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Luiz Carlos Azedo: Eleição de Boric pode virar um El Niño político
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
A esquerda venceu as eleições no Chile com a eleição do ex-líder estudantil e jovem deputado Gabriel Boric, de 35 anos, o mais jovem político a presidir o país em toda a sua história. Foi uma eleição marcada pela polarização política, na qual o candidato da Convergência Social, apoiado pelo Partido Comunista chileno, derrotou o ultradireitista José Antônio Kast, do Partido Republicano, um fanático admirador do ex-presidente Augusto Pinochet, o ditador sanguinário que liderou o golpe militar de 1973, no qual o presidente Salvador Allende se suicidou, em meio ao bombardeio do Palácio La Moneda por aviões de caça da Força Aérea chilena. A eleição foi de virada: no primeiro turno, Boric havia ficado em segundo lugar.
A nova situação chilena parece retomar o fio da história interrompido com o golpe de 1973, quando Allende representava o sonho de um socialismo democrático. É como se a história tivesse sido “descongelada” após quase 50 anos. Embora o atual presidente Sebastian Piñera e a socialista Michelle Bachelet tenham protagonizado as disputas políticas direita x esquerda dos últimos 16 anos, ambos são políticos moderados, governaram em aliança com os liberais. Boric se apresentou no primeiro turno como uma candidatura de viés muito esquerdista. Entretanto, moderou o discurso no segundo e se aproximou dos socialistas, liberais e democrata-cristãos para derrotar a extrema-direita.
Gosto da expressão “descongelar” por causa de uma entrevista do filósofo alemão Jürgen Habermas, logo após a queda do muro de Berlim e o fim da União Soviética, que marcaram o colapso do chamado “socialismo real” europeu. Habermas comparou a Europa do fim da Guerra Fria a uma fotografia — como aquela de Roosevelt, Stálin e Churchill, em fevereiro de 1945, na Crimeia —, que foi “descongelada” e virou um filme de longa metragem, como se a história anterior à guerra fosse retomada de onde foi interrompida.
“Ninguém me convence de que o socialismo de estado seja, do ponto de vista da evolução social, ‘mais avançado’ ou ‘mais progressista’ do que o capitalismo tardio. (…) São senão variantes de uma mesma formação societária. (…) Temos tanto no leste como no oeste modernas sociedades de classe, diferenciadas em Estado e economia”, disse Habermas à época (Tempo Brasileiro, Rio de Janeiro, 1989). A história das nações europeias anterior à II Guerra Mundial, de fato, fora “descongelada”, despertando velhos conflitos econômicos e de fronteiras, além de forças políticas muito reacionárias que estavam adormecidas no Leste Europeu, desde a ocupação soviética, principalmente na Hungria, na Ucrânia, na Polônia e na Romênia.
No primeiro turno, Boric foi um duro crítico da democracia chilena pós-Pinochet, que governou com as baionetas de 1973 a 1990. Segundo o novo presidente chileno, a continuidade do modelo liberal deixou as classes média e baixa endividadas, sem condições de arcar com os custos da educação, da saúde e da previdência privada. Sua proposta é um Estado de bem-estar social ao estilo da social-democracia nórdica: Dinamarca, Finlândia, Islândia, Noruega e Suécia. A nova Constituição em elaboração, de certa forma, cria condições para ultrapassagem do modelo econômico neoliberal de Pinochet herdado pelos governos democráticos. Em contrapartida, no primeiro ano de governo, a inflação fora de controle complica muito a execução do projeto de Boric, que também precisa formar uma nova maioria no Congresso.
Polarização política
Em tempos geopolíticos, a vitória de Boric consolida uma guinada à esquerda no Cone Sul, que já havia sido iniciada com a eleição do justicialista Alberto Fernández na Argentina, hoje o mais importante aliado do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva na região. Também aprofunda o isolamento político do presidente Jair Bolsonaro, crescente desde a eleição do atual presidente dos Estados Unidos, o democrata Joe Biden. Pode virar uma espécie de El Niño político , o fenômeno atmosférico oceânico que aquece as águas superficiais do Pacífico tropical e provoca alterações climáticas na América do Sul, sobretudo no Brasil, e outras regiões do mundo, com mudanças no regime de ventos e de chuvas.
O principal beneficiado da eleição de Boric é o ex-presidente Luís Inácio Lula da Silva, favorito absoluto em todas as pesquisas de opinião, que pode até vencer as eleições no primeiro turno. Em termos econômicos, Lula ainda é uma esfinge. Candidato à reeleição, Bolsonaro tem altos índices de rejeição, desmantelou as políticas sociais do governo, perdeu o controle da economia, mas ainda não se sente derrotado estrategicamente. Aposta as fichas na força bruta do próprio governo, como forma mais concentrada de poder, e no Auxílio Brasil, o novo programa de transferência de rendas para 14,5 milhões de famílias, no valor de R$ 400 mensais; mantém coesa a sua base de apoio de extrema-direita e evangélica e aposta na polarização política, para se beneficiar do antipetismo da classe média e do conservadorismo popular. Mas disso vamos tratar na próxima coluna.
Pandemia fez mortes dispararem em 15% no Brasil, mostra IBGE
De 2018 para 2019, por exemplo, o aumento do número de mortes foi de 2,6%
Maria Eduarda Cardim / Correio Braziliense
O cenário atual da pandemia da covid-19 é outro, mas, no ano passado, o número de mortes causadas pelo novo coronavírus impactou vertiginosamente os índices de óbitos, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), divulgados ontem. Pelos registros civis em cartórios, o Brasil teve a maior alta de mortes desde 1984, na comparação com o ano anterior. De 2019 para 2020, o número de mortes no Brasil aumentou praticamente 15%, enquanto que os registros de nascimentos e casamentos despencaram de um ano para o outro.
A gerente da pesquisa do IBGE, Klívia Brayner, explicou que a alta no número de óbitos, observada no ano passado, é fora do comum quando se observa os movimentos dos anos anteriores. De 2018 para 2019, por exemplo, o aumento do número de mortes foi de 2,6%.
“Olhando desde 1984, mesmo que as séries mais antigas não sejam comparáveis com as atuais, pois o índice de sub-registro era muito alto, é possível observar que nunca antes tivemos uma variação acima de 7% de um ano para outro. Em geral, o incremento ficava abaixo ou em torno de 3%. De 2010 a 2019, a média de variação foi de 1,8%”, observou.
Mais de 99% da variação vista nos óbitos registrados em 2020 ocorreu nas mortes por causas naturais, classificação que inclui o óbito decorrente de doenças como a covid-19. “Houve um crescimento relevante das mortes por causas naturais, o que é condizente com o cenário de uma epidemia. Por outro lado, o fato de as crianças e os adolescentes terem ficado em casa parece ter reduzido expressivamente os óbitos até os 15 anos, talvez pela menor exposição a agentes patógenos, em geral, ou a riscos de causas externas”, comentou Klívia.
A pandemia influenciou não só no aumento do número de registros de óbitos, mas, também, nos registros de nascimentos, que caíram pela segunda vez consecutiva. De 2019 para 2020, houve queda de 4,7% — de 2018 para 2019, houve queda de 3%. No ano passado, ao todo, 2.728.273 de nascimentos foram registrados. Reduções foram observadas em todas as regiões do país, mas foi acentuada no Norte (-6,8%) e no Nordeste (-5,3%).
Outro ponto indicado pelos registros é o fato de que as mulheres estão adiando a maternidade. Em 2000, os registros de crianças nascidas, cujas mães tinham menos de 30 anos, eram 76,1% do total. Em 2020, esse número chegou a 62,1%. Já os dados de nascimentos, em que as mães têm de 30 a 39 anos, subiram de 22% em 2000 para 34,2%, no ano passado.
Casamentos
Além disso, de 2019 para 2020, houve uma redução de 26,1% no número de casamentos civis no Brasil, a maior queda da série histórica. Os registros desceram de 1.024.676 para 757.179. entre 2019 e o ano passado.
“O movimento de queda vem sendo observado, anualmente, desde 2016, mas em 2020 essa variável foi afetada pelo isolamento social em decorrência da pandemia”, observou o IBGE.
O recuo no registro de casamentos nos cartórios brasileiros foi visto em todas as regiões, mas Nordeste, Centro-Oeste e Sudeste foram as que apresentaram maior queda.
(Colaborou João Vítor Tavarez, estagiário sob a supervisão de Fabio Grecchi)
Fonte: Correio Braziliense
https://www.correiobraziliense.com.br/brasil/2021/11/4964267-pandemia-fez-mortes-dispararem-em-15-no-brasil-mostra-ibge.html
Luiz Carlos Azedo: Cristiana Lôbo cumpria rito, todos os dias, atrás de informação exclusiva
Como jornalista de política, estabeleceu paradigmas para o trabalho das mulheres no jornalismo político brasileiro
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Acordei com maus pressentimentos e preocupado com o meu coração biônico. Atualizei o blog e corri para a farmácia para repor o estoque de medicamentos que me garantem uma vida quase normal, se é que um jornalista pode ter uma rotina dessa ordem. Tomei o remédio no café da manhã e só então liguei a tevê. Notícia terrível: Cristiana Lôbo havia morrido, vítima das complicações de uma pneumonia, fatal para quem já estava muito debilitada fisicamente por um câncer. Mesmo sabendo da gravidade de sua doença, não esperava que isso ocorresse. Ela era uma guerreira, cobriu a campanha presidencial de 2018 mesmo fazendo quimioterapia. Na última vez que havíamos nos falado, por telefone, estava otimista.
Cristiana Lôbo foi grande repórter de política, com muito mais quilometragem do que eu, apesar de cinco anos mais nova. Quando a conheci, estava fora das redações, assessorava o líder do governo Itamar Franco na Câmara, o então deputado federal Roberto Freire (Cidadania), meu amigo, e ela era colunista do jornal O Estado de S.Paulo. De certa forma, a convivência com Cristiana e outros jornalistas de sua geração, como Ilimar Franco, Tales Faria, Expedito Filho, Maria Lima, Teresa Cruvinel e Helena Chagas, nessa passagem pelo Congresso, influenciaram minha volta à reportagem política pelas mãos de Ali Kamel, no jornal O Globo. Por causa da família, não pude permanecer em Brasília e fui trabalhar na sucursal de São Paulo, mas mantive contato com os colegas de Brasília. O epicentro da cobertura das eleições presidenciais de 1994 se deslocara para a capital paulista.
Alguns anos depois, a convite de Josemar Gimenez, então diretor de redação do Correio, voltei para Brasília, iniciando a trajetória que me fez colunista de política. Desde então, passamos a ter uma convivência quase diária, nos corredores do Palácio do Planalto e nos salões e plenários do Congresso. Foram horas e horas de conversas com colegas e fontes nos “cafezinhos” dos dois plenários. Os repórteres de política de Brasília formam uma espécie de círculo de Fórmula 1, difícil de entrar e muito fácil de sair, no qual os profissionais circulam por diversos jornais ou passam a fazer parte da mobília de uma redação, como eu. Cristiana Lôbo era pole position da notícia. Gostava de “furo” de reportagem e não tinha preconceitos com as fontes, mas sabia filtrar como ninguém o fato entre as versões. Desculpem-me o trocadilho com o nome do programa que apresentava na Globo News.
Verdades e mentiras
“Ele meeente!” — quantas vezes ouvi esse comentário, ela rindo, depois de conversas e entrevistas, como a me advertir: tome cuidado com essas informações. Plugada nos bastidores de Brasília, gostava de trocar figurinhas com os colegas para avaliar a conjuntura e checar as informações. Era bem-humorada, se divertia com as idiossincrasias e trapalhadas dos políticos. Goianamente, contava “causos”, que, muitas vezes, iam parar na coluna de seu querido amigo Jorge Bastos Moreno, outro grande repórter.
Também fazia parte de um grupo de jornalistas que frequentava a casa do ex-deputado Heráclito Fortes, uma das melhores fontes do Congresso, mesmo sem mandato. Espirituoso e bem informado, o político piauense conseguia reunir políticos influentes e jornalistas para conversas sem chatices, em torno de frugal culinária nordestina. Quantas vezes Cristiana Lôbo saiu dos estúdios da Rede Globo direto para esses encontros, no qual a alta gastronomia era a notícia política.
“Azedo, vem comigo ao Palácio do Planalto, quem sabe lá tem notícia”. Cristiana cumpria um rito quase obrigatório todos os dias, um périplo pelos longos corredores da Câmara, do Senado e do Palácio do Planalto, atrás de uma informação exclusiva. Vez por outra, me chamava para acompanhá-la e conversar sobre a conjuntura política, dividindo o acesso às fontes, sem nenhuma preocupação com isso. Tinha plena consciência de sua vantagem estratégica, digamos assim, ao poder entrar no ar ao vivo na Globo, com o furo de reportagem, que seria a manchete de todos os jornais impressos no dia seguinte.
Às vezes, meu celular tocava: “Azedo, você estará em Brasília na sexta-feira? Gostaria que participasse do programa desta semana, gostei de sua coluna de hoje e pretendo tratar desse assunto”. Era Cristiana, generosa com os colegas, inclusive com os mais jovens. Valorizava as melhores coberturas, independentemente dos autores e seus veículos. Quando o assunto da semana era economia, chamava alguém que cobria o Ministério da Fazenda. A mesma coisa fazia se o centro das atenções era o meio ambiente, a educação ou a política externa.
Como jornalista de política, quebrou as barreiras do velho patriarcado e estabeleceu paradigmas para o trabalho das mulheres no jornalismo político brasileiro. Acolheu e aconselhou colegas mais novas, abriu-lhes espaços sem medo da concorrência. Assim, revelou em seu programa uma nova geração de comentaristas de política, como Andreia Sadi, Natuza Nery, Júlia Duailib e Ana Flor, que hoje brilham na Globo News. Meus sentimentos ao Murilo e aos seus filhos, Barbara e Gustavo, e aos demais parentes e amigos.
Luiz Carlos Azedo: Quando o conceito é fatal
De agosto/2020 a junho/2021, registramos os maiores índices de desmatamento. SP, GO, MG e MT registraram mudanças impressionantes
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Houve uma mudança muito significativa na conjuntura política. Em primeiro lugar, a ameaça de um golpe de Estado, que deixou o país à beira de um ataque de nervos, desapareceu do horizonte próximo após o 7 de Setembro. Não houve a adesão militar contra o Supremo Tribunal Federal (STF) que o presidente Jair Bolsonaro esperava, as reações das instituições políticas e da sociedade esvaziaram a mobilização golpista. Desde então, o eixo da vida política nacional se deslocou da crise sanitária, cuja crônica política e criminal está no relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) do Senado sobre a pandemia da covid-19, para a crise da nossa economia, tendo por pano de fundo a antecipação da disputa eleitoral de 2022.
Especialistas em planejamento sabem que um erro de conceito pode ser fatal. Muitas vezes, o erro decorre de um falso diagnóstico; outras, de um conceito errado. A tempestade perfeita pode ser fabricada quando as duas coisas coincidem com uma concepção equivocada, por exemplo, o negativismo em relação à ciência. No caso da pandemia, o erro de diagnóstico foi considerar a covid-19 uma “gripezinha”; o de conceito, apostar na “imunização de rebanho” para manter a economia aquecida. Com isso, buscou-se toda sorte de atalhos para evitar a recessão, que passou a ser o objetivo do governo, em vez de salvar a vida das pessoas. A cloroquina entra nessa história como uma poção mágica. Havia outra solução simples para um problema tão complexo (acreditem, elas também existem) — a vacinação em massa.
Vejam bem, não estamos falando que a produção da vacina não é simples. Sua fabricação é um processo complexo, mas a pesquisa científica intensa resolveu o problema em pouco mais de um ano após a identificação do vírus e seu sequenciamento genético. Estamos falando do conceito — a imunização em massa — já consagrado mundialmente pelas autoridades sanitárias. A erradicação da poliomielite, que foi a doença infantil mais devastadora do século passado, é um excelente exemplo. A pólio era misteriosa e se expandia no verão, com causas desconhecidas. Nos Estados Unidos, a ignorância levou as pessoas a pôr a culpa nos sorvetes; e o preconceito, nos negros pobres e nos imigrantes, principalmente asiáticos.
Mesmo adultos corriam grande risco. O presidente Franklin Delano Roosevelt foi para a cadeira de rodas aos 39 anos, quando contraiu a doença. Cada surto de pólio deflagrava uma quarentena, como acontece agora com a covid-19. Em 1916, em Nova York, houve 8.990 casos, com 2.400 óbitos; em 1952, 57 mil casos, 3 mil mortes e 21 mil crianças com paralisia permanente. Um paciente com pólio no hospital custava US$ 900, quando o salário médio era de R$ 875.
Sem a vacina criada por Jonas Salk e Albert Sabin, estima-se que os Estados Unidos teriam 250 mil pessoas com paralisia, a um custo de US$ 30 bilhões. Não temos projeções de quanto já estamos economizando com a vacinação em massa da população, mas estima-se que o custo da pandemia no Brasil chegue a R$ 700 bilhões, cerca de 10% do nosso PIB, ou o equivalente a 20 anos de Bolsa Família. Ou seja, dá para ter uma noção do prejuízo causado pelo negativismo do presidente Jair Bolsonaro, que até hoje não tomou a vacina.
Aquecimento
Mais difícil de calcular é o prejuízo do negativismo em relação ao aquecimento global. Alguns números podem ser ilustrativos. Até o fim de setembro, somente 22% das verbas destinadas para o combate ao desmatamento e às queimadas foram utilizados pelo governo federal. O governo resolveu economizar o dinheiro do combate ao desmatamento e às queimadas: de R$ 384,9 milhões em caixa para isso, somente foram gastos R$ 83,5 milhões. De agosto do ano passado a junho deste ano, registramos os maiores índices de desmatamento. São Paulo, Goiás, Minas Gerais e Mato Grosso registraram mudanças climáticas impressionantes. As mais espetaculares foram as tempestades de poeira. Quanto estamos perdendo de investimentos ao “passar a boiada”?
O Brasil já foi muito respeitado por sua política ambiental, agora é pária internacional. Bolsonaro não vai à Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas (COP26), que começa hoje, em Glasgow, na Escócia, embora tenha participado da reunião do G-20 em Roma, na Itália, ontem. Não teria condições de participar de um fórum como esse sem passar constrangimentos.
Luiz Carlos Azedo: O indiciamento de Bolsonaro
A CPI foi bem-sucedida ao revelar os erros cometidos pelo governo durante a pandemia, mas também teve seus momentos de histrionismo e de dribles a mais
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense / Estado de Minas
Antes mesmo de ser indiciado pela CPI do Senado que investiga a atuação do governo durante a pandemia do novo coronavírus (covid-19), o presidente Jair Bolsonaro sentiu o golpe. No cercadinho do Palácio da Alvorada, onde manda seus recados por meio de apoiadores e da imprensa, chamou de “bandido” o relator da comissão, senador Renan Calheiros (MDB-AL), que pretende lhe imputar 11 crimes, sendo três gravíssimos: homicídio, crime contra a humanidade e genocídio. “O que nós gastamos com auxílio emergencial foi o equivalente a 13 anos de Bolsa Família. Tem cara que critica ainda. O Renan me chama de homicida. Um bandido daquele. Bandido é elogio para ele. O Renan está achando que eu não vou dormir porque está me chamando de homicida, está de sacanagem”, estrilou.
No cronograma da CPI, o relatório será apresentado na terça e votado na quarta-feira, o que promete uma semana quente no Senado. A tropa de choque do governo deve se mobilizar para barrar o relatório, que proporá o indiciamento da cadeia de comando do governo no auge da pandemia, ou seja, entre outros, do então ministro da Casa Civil, general Braga Netto, hoje ministro da Defesa; do ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello e do seu ex-secretário-executivo Élcio Franco, aquele da faca ensanguentada na lapela — além do presidente Bolsonaro e dos supostos integrantes do chamado “gabinete paralelo”, o que inclui seus filhos Flávio, senador; Eduardo, deputado federal; e Carlos, vereador carioca; o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR); o deputado Osmar Terra (MDB-RS), ex-ministro da Cidadania; e os médicos Paolo Zanotto e Nise Yamaguchi.
A CPI foi bem-sucedida ao revelar os erros cometidos pelo governo durante a pandemia, mas também teve seus momentos de histrionismo e de dribles a mais. Existe uma maioria robusta para aprovação de um relatório consistente; dificilmente, porém, haverá maioria para a imputação do crime de genocídio a Bolsonaro. O senador Alessandro Vieira (Cidadania-SE), por exemplo, defende o foco na cadeia de comando e o indiciamento apenas naqueles crimes sobre os quais há provas irrefutáveis. Delegado de Polícia Civil, tem experiência no ramo. A CPI não é um tribunal, é uma comissão de inquérito; seu relatório será remetido a diversas esferas, da Justiça de primeira instância ao Supremo Tribunal Federal (STF); do Tribunal de Contas da União (TCU) à Procuradoria-Geral da República (PGR), da Receita Federal à Polícia Federal.
Genocídio
“O que passa na cabeça do Renan Calheiros naquela CPI? Eu vi que… O que passa na cabeça dele com esse indiciamento? Esse indiciamento, para o mundo todo, vai que eu sou homicida. Eu não vi nenhum chefe de Estado ser acusado de homicida no Brasil por causa da pandemia. E olha que eu dei dinheiro para todos eles (governadores)”, disse Bolsonaro, traindo o temor de que essa venha a se tornar a maior dor de cabeça de sua vida. Uma coisa é responder às acusações na Presidência, outra é ter que fazê-lo, caso não seja reeleito, na planície, como simples cidadão.
São acusações pesadas: epidemia com resultado de morte; infração de medida sanitária preventiva; charlatanismo; incitação ao crime; falsificação de documento particular; emprego irregular de verbas públicas; prevaricação; genocídio de indígenas; crime contra a humanidade; crime de responsabilidade, por violação de direito social e incompatibilidade com dignidade, honra e decoro do cargo; e homicídio comissivo por omissão no enfrentamento da pandemia. Como o relatório da CPI será acolhido no Tribunal Penal Internacional, em Haia, na Holanda? Criado pelo Tratado de Roma, em 1998, o órgão ligado à ONU foi ratificado por 66 países, entre os quais o Brasil. A imagem internacional de Bolsonaro é péssima.
A Corte tem competência para julgar os chamados crimes contra a humanidade, assim como os crimes de guerra, de genocídio e de agressão. O Estatuto define genocídio como qualquer ato praticado “com intenção de destruir total ou parcialmente grupo nacional, étnico, racial ou religioso”. Crime contra a humanidade é “qualquer ato praticado como parte de um ataque generalizado ou sistemático contra uma população civil e com conhecimento de tal ataque” (por exemplo, “práticas que causem grande sofrimento ou atentem contra a integridade física ou saúde mental das pessoas”).
Luiz Carlos Azedo: As almas mortas e a montanha
Milhões de pacientes passaram pelas enfermarias. O que mudou no modo de vida e na forma de pensar dessas pessoas?
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
“Diga- me, mãezinha, têm morrido camponeses seus? — Nem me fale paizinho — dezoito homens! Disse a velha com um suspiro. — E tudo gente boa que morreu, bons trabalhadores. É verdade que nasceram outros depois, mas o que valem? É tudo criançada; mas o fiscal chegou, mandando pagar a taxa por alma, da mesma forma. Os homens estão defuntos, mas eu tenho que pagar como se estivessem vivos.”
No livro Almas mortas, o escritor ucraniano Nikolai Gogol ironiza a servidão russa na época do czar Pedro, o Grande, que resolveu cobrar impostos sobre todas as almas. Cobrava até de quem não era católico, apesar de não ser nada religioso. Os proprietários de terras eram obrigados a pagar os impostos pelo número de servos, inclusive os que haviam morrido. Pável Ivánovitich Tchítchicov, o personagem central do romance, resolve ganhar dinheiro com isso.
Charmoso, educado, sagaz e boa pinta, usa de convencimento para enganar pequenos proprietários. Aproveita-se da burocracia russa ineficiente, e do regime de servidão e da miséria, para hipotecar almas como se todas estivessem vivas e, com isso, obter lucro. Se o proprietário vende uma alma, para Tchitchicov, o vendedor não perde nada. Pelo contrário, ele economiza no imposto que teria que pagar e ainda ganha uma quantia em rublos. Quanto ao comprador, essas almas mortas passarão a fazer parte do seu patrimônio.
O plano de Tchitchicov é simples. Ao comprar almas mortas a partir de pequenos proprietários de terra, esses servos permanecem em livros dos fazendeiros até o próximo recenseamento e, muito embora mortos, são tributáveis. Ao comprá-los, aliviam a carga fiscal dos proprietários. Seu plano é instalar esses servos mortos nas listas fiscais de uma propriedade distante, em que ele vai, então, ser capaz de obter uma hipoteca generosa do governo e sair com uma pequena fortuna. Certos aspectos da pandemia de covid-19 aqui no Brasil lembram o romance de Gogol.
Ultrapassamos a marca de 600 mil mortes por covid-19, mantendo, porém, uma média de 500 óbitos por dia. Na sexta-feira, quando atingimos esse patamar, o ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, deu uma entrevista coletiva minimizando o fato, para destacar que: (1) o governo está empenhado em viabilizar a terceira dose da vacina contra a covid-19 e (2) um número muito maior de pessoas diagnosticadas com a doença se recuperou. De fato, cerca de 20,6 milhões de pessoas tiveram covid-19 e sobreviveram; no momento, 285.032 estão enfermas.
O trauma coletivo
A forma burocrática da entrevista e a falta de empatia do ministro estão em linha com a política sanitária do governo federal. Contaminado na viagem do presidente Jair Bolsonaro à ONU, mesmo sem sintomas, teve que fazer três semanas de quarentena em Nova York, para voltar ao Brasil. Sua desastrosa atuação durante a pandemia também está sendo investigada pela CPI do Senado. Os senadores deverão concluir seus trabalhos nas próximas semanas e, segundo o relator, senador Renan Calheiros (MDB-AL), as consequências serão inquéritos civis e criminais, a serem conduzidos pelo Ministério Público, a Polícia Federal e o Tribunal de Contas da União (TCU). O relator proporá a demissão do ministro Queiroga e/ou a abertura de um processo de impeachment contra o presidente Jair Bolsonaro, por crime de responsabilidade. Estamos no Brasil, a um ano das eleições, e o nosso país, como dizia o maestro Antônio Carlos Jobim, não é para principiantes: nada de demissão nem impeachment.
Nossa realidade vai além das obras de ficção. Muita incompetência e espertezas macabras foram desnudadas pela CPI da Saúde, porém, nada se aproxima tanto da história de Gogol como o caso macabro da Prevent Sênior, empresa que se especializou no atendimento de idosos, em cuja estratégia de tratamento, além do “kit cloroquina”, nos casos graves, segundo denúncias de médicos e pacientes, os “cuidados paliativos” seriam uma espécie de eutanásia não consentida, para dizer o mínimo. O trauma coletivo da pandemia no Brasil é irreversível, principalmente para os familiares e amigos desses 600 mil mortos por covid-19.
Graças ao SUS, milhões de pacientes passaram pelas enfermarias dos hospitais, alguns com longas internações. O que mudou no modo de vida e na forma de pensar dessas pessoas? O escritor alemão Thomas Mann, cuja mãe era brasileira, ao descrever as polêmicas entre pacientes num sanatório de Davos, nos Alpes suíços, fez um mosaico do que estava acontecendo na Europa à beira da I Guerra Mundial. N’A montanha mágica, a tuberculose muda a noção de tempo durante a internação, enquanto a vida segue o curso trágico da História e médicos charlatães oferecem aos ricos pacientes falsas opções de cura. Naquela época não existia a penicilina; hoje, temos também as vacinas contra a covid-19.
Sobreviver, renovar, prosperar: um caminho para o transporte coletivo
Luis Antonio Lindau, Cristina Albuquerque e Fernando Corrêa / WRI Brasil
O transporte coletivo é a espinha dorsal das grandes cidades, garantidor do acesso de milhões de pessoas a oportunidades e vetor de vitalidade econômica. Mas está ameaçado. Em que pesem os papeis social, econômico e ambiental que desempenham nos centros urbanos, sistemas de ônibus no Brasil atravessam crises financeiras que colocam em xeque a continuidade dos serviços. O futuro do transporte coletivo passa não só por sobreviver, mas por se renovar para então prosperar.
Para sobreviver, o setor – em especial o ônibus, responsável por quase 86% das viagens em transporte coletivo no país – precisa, urgentemente, de novas fontes de recursos. A pandemia levou a quedas na demanda de até 70% e tornou inadiável a busca de receita adicionais para o sistema, hoje sustentado apenas pela tarifa na maioria das cidades. O transporte coletivo sangra, e é preciso estancar o ferimento.
Renovar é tratar as causas da sangria: solucionar problemas estruturais e proporcionar as bases para uma transformação do que temos hoje para um transporte urbano sustentável, inclusivo e de qualidade para todos. A mobilidade deve ser concebida para não deixar ninguém para trás, aumentando a oportunidade de acesso a empregos, educação, saúde e lazer. Ao mesmo tempo, precisa adaptar-se às transformações urbanas, às mudanças de comportamento e à emergência climática. Cidades terão de reimaginar o transporte coletivo – dos modelos de contrato e financiamento à integração física, temporal e tarifária –, para viabilizar redes multimodais, implantação de infraestruturas, aquisição de frotas mais limpas e uma operação mais coordenada e eficiente.
Prosperar será consequência dessa transformação. Para as cidades vibrantes, resilientes e inclusivas que buscamos, o planejamento e as ações devem mirar, desde já, nos desafios de médio e longo prazo. Ordenar a ocupação do território, integrar as diversas opções de transporte na escala metropolitana, garantir estabilidade financeira e capacidade para investir em infraestrutura de baixo carbono.
É para esse futuro urgente que apontam as ações elencadas a seguir.
Webinar do WRI Brasil, ITDP Brasil e Idec: soluções para o transporte coletivo
Como garantir um direito refém da demanda?
O transporte coletivo é um direito constitucional. Sem ele, milhões de pessoas teriam comprometido o acesso a emprego, educação, saúde e lazer. Nas últimas duas décadas, o setor passa pelo agravamento progressivo de uma crise que decorre, sobretudo, de seu modelo de financiamento, quase sempre baseado na tarifa paga pelos passageiros.
À medida que a população ascendeu economicamente, migrou para alternativas menos sustentáveis, como carros e motos. Quando a única receita do sistema é a arrecadação tarifária, a alternativa imediata diante de uma queda na demanda é reduzir a oferta e os investimentos em qualidade. Cria-se uma espiral negativa, em que a queda na demanda gera queda na qualidade do serviço, e vice-versa.
Quem mais perde com esse modelo, seja pela menor frequência do serviço, seja pelos veículos lotados e cada vez mais precários, são as pessoas que dependem unicamente do transporte coletivo – 50% dos passageiros, segundo pesquisa QualiÔnibus em nove cidades brasileiras. Elas pagam a conta.
Há medidas relativamente baratas para se atenuar alguns problemas e garantir melhorias sensíveis na qualidade do serviço. Faixas dedicadas para ônibus propiciam maior eficiência, regularidade e ganhos de tempo. O escalonamento de horários foi implementado por Fortaleza para melhor atender à demanda durante a pandemia, sem comprometer a segurança sanitária dos passageiros.
Mas, embora valiosas, medidas como essas não resolvem o fato de que a conta do transporte coletivo não tem fechado, e os sintomas são cada vez mais graves. A pandemia de Covid-19 atingiu em cheio as cidades brasileiras. O Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (Idec) mapeou 56 cidades brasileiras afetadas em 2021 por greves, rompimentos contratuais ou intervenções. Garantir a continuidade do serviço passa por buscar, urgentemente, novas fontes de recursos.
Precisamos falar sobre subsídios
Os melhores sistemas de transporte coletivo do mundo são altamente subsidiados. Um levantamento com 22 cidades europeias revela que o subsídio público médio por lá é de 46,8% dos custos. No Brasil, o tema é tabu. Um estudo da Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos (NTU) identificou, entre 35 sistemas de ônibus urbanos que operam 59,1% da frota nacional, apenas 12 cidades com algum tipo de subsídio. A média desses subsídios é baixa: corresponde a cerca de 14,9% do custo nos seis sistemas que disponibilizam informações. Nos sistemas metroferroviários, a realidade é outra: a média de subsídio é de 35% dos custos, e ultrapassa 80% em sistemas da Companhia Brasileira de Trens Urbanos (CBTU).
A discussão sobre o transporte coletivo por ônibus no Brasil precisa avançar para “quanto” e “como”: quanto custa um serviço de qualidade e, diante da precariedade fiscal que afeta governos em todos os níveis, que medidas podem gerar os recursos adicionais necessários para oferecer esse serviço com equidade?
Há um vasto cardápio de fontes adicionais de receitas disponíveis. Um caminho é aprimorar impostos e taxas territoriais. Na medida em que um transporte coletivo estruturante e com qualidade gera valorização imobiliária, é justo que o IPTU seja mais alto em regiões beneficiadas. O Estatuto da Cidade instituiu a Outorga Onerosa do Direito de Construir e os Certificados de Potencial Adicional de Construção, instrumentos específicos para a recuperação da valorização imobiliária. Cidades podem direcionar parte desses recursos para fundos de mobilidade que viabilizem a manutenção de serviços de qualidade.
Precisamos falar sobre a cobrança pelo uso do carro
Um fundo de mobilidade municipal pode ajudar a corrigir uma distorção que tem condenado os centros urbanos à paralisação. Enquanto o subsídio ao transporte coletivo enfrenta resistência, o uso do carro é estimulado há décadas. Reduziram-se impostos para a compra, alargaram-se avenidas, ergueram-se viadutos enquanto o transporte coletivo ganhou pouco espaço para circular livre dos engarrafamentos. A frota de automóveis e motocicletas aumentou em 331% de 2001 a 2020 no país, e uma pesquisa de 2020 do Instituto Clima e Sociedade (iCS) mostrou que 45% dos brasileiros pretendem comprar um carro.
O prognóstico que se desenha é desanimador. Porque, junto com o crescimento do uso de carros e motos, aumentam os congestionamentos, a poluição atmosférica e mortes em sinistros de trânsito. Um estudo anterior à pandemia em regiões metropolitanas que concentram 23% da população brasileira estimou em cerca de 128 mil as mortes precoces ligadas à poluição do ar entre 2018 e 2025, a um custo de R$ 51,5 bilhões em perda de produtividade.
O que cidades brasileiras podem fazer – e várias cidades latino-americanas, europeias e asiáticas têm feito – é cobrar pelo uso do carro e direcionar as receitas para investimentos em transporte coletivo e ativo. A justificativa principal são as externalidades negativas: quem opta por usar o carro partilha com toda a sociedade os impactos sociais, ambientais e econômicos de sua escolha.
Segundo a Associação Nacional de Transportes Públicos (ANTP), carros e motos respondem por 85% dos investimentos em infraestrutura viária e dos custos ambientais e de saúde do transporte urbano, em comparação a 15% do transporte coletivo. É justo cobrar por esses impactos para subsidiar o transporte coletivo, que beneficia toda a coletividade e hoje é bancado apenas pelas pessoas que o utilizam.
No Brasil, uma das poucas medidas consolidadas para corrigir essas distorções é a cobrança pelo estacionamento rotativo em via pública. Mas, geralmente, cobra-se pouco. Estacionar um carro particular em uma região comercial da cidade deveria ser significativamente mais caro do que acessá-la com transporte coletivo. Há vários caminhos para aprimorar a cobrança do uso do meio-fio e do espaço público destinado a estacionamentos, e exemplos de como direcionar as receitas para o transporte sustentável.
Impostos sobre combustíveis, taxas de licenciamento de veículos e taxação do congestionamento – também comumente chamada de “pedágio urbano” – são outras fontes em potencial. A experiência de Londres é exemplar: a cidade cobra de veículos para acessar a região central. A prática rende à cidade mais de R$ 1 bilhão ao ano, e permite conciliar uma política de “tarifa acessível” para o transporte coletivo à oferta de um bom serviço e à redução substancial de emissões, poluentes, congestionamentos e sinistros de trânsito na região de abrangência.
Esses recursos – como outras receitas adicionais de que já tratamos – podem alimentar fundos municipais de transportes, como o implementado por São José dos Campos, que recebe 38,5% das receitas do estacionamento rotativo. A médio e longo prazo, esses fundos podem garantir lastro financeiro para a operação e os investimentos na qualificação do sistema, além de possibilitar estabilidade tarifária e até mesmo cobrir gratuidades.
Renovar para não salvar a ineficiência e a iniquidade
Salvar o transporte coletivo como ele é hoje seria perpetuar a ineficiência, a baixa qualidade e, em última instância, a perda de clientes. Toda ação para captar recursos adicionais deve ser voltada à melhoria da qualidade do serviço e à promoção de maior acesso das pessoas a oportunidades. Renovar passa por resolver problemas estruturais dos sistemas de ônibus nas cidades.
Os modelos de contratos usuais no Brasil carecem, por exemplo, de mecanismos que garantam a qualidade, um padrão adequado de oferta e a resiliência do serviço. Separar as concessões de provisão dos veículos e de operação das linhas é uma alternativa. Assim, Santiago e Bogotá têm conseguido dividir riscos entre diferentes empresas, remunerar as partes segundo indicadores de qualidade e eficiência e viabilizar a eletrificação da frota.
Adequar a oferta de mobilidade à demanda de viagens
Renovar passa pela coleta e abertura de dados para entender as mudanças nos padrões de deslocamento das pessoas e pelo aperfeiçoamento de instrumentos como as Pesquisas Origem e Destino (OD). Os dados permitem às cidades planejar tanto a oferta de linhas de ônibus quanto a implantação de infraestrutura para os transportes coletivo e ativo. Poucas são as cidades brasileiras que vêm realizando periodicamente esses levantamentos, em geral através de longos questionários. Joinville inovou. O método utilizado na última Pesquisa OD da cidade catarinense cruza dados de telefonia móvel com outras fontes, como os dados GTFS das empresas operadoras. Além de facilitar a coleta de dados, o método permite identificar com mais precisão os trajetos percorridos pela população.
Qualificar e ampliar calçadas e ciclovias – e conectá-las ao transporte coletivo – também é parte importante da renovação. Em levantamento do Instituto Clima e Sociedade (iCS), 67% das pessoas responderam que trocariam o transporte individual por uma alternativa sustentável. As que não trocariam deram dois motivos principais: conforto (26%) e praticidade (20%). (Re)conquistar essas pessoas passa por oferecer a elas a possibilidade de realizar os deslocamentos do dia a dia de forma cômoda – mesmo que envolvam, por exemplo, caminhar até um terminal de ônibus e usar uma bicicleta compartilhada no último quilômetro.
Ao oferecer às pessoas uma rede de transportes confortável, com informação em tempo real e pagamento facilitado, o sistema de transportes começa a se aproximar da chamada mobilidade como um serviço (MaaS, na sigla em inglês): um sistema totalmente integrado, que conecta os usuários de um ponto a outro da cidade “sem costuras” (do inglês, seamless) e com o bastante eficiência.
Planejamento e integração para prosperar
Na cidade próspera que queremos, o transporte sustentável é acessível, confortável, seguro e conveniente – por isso, é a escolha preferida da maioria da população, independentemente da faixa de renda. Para chegar lá, é preciso perseguir uma visão contemporânea de futuro, desdobrada em um planejamento integrado de transportes e desenvolvimento urbano, contemplando um conjunto de ações concatenadas.
As cidades que conceberem de forma coordenada a mobilidade e o uso do solo poderão fomentar a consolidação de centralidades, contrapondo o espraiamento decorrente do crescimento urbano desordenado que predominou nas cidades brasileiras, e que vem gerando emissões, sinistros viários, congestionamento e acesso desigual a oportunidades.
Uma retomada verde da economia, que encaminhe nossas cidades para um desenvolvimento de baixo carbono, não pode prescindir de um transporte coletivo mais sustentável e equânime, que proporcione benefícios substanciais para o ambiente e as pessoas. Priorizar ações e investimentos no transporte sustentável e na mobilidade de baixo carbono abre portas para que cidades acessem financiamento verde e climático.
Cidades podem liderar a transformação
Sobreviver, renovar e prosperar: essas três palavras descrevem a construção de um novo círculo virtuoso para o transporte coletivo. E o que é bom para o transporte coletivo, é bom para as pessoas, para o clima e para a economia. Cidades e líderes que perceberem e abraçarem essa perspectiva estarão mais perto de oferecer um transporte coletivo de qualidade para a população e de se tornarem exemplo para cidades no Brasil e no resto do mundo.
Fonte: WRI Brasil
https://wribrasil.org.br/pt/blog/cidades/sobreviver-renovar-prosperar-caminho-para-transporte-coletivo-de-qualidade-no-brasil
Cristiano Romero: A mais difícil e a mais urgente das reformas
Todos querem mudança tributária há trinta anos
Cristiano Romero / valor Econômico
Os presidentes da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP-AL), e do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), não sepultaram a possibilidade de aprovação da reforma tributária nesta legislatura, mas inovaram ao indicar que o tema, por bem ou por mal, será apreciado até dezembro. Como ocorreu nos últimos 30 anos, a reforma institucional mais demandada pelos agentes econômicos _ inclusive, os contribuintes pessoas físicas _ pode não sair do papel. E a razão é uma só: é impossível conciliar todos os interesses envolvidos nesse tema.
Razões para justificar mudanças no regime tributário brasileiro não faltam. O sistema taxa mais o consumo do que a renda, na contramão das economias avançadas. No 8º país que mais concentra renda no planeta, onde existem mais de 50 milhões de pessoas miseráveis (dependentes de programas de transferência de renda para sobreviver) e a maioria da população é pobre, essa regra ajuda a perpetuar uma de nossas maiores chagas.
Trata-se de uma “brasileirice” sem tamanho, típica de uma sociedade dilacerada pela cultura escravagista por mais de 500 anos: neste imenso pedaço de terra abençoado, mas esquecido por Deus, os pobres pagam mais imposto que os ricos. E isso ocorre porque, por razões óbvias, essa parcela da população consome mais, isto é, despende fatia maior de sua renda com bens de consumo e, quando a maré permite, serviços.
Incidem sobre o consumo três tributos _ o ICMS (estadual) e dois federais (PIS e Cofins) _, todos sobre a mesma base de cálculo, o faturamento das empresas que vendem os produtos. As alíquotas do ICMS são as mais elevadas. No caso de serviços como telefonia e energia, superam o patamar de 40%! Não nos esqueçamos do IPI, imposto que incide sobre a produção de bens industriais.
As “brasileirices” (sinônimo de jabuticaba) que condenam este país a não ser nação não param por aí. Neste território riquíssimo em recursos naturais onde vive um dos maiores contingentes de cidadãos pobres do mundo, indivíduos de classe média e os ricos podem deduzir, da base de cálculo do Imposto de Renda, tudo _ isso mesmo, tudo _ o que gastam em hospitais particulares e planos de saúde, inclusive, no exterior.
PRESIDENTES DA CÂMARA E DO SENADO
O raciocínio por trás dessa maldade é o seguinte: como a Constituição de 1988 assegura, a todos os viventes nesta extensão de terra no hemisfério sul da Terra, acesso universal a serviços públicos de saúde, é razoável que os transeuntes tenham o direito de requerer dedução das despesas que tiverem com serviços particulares de saúde. O cinismo _ uma “brasileirice” da qual ninguém fala, do mesmo quilate das férias de dois meses de juízes e procuradores _ chega ao paroxismo quando os defensores da vilania alegam que “a dedução é um direito, uma vez que o sistema de saúde estatal ainda não consegue atender a toda a demanda.
Se alguém tem alguma dúvida de por que o país a que chamamos de Brasil não dá certo, não precisa ir muito longe. Como os pobres não têm dinheiro para serem atendidos em hospitais particulares, eles não têm direito a deduzir nada da base de cálculo do Imposto de Renda. Os cínicos, neste momento da tertúlia, rompem qualquer fronteira do bom senso civilizacional: “Ora, pobres não pagam Imposto de Renda, logo, eles não precisam deduzir os gastos com saúde”.
Era só o que faltava: o sonho dos pobres no Brasil, agora, é pagar Imposto de Renda! Na verdade, eles já pagam, pois, já é obrigado a isso quem percebe pouco mais de R$ 2 mil por mês. Em termos menos edulcorados, o que esse sistema injusto e concentrador de renda faz é tirar bilhões de reais que deveriam financiar a saúde pública, que segundo a Carta Magna é para todos, inclusive, estrangeiros que estejam de passagem pelo país, e transferi-los para hospitais particulares e grandes empresas de planos de saúde.
Mesmo tendo consciência de que o Sistema Único de Saúde (SUS) pode ter uma gestão melhor, deveríamos considerar nas duras críticas que fazemos ao serviço público o fato de que o próprio Estado abre mão de bilhões de reais para beneficiar meia dúzia de grupos de interesse específico.
Depois da Segunda Guerra Mundial, os americanos perceberam-se mais importantes do que achavam antes do conflito. Essa constatação mudou tudo. Logo, viram que, para sua economia crescer na velocidade desejada, eles precisavam de uma matéria-prima _ petróleo (energia) _ que eles possuíam, mas não na quantidade necessária.
Ora, o jeito foi sair pelo mundo em busca de fornecedores “confiáveis”_ um dos principais, a Venezuela, que, até o início deste século, fornecia 20% do petróleo consumido pelos Estados Unidos. A fome americana por óleo era tanta que moldou a geopolítica mundial a partir dali. Internamente, a decisão foi desonerar o preço do combustível consumido por empresas e famílias americanas, afinal, o país precisava crescer. Taxar excessivamente a gasolina para financiar o Estado, como fizeram outros grandes produtores de petróleo (México, Venezuela, Nigéria, Arábia Saudita), seria contraproducente: aumentaria a presença do governo na atividade econômica, tornando-o ineficiente por definição; estimularia a corrupção; desestimularia o desenvolvimento de outros setores; por fim, diminuiria a produtividade, uma vez que não haveria, de forma geral, incentivos para o desenvolvimento de uma economia dinâmica.
Quando achou que tinha chegado a sua hora de reluzir na economia mundial, depois de se deitar em berço esplêndido por quatro séculos e meio, a Ilha de Vera Cruz também não tinha petróleo suficiente. Mas, o que se viu desde então foi a taxação sempre elevada dos combustíveis. Como facilitar o crescimento da atividade?
Em entrevista à Maria Fernanda Delmas, diretora de redação do Valor, Lira e Pacheco expuseram o drama infindável da reforma que não se realiza. “É óbvio que a reforma tributária guarda uma série de divergências. É sem dúvida a proposta com maior dificuldade de conciliação, de entendimento do que é bom para o país”, disse Pacheco.
Fonte: Valor Econômico
https://valor.globo.com/brasil/coluna/a-mais-dificil-e-a-mais-urgente-das-reformas.ghtml
Luiz Carlos Azedo: O espetáculo na pandemia
Líderes da CPI precisam levar em conta as mudanças de cenário e não perder o foco e evitar um carnaval midiático
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Ninguém tem dúvida de que a CPI da Covid no Senado tornou-se o epicentro da disputa política entre governo e oposição na conjuntura marcada pelo novo coronavírus. Entretanto, a pandemia está sendo domada, na medida em que a vacinação avança, enquanto o desemprego e a alta da inflação, dos juros e da cotação do dólar começam a ser os fatores de maior repercussão na vida da população. Ou seja, a urgência política está mudando e a comissão começa a perder o protagonismo que tinha, apesar de o elevado número de óbitos por covid-19 ter se tornado um trauma que enluta mais de 600 mil famílias. É muita gente.
O depoimento do empresário Luciano Hang, dono da rede de lojas Havan, ontem, na CPI, ilustra a nova situação, na sequência das espantosas revelações da advogada Bruna Morato, na terça-feira, cujo relato da rotina de ameaças a médicos da operadora de saúde Prevent Senior durante a pandemia foi estarrecedor. Enquanto Morato denunciou a falta de autonomia dos profissionais, a exigência da prescrição de remédios ineficazes e o envolvimento da empresa em um “pacto” com o chamado “gabinete paralelo” do Palácio do Planalto, Hang fez de seu depoimento um case de marketing político e comercial ao confrontar a CPI, porque sustentou as posições negacionistas de Jair Bolsonaro e seus apoiadores, e ainda aproveitou para fazer propaganda de sua cadeia de lojas de departamentos.
Segundo o relator da CPI, senador Renan Calheiros(MDB-AL), Hang orientava o presidente sobre condutas para o enfrentamento da pandemia e fazia parte do chamado “gabinete paralelo”, supostamente o estado-maior da política de enfrentamento da pandemia executada pelo Ministério da Saúde na gestão do general Eduardo Pazuello. A grande contradição de seu depoimento foi o fato de não ter questionado o atestado de óbito de sua mãe, que morreu de covid-19, quando estava sob os cuidados da Prevent Sênior — a informação não consta como causa mortis no documento. O empresário admitiu que autorizou a utilização do chamado kit covid durante o tratamento, porém atribuiu a subnotificação a um erro do plantonista e não à intenção de omitir o fato da opinião pública.
Outras prioridades
Mais importante do que o conteúdo do depoimento, porém, foi o circo armado pelo “velho da Havan” e o senador Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) na própria CPI, cuja sessão foi das mais tumultuadas. Hang foi evasivo e driblou perguntas feitas pelos senadores sobre a operadora de saúde Prevent Senior, o que irritou o presidente da comissão, senador Omar Azis (PSD- AM), e o chamado grupo dos sete, formado por senadores de oposição e independentes. A maior utilidade do depoimento foi revelar que a atuação de empresários bolsonaristas na pandemia, a estratégia adotada pela Prevent Sênior e a política de Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde estavam em linha com o propósito de Bolsonaro de manter a economia funcionando a qualquer custo, mesmo que o preço a pagar fosse o alto número de óbitos, como acabou acontecendo.
A chamada “sociedade do espetáculo” é considerada uma forma perversa de ser da sociedade de consumo. Trata-se da multiplicação de ícones e imagens, principalmente através dos meios de comunicação de massa, mas também dos rituais políticos, religiosos e hábitos de consumo, de tudo aquilo que falta à vida real do homem comum. É um fenômeno contemporâneo, que vem sendo estudado há mais de 50 anos, cuja característica principal é a transformação das relações entre as pessoas em imagens e espetáculo, como acontece nas redes sociais. Não existe mais um limite entre a realidade e o espetáculo.
É aí que os líderes da CPI precisam levar em conta as mudanças de cenário e tomar cuidado para não perderem o foco. O objetivo da comissão não é promover um carnaval midiático, no qual os critérios de verdade e validade acabam diluídos pela retórica do conflito político, como aconteceu na sessão de ontem. Talvez seja a hora de os integrantes da CPI priorizarem a elaboração de um relatório robusto, no qual os responsáveis pela tragédia humanitária em que se converteu a pandemia sejam apontados com rigor, bem como os crimes cometidos, devidamente tipificados e comprovados. Ou seja, é preciso partir para os “finalmentes”.
Luiz Carlos Azedo: O refúgio de Bolsonaro
O Palácio do Planalto faz mistério sobre o roteiro político do presidente da República na ONU, mas o próprio nos deu uma dica: “Podem ter certeza, lá teremos verdades
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
A tradição é o Brasil ser o primeiro país a se manifestar na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU), desde 1955, logo após os discursos de abertura do presidente da Assembleia e do secretário-geral da Organização. Nos últimos 65 anos, essa ordem somente não foi seguida três vezes. “Certos costumes surgiram durante o debate geral, incluindo o costume da ordem dos primeiros oradores”, explica a própria ONU. Nossos presidentes da República gostam de comparecer à abertura dos trabalhos do mais importante organismo de cooperação e governança global. Trata-se de uma vitrine para o mundo, um momento de reconhecimento e demonstração de prestígio internacional para o nosso país.
Entretanto, Bolsonaro está no pior momento de seu governo para a opinião pública nacional e internacional. Decidiu comparecer à abertura da Assembleia Geral, na terça-feira, para dizer algumas “verdades” sobre o país. Viaja, neste domingo, acompanhado pela primeira-dama, Michelle, e chegará “causando” porque, até hoje, não se vacinou contra a covid-19. Durante a semana, isso criou a maior celeuma, porque a Prefeitura de Nova York, cidade onde está localizada a sede da ONU, restringe a circulação de pessoas não vacinadas.
A própria ONU exige o atestado de vacina para participar da Assembleia Geral. Porém, diante do impasse, decidiu flexibilizar o protocolo e aceitar a presença de chefes de Estado que não tomaram a vacina, desde que apresentem um atestado de que estão saudáveis, ou seja, não sejam portadores do vírus da covid-19. É o tipo de atitude que queima o nosso filme já no desembarque. Nova York é uma cidade multiétnica e cosmopolita, na qual os brasileiros não passam batido: são 300 mil residentes na metrópole.
O projeto final do belíssimo prédio da sede da ONU, selecionado por uma equipe de arquitetos de diversos países, liderada por Wallace Harrison, é de autoria de Oscar Niemeyer com a colaboração de Le Corbusier. Construída entre 1949 e 1952, fica no setor leste de Manhattan, às margens do Rio East, em terrenos comprados por Nelson Rockefeller por US$ 8,5 milhões e doados por seu herdeiro à administração local. Era um antigo matadouro. A comissão selecionou o projeto de Niemeyer por sua leveza, ao definir prédios distintos para os diferentes órgãos das Nações Unidas em vez de um só edifício, como propôs Le Corbusier.
O Secretariado foi erguido às margens do Rio East, tendo a Assembleia Geral logo à direita, criando uma ampla praça cívica na frente. A sede da ONU é uma verdadeira galeria de arte, com obras de grandes artistas, entre os quais Cândido Portinari. Os monumentais painéis de Guerra e Paz estão expostos no salão dos delegados. Encomendados pela United Nations Association of the United States of America, como um presente às Nações Unidas, foram projetados em Nova York. Portinari, porém, teve problemas com o visto (era acusado de ser comunista), por causa da Guerra Fria, voltou para o Brasil e pintou os painéis no Rio de Janeiro.
Refúgio
Bolsonaro poderá circular pelo prédio da ONU, mas não poderá frequentar a área interna de nenhum restaurante da cidade. Não chega a ser um problema. O presidente da República gosta de ambientes populares e pode até criar um factoide na vida mundana dos brasileiros em Nova York. Na zona central da cidade, o Little Brazil, rua entre a 5a e a 6a Avenidas, tem bons restaurantes brasileiros, entre os quais os famosos Via Brazil, Ipanema e Emporium. Todos têm leite condensado, caipirinha, feijoada e picanha, além de mesas nas calçadas. Dependendo do dia da semana, rola um pagode no Samba Kitchen & Bar. Fora do quadrado, o Miss Favela, no Brooklyn, a US$ 45 por cabeça o menu completo, tem música ao vivo e clima de boteco.
Deixemos a gastronomia de lado. O Palácio do Planalto faz mistério sobre o roteiro político de Bolsonaro na ONU, mas o próprio nos deu uma dica, na semana passada: “Podem ter certeza, lá teremos verdades, realidade do que é o nosso Brasil e do que nós representamos verdadeiramente para o mundo”, disse. Na última sexta-feira, nosso presidente não participou do Fórum das Grandes Economias sobre Energia e Clima, evento online promovido pelo presidente Joe Biden como preparação da Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, a COP 26, marcada para ocorrer entre os dias 1 e 12 de novembro. Os presidentes da Argentina, Alberto Fernández, e do México, Andrés Manuel Lopez Obrador, participaram.
Bolsonaro deve voltar ao Brasil logo após a abertura da Assembleia Geral. Não tem reunião agendada com nenhum outro chefe de Estado. Pelo rumo da prosa, como a maioria dos governantes de países emergentes e periféricos quando estão enfraquecidos, apelará para o discurso nacionalista, um refúgio bem conhecido na diplomacia. É uma forma de mascarar seu negacionismo em relação à pandemia da covid-19, à grave crise hídrica e ao desmatamento na Amazônia, além de dificuldades econômicas e a atual instabilidade política que criou.
Luiz Carlos Azedo: Muito barulho por nada
A reprovação ao governo Bolsonaro oscilou dois pontos para baixo em relação ao levantamento de julho: 53% consideram o governo ruim ou péssimo”
Luiz Carlos Azedo / Nas Entrelinhas / Correio Braziliense
Graças às redes sociais, a participação da sociedade na política se ampliou muito, com certas características da forma como as pessoas se articulam na internet, ou seja, as chamadas de “tribos” — quando se agrupam por interesses permanentes — ou “bolhas”, no caso das correntes de opinião política encapsuladas em grupos de pressão. Tanto as mudanças econômicas, financeiras e tecnológicas aceleradas pela globalização, como a revolução nos costumes, por exemplo, são fatores de maior diversidade social e pluralismo político.
A expressão “maioria silenciosa” se refere às pessoas politicamente acomodadas que, de um modo geral, têm posições conservadoras, mas não manifestam opinião publicamente. Esse conceito surgiu nos Estados Unidos, como muitos outros, durante o governo de Richard Nixon, quando, em 1969, ele pediu à população americana mais apoio ao envio de tropas para lutar no Vietnã. Havia, com razão, muita resistência à intervenção norte-americana no Sudeste Asiático, mas Nixon conseguiu o apoio da maioria da sociedade. Desde então, conquistar o apoio dessa parcela da sociedade passou a ser uma das principais preocupações dos políticos.
A eleição de Donald Trump foi um momento de mudança na relação dos políticos com essa “maioria silenciosa”, que deixou de sofrer a influência predominante dos grandes meios de comunicação para ser pautada por minorias ativas nas redes sociais, em parte formada por setores que, até então, não tinham como se expressar nos movimentos civis e sociais. Tais grupos são muito barulhentos e conseguem pautar as políticas públicas, e até os meios de comunicação. Esse fenômeno voltou a ocorrer, com sinal trocado, na campanha que levou o democrata Joe Biden à vitória.
Um marco dessa mudança foi o movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), que hoje tem caráter internacional, mas surgiu na comunidade negra dos EUA, que luta contra a violência racista. Emergiu em 2013, com o uso da hashtag #BlackLivesMatter em redes sociais, após a absolvição de George Zimmerman, que atirou fatalmente no adolescente negro Trayvon Martin. O movimento ficou conhecido por suas manifestações de rua após a morte, em 2014, de dois afroamericanos. Em maio de 2020, o movimento ganhou repercussão mundial com a morte de George Floyd, durante uma ação policial em Minneapolis. Milhares de pessoas foram às ruas protestar a favor da vida das pessoas negras no mundo todo. Foi então que Trump começou a perder as eleições.
Pesquisa
Como estamos na esfera de influência do chamado americanismo, esse fenômeno também ocorre no Brasil, obviamente com características próprias, entre as quais o peso da questão ética no posicionamento da sociedade em relação à política. Em grande parte, a vitória do presidente Jair Bolsonaro, em 2018, foi uma deriva da eleição de Trump e da forte rejeição provocada pela Operação Lava-Jato à política tradicional e ao envolvimento dos grandes partidos em escândalos de corrupção. Agora, as pesquisas estão mostrando um movimento em sentido inverso, em decorrência do desempenho do governo Bolsonaro em diversas áreas: crise sanitária, alta inflacionária, crise hídrica, ameaças à democracia etc.
A pesquisa DataFolha divulgada ontem é uma comprovação disso. A reprovação ao governo Bolsonaro oscilou dois pontos percentuais em relação ao levantamento feito em julho: 53% consideram o governo ruim ou péssimo, o pior índice do mandato — na última pesquisa, eram 51%. O percentual dos que consideram o governo bom ou ótimo caiu de 24% para 22%, enquanto a parcela que o considera reguar manteve-se em 24%. A pesquisa ouviu 3.667 pessoas com mais de 16 anos, dos dias 13 a 15 de setembro, em 190 municípios brasileiros. A margem de erro é de dois pontos para mais ou para menos.
O mais importante é que o levantamento foi feito após as manifestações do 7 de Setembro, convocadas por Bolsonaro, que foram muito maiores do que as de oposição moderada, realizadas no dia 12 passado. A alta de preços da gasolina, do gás e dos alimentos, e a existência de 14,4 milhões de desempregados pesaram na balança da pesquisa, inclusive na classe média e entre os evangélicos, onde o presidente da República perdeu muito apoio. Em resumo, a chamada “maioria silenciosa” mudou de lado.
Luiz Carlos Azedo: Três tenores e um anjo torto
Grupo acompanhou a trajetória política do Brasil desde o golpe que destituiu João Goulart, em 1964, até a recente confusão armada por Bolsonaro
Luiz Carlos Azedo / Nas entrelinhas / Correio Braziliense
Um evento importante para a política será realizado, hoje, para discutir a crise brasileira, com a participação dos ex-presidentes José Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer, no qual o ex-presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) Nelson Jobim fará uma abertura sobre a crise institucional que estamos atravessando, com mediação do ex-governador fluminense Moreira Franco. O seminário “Um novo rumo para o Brasil” é promovido pelas fundações do MDB, PSDB, DEM e Cidadania, e contará ainda com os presidentes dos respectivos partidos — o deputado federal Baleia Rossi (SP), o ex-ministro das Cidades Bruno Araújo, o ex-prefeito de Salvador ACM Neto e o ex-senador Roberto Freire, respectivamente.
O evento estava sendo organizado havia meses, para começar em 8 de setembro, mas o ex-presidente Michel Temer, premonitoriamente, sugeriu que fosse adiado por uma semana, não apenas por causa do feriadão do 7 de setembro, mas porque se temia que, no Dia da Independência, algum fato relevante ocorresse, como acabou acontecendo, exigindo certa decantação para que o evento não se transformasse numa operação de apagar incêndio. Ou seja, que deixasse de discutir saídas para a crise política que o país atravessa e o choque entre Poderes. Acabou que foi exatamente isso o que ocorreu no dia 8 de setembro, uma operação para conter as chamas dos discursos incendiários de Bolsonaro, que provocaram um locaute de caminhoneiros e que assombraram os agentes econômicos e aliados do governo.
O título da coluna, obviamente, é uma analogia, porque Sarney, Fernando Henrique Cardoso e Michel Temer nem de longe têm a potência de voz dos três tenores aos quais se remete: Plácido Do- mingo, José Carreras e Luciano Pavarotti, que cantaram juntos, em concertos, durante a década de 1990 e no início da década de 2000. A primeira performance do trio ocorreu nas Termas de Caracala, em Roma, Itália, em 7 de julho de 1990 — no encerramento da Copa do Mundo de Futebol de 1990. Zubin Mehta conduziu a Orquestra Maggio Musicale Fiorentino e a Orquestra do Teatro da Ópera de Roma.
Potência de voz no sentido figurado, porque são vozes influentes ainda hoje na política brasileira. Sarney virou um oráculo de muitos senadores influentes; FHC é o único que pode juntar os cacos do PSDB e continua sendo a referência política do grupo de economistas que salvou o país da hiperinflação; finalmente, Temer renasceu das cinzas, sendo o único interlocutor do presidente Jair Bolsonaro no mundo da alta política — os demais são operadores do baixo clero. O ex-ministro Nelson Jobim dispensa apresentação: é um personagem importante na calibragem das propostas que podem surgir do evento, porque foi ministro da Justiça de Fernando Henrique, presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) e ministro da Defesa do ex- presidente Luiz Inácio Lula da Silva, além de personagem muito importante na elaboração da Constituição de 1988.\
O anjo torto
Do time de presidentes de partidos, Roberto Freire (Cidadania) é o único que participou da Constituinte. Viveu todos os momentos da transição à democracia, desde sua eleição a deputado federal em 1978. Baleia Rossi (MDB), Bruno Araújo (PS- DB) e ACM Neto (DEM) pertencem à nova geração que comanda o Congresso. No seminário, formarão uma espécie de backing vocal. Na música, muita gente subestima o coro que dá sustentação aos tenores e outros solistas, mas é preciso muita habilidade para desempenhar esse papel. É necessário percepção e habilidades que são desenvolvidas com estudos. Ter um ouvido bem apurado e prestar bastante atenção para não “entrar” na voz principal.
O encontro será transmitido ao vivo pelas redes sociais, a partir das 18h30, o primeiro da série de oito debates programáticos (economia, meio ambiente, saúde, educação, segurança, diversidade, relações exteriores), com grandes especialistas, na tentativa de formular uma agenda nova para o país, entre as quais uma saída sustentável para a crise econômica. Há muita experiência vivida nesse grupo, que acompanhou a trajetória política do Brasil desde o golpe que destituiu o presidente João Goulart, em 1964, até a confusão armada por Bolsonaro, na semana passada.
Para resumir a linha de pensamento vitoriosa nesse processo, há dois eixos: a defesa da democracia e a conciliação política. Mas ninguém se iluda: todos nesse grupo foram capazes de tomar decisões firmes em momentos difíceis e liderar rupturas. Por isso mesmo, não se deve esperar um debate monocórdico, um coro perfeito. Quem será o anjo torto?