de muita informação sobre seu comportamento, então a primeira coisa é que a gente aprendeu muito com a doença no ano passado. Aprendeu maneiras de lidar com ela, da necessidade da abordagem multidisciplinar, ainda não aprendemos totalmente quem vai ficar ruim e quem não vai e o porquê. A gente aprendeu que os grupos de risco não são necessariamente só aqueles de faixa etária mais avançada, mas algo que não entendemos é um possível respaldo genético que faz com que algumas pessoas mais jovens também evoluam para insuficiências mais graves. Toda essa falta de conhecimento no início contribuiu, de fato, para a gente ter opiniões divergentes e uma das grandes causas que levaram à falta de um comando pautado por ciência foi a presença de opiniões de pessoas que não detêm conhecimento e passaram a colocar suas posições muito focadas em ideologias. Isso, em um mundo que a gente vive de disseminação muito fácil por mídias sociais, acabou virando verdade e atraindo uma legião de seguidores. A gente via médicos falando que isso não ia passar de uma gripe e que o calor daqui não ia deixar que fosse igual à Europa. A gente viu governantes preocupados com aspectos econômicos, estimulando o não-lockdown. Aqui no Einstein, lá no final de março, a gente já tinha uma projeção de que, caso não fosse feito algo como foi feito na quarentena, a gente teria o estouro da capacidade de leitos na cidade de São Paulo no dia 15 de abril. Então não dá para atribuir um só culpado, mas a falta do conhecimento, talvez a falta da valorização da ciência como o ponto norteador das atitudes e da adoção dessas medidas. E aí, obviamente, entram as nossas lideranças que preferiram acreditar neste ou naquele ponto, fizeram com que o comportamento da população brasileira em como enfrentar a pandemia e os investimentos e planejamento fossem bastante prejudicados desde o início. Toda essa situação colocou o holofote e uma lente maior nas deficiências do sistema de saúde em relação à gestão, ao seu investimento na saúde e na ciência, que é carente no País.
Mas, além dos problemas históricos de gestão e investimentos, teve a postura do governo federal de às vezes ir contra a ciência…
Então, além disso, você deixar de ver o que aconteceu no resto do mundo e colocar soluções salvadoras, se apoiar numa medicação porque aqui é o Brasil, é óbvio que não seria assim. Esse tipo de dúvida, de você atuar na economia independente do resultado da saúde, isso aconteceu no mundo inteiro. A Inglaterra é um país que, no começo, adotou a postura de imunidade de rebanho e, depois de milhares de pessoas indo para as UTIs, eles abandonaram essa estratégia e voltaram para o modelo de controle através de quarentena e lockdown. Então, a gente teria que, primeiro, ter uma liderança. E não necessariamente ia ser o presidente, poderia ser o secretário, o ministro da saúde. No momento que surgiram divergências, o ministro foi trocado. Tivemos duas trocas onde sequer o plano do primeiro ministro foi colocado adiante. Isso abriu espaço para os governos assumirem a autonomia de organizarem o enfrentamento em seus Estados. Então vira uma colcha de retalhos.
O Einstein foi um dos hospitais que lideraram estudos que mostraram que remédios como a hidroxicloroquina são ineficazes contra a covid. Na sua opinião, por que, mesmo com todas as evidências, médicos continuam prescrevendo?
Tudo isso é fruto da importância de como você coloca a ciência como pano de fundo para tudo que a gente faz em saúde. Na medida que esse mundo científico sofre intervenção de ideologias políticas, as mídias sociais se tornaram um palco onde as pessoas podem falar o que querem. Sem falar na própria consequência da última eleição, que praticamente dividiu o País, de pessoas que são partidárias de um tipo de postura, e não é só esquerda ou direita, mas também seguidores fiéis do nosso presidente ou de governantes de Estados, que acabaram, em vez de usar a ciência para se manifestarem, usando esses palcos para autopromoção, para promoção de ideologias. Não existe ciência com ideologia. Mesmo porque isso é um reflexo das brechas que a gente tem da própria formação científica que os médicos têm e de outros profissionais da área de ciências biológicas. Nesse sentido, esse palco deu espaço para as pessoas se manifestarem da forma que elas acham que é, o que mostra que falta essa formação médica para entender que a ciência não é feita com um trabalho com 20 pessoas no hospital na França. A ciência exige que você tenha evidências suficientes para dizer se um medicamento funciona ou não. Ciência e crença não combinam. Só que no nosso código de ética médica, ele coloca que o tratamento fútil é previsto como uma cláusula de má atividade médica. Quando você usa um medicamento que não vai trazer bem ao paciente, pelo contrário, pode causar evento adverso, a responsabilidade é de ambos (médico e paciente), mas o médico influencia muito. Concordo que a autonomia do médico faz parte da relação médico-paciente, da relação de confiança, mas existem também os guidelines, diretrizes e evidências que mostram como deve ser feito.
A gente viu essa questão da autonomia do médico ser usada como justificativa para aqueles que seguem prescrevendo hidroxicloroquina e pelo Conselho Federal de Medicina para manter a resolução que autoriza a prescrição. Mas o conselho já teve posturas contrárias a outras questões que poderiam estar relacionadas com a autonomia, como a telemedicina. Não dá a impressão que são dois pesos e duas medidas?
É isso mesmo que eu acho. Dois pesos e duas medidas, não tenho dúvida. Enquanto o nosso conselho coloca essa questão da autonomia do médico, o conselho da França faz um processo afastando o médico (Didier Raoult) por ter feito os estudos (com hidroxicloroquina) de forma inadequada. Realmente, é passível de crítica, inclusive porque a formação do médico vai seguir os preceitos que o conselho federal coloca, e não é o modo como eu vejo. Aí começam a aparecer casos de hepatite fulminante por ivermectina ou falta de evidências da melhoria dos pacientes.
A gente viu médicos de renome, como Nise Yamaguchi e Anthony Wong, defendendo terapias sem evidências científicas. O que você acha que leva a esse tipo de comportamento?
Aqueles colegas que insistiram no uso de tratamentos que não são pautados por uma boa evidência científica talvez tenham sido influenciados por outros fatores que não o seu paciente como o centro do cuidado pautados pela evidência científica. Ou eles não têm a compreensão, por falta de formação, do que é um artigo científico e quais são as críticas que a gente deve fazer. Te dou um exemplo: recentemente, faz um mês, houve a publicação de um artigo colocando a ivermectina como opção de tratamento precoce e esse artigo foi repercutido pelo próprio ministério, por uma série de médicos, mostrando que agora já teríamos evidências de uma revista renomada. A revista, por ter um nome bacana, foi colocada como se fosse de altíssimo impacto. Essa revista está na posição 984 no impacto dos jornais de medicina dos Estados Unidos. O artigo coloca uma revisão daquilo que já existe. Quem lê aquilo e não está preparado corretamente para interpretar um artigo científico vai ser enganado. O trabalho era praticamente uma impressão pessoal do autor, não havia ciência nesse trabalho. O artigo era uma porcaria, mas, com uma revista com nome bacana e com figurinha de algoritmo, acabou sendo uma chancela. Por que se faz isso? Porque há pessoas que querem ocupar uma posição de destaque que nunca tiveram e aí está a oportunidade. Ou pessoas que não têm a formação para poder compreender o que é um artigo sério. Outra questão é a falta de humildade de voltar atrás. Quando a pandemia começou, ninguém falava em usar máscara. A Organização Mundial da Saúde (OMS) falava que deveria usar máscara quem estivesse tratando de gente com covid. Depois, a gente teve que fazer um mea culpa por não termos usado a máscara antes. Foi um equívoco que o mundo teve que voltar atrás. Esse tipo de postura de soluções salvadoras aconteceu a pandemia inteira. Soluções salvadoras de alguém que tem um único interesse que é o interesse financeiro. Isso é oportunismo. E no meio médico acontece oportunismo da mesma forma.
Vocês tiveram um primeiro pico de internações em abril, com 135 pacientes. E agora, em janeiro, tiveram um novo pico, com 155 hospitalizados. Vocês esperavam que viveriam um pico pior do que o primeiro um ano depois do surgimento do vírus?
Esperar eu não esperava. Na verdade, eu tinha medo por causa do que vimos na Europa. O verão levou todo mundo para as ruas, para a praia, para as festas e eles passaram a experimentar uma segunda onda. Na verdade, eu esperava que não acontecesse, mas existia uma chance considerando o comportamento das pessoas aqui no Brasil como se a gente já tivesse vencido a pandemia. Tivemos aqui no Einstein uma estabilidade de quatro ou cinco meses de 50 pacientes internados no máximo. Depois do feriado de Finados, a gente começou a ver um incremento. A gente já vislumbrava as comemorações de fim de ano, Natal. Eu vi com muita preocupação quando a procura por passagem aérea estava só 15% abaixo da de 2019. Não é possível que as pessoas estejam viajando dessa forma. Ao mesmo tempo, a gente via festas, raves. A contaminação foi brutal e a gente teve que se mexer em meses que geralmente o movimento no hospital cai, que é dezembro e janeiro. A gente chegou a ter no mês de janeiro 102% de ocupação. Por que isso acontece? Teve essa hipótese das novas cepas. Hoje a situação aqui do hospital é de estabilidade. Houve uma diminuição no número de leitos dedicados à covid para 126. A preocupação é manter esses cuidados ainda, evitar aglomeração, até a gente ter uma quantidade de pessoas vacinadas para dizermos que a pandemia está controlada. Vai demorar um tempo grande até a gente ter uma quantidade da população já vacinada e isso que vai fazer ter controle. Se eu fico imunizado e deixo de respeitar essas medidas de precaução, talvez eu não adquira nenhuma forma grave, mas eu posso adquirir uma forma leve e continuar sendo transmissor. Enquanto o controle não é feito e eu estou comemorando a minha imunização, o vírus pode estar mutando até o ponto que a vacina deixa de ser eficaz.
Vimos a tragédia de Manaus, mas países ricos e hospitais melhor estruturados em outros locais do mundo também viveram colapso. Você acha possível que redes mais estruturadas colapsem diante da ameaça das novas variantes? O quanto isso te assusta?
Assusta menos do que assustou no começo da pandemia por conta da expertise em transformar alas não covid em covid e vice-versa. Ele assusta mais no sentido de termos que interromper tratamentos de doenças não covid.
Os dados do Einstein mostram que vocês tiveram uma mortalidade por covid-19 de 16,6% entre os pacientes que foram para a UTI. Outros hospitais têm índices muito maiores, que ultrapassam 50%. Como foi possível ter um baixo índice? Tem a ver com os recursos, mas está associado também ao estado que o paciente chega?
O que importa no tratamento dessa doença é o suporte à vida, o tratamento multidisciplinar e não um tratamento específico. Isso tem a ver com a qualidade de UTI, da disponibilidade dos recursos. Por exemplo, 40% dos pacientes precisaram de diálise. A maior causa de mortalidade em Nova York foi a falta de diálise. Houve UTIs em Nova York com mortalidade de 88% no momento do pico. E obviamente influencia nessa mortalidade as condições da população. A população carente de cuidados médicos terá uma taxa de mortalidade muito maior. Talvez um hospital como o nosso a gente tem uma população que tem um controle melhor das suas doenças. Isso é mais uma demonstração de que não existe tratamento específico. Tem até um estudo americano que mostra que a mortalidade nas UTIs americanas passou a diminuir à medida que deixaram de ficar testando tratamento e passaram a dar importância naquilo que é expertise de uma UTI: tratamento correto da insuficiência respiratória, prevenção de infecção secundária, uso da diálise.
Quando você acha que voltaremos a uma situação próxima da normalidade?
Eu estava lendo um artigo da Nature publicado recentemente e o título é “The coronavirus is here to stay” (O coronavírus está aqui para ficar). Eles entrevistaram uma centena de cientistas do mundo inteiro. E a opinião da maioria é de que a gente vai ter uma presença endêmica do coronavírus por um tempo extremamente longo. A gente pode até controlar essas infecções endêmicas em determinados países ou regiões onde temos um poder maior de imunização, mas sempre vai ter o risco de ela ser trazida por alguém que vem de fora dessas comunidades. Eu não vejo muito próximo o retorno a uma vida normal. Vamos ter que ter precauções quando frequentarmos lugares aglomerados. A gente vai ter que ter preocupação com fronteiras. Eu deposito a esperança do controle na vacinação. Fazendo um comparativo: H1N1 não foi embora. Na época do frio, a gente tem que proteger nossos velhinhos porque senão eles morrem. Então acho que não vai ser nada diferente.
Qual é o maior aprendizado que fica desse um ano de pandemia?
São vários aprendizados, mas talvez o principal é que quando a gente fala de saúde, isso é uma parte do conhecimento que diz respeito à ciência científica. Nada numa questão de saúde pode ser dirigida, liderada ou idealizada sem a participação de conhecimento científico. Nesse raciocínio, eu imagino que a gestão da saúde obriga que a gente tenha lideranças com conhecimento científico suficiente que vão dirigir o enfrentamento de qualquer situação de saúde. A liderança não pode ser feita por políticos. Ela pode ter políticos, mas ela tem que respeitar o conhecimento científico. Esse é um grande aprendizado que falta para o nosso País. Se você olhar para o resto do mundo, os países que melhor souberam lidar com isso foi quem tinha à frente um time de pessoas com conhecimento científico suficiente para opinar e dirigir as ações, e não uma liderança que tenha como norteador ideologias políticas.
Lígia Bahia: Desigualdades e desacertos
Cancelamento da saúde como política governamental na gestão Bolsonaro é fato inédito
Informações recém-divulgadas da Pesquisa Nacional de Saúde (PNS) do IBGE sinalizam pequenos avanços e recuos do SUS — e a persistência do fosso entre quem mais precisa de cuidados e o acesso. Os dados são essenciais para diagnosticar a situação de saúde, captar tendências e orientar as políticas públicas. Entre os dois inquéritos, realizados com intervalo de seis anos, a cobertura para atendimento médico cresceu: era 71,2% em 2013 e passou para 76% em 2019. No mesmo período, o total de pacientes internados aumentou de 6% para 6,6%, revelando pequeno aumento na capacidade do sistema.
Mas persistem desigualdades nas chances de realizar determinados procedimentos odontológicos e médicos. Em 2019, a proporção de consulta com dentista foi de 36% para quem se situa na menor faixa (menos de um quarto de salário mínimo) e 76% para pessoas da classe mais alta de renda (acima de cinco salários mínimos). A oportunidade para realizar internações e cirurgias foi duas a três vezes maior para quem está vinculado a planos privados de saúde. Consequentemente, o padrão do atendimento na rede hospitalar do SUS difere do organizado pelo setor privado; o público tem maior proporção de casos clínicos, e a assistência suplementar, de pacientes cirúrgicos.
Os inquéritos sobre saúde realizados pelo IBGE também permitem avaliar o desempenho de políticas públicas específicas. Houve incremento no cadastramento dos domicílios pelas equipes de saúde da família; contudo as visitas de agentes comunitários diminuíram. Os programas públicos de acesso a medicamentos permitiram que 30,5% dos atendidos pelo SUS em 2019 obtivessem ao menos um dos medicamentos prescritos. Esse panorama da aquisição de remédios fica mais bem delineado pela Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF). As despesas com remédios pesam 4% no bolso das famílias com menor renda e representam 1,4% para as que contam com orçamentos maiores. O conjunto de dados fornecidos pelas pesquisas oficiais contém evidências sólidas para orientar decisões sobre prioridades e investimentos públicos.
Entretanto essas relevantes informações são pouco consultadas pelas autoridades políticas. Basta dedicar um olhar ligeiro às pesquisas para verificar o porquê das imensas filas para cirurgia no SUS, bem como o alcance e as limitações da efetividade de equipes de saúde da família e cobertura de medicamentos.
Ideias apresentadas como geniais, definitivas, como as organizações sociais, mostraram-se frágeis para superar desigualdades exigentes de políticas que incidam sobre a formação e alocação de recursos humanos, a oferta de serviços e os gastos com saúde. É pura falácia propor “zerar filas”, “ampliar horários de atendimento” sem considerar a precarização dos vínculos dos profissionais de saúde e a diferença entre os valores de remuneração do SUS e dos planos de saúde.
Enquanto médicos e enfermeiros tiveram reconhecimento e aumento de salário na maioria dos países, o projeto de reforma administrativa apresentado pelo governo prevê a contratação provisória e salários baixos para os servidores públicos do Poder Executivo, incluindo aqueles que estão na linha de frente do enfrentamento da Covid-19. O crescente gasto direto com saúde, considerado catastrófico, parece não preocupar o governo federal. Em agosto, o ministro da Economia cogitou restringir o acesso ao programa Farmácia Popular para viabilizar o financiamento do Renda Brasil. Retrocedeu, mas insiste no corte de despesas para o SUS.
Ao longo da história houve governos que conferiram maior destaque à saúde e aqueles que levaram adiante políticas incrementais. Essa trajetória, intercalada pela inscrição do SUS na Constituição de 1988, nos assegurou sucesso no controle de riscos e doenças.
O cancelamento da saúde como política governamental, na gestão Bolsonaro, é um fato inédito. A macabra cerimônia de glorificação da cloroquina “Vencendo a Covid”, no mês passado, e a ausência dos mortos pela pandemia no discurso presidencial no Dia da Independência afirmam o empenho do governo contra a “sombra dos comunistas” e a radical indiferença perante doentes e mortes. Ao contrário de Juscelino Kubitschek, reconhecido pela dedicação para reverter a acepção nacional e internacional do “Brasil, país doente”, o atual presidente será lembrado pela insensibilidade ao sofrimento causado pelas doenças e ao combate a espectros.
*Professora da UFRJ