são paulo
Fernando Gabeira: Novas batalhas de Itararé
No Brasil, como nos EUA, pandemia e obscurantismo político andam de mãos dadas
O mundo ainda vive o impacto da pandemia. A segunda onda atinge a Europa, alguns países, como a Bélgica, estão com os hospitais sobrecarregados. Recordes planetários em número de casos foram batidos várias vezes em outubro. Só os Estados Unidos registraram 80 mil casos diários.
Com oito Estados tendendo para um aumento, o Brasil deveria estar preocupado. Deveríamos estar vacinados contra as bobagens de Bolsonaro e esse estéril duelo com Doria. No entanto, entramos numa estúpida guerra da vacina, como se estivéssemos ainda em 1904 nos bairros insalubres do Rio de Janeiro.
Bolsonaro recusa-se a comprar vacinas de origem chinesa e desautoriza seu general na Saúde. Ele ignora que neste mundo ninguém se importa tanto com a origem de uma vacina, mas apenas com sua segurança e eficácia. É um ébrio ideológico que não pode saber que os chineses inventaram a pólvora, senão vai interditar todos os paióis do País.
O programa brasileiro de imunização deve se basear apenas nos critérios técnicos e a exclusão de uma vacina aprovada pela Anvisa pode ser anulada pelo Supremo.
Bolsonaro prefere a hidroxicloroquina. Disse que talvez fosse melhor investir na cura do que na vacina contra o vírus. Ainda bem que é apenas uma opinião pessoal. O Brasil já investiu mais em vacina do que em hidroxicloroquina porque essa é a lógica científica. O que não significa que não devamos, como se faz lá fora, pesquisar antivirais eficazes.
No outro canto do ringue está o governador João Doria. Todos os políticos realmente vocacionados proporiam, antes de tudo, que a vacina fosse gratuita. Há um grande interesse em se vacinar, mas nem todos poderão comprar sua dose. Doria preferiu afirmar que a vacina seria obrigatória e isso acabou desfechando um debate que acabará no Supremo Tribunal, como a batalha final do ciclo Itararé.
Ainda não temos a vacina. Não sabemos qual será o seu nível de eficácia, algo que talvez seja possível conhecer no início do ano que vem. Não sabemos ainda em quanto tempo haverá vacina disponível para todo mundo. Talvez leve um ano. Qual o sentido de tornar obrigatório algo inalcançável num determinado espaço de tempo?
As vacinas podem ser apenas 50% eficazes. Já existem mais de 5 milhões de brasileiros com anticorpos, porque foram contaminados. E há doenças, como a do uruguaio José Mujica, que são incompatíveis com a vacina.
O Supremo será levado a determinar algo que talvez seja desnecessário. Há mais gente querendo a vacina do que vacina disponível. Se 80% da população se vacinar, tem sentido impor restrições aos restantes 20%? Não teríamos atingido, por esse caminho, a imunização de rebanho?
Se abstrairmos o episódio da Revolta da Vacina, no início do século 20, o tema parece absurdo. Acontece que Bolsonaro sabe que alguns bolsões da internet se encantam com os movimentos antivacina modernos. Uma teoria conspiratória as associa ao poder dos chineses, ou à forma como Bill Gates vai se apoderar do mundo.
São grupos minoritários e vivem, como Bolsonaro, numa espécie de bolha da teoria conspirativa que lhes dá a sensação de serem especiais, de entenderem o significado secreto de acontecimentos de que as pessoas comuns só captam a superfície.
É uma escolha política, como foi a de Trump de não denunciar o supremacismo branco quando chamado a opinar sobre isso. Ou de fingir que não conhece o grupo QAnon, que divulga a existência de uma associação de políticos pedófilos que se reúnem em porões de pizzaria.
Com a existência de pessoas isoladas em seus grupos de internet é possível alimentar a insanidade, até mesmo com a ajuda das grandes plataformas sociais. Os terraplanistas, por exemplo, encontram farto material para sustentar sua tese.
O fato de Trump e Bolsonaro terem triunfado nas eleições explorando ressentimentos, ou mesmo a ingenuidade das pessoas, é um dado real da conjuntura das duas Américas. No entanto, a maneira errática como governam, por meio de mensagens vulgares e sensacionalistas, vai mostrar que a vitória de ambos foi um acidente histórico, uma alerta.
Isto não significa que depois dessa vulgaridade virá o melhor dos mundos. Haverá tempo para corrigir alguns erros e avançar modestamente.
É possível que o resultado das eleições americanas seja a vitória de Joe Biden. Estaremos apenas acordando de um pesadelo, mas dentro das condições dramáticas que o tornaram possível.
De certa forma, Camus previu isso no romance sobre a peste, que pode ser vista como o ataque do vírus ou o assalto do obscurantismo autoritário. Essa ameaça nunca desaparece, ela está em toda parte, à espreita, pronta para reaparecer.
Com Trump e Bolsonaro tivemos uma combinação nefasta. No caso de Bolsonaro, não bastou o elogio da hidroxicloquina. Era preciso lançar dúvidas sobre a vacina, enfraquecer a busca nacional por esse recurso.
Em A Peste, o vírus é apenas uma alusão a regimes opressivos. No Brasil e nos Estados Unidos vivemos uma redundância: pandemia e obscurantismo político andam de mãos dadas.
*Jornalista
Maria Hermínia Tavares: O clima nas eleições - Sustentabilidade entra na agenda dos candidatos nos municípios
Sustentabilidade entra na agenda dos candidatos nos municípios
Misto de atraso, interesses mesquinhos e má-fé, os esforços do governo Bolsonaro para desmontar a política ambiental não tiveram só as previsíveis consequências desastrosas: aumento das queimadas, do desmatamento e das atividades ilegais em áreas protegidas. Produziram o efeito bumerangue de gerar inédita reação da sociedade.
Os três maiores bancos brasileiros se uniram em torno de um plano sustentável para a Amazônia. Com o mesmo fim, cem personalidades criaram a Concertação para a Amazônia, enquanto 230 organizações formaram a Coalizão Brasil, Clima, Florestas e Agricultura, um foro de diálogo entre grandes empresas e organizações ambientalistas.
Rapidamente, a discussão vem se ampliando para incluir outros temas relacionados à recuperação dos estragos econômicos e sociais trazidos pela Covid-19. Agora, 24 organizações da sociedade civil, algumas empenhadas na formação de novas lideranças políticas, acabam de lançar a Agenda Urbana do Clima, destinada a inspirar candidatos a prefeitos e vereadores. Ela oferece uma visão abrangente da questão: governança das metrópoles; saneamento e gestão da água; saúde e redução da poluição; segurança alimentar; trato de resíduos sólidos; geração de empregos em sistemas de economia solidária; transporte público e mobilidade; áreas verdes, energias renováveis e eficiência energética.
Impossível medir a sensibilidade ao tema dos milhares de candidatos que disputam prefeituras ou câmaras municipais no país. Não é, nem de longe, questão central nas campanhas da maioria dos aspirantes ao comando das maiores cidades. Mas o tema começa a aparecer nas propostas que todos têm de apresentar ao registrarem suas candidaturas.
Em São Paulo, os cinco prefeitáveis mais fortes inscreveram a sustentabilidade em seus programas de governo. Apenas como menção protocolar no caso de Celso Russomanno, como um ponto entre outros para Marcio França e sem muito destaque na agenda centrada em inclusão social da chapa Guilherme Boulos-Luiza Erundina. Uma concepção avançada e madura da sustentabilidade como dimensão das principais políticas municipais está presente apenas nas propostas de Jilmar Tatto e de Bruno Covas, aliás em termos muito semelhantes e bem próximos da Agenda Urbana do Clima.
Propostas de campanha costumam se situar em alguma nuvem entre pura propaganda, vaga declaração de intenções e compromisso a se efetivar em um futuro incerto. Ainda assim, dizem algo sobre o que está no horizonte de cada candidato e o que a sociedade organizada dele pode --e deve-- cobrar caso se eleja.
*Maria Hermínia Tavares, professora titular aposentada de ciência política da USP e pesquisadora do Cebrap
Sergio Fausto: O delírio contra a ‘vacina chinesa’
Sem imunização em massa corremos o risco de o novo coronavírus persistir entre nós
O maior risco na política é o delírio. Quando fomentado por um líder, pode arrastar grande contingente de pessoas a adotar comportamentos destrutivos para si e/ou para os outros. Quando mobiliza o poder do Estado, as consequências podem ser catastróficas.
Na semana que passou tivemos um pequeno exemplo dos graves problemas que o delírio pode provocar quando passa a condicionar decisões de política pública. Não merece outro nome a recusa presidencial de adquirir a vacina contra a covid-19 ora em produção na China, em fase final de testes para comprovar a sua eficácia.
Por trás da recusa está uma teoria conspiratória com duas versões: a mais amalucada sustenta que a vacina altera o material genético das pessoas e pode servir de veículo para a inoculação de chips capazes de controlar o pensamento dos indivíduos vacinados; a menos endoidecida, mas ainda assim disparatada, vê na vacina produzida pela Sinovac, em parceria com cientistas e governos de distintos países do mundo, um instrumento a serviço da projeção global do poder da China. Num caso ou no outro, é incitada a fantasia paranoica de que nos estaríamos submetendo ao comando do Partido Comunista daquele país.
A versão tosca do delírio é disseminada nas mídias sociais pela rede de apoiadores do presidente Bolsonaro. A versão supostamente sofisticada da maluquice é articulada pelo chanceler Ernesto Araújo, o mesmo que enxerga em Donald Trump a salvação da cultura judaico-cristã e na China, o motor do globalismo e do marxismo cultural.
Não é preciso gastar muita tinta para demonstrar a insânia da referida teoria conspiratória, tampouco para mostrar as consequências desastrosas da eventual recusa, se definitiva, de se adquirir uma vacina, venha ela de onde vier, desde que comprovadas sua segurança e sua eficácia, em meio à maior pandemia dos últimos cem anos. A rigor, as consequências, neste caso, vêm antes do fato, uma vez que as declarações presidenciais atiçam o irracionalismo antivacina que ganha fôlego no Brasil e no mundo.
Basta observar a queda na cobertura vacinal da população brasileira nos anos mais recentes para se dar conta da tempestade que pode estar se formando. Sem imunização em massa, corremos o risco de que o novo coronavírus persista entre nós, junto com o ressurgimento de doenças já erradicadas, das quais o sarampo é apenas um exemplo. Vale a analogia com o que vem acontecendo no meio ambiente, visto que os sinais emitidos pelo candidato e pelo presidente Bolsonaro tiveram inegável papel no aumento dos incêndios na Amazônia e no Pantanal.
Diante desse quadro me pergunto o que significa a “normalização” do governo Bolsonaro. Outro exemplo: seria “normal” a aliança que selamos, sob a liderança dos Estados Unidos, com outros 30 países que não apenas criminalizam o aborto, como também as relações homoafetivas?
A cegueira ideológica, beirando o fanatismo, é um grande mal, em particular quando passa a condicionar decisões sobre questões essenciais à vida, como são a proteção contra doenças contagiosas e o controle sobre a mudança climática.
Não fosse trágica, a cegueira ideológica do governo nessas matérias seria patética. Mimetizam-se, como bichinho amestrado, as ações e os gestos da política externa de Trump. Nem sempre o que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil, muito menos quando o governo americano se move exclusivamente em função de seus interesses unilaterais de curto prazo. Menos ainda quando se está em meio a uma eleição que, tudo leva a crer, provocará importante mudança política naquele país.
Países não têm amigos, têm interesses, disse originalmente lorde Palmerston, ministro da Guerra do Reino Unido no início do século 19. Certo, mas os países têm interesse em cooperar entre si quando se veem diante de desafios que não podem resolver sozinhos. Em nenhuma época da História houve competição tão acirrada quanto na guerra fria, entre Estados Unidos e União Soviética. Confrontavam-se duas ideologias distintas que buscavam arregimentar os demais países em blocos antagônicos. Ainda assim, americanos e soviéticos cooperaram em questões vitais.
Na área nuclear, a construção de acordos e mecanismos formais e informais de consulta e verificação impediram que a guerra fria evoluísse para uma guerra quente de consequências devastadoras. Em momentos decisivos, como na crise dos mísseis, em outubro de 1962, a racionalidade pragmática prevaleceu na Casa Branca e no Kremlin e o mundo se salvou da mútua destruição nuclear entre as duas grandes potências.
Menos conhecida é a cooperação entre Estados Unidos e Rússia na erradicação da varíola, doença que na década de 1960 ainda matava cerca de 2 milhões de pessoas nos países do então chamado Terceiro Mundo. Os soviéticos contribuíram com centenas de milhões de doses da vacina, os americanos com outras tantas e com a logística de distribuição.
Não se tem notícia de que o comunismo se tenha espalhado nos países que receberam as vacinas soviéticas. Em tempos de delírio, cabe esclarecer: isso é uma ironia.
*Diretor-Geral da Fundação FHC, é membro do Gacint-USP
Luiz Carlos Azedo: Eleições pandêmicas
Ao se engajar nas candidaturas de Russomanno e Crivella, em vez de manter distância regulamentar, Bolsonaro corre o risco de ser o grande perdedor das eleições municipais
Eleições municipais nunca foram uma amostra grátis do que virá depois, nas eleições gerais, mesmo na época do regime militar. Por exemplo, em 1974 a oposição (MDB) obteve uma espetacular vitória nas urnas; em 1972, fora massacrada. Em 1976, sofreu nova derrota para o governo (Arena), mas em 1978, o MDB virou o jogo: o resultado das urnas sinalizou o fim da ditadura, iniciando-se a transição que resultou na anistia (1979), nas eleições diretas de governadores (1982) e na eleição de Tancredo Neves no colégio leitoral (1985) . Tirando São Paulo e Rio de Janeiro, as capitais mais cosmopolitas — em Brasília não há eleição —, é muito difícil captar tendências no processo eleitoral que sinalizem o que virá depois nas eleições gerais. Além disso, estamos vivendo um cenário a típico, sem debates e grandes comícios, o que faz o processo eleitoral se desenvolver em “home office”, para usar a expressão que representa a forma predominante de trabalho durante a pandemia.
Sim, as fábricas estão voltando a funcionar, o comércio também, mas não há o burburinho das ruas, nas padarias, nos barbeiros, nas filas das lotéricas e dos caixas dos supermercados, os sintomas de engajamento da grande massa de eleitores na disputa eleitoral. O embate se desenvolve nas redes sociais e, principalmente, nas listas de WhatsApp, subterrâneos nos quais as pessoas se organizam como “tribos”. São as listas da família, dos colegas de escola, dos amigos do futebol, dos parceiros de baralho, dos colegas de trabalho etc. As pessoas se relacionam por afetos e interesses; é assim, de forma compartimentada, segmentada, confinada, em bolhas, que o processo eleitoral hoje ganha a escala da democracia de massas. Somente as urnas eletrônicas poderão nos revelar os mistérios do voto popular.
Polarização
As pesquisas indicam — sempre elas — que apenas seis capitais estariam com as eleições decididas: Natal, com Álvaro Dias (PSDB), reeleição; Salvador, Bruno Reis (DEM); Campo Grande, Marquinhos Trad (PSD), reeleição; Belo Horizonte, Alexandre Kalil (PSD), reeleição; Curitiba, Rafael Grecca (DEM), reeleição; e Florianópolis, Gean Loureiro (DEM), reeleição. Mesmo assim, é bom dar um desconto: reviravoltas acontecem, pesquisas nem sempre são tiro e queda. Nas demais capitais, há disputa acirrada e perspectiva de segundo turno.
Destacam-se São Paulo, onde o pleito está se polarizando entre o prefeito Bruno Covas (PSDB), que tenta a reeleição, e Celso Russsomano (REP), que começou na frente e está derretendo, mais uma vez; e Rio de Janeiro, onde o ex-prefeito Eduardo Paes (DEM) se mantém na liderança, faturando o desgaste do prefeito Marcelo Crivella (REP), que fez uma gestão “terrivelmente evangélica” e queimou o filme dos pastores. Guilherme Boulos (PSOL) e a delegada Marta Rocha(PDT) correm por fora, nas duas capitais, respectivamente.
Em São Paulo e no Rio de Janeiro, há engajamento do presidente Jair Bolsonaro nas candidaturas de Russomanno e Crivella. Embora venha mantendo distância regulamentar da maioria das disputas municipais, até porque não conseguiu formar um partido para disputá-las, nos dois casos o presidente da República corre o risco de ser o grande perdedor das eleições. Sua alternativa será jogar todo o seu prestígio e mobilizar seus aliados nas disputas de segundo turno, não só nessas capitais mas também nas demais cidades, o que será uma manobra de alto risco.
Bolsonaro correria o risco de perder seu favoritismo nas eleições de 2022. É preciso uma administração muito desastrada na politica para inviabilizar a reeleição, porém, um estado de calamidade financeira pode tornar a tarefa do gestor uma missão impossível, como aconteceu com Saturnino Braga (PDT), no Rio de Janeiro, cuja falência decretou em 1988. Com a dívida pública igual a 100% do PIB, esse risco também existe para Bolsonaro, se fracassar na economia. Aliás, o fracasso financeiro vem sendo o carma dos governantes gaúchos, que não conseguem se reeleger, como se houvesse uma maldição de Borges de Medeiros no Palacio Piratini, construído para ser o mais belo do Brasil, com esculturas de Paul Landowski, criador do Cristo Redentor, telefone folheado a ouro, réplicas dos lustres do Palácio de Versalhes e murais de Aldo Locatelli. O caudilho gaúcho foi presidente do Rio Grande do Sul de 1898 a 1908 e de 1913 a 1928, quando passou o poder a Getúlio Vargas, porque o Acordo de Pedras Altas (1923) proibira a reeleição.
Luiz Carlos Azedo: A teoria do dano e a vacina
Bolsonaro não leva em conta que uma pessoa infectada, por se recusar a tomar a vacina, pode contaminar as outras, com consequências trágicas e irreparáveis
A ideia de que um presidente eleito por maioria pode tudo é profundamente autoritária e colide com os fundamentos do liberalismo moderno, apesar de agora ter virado moda em algumas democracias do Ocidente, inclusive a nossa. O filósofo e economista John Stuart Mill, um liberal utilitarista britânico que se inspirou nas ideias dos iluministas franceses, em meados do século XIX já classificava essa visão como uma “tirania da maioria”, expressão que causa certo espanto, porque muitos acham que maioria e democracia são exatamente a mesma coisa. Não são.
Sobre a Liberdade (Saraiva), um clássico da ciência política, é um libelo de Mill em defesa da liberdade de expressão e da autonomia dos cidadãos. Nascido em Londres, em 1806, destacou-se também pela defesa do civismo público e dos direitos das mulheres. Era um liberal progressista. Acabou preso por defender o direito ao aborto, a reforma agrária e a democratização da propriedade por meio de cooperativas, ideias social-liberais. Tentou definir um modelo para regular as ações entre os cidadãos, a sociedade e o Estado, que deveria ser capaz de preservar a autonomia individual e, ao mesmo tempo, evitar a “tirania da maioria”, a partir de um conceito simples: tudo é permitido ao indivíduo, desde que as suas ações não causem danos a terceiros.
Mill defendia a legitimidade da mobilização da opinião pública para convencer as pessoas a não tomarem certas atitudes, mas condenava a repressão direta a ações individuais que afetam apenas a própria vida. É possível desenhar a sua “teoria do dano”: todas as pessoas podem desenvolver de maneira autônoma o seu projeto de vida; a sociedade deve proteger a liberdade de indivíduos se desenvolverem de modo autônomo e, em troca, os seus membros não devem interferir nos direitos legais alheios; os danos eventualmente causados por um indivíduo a outras pessoas têm como consequência uma punição proporcional. Mill morreu em 1873, mas suas ideias sobre a liberdade individual continuam atuais.
Rebanho
No Brasil, a “teoria do dano” foi introduzida na nossa jurisprudência no Código Civil de 1916, que estabeleceu um nexo causal entre o dano e o fato que o produziu, e foi consagrada no artigo 403 do Código Civil de 2002. Segundo a teoria do dano direto e imediato, o Estado pode ser processado pelos prejuízos causados aos cidadãos. Por ironia, em tempos de pandemia e de “imunização de rebanho”, ou seja, da necessidade de vacinação em massa para combater o novo coronavírus, um caso analisado pelo jurista Robert Joseph Pothier, um dos autores do Código Civil francês de 1808, é estudado ainda hoje nas escolas de direito: a aquisição de uma vaca pestilenta, que contamina os bois do comprador, impedindo-o de cultivar suas terras. Ciente do vício oculto, o vendedor responde pelo perecimento da vaca como também pela morte do restante do rebanho do comprador.
No caso da vacina contra o coronavírus, que na sua opinião não deve ser obrigatória, o presidente Jair Bolsonaro não leva em conta o dano que pode ser causado voluntariamente por uma pessoa infectada, ao contaminar as outras, por se recusar a tomar a vacina. O governo também pode ser responsabilizado por não utilizar uma vacina disponível. Apesar disso, cancelou o acordo feito entre o Ministério da Saúde e o Instituto Butantã, do governo de São Paulo, para a compra de 46 milhões de doses da vacina da Sinovac, que serão produzidas por aquela consagrada instituição científica, em parceria com o laboratório chinês, com previsão para estar pronta para imunização já em dezembro.
Anulou o protocolo assinado pelo ministro da Saúde, general Eduardo Pazuello, com todos os governadores, para aquisição e aplicação da vacina, com o argumento absurdo de que o “povo brasileiro não será cobaia” da “vacina chinesa do João Doria”, o governador tucano de São Paulo. Alguém precisa avisar ao presidente que isso pode gerar uma enxurrada de pedidos de indenização por “dano direto e imediato” e caracterizar um “crime de responsabilidade”.
Vinicius Torres Freire: Pense em Maria, 109, que o vírus levou
Epidemia vai se arrastar e já pode ter matado quase 1 em 100 idosos de São Paulo
Duas mulheres de 109 anos morreram de Covid na cidade de São Paulo. A doença levou 46 paulistanos de cem anos ou mais.
A gente sabe que esta é uma peste ainda mais cruel com os idosos. As pessoas de mais de 65 anos são cerca de 75% dos mortos pela doença tanto aqui na cidade como no estado de São Paulo. Mas a gente vai bulir nas estatísticas por outros motivos e vê lá então que duas paulistanas de 109 anos morreram de Covid. É outra história.
Dá o que pensar: nessas mulheres, no paulistano de 104 anos que o vírus levou, nessa morte muitas vezes dolorosa e sempre solitária, de nenhuma despedida. Penso na minha avó Maria, que morreu aos 101, antes desta praga, que esteve muito bem até pouco antes de partir, quando então ainda cozinhava e teria ido à feira sozinha, se deixassem.
Penso nas outras Marias centenárias ou nem perto disso, todas muito ameaçadas pela indiferença geral e crescente, que não deve diminuir agora que São Paulo entrou na “fase verde” da epidemia.
Penso nos amigos e nos parentes do homem de Man Bac.
Ele viveu faz mais de 4 mil anos no que é hoje o Vietnã. Arqueólogos descobriram que esse homem sofria de um mal que o deixou paralisado da cintura para baixo desde antes da adolescência. Quase não podia mexer os braços, se tanto, ou se alimentar sozinho, mas sobreviveu pelo menos uma década depois do ataque da doença.
Sua gente cuidou dele, pessoas que não tinham quase nada, que viviam apenas de caça, pesca e talvez criassem uns porcos meio selvagens.
Há outras histórias assim, de neandertais de 45 mil anos atrás ou de indígenas da Flórida de 7.000 anos.
“E daí?”, diria um ogro tal como um desses que nos governam e que não são capazes de uma palavra compassiva, que dirá do sacrifício amoroso desses nossos parentes da pré-história.
Daí que a epidemia está longe de terminar. Ainda podemos nos redimir um pouco do nosso barbarismo. O vírus continua a matar diariamente cerca de 700 pessoas no Brasil. Na cidade de São Paulo, são mais de 20 por dia. Nenhuma doença mata tanto assim. As mais letais, infarto e pneumonias, levavam 20 paulistanos por dia antes da calamidade do vírus.
Pelo menos cerca 0,6% dos moradores de São Paulo com mais de 65 anos perderam a vida para a Covid. Ainda não está chocado? É pelo menos 1 de cada 169 paulistanos com mais de 65. Pode ser mais, se considerados também os casos suspeitos: 1 de cada 114.
Sim, o pico da doença nesta cidade aconteceu no início de junho, quando morriam em média 120 pessoas por dia por causa do coronavírus. Sim, como muita gente deve ter ouvido tantas vezes, o risco é muito baixo para quem tem menos de 50 anos. É baixo o risco de morrer, mas não o de espalhar morte, o que deveria ser muito sabido também.
Se o argumento mortal não basta, pense que, quanto mais a epidemia se arrastar, por mais tempo ficará travada a vida nas cidades e, assim, o ganha-pão de tanta gente, a mais pobre em particular.
A peste e esses tipos que nos governam fazem pensar também em Tucídides, o historiador, um grande escritor e também um militar. Lutou em guerra de verdade. Não passou a vida vadiando como escoteiro marmanjo até ser expulso da tropa por baixezas várias.
O quase sempre comedido Tucídides escreveu com horror e desamparo sobre os montes de mortos largados sem cerimônia, vítimas de uma praga sem remédio na Atenas de 430 a.C.
Pense nos gregos, pense no homem de Man Bac. Pense em “Maria”, 109, que o vírus levou e que um dia foi bela e jovem como você.
Carlos Melo: Antipolarização e novo centro para a disputa
No Brasil, os polos políticos capazes de atrair e agregar várias forças partidárias foram redefinidos em 2018. A “clássica” polarização PT/PSDB — que no país e na cidade de São Paulo, em particular, deu o tom da disputa por tanto tempo – tende a desaparecer nas eleições deste ano. Ao que tudo indica, um ciclo se encerrou dando origem a outro — que, talvez, também já esteja passando por novo processo de transmutação. A vida e a política seguem, como numa noite veloz.
Na eleição presidencial, a crise econômica e a Lava Jato fizeram com que o antipetismo – que nasceu junto com o partido — se expandisse. Com maior afinco e desespero, buscou força capaz de derrotar a até então forte legenda de Lula. O PSDB deixava, porém, de ser a aposta: exposto aos próprios escândalos e diluído no Centrão, os tucanos sucumbiram como alternativa. O vazio, contudo, abriu espaço para a aventura.
Favorecido por esse quadro, o bolsonarismo tomou corpo. (Era também beneficiado pela onda mundial de ressentimento e rancor contra a política e a democracia, originada nos indivíduos abandonados pela revolução tecnológica – os esquecidos, somente agora percebidos por Paulo Guedes. Como em vários cantos do planeta, aqui também o populismo se aproveitou das circunstâncias e se estabeleceu.
Nesses dois anos, o bolsonarismo vem se consolidando para parte da população, mas também se desgastando com outra. Com efeito, a demagogia populista radicaliza e fideliza seu público, mas não consegue dar resposta efetiva a problemas concretos. Por sua vez, o PT vem perdendo o viço, embora Lula mantenha forte lembrança no eleitorado.
São duas forças ainda importantes, mas a excitação constante que exigem tende à fadiga, revelando limites claros, impossíveis de se expandirem para além de suas tropas. Assim, improdutiva e cansativa, essa polarização pode, nesse período, ter-se desdobrado em duas outras forças: o antipetismo e o antibolsonarismo.
O petismo e bolsonarismo se combatem, se anulam e não somam. Já “os antis” criam intersecções, delineando espaço para “candidatos nem-nem” — que nem Bolsonaro, nem Lula. Havendo visão de futuro, programa e energia, um campo distinto do Centrão e não entendido como um centro anódino pode se apresentar como alternativa a polarização bolso-petista.
Estaria inaugurada uma antipolaridade agregadora de não petistas e não bolsonaristas? Pode ser. Sendo capaz romper a fortaleza de um dos polos, chegaria ao segundo turno contra o outro, tendendo a atrair o “voto útil” de quem ficou de fora. Mais uma vez: demandará propostas e posicionamento; ser “Centro”, por si só, não define ninguém. Mas, a lógica e as vantagens do “centro político”, assim como a racionalidade do antigo eleitor mediano, estariam assim reconstituídas. A história dirá.
*Carlos Melo, cientista político. Professor do Insper.
César Felício: Os padrões eleitorais de São Paulo e Rio
Covas tem vantagem e Paes precisa de Crivella
A eleição municipal nas capitais, sobretudo em São Paulo, é um sinalizador para a sucessão presidencial e seus resultados influenciam a equação política para o pleito nacional, ainda que de forma tênue. Sua dinâmica, entretanto, é local. Para traçar prognósticos e poder errar um pouco menos, é importante perceber que o eleitor paulistano e carioca tem um padrão de voto, pouco influenciável pelo cenário nacional, ainda que o afete.
Em São Paulo há um cenário de polarização ideológica estabelecido e consistente. Tanto esquerda quanto direita são fortes. No Rio isso é menos nítido, com a esquerda sempre encapsulada na intelectualidade das áreas mais ricas e em alguns nichos de movimentos sociais nas periferias. Os cariocas não elegem um prefeito esquerdista desde 1992. Pode parecer estranho hoje, mas em 1988, quando eleito, Marcello Alencar, futuro governador tucano, ainda era do PDT e alinhado ao brizolismo. Depois, nunca mais: Cesar Maia e seus pupilos que dele dissentiram, Luiz Paulo Conde e Eduardo Paes, ganharam todas até 2016, quando veio Crivella.
Em São Paulo a direita ganhou as eleições de 1985, com Jânio, 1992 e 1996, com Maluf e Pitta. O colapso do malufismo deslocou paulatinamente seu eleitor para o PSDB ou para o DEM, no episódio Kassab em 2008 e com os tucanos em 2004 e 2016. Uma franja, expressiva na baixa renda em bairros que fazem a transição entre as regiões ricas e a periferia resistiu na maioria das eleições aos tucanos.
Já a esquerda triunfou em 1988, 2000 e 2012 e sempre esteve concentrada geograficamente nos bairros periféricos e politicamente no PT. Este traço está esmaecido e o petismo vive um processo de decadência na cidade, análogo ao que o malufismo sofreu. A eleição de 2020 pode arbitrar quem herda o espólio petista.
A corrida de 2012 foi ganha por Fernando Haddad, mas o germe do enfraquecimento já circulava no organismo petista. Haddad foi escolhido de forma traumática, alijando a ex-prefeita Marta Suplicy, principal referência eleitoral do PT à época. Ele teve 29% dos votos no primeiro turno e ficou em segundo lugar, atrás de José Serra, com 31%.
O petista virou no segundo turno, ajudado pela tremenda rejeição a Serra, cuja origem se encontrava na sua polêmica decisão de renunciar ao cargo de prefeito para disputar o governo paulista, em 2006. O repúdio a Serra era algo tão forte que a franja conservadora que não engolia os tucanos poderia ter surpreendido. Celso Russomanno, pelo PRB, e Gabriel Chalita, do MDB, calavam fundo entre os eleitores terrivelmente evangélicos, no primeiro caso, e católicos no segundo, e nas regiões de transição entre pobreza e riqueza. Juntos, tiveram 36% dos votos (dois terços deste total para Russomanno e um terço para Chalita).
Na eleição de 2016, o candidato do MDB não foi Chalita, foi Marta Suplicy. E Marta tirou votos do PT, não do PSDB. Houve uma dispersão na esquerda e uma concentração na direita, o inverso de quatro anos antes.
Além de Marta, outra ex-prefeita petista, Luiza Erundina, se candidatou. Somadas, representaram 14%. Entre as eleições de 2012 e a 2016, Haddad perdeu exatos doze pontos percentuais: de 29% baixou para 17%.
Já Russomanno se apresentou de novo, mas desta vez não enfrentou um cacique tucano desgastado por erros políticos. Ele se confrontou com uma figura nova na política, João Doria. Russomanno teve 14% dos votos, oito pontos percentuais a menos do que em 2012. Não havia no cardápio de 2016 nenhuma opção a Chalita para os 14% que optaram por ele na eleição anterior.
Doria recebeu 53% dos votos, exatamente o correspondente à soma dos 31% de Serra com os oito pontos percentuais perdidos por Russomanno e os 14% que em 2012 quiseram Chalita. Ou seja, não houve diferença significativa em São Paulo de padrão de voto entre 2012 e 2016.
As primeiras pesquisas desta eleição mostram Guilherme Boulos empatado em terceiro lugar com Márcio França, em torno de 10% ou um pouco menos, e o petista Jilmar Tatto misturado com nanicos no piso de 1%. Não é razoável supor que a esquerda em São Paulo tenha se tornado tão pequena. Há espaço para Boulos e Tatto crescerem, mas não tanto para ganharem a eleição. A esquerda pode chegar ao segundo turno, mas terá extrema dificuldade para ultrapassar a barreira de 30%, porque seus possíveis adversários são menos rejeitados. Se Boulos ficar à frente de Tatto significará um terremoto na hegemonia petista em termos nacionais, com impacto em 2020.
Do outro lado, o PSDB deixou de nuclear a direita. Foi empurrado para o centro, com Bruno Covas, e disputa esta faixa com Márcio França. Covas tem o dobro nas pesquisas que o candidato do PSB, aproximadamente, e essa não é a única vantagem que desfruta. “Ele prepondera nos bairros de renda alta. Enquanto mantiver este nicho, o espaço para Russomanno está limitado”, opina o economista Mauricio Moura, do Ideia, um dos institutos que fizeram pesquisa recentemente. Já França padece de um problema fatal nos dias de hoje: não é forte ou fraco em nenhum segmento específico. Seu voto se distribui por igual em todas as faixas. “É típico de quem tem só recall. É uma candidatura por ora sem rosto”, afirmou.
Para ser plenamente competitivo, Russomanno precisaria emitir acordes dissonantes: sua mensagem teria que entrar tanto no antibolsonarismo conservador quanto no bolsonarismo. Do contrário, só resta a ele torcer para chegar ao segundo turno contra um radical, como é o caso de Boulos. A rejeição a Bolsonaro cresceu muito na cidade. Segundo o Datafolha, a avaliação ruim da administração federal é de 47%. Só a simpatia dele não é suficiente. “Para enfrentar Covas, ele precisaria entrar na renda alta. Por enquanto está fora. Só com o conservadorismo de baixa renda ele não supera”, disse Moura. Qualquer resultado em São Paulo que não seja a vitória de Covas enfraquecerá Doria em 2022.
No Rio, por ora, o principal cabo eleitoral de Eduardo Paes chama-se Marcelo Crivella. Dado o tremendo desgaste eleitoral da classe política, o ex-prefeito corre risco contra um candidato com uma roupagem de limpeza política, como pode ser o caso da deputada estadual Marta Rocha (PDT) ou o deputado federal Luiz Lima (PSL). “Ele depende da rejeição de Crivella para ser favorito”, diz o economista.
Trata-se de uma ironia: o atual prefeito do Rio também venceu em 2016 dada a extrema fragilidade de seus oponentes.
Luiz Carlos Azedo: Imunização de rebanho
“O Ministério da Saúde não combate a pandemia, deixou essa tarefa a cargo de estados e municípios, a pretexto de que o Supremo assim decidira, o que é uma interpretação falsa”
Parece piada pronta: o ministro interino da Saúde, Eduardo Pazuello, nomeou para comandar o Departamento de Imunizações e Doenças Transmissíveis, responsável por todo o programa nacional de vacinas do governo federal, o médico veterinário Maurício Monteiro Cruz, formado no Centro Universitário de Desenvolvimento do Centro-Oeste, em Goiás, com mestrado em prevenção e controle de doenças em animais pela Faculdade de Agronomia e Veterinária da Universidade de Brasília. Cruz estava lotado na Diretoria de Vigilância Ambiental em Saúde do Governo do Distrito Federal e é especializado no controle da leishmaniose.
Como não lembrar da magistral interpretação de Disparada, de Geraldo Vandré e Théo de Barros, por Jair Rodrigues, um clássico da nossa música popular: “Mas o mundo foi rodando/ Nas patas do meu cavalo/ E nos sonhos que fui sonhando/ As visões se clareando/ As visões se clareando/ Até que um dia acordei/ Então não pude seguir/ Valente lugar-tenente/ De dono de gado e gente/ Porque gado a gente marca/ Tange, ferra, engorda e mata/ Mas com gente é diferente”. Sem nenhum preconceito, não se pode acusar o general Pazuello de incoerente. Afinal, o ministro interino está operando uma estratégia de “imunização de rebanho” para gerenciar a pandemia da covid-19 no Brasil. Veterinários são especialistas nisso e profissionais de grande importância para a saúde pública. Alguns são grandes sanitaristas.
O Ministério da Saúde não está combatendo a pandemia, deixou essa tarefa a cargo de estados e municípios, a pretexto de que o Supremo Tribunal Federal (STF) assim decidira, o que é uma interpretação falsa, pois a decisão da Corte foi apenas de que caberia aos governadores e prefeitos gerenciar a política de isolamento social. Tecnicamente, a imunização de rebanho não é uma estratégia, é o efeito de proteção que surge em uma população quando uma percentagem alta de pessoas contraiu ou se vacinou contra uma doença. Mesmo quem não foi vacinado nem foi infectado, acaba protegido da doença porque um grande número de pessoas já foi imunizada, constituindo uma barreira humana contra a propagação do vírus.
Estima-se que o índice de 95% de vacinação seja o ideal para que isso ocorra, preservando as pessoas que não podem tomar a vacina, como acontece com o sarampo. Com isso, o vírus acaba desaparecendo. Veterinários, por exemplo, têm grande experiência em vacinação contra a febre aftosa, que ataca os rebanhos. O selo de imunização contra essa doença é fundamental para a exportação de carne bovina. No caso da covid-19, como não se tem vacina ainda, especialistas discutem qual seria a percentagem de contaminados para quem não teve a doença deixe de correr risco de se infectar. Não há respostas ainda, mas alguns pesquisadores estimam o número entre 60% e 80% da população total.
Vacinação
O departamento comandado por Cruz é responsável pela organização do calendário de vacinas do país, as campanhas nacionais e a distribuição dos medicamentos aos estados, assim como por acompanhar a cobertura vacinal. Sua tarefa é, sobretudo, de planejamento e logística, porém, depende da chegada da vacina contra a covid-19. Apesar de o Programa Nacional de Imunizações ser considerado uma referência mundial, desde 2016 a cobertura vacinal no país não tem atingido as metas, nem mesmo nas vacinas infantis obrigatórias. Nenhuma das 10 vacinas obrigatórias para menores de 2 anos atingiu as metas de cobertura em 2019. Entre elas, a poliomielite, que teve cobertura de apenas 82,1% das crianças. Considerada, oficialmente, erradicada no Brasil desde 1994, a doença ainda exige vacinação porque o vírus circula pelo mundo.
Mesmo com as subnotificações, com 120,9 mil mortes — das quais 30 mil em São Paulo — e 3,8 milhões de casos confirmados, o Brasil ainda está muito longe de alcançar a imunização de rebanho. A média móvel de casos dá sinais de que está começando a cair, mas ainda está num patamar muito elevado, que registra uma média móvel, nas últimas duas semanas, de 875 mortes e 36 mil casos por dia. O grande destaque no combate ao novo coronavírus foi a resiliência dos heróis anônimos na linha de frente do enfrentamento à pandemia, muitos dos quais contraíram a doença e morreram, sobretudo profissionais da saúde. O desempenho do Sistema Único de Saúde, com todos os problemas, está sendo fundamental para evitar uma mortalidade muito maior. A ideia de que a pandemia está acabando é muito perigosa; os fatores decisivos para controlá-la ainda são a política de isolamento social e a autoproteção individual.
Maria Cristina Fernandes: A capitulação bandeirante
Previsão de déficit empurra Dória para reforma administrativa desgastante na Assembleia Legislativa
O governador de São Paulo liderou a resistência federativa à escalada obscurantista do presidente da República na pandemia. Jair Bolsonaro saía à rua beijando crianças, João Dória nunca aparecia sem máscara. Um dizia que o Brasil não podia parar, o outro pregava o confinamento. Contra a cloroquina federal, ergueu-se a ciência bandeirante.
Cinco meses depois do início da batalha contra o coronavírus, a capital paulista conseguiu derrubar para a metade o número de óbitos registrados no pico da doença. Ainda é cedo, porém, para se cantar vitória contra a covid-19. Não bastassem os ônibus e os bares lotados, o projeto de lei 529, enviado pelo governador em regime de urgência, caiu na Assembleia Legislativa como uma capitulação.
Enquanto o presidente foge de uma reforma administrativa e negocia com o Congresso uma claraboia sobre o teto de gastos para abrigar um programa que dê continuidade ao auxilio emergencial, os governadores estão acuados. Sem o bônus de popularidade com o qual o auxílio brindou Bolsonaro, preparam-se para enfrentar 2021 sem os repasses extras aprovados pelo Congresso e tendo que retomar o pagamento de suas dívidas, suspenso até dezembro.
Em São Paulo, a resposta foi um projeto que revira a administração pública de ponta-cabeça. Privatiza o zoológico e nove parques, extingue a empresa responsável pela coordenação do transporte de cinco regiões metropolitanas (EMTU), autarquias que cuidam da preservação ambiental (Instituto Florestal), da política agrária (Itesp), de criminalística (Imesc) e da administração de aeroportos (Daesp). Acaba ainda com a empresa de habitação (CDHU), com uma rendição explícita, na exposição de motivos, ao avanço do Minha Casa Minha Vida.
Depois de tanto se falar em reconversão industrial para aumentar a segurança nacional na produção de medicamentos e equipamentos hospitalares, o projeto extingue, numa canetada, a maior fabricante pública de remédios do país (Furp), a fundação de pesquisa de câncer (Oncocentro) e a autarquia das endemias (Sucen).
No mesmo dia que o projeto de Dória chegou à Assembleia, o prefeito e candidato à reeleição Bruno Covas decretou o enxugamento da Coordenadoria de Vigilância em Saúde (Covisa), um dos eixos do enfrentamento das epidemias na cidade. A portaria levou a uma carta aberta de seis ex-coordenadores do órgão, três dos quais, do PSDB.
O maior golpe no discurso pró-ciência com o qual os tucanos paulistas enfrentaram o presidente da República, no entanto, veio num dos capítulos do projeto de Doria que remete para o tesouro estadual o superávit das universidades e das fundações do Estado, entre elas, a de amparo à pesquisa (Fapesp), de onde saiu boa parte dos estudos sobre a pandemia.
No capítulo menos polêmico, mas nem por isso mais fácil de ser aprovado, o projeto reduz e unifica as isenções do ICMS em 18%, unifica a cobrança do IPVA em 4% (acabando o benefício para veículos de combustível limpo), aumenta o valor das contribuições para a rede de atendimento médico-hospitalar dos servidores (Iamspe), altera a cobrança da dívida ativa e sua securitização, e estabelece uma arbitragem para o valor de imóveis e doações sobre os quais incide o imposto de transmissão.
A amplitude do projeto desnorteou a Assembleia Legislativa. A reação predominante foi a de que o governo, ao reunir tantas iniciativas num único projeto, teve como objetivo “baratear” sua tramitação. Como o pedido de urgência abrevia os prazos, os deputados não teriam tempo para se aprofundar no debate e, pressionados, acabariam aprovando o projeto com poucas modificações.
A deputada Marina Helou (Rede), resume a queixa generalizada de que o prazo de emendas terminou sem que os parlamentares tivessem conhecimento dos dados e projeções que o lastreiam. Por mais sensíveis que estejam à situação financeira do Estado, resistem a votar no escuro.
Temem que, para enfrentar uma situação temporária, o governo faça mudanças estruturais que afetarão definitivamente a formulação de políticas públicas. Se, por um lado, as autarquias fomentam o corporativismo, por outro, são um anteparo às diatribes dos gestores de plantão.
Como secretário do Meio Ambiente em São Paulo, por exemplo, Ricardo Salles só não conseguiu fazer do cargo a antessala do desmonte que hoje promove na Esplanada por conta das autarquias da pasta. Foi este um dos argumentos que levou o governo paulista a mitigar o enxugamento da área.
Idealizador do projeto, o secretário Mauro Ricardo Costa, não descarta novos ajustes, mas desafia opositores a apresentar alternativas para o déficit de R$ 10,4 bilhões do orçamento do próximo ano. Atribui as pedras hoje jogadas contra o governo ao fato de São Paulo ter saído na frente com medidas de enxugamento que todos os Estados e municípios, diz, terão que tomar - “Estão todos quebrados, mas ainda não se atentaram”.
Titular de secretarias de fazenda e planejamento em quatro unidades da federação (São Paulo, Minas, Bahia e Paraná), a convite de gestores premidos por ajustes inadiáveis, Mauro Ricardo não teme protestos, nem mesmo depois de ter assistido ao centro cívico em Curitiba se transformar numa praça de guerra em 2015.
Resiste, por exemplo, a aceitar o argumento de que o financiamento das pesquisas científicas será afetado pela devolução do superávit das fundações ao tesouro. Diz que as fundações não podem pretender ficar com sobra de caixa acumulada para pesquisas de longo prazo quando a saúde, a educação e a segurança pública do Estado ameaçam colapsar. Prevê um desemprego resiliente a empurrar as famílias para escolas e hospitais públicos, além de pressionar indicadores de violência.
Espanta, por isso, que toda essa penúria só não afete os repasses para o Judiciário. O governo paulista conseguiu aprovar na Assembleia a destinação de um terço das taxas judiciárias (R$ 380 milhões) para o Tribunal de Justiça. A Câmara dos Deputados aprovou ontem crédito de R$ 200 milhões para a construção de novas sedes da Justiça Federal e do Ministério Público Federal nos Estados. É a locomotiva, em meio aos escombros, puxando a Federação a todo vapor.
Andrea Jubé: No meio do caminho, tinha um Bolsonaro
Ainda não surgiu quem representará o “antibolsonaro”
O recente cerco a dois próceres tucanos, José Serra e Geraldo Alckmin - dois finalistas da corrida presidencial - leva o PSDB de novo às cordas, num momento em que o partido tenta se reerguer no plano nacional, mesmo com outro presidenciável, Aécio Neves, ainda no chão.
O novo disparo da Lava-Jato que atingiu o PSDB reforça o processo de esgarçamento do sistema partidário. Um movimento que eclodiu em 2013, com as incendiárias jornadas de junho, e teve o seu apogeu na eleição de Jair Bolsonaro, que embora sete vezes eleito deputado federal, convenceu o eleitor de que encarnava o “antipolítico”.
O advento da Lava-Jato em 2014, e o desdobramento das investigações nos anos seguintes, acentuaram a deterioração do sistema partidário. As eleições de 2016 foram marcadas pelo antipetismo: foi simbólica a derrota do então prefeito de São Paulo, Fernando Haddad, pelo candidato do PSDB, João Doria, ainda no primeiro turno.
Finalmente, em 2018, impulsionados pela descrença no sistema, pelo cansaço de “tudo isso que está aí”, 57 milhões de eleitores elegeram um candidato filiado a um partido inexpressivo, sem fundo partidário e tempo de propaganda no horário eleitoral.
Dois anos depois, vê-se que os partidos resfolegam. Os entregadores de aplicativos - prestadores de serviços que se revelaram essenciais nesta pandemia - ganharam projeção ao organizarem paralisações por condições de trabalho dignas e justas. Em seus atos, também rejeitam bandeiras de partidos. Os protestos em defesa da democracia, que ocuparam as ruas de muitas capitais em plena pandemia, foram convocados por torcidas organizadas, e não por políticos profissionais.
O cientista político Fernando Abrucio, professor da Fundação Getulio Vargas, afirma que a reforma política iniciada em 2018 vai impor uma reconstrução do sistema partidário após as eleições municipais. “Haverá uma recomposição partidária na esquerda e na centro-direita, até porque a cláusula de barreira em 2022 vai ser muito séria para muitos partidos”, diz o professor, que também é colunista do Valor.
Em 2018, 14 legendas não alcançaram a cláusula de desempenho, inclusive o PRTB do vice-presidente Hamilton Mourão e o Rede Sustentabilidade de Marina Silva. Esse resultado deflagrou as primeiras mexidas para garantir acesso ao fundo partidário e ao tempo de rádio e TV no horário eleitoral: o PCdoB incorporou o PPL, e o Patriota incorporou o PRP.
Em 2022, os partidos terão de obter 2% dos votos válidos, distribuídos em um terço das unidades da federação, ou eleger pelo menos 11 deputados. Em 2018, o percentual exigido foi de 1,5%. Em 2030, chegará a 3%.
No pleito deste ano, começa a vigorar outro obstáculo aos pequenos partidos: o fim das coligações proporcionais, ferramenta que ajudava a ampliar as bancadas.
Há conversas em andamento entre as principais lideranças sobre o futuro político. O governador de São Paulo, João Doria, tenta renovar o PSDB para pavimentar o caminho rumo ao Planalto e evitar uma revoada de quadros, como o senador Tasso Jereissati (CE).
Pela centro-esquerda, os governadores do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), do Rio Grande do Sul, Eduardo Leite (PSDB), Marina Silva e o apresentador Luciano Huck rascunham cenários.
Há quem fale em uma fusão entre Rede e Cidadania após a eleição municipal, mas o que efetivamente foi à mesa foi a eventual fusão entre Rede e PV, ainda longe de se concretizar. Dino aventa a formação de federações partidárias, modelo que ainda precisa ser amadurecido no Congresso.
O senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP) concorda que seja necessária a reorganização partidária. “A ideia de partido político distanciou-se do povo”, admite.
Mas Randolfe lembra que o Rede já integra uma coalizão de partidos que se uniram em torno de um mesmo discurso de oposição ao bolsonarismo e da tentativa de formarem o máximo de alianças no pleito deste ano, e quem sabe, na eleição de 2022. O Rede caminha ao lado do PDT, PSB, PV e Cidadania.
Abrucio também identifica uma crise de lideranças, e alerta que conjugada com a crise partidária, isso pode ser uma “combinação explosiva”.
Ele aposta numa renovação das lideranças nacionais, porque as atuais já cumpriram um papel: articularam a redemocratização e viabilizaram um período de muita estabilidade democrática, econômica e de inclusão social, que ele define como os anos entre os impeachments de Fernando Collor e Dilma Rousseff.
Mas Abrucio ressalta que o cerco às lideranças políticas atinge os partidos. “Porque não se pode pensar em partidos sem as lideranças. O que seria do partido conservador inglês após a Segunda Guerra sem Winston Churchill?”
Abrucio vê sinais desse ocaso das lideranças na pesquisa do Instituto Paraná, divulgada na última sexta-feira. Em um dos cenários, Ciro Gomes (PDT) tem recall baixo, porque aparece empatado com Luciano Huck, que nunca disputou eleições. Também achou tímido o desempenho de Doria, que ganhou projeção nacional no combate à pandemia nos últimos meses. Mesmo o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o nome mais competitivo para enfrentar Bolsonaro em 2022, revela um desempenho aquém do que normalmente apresentaria. “Na trajetória do Lula, é pouco ainda. Das lideranças do antigo ciclo, mesmo depois de 500 dias preso, ele ainda é o mais forte”, diz o professor da FGV.
Para Abrucio, encerrou-se o ciclo pós-redemocratização da política brasileira, mas ainda não começou o seguinte. “Bolsonaro não é o novo, ele é o interregno, ele é a transição desses ciclos”.
Se a tônica da eleição de 2018 foi o antipetismo e a antipolítica, a de 2022 será o antibolsonarismo, aposta Abrucio. “O antibolsonarismo é maior que o bolsonarismo, isso é matemático. Mas o eleitor ainda não identificou quem será o polo antibolsonarista. Isso está em construção”.
Em suma, como diria Drummond: no meio do caminho da renovação, tinha Jair Bolsonaro.
Demétrio Magnoli: Pela esquerda ou pela direita, país não dá a mínima para a educação pública
Área foi catalogada oficialmente como a mais supérflua das 'atividades não essenciais'
O plano de Doria saiu há 18 dias, com cinco colunas descrevendo as fases de reabertura de São Paulo e 15 linhas elencando previsões de reativação de cada atividade.
Lá no fim, na linha educação, um retângulo vazio indica a ausência de previsão de retomada de aulas presenciais. Escolas, só depois de indústrias, escritórios, shoppings, igrejas, parques, restaurantes, bares, passeatas e futebol. A história se repete, Brasil afora. A educação foi catalogada oficialmente como a mais supérflua das "atividades não essenciais". Weintraub é a cara da elite governante nacional.
Ciência? Um artigo publicado na Lancet (https://bit.ly/30sNBeN), revisando diversos estudos internacionais, conclui pela falta de evidências de que o fechamento de escolas seja efetivo contra a Covid-19, cujo comportamento epidêmico é o oposto daquele da gripe: o coronavírus tem alta transmissibilidade mas incidência muito menor em crianças. Experiência? Na Europa, 22 países reabriram as escolas no ponto de partida da flexibilização, seis a oito semanas atrás, seguindo restrições sanitárias, sem gerar focos significativos de contágio.
A esquerda enxerga a escola pelos óculos do sindicalismo (remunerar professores), enquanto a direita a vê pelos olhos do mercado (fornecer mão de obra).
Se os professores continuam recebendo e os empregadores só precisam de um contingente limitado de profissionais qualificados, quem se importa com o fechamento das escolas?
Boatos sugerem que São Paulo reativará a rede pública em agosto, mas na forma de piada macabra, com um dia de aula semanal por turma. Inexiste escândalo. Na imprensa, formadores de opinião ignoram o assunto --e quando, raramente, circulam ao seu redor, é para fingir que acreditam na lenda do ensino a distância nas escolas públicas.
A prioridade europeia de reinício das aulas não se deve à merenda e apenas parcialmente ao fardo imposto às famílias trabalhadoras de cuidar o dia todo de crianças sem aulas. Por lá, a urgência derivou do reconhecimento dos direitos dos alunos, conceito desconhecido entre nós.
Os educadores sabem que a falta prolongada de escola prejudica, para sempre, o desenvolvimento de habilidades cognitivas essenciais.
As crianças e adolescentes sem aulas ao longo de um semestre inteiro estão sofrendo uma amputação intelectual oculta, que as acompanhará pelo resto da vida. Claro, isso com exceção dos filhos da elite, que dispõem de livros em casa, ensino a distância razoável e aulas particulares de reforço. Ah, sim: os filhos dos governantes pertencem ao grupo da exceção.
A cegueira de classe manifesta-se como epidemiologia militante. "Deus! Você arriscaria uma única vida só por causa de artigos científicos e das experiências de 22 países?"
Vidas relevantes, vidas descartáveis. Os fundamentalistas da saúde simulam não saber que, nas periferias urbanas, os mais jovens jamais praticaram o caro esporte da quarentena. Eles não aventam a hipótese de que, nas escolas, os alunos venham a receber orientações sanitárias superiores às vigentes nas ruas.
É verdade que três quartos das escolas municipais de São Paulo carecem de sabonete líquido nas pias (Folha, 28 de maio). Mas, com muito boa vontade, Covas poderia resolver isso, no hiato entre uma e outra intervenção viária piramidal."Lápis, nunca mais/Livros, nunca mais/Do verão/Até o outono/Talvez não voltemos jamais/A escola foi estilhaçada/Sem escolas no verão/Sem escolas para sempre".
Doria tinha 14 anos em 1972, quando o roqueiro Alice Cooper cantava "School's Out" enredado numa cobra de estimação. Acho que ele ouviu, gostou e dançou. Hoje, aos 62, deixando em branco o último retângulo do seu plano, realiza um sonho delinquente.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.