santos cruz
Itamaraty e SNI inocentam seis desaparecidos políticos
Segunda reportagem da série Nada Consta revela documentos que negam perante a ONU qualquer antecedente criminal de vítimas da ditadura
Eumano Silva / Metrópoles
Um conjunto de documentos elaborados em 1981 pelo governo brasileiro trata como inocentes quatro desaparecidos políticos da ditadura. Em resposta a um organismo das Nações Unidas, o Ministério das Relações Exteriores (MRE) informa que nada consta contra Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira, Joel Vasconcelos Santos, Ana Rosa Kucinski e Wilson Silva. A cúpula militar avalizou o comunicado oficial do Itamaraty.
O mesmo despacho telegráfico do MRE registra a absolvição de outros dois opositores listados entre os 210 desaparecidos durante os 21 anos do governo fardado. Edgard Aquino Duarte e Ísis Dias de Oliveira foram julgados à revelia pela Justiça Militar e eximidos dos crimes de que eram acusados. Apenas um dos citados no despacho, Mário Alves de Souza Vieira – também eliminado pela repressão -, recebeu condenação por atos contra a ditadura.
Classificado como “confidencial”, “secreto” e “urgentíssimo” o documento do Itamaraty foi produzido em resposta a um questionamento do Grupo de Trabalho sobre Desaparecidos Forçados ou Involuntários, ligado à Comissão dos Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU). O organismo internacional pediu informações sobre os sete militantes no dia 29 de maio de 1981.
No dia 16 de setembro do mesmo ano, a Secretaria de Estado do Ministério das Relações Exteriores (Sere) enviou o despacho com instruções sobre o assunto para a Delegação do Brasil junto aos organismos internacionais em Genebra (Delbrasgen), com sede em Genebra, na Suíça. Na ocasião, o chanceler era Saraiva Guerreiro, experiente diplomata de carreira.
“Não se constaram antecedentes criminais sobre os senhores Fernando Augusto Santa Cruz Oliveira, Ana Rosa Kucinski, Wilson Silva e Joel Vasconcelos Santos, não havendo portanto registros policiais ou judiciais a respeito”, diz o documento.
Durante o governo João Figueiredo, entre 1979 e 1985, a abertura política iniciada pelo presidente anterior, Ernesto Geisel, facilitou o fluxo de informações dentro e fora do país. As denúncias contra prisões, torturas e mortes de adversários do regime autoritário circulavam no exterior e mobilizavam brasileiros e estrangeiros desde os primeiros anos da ditadura.
As famílias procuravam os parentes sem saber se estavam vivos ou mortos. As pressões aumentavam à medida que ficava evidente que surgiam evidências de eliminação dos militantes. Nesse contexto, o grupo de trabalho fez as indagações respondidas pelo MRE (imagens abaixo).
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Para escrever a mensagem, o Itamaraty contou com a ajuda do Conselho de Segurança Nacional (CSN), do Serviço Nacional de Informações (SNI) e do Ministério da Justiça. Juntos, compunham o Grupo Informal de Estudos sobre os Direitos Humanos, instalado dentro do Itamaraty para tratar das demandas exteriores relacionadas aos abusos do governo.
A participação desses órgãos nas declarações favoráveis às vítimas reforça a credibilidade do conteúdo do despacho. Os três ramos da segurança acumulavam dados e prontuários relativos a todos os suspeitos de atuação contra o governo militar. Ligado à Presidência da República, o SNI coordenava as atividade de espionagem, informação e contrainformação da ditadura. O CSN assessorava o Palácio do Planalto em assuntos de segurança nacional.
Com data do dia 28 de setembro de 1981, um documento “confidencial” escrito pela Agência Central do SNI registra o envolvimento desses setores do governo na preparação da resposta ao organismo ligado à ONU. Identificado como Informação 020/23/AC/81, o relato reproduz o texto do Itamaraty que inocenta seis dos sete desaparecidos.
Trinta e oito anos depois dos fatos, o Arquivo Nacional preserva despachos, ofícios e relatos oficiais relativos aos questionamentos do grupo de trabalho criado pelas Nações Unidas. Uma das vítimas da ditadura citada nos documentos é Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira. No último dia 4 de agosto, o Metrópoles publicou uma reportagem sobre uma ficha do SNI que, embora chame o militante de “terrorista”, não aponta qualquer ação violenta de sua autoria. Esse material foi produzido depois que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) afirmou que Santa Cruz foi morto pelos próprios companheiros, declaração desmentida pelos registros do órgão de espionagem do governo militar.
Os documentos agora revelados acrescentam novos elementos sobre a inocência do desaparecido político, preso pelos agentes da repressão em fevereiro de 1974, e nunca mais visto pela família. Ele era pai do atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. Mostram os dados mantidos sobre ele e outros cinco militantes pela área de segurança do governo.
Sobre Edgar Aquino Duarte, o governo brasileiro forneceu as seguintes informações para o grupo de trabalho da ONU: “Julgado à revelia pela 1ª Circunscrição Militar por infração do artigo 144 (crime de revelação de informações, notícias ou documentos de interesse para a segurança interna do país), o senhor Duarte foi absolvido nesse julgamento, em 8 de fevereiro de 1966”.
O despacho do Itamaraty e o relato do SNI referem-se a Ísis Dias de Oliveira da seguinte forma: “Julgada à revelia em três oportunidades em 1973 pela 1ª Circunscrição Militar, tendo sido absolvida das acusações que lhe haviam sido formuladas com base no Decreto-Lei nº 898, de 29 de setembro de 1968, em seus artigos 28 (atos de terrorismo), 42 (participação em organização de tipo militar com finalidade combativa) e 45 (propaganda subversiva)”.
Único condenado citado nos documentos, Mário Alves de Souza Vieira foi julgado por associação ilícita para atos para a segurança nacional, participação de partido ilegal, associação sob orientação ou com o auxílio de governo estrangeiro com exercício de atividades prejudiciais ou perigosas à segurança nacional e divulgação de informações comprometedoras para o país. As sentenças foram extintas por prescrição ou pela Lei da Anistia, de 1979.
Dirigente do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), organização que atuava na luta armada contra o governo militar, Mário Alves Vieira tinha 47 anos quando desapareceu, no dia 17 de janeiro de 1970, depois de preso pelo Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi), um dos braços do aparelho repressivo.
Fernando Santa Cruz e o casal Ana Rosa Kucinski e Wilson Silva fazem parte da lista de doze desaparecidos que, segundo o ex-delegado Cláudio Guerra, foram mortos incinerados no forno de uma usina no interior do Rio de Janeiro. Santa Cruz tinha 26 anos e, os outros dois, 32 anos. Os três sumiram em 1974. (ver galeria abaixo com as fotos das seis vítimas inocentadas pelos documentos)
Santa Cruz atuava na organização clandestina Ação Popular (AP) e não atuou na luta armada. Kucinski e Silva pertenciam à Ação Libertadora Nacional (ALN), um dos grupos mais violentos no combate à ditadura. Porém, segundo os documentos, nada fizeram de comprovado que justificasse a condenação.
Militante do Partido Comunista do Brasil (PCdoB), Joel Vasconcelos Santos presidiu a União dos Estudantes Secundaristas (Ubes/RJ). Foi preso em uma esquina no Rio de Janeiro no dia 15 de março de 1971. Ele tinha 21 anos, estava com um amigo, Antônio Carlos de Oliveira da Silva, e carregava panfletos com propaganda contra o governo militar.
Silva sobreviveu a torturas e, cinco anos depois de solto, deu um depoimento (ver galeria acima) sobre o sofrimento dos dois nas dependências do aparelho repressivo. “O Joel, coitado, nunca conseguiu sair de lá”, afirmou o amigo do desaparecido. Nesta época, o PCdoB preparava a implantação da Guerrilha do Araguaia, no Pará. Embora o partido fosse favorável à luta armada, não praticava ações urbanas. O relato do amigo do estudante comunista foi arquivado pela Câmara dos Deputados.
Aos 31 anos, Isis Dias de Oliveira também integrava a ALN quando foi presa em janeiro de 1972. Desde então, está desaparecida.
Ex-militar da Marinha, Edgar Aquino Duarte teve longa atuação contra a ditadura desde o golpe de 1964. Esteve preso em diferentes órgãos da repressão e exilado no México e em Cuba. Foi visto pela última vez em junho de 1973 no Departamento de Ordem Pública e Social (DOPS) de São Paulo. Não há registro de que fizesse parte de alguma organização clandestina.
Série sobre desaparecidos sem crimes
Esta é a segunda reportagem produzida pelo Metrópoles sobre desaparecidos políticos da ditadura sem condenações ou, mesmo, sem antecedentes criminais. A primeira, como dito acima, abordou o caso de Fernando Santa Cruz. Contra ele, pesavam acusações de participar de passeatas e comícios.
Amparada em registros oficiais do governo militar, a série Nada Consta tem o objetivo de mostrar que adversários políticos foram perseguidos, presos e nunca mais vistos pelas famílias, embora não fossem acusados de ações violentas. Muitas vezes tratadas como “terroristas”, essas vítimas desapareceram pela vontade dos órgãos da repressão.
No total, a polícia política do governo militar matou 434 adversários – dos quais, 210 permanecem desaparecidos. Os documentos integram o acervo da ditadura preservado no Fundo SNI do Arquivo Nacional.
Fonte: Metrópoles
https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/exclusivo-itamaraty-e-sni-inocentam-seis-desaparecidos-politicos
Pioneiro e comunista, Geraldo Campos enfrentou a ditadura
Mesmo sem aderir à luta armada, sindicalista defensor dos servidores de Brasília foi condenado junto com grupo próximo a Carlos Marighella
Eumano Silva / Metrópoles
O ex-deputado constituinte Geraldo Campos construiu, nas últimas décadas, a imagem de cidadão pacato e político moderado. Fundador do PSDB, teve longa trajetória ligada ao sindicalismo dos servidores públicos do Distrito Federal. Na segunda-feira (17/12), aos 93 anos, ele morreu depois de uma parada cardiorrespiratória.
Nascido em Aracaju (SE), Campos chegou a Brasília em novembro de 1958. Pioneiro, ele se destacou como abnegado integrante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e, nessa condição, foi perseguido pelos órgãos de repressão da ditadura implantada pelo golpe de 1964.
Documentos guardados pelo Arquivo Nacional, aos quais o Metrópoles teve acesso, mostram que, no auge dos Anos de Chumbo, Campos foi preso e processado por sua atuação política. Em um Inquérito Policial Militar (IPM) de 1969, acabou indiciado como integrante do grupo do líder guerrilheiro Carlos Marighella, morto pela repressão nesse mesmo ano.
Uma das referências a esta aparente ligação de Campos está registrada em um relatório do Serviço Nacional de Informações (SNI) classificado como Encaminhamento nº 542/SNI/ABSB, com data de 22 de agosto de 1969. Nesse documento, Campos é listado entre os 34 “elementos” investigados pelo IPM instaurado para “apurar atividades subversivas do Grupo Marighella”.
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Embora Campos e o líder guerrilheiro tenham militado no PCB, a suspeita do SNI não procedia. Marighella abriu uma dissidência no partido na segunda metade da década de 1960, mas o pioneiro de Brasília não o acompanhou na opção pela luta armada. “Os IPMs eram meio fictícios, baseados em acusações falsas. Meu pai não teve contato com Marighella”, diz Vivian, filha de Geraldo Campos.
Outros integrantes do partido seguiram o caminho do radicalismo e chegaram a praticar tiro em fazendas próximas à capital. Campos permaneceu no PCB, que adotou a linha pacífica como tática para enfrentar a ditadura. Depois da dissidência, o Grupo Marighella ganhou o nome Ação Libertadora Nacional (ALN) e se transformou em uma das mais atuantes organizações armadas contrárias ao governo militar.
Mesmo sem aderir à guerrilha, Campos foi condenado no dia 24 de março de 1971 a dois anos de reclusão pelo Conselho de Justiça 11ª Circunscrição Judiciárias Militar (CJM), enquadrado na Lei de Segurança Nacional (LSN). Contra ele, pesou a acusação de tentar, junto com outras pessoas, reorganizar o PCB no Distrito Federal em 1967 sob a orientação de Carlos Marighella e de Joaquim Câmara Ferreira, outro dirigente comunista. A condenação do pioneiro ficou registrada no relatório Informação nº 378/ABSB/SNI/1971, da Agência Brasília do SNI (confira cópia abaixo).
A militância comunista de Campos, na verdade, era anterior à mudança para o Planalto Central. Ex-integrante da Marinha, ele participou da Segunda Guerra Mundial na costa brasileira e de operações contra submarinos alemães. Em decorrência da atuação política, foi expulso da corporação. Os arquivos da repressão preservam uma foto na qual ele aparece vestido com roupa de marinheiro. Na identificação, por um erro do arquivista, o nome dele recebeu um sobrenome que na verdade não tinha, “Rodrigues”.
A punição pela Marinha aproximou Campos ainda mais do Partido Comunista. “Nesse período, levado pela direção do partido, ele entrou para a clandestinidade. Sempre foi muito disciplinado”, afirma Flávio Coutinho de Carvalho, genro do ex-constituinte.
Sempre ao lado dos servidores
Também antes de fixar residência em Brasília, em meados da década de 1950, levado pelo PCB, Campos morou e estudou na União Soviética, principal polo do comunismo internacional. Em Moscou, conheceu Maria de Lourdes Almeida, também militante do partido, com quem se casou depois de voltar ao Brasil. Logo depois, eles tiveram a filha, Vivian, mulher de Flávio.
De volta ao Brasil, Geraldo Campos deixou a clandestinidade e se mudou para Brasília. Na capital, ganhou projeção depois que, em 1960, foi eleito presidente da Associação dos Servidores da Companhia Urbanizadora da Nova Capital (Novacap). Com o golpe de 1964, foi cassado do cargo e demitido do emprego.
Desse tempo, contam os parentes, ele setia orgulho por ter conseguido, como líder da categoria, que o governo contratasse os antigos trabalhadores das obras da cidade. Assim, evitou que os candangos tivessem de deixar Brasília depois da inauguração.
Mesmo depois de cumprir pena, o aparato repressivo continuou a perseguição contra Campos. O acervo do Arquivo Nacional guarda uma foto tirada pelos espiões da ditadura em 1978, quando o país tomava o caminho da redemocratização. No dia 27 de abril daquele ano, Campos foi flagrado pelas lentes da repressão quando deixava uma loja de material de construção em Taguatinga. De pé, ao lado de uma pilha de tijolos, ele aparece de frente para a câmera (foto em destaque). “É ele mesmo. Ele trabalhou alguns anos na Tapuia Indústria e Comércio, de seu cunhado Ary Demóstenes”, diz a filha.
O nome do militante também consta em um relatório confidencial sobre a visita a Brasília, no dia 9 de novembro de 1979, do líder comunista Luiz Carlos Prestes. Nessa data, o então secretário-geral do PCB chegou à cidade, acompanhado pela esposa, Maria Ribeiro.
Produzido pela Divisão de Informações da Secretaria de Segurança Pública do Distrito Federal, o Informe nº 175/79/DI/CIPO/SEP (abaixo) detalha, com fotos, o giro de Prestes pela capital. Campos foi citado como dono do carro usado para transportar o dirigente comunista, na companhia de uma jornalista não identificada, em um passeio turístico por Brasília.
Com o fim da ditadura, o veterano comunista filiou-se ao então PMDB, partido que acolheu parcela considerável dos militantes do PCB. Eleito em 1986 para a Assembleia Nacional Constituinte, ele acompanhou a ala do partido que criou o PSDB dois anos depois. Na Câmara, notabilizou-se pela defesa dos direitos dos servidores e relatou a Lei 8.112, que institui o Regime Jurídico Único do Servidor Público, na Comissão de Justiça, Finanças e Trabalho
Entre 2005 e 2007, Campos presidiu o PSDB do Distrito Federal e, desde então, diminuiu a participação política. Com sua morte, Brasília perdeu o maior símbolo do sindicalismo estatal na história da capital. O jeito pacato disfarçava a atuação persistente e determinada do ex-marinheiro Geraldo Campos.
Fonte: Metrópoles
https://www.metropoles.com/distrito-federal/politica-df/obituario-pioneiro-e-comunista-geraldo-campos-enfrentou-a-ditadura
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Quarta reportagem da série Nada Consta mostra que o governo eliminou militantes e dirigentes do PCB, apesar da conhecida atuação pacífica
Eumano Silva / Metrópoles
Enquanto existiu, o Ato Institucional nº 5 (AI-5) permitiu a agentes do governo matar brasileiros por causa de crimes políticos. Mesmo quando se posicionavam contra a luta armada, adversários da ditadura perderam a vida pelo fato de militarem em organização comunista.
Nesta quarta reportagem da série Nada Consta, o Metrópoles apresenta casos de vítimas sem vinculação com assaltos a bancos, sequestros, guerrilhas ou qualquer tipo de violência. Nada os aproximava do perfil de “terroristas” propagado pelos militares para justificar a eliminação de opositores.
Dos 434 mortos sob responsabilidade da ditadura, 38 integravam o PCB, tratado como “Partidão” por militantes e simpatizantes. A reportagem destaca a trajetória de seis dessas vítimas da repressão.
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João Massena Melo, José Roman, David Capistrano da Costa, Elson Costa, José Montenegro de Lima e Vladimir Herzog morreram por pertencer ao Partido Comunista Brasileiro (PCB). Foram eliminados entre abril de 1974 e outubro de 1975. Nessa época, a esquerda armada encontrava-se desmantelada.
Os órgãos de segurança do governo militar tinham conhecimento do caminho da não violência adotado pelo PCB. Um relatório produzido pelo Centro de Informações da Marinha (Cenimar), com data do dia 17 de outubro de 1969, registra a estratégia do partido.https://0468000b396cae4a441cf3cd6ea312a7.safeframe.googlesyndication.com/safeframe/1-0-38/html/container.html
“Ao contrário das demais organizações clandestinas, o Comitê Central do PCB conclui que a revolução brasileira deve ser processada de forma pacífica, adotando-se um processo político que vise conscientizar as massas contra a opressão que lhes é imposta pelos agentes do imperialismo”, diz trecho do documento.
Desde dezembro de 1967, reunido no VI Congresso, o partido decidira pelo enfrentamento sem violência ao regime fardado. Uma série de dissidências esvaziou o PCB das correntes adeptas da luta armada.
Com raízes na década de 1920, o partido resistia clandestino desde 1947. Mortes, prisões e defecções comprimiam o raio de ação dos integrantes da organização a partir do golpe de 1964.
As últimas dissidências deram origem a organizações radicais, como o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR) e a Ação Libertadora Nacional (ALN), liderada por Carlos Marighella. Antes, em 1962, as divergências em torno de mudanças políticas na União Soviética provocaram a divisão que deu origem ao Partido Comunista do Brasil (PCdoB), também engajado na luta armada.
Por causa da repressão, parte da cúpula do Partidão se transferiu para o exterior. O principal líder da organização, Luiz Carlos Prestes, e outros dirigentes viviam na União Soviética. A sucessão de quedas reforçava a suspeita de que havia infiltrados dos serviços secretos da ditadura na direção do PCB.
Documentos militares inéditos obtidos pelo Metrópoles no Arquivo Nacional mostram o histórico dos comunistas do “Partidão”. Os registros foram produzidos pelos serviços secretos do governo fardado e têm timbres e carimbos do Cenimar, do Serviço Nacional de Informações (SNI) e do Centro de Informações do Exército (CIE).
Os 10 anos que o Brasil viveu sob as regras do AI-5 mergulharam o país no período mais sangrento do regime militar. Extinto em 1979, o Ato Institucional nº 5 voltou a ser tema de debate depois de citado por integrantes do governo, como o ministro da Economia, Paulo Guedes, e pelo deputado Eduardo Bolsonaro (SP), filho do presidente Jair Bolsonaro. Essas circunstâncias reforçam a importância deste quarto trabalho da série Nada Consta, produzida com o intuito de mostrar como a ditadura fez vítimas sem registros de atuação em ações armadas.
A primeira reportagem contou a história de Fernando Santa Cruz de Oliveira, pai do atual presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Felipe Santa Cruz. A segunda revelou que seis opositores assassinados pela ditadura eram inocentes, conforme mostram documentos do SNI e do Itamaraty. Na terceira reportagem, o Metrópoles reconstituiu a história de Ieda Santos Delgado, advogada formada na Universidade de Brasília e desconhecida dos órgãos da repressão antes de ser morta.
Veja, a seguir, os seis casos de militantes do PCB eliminados pelos organismos de repressão. Foram escolhidos em função das informações disponíveis no Fundo SNI do Arquivo Nacional.
1 – João Massena Melo
Elaborado pelo SNI, o relatório “Extrato de prontuário dos subversivos apontados como vítimas de tortura” apresenta um resumo das informações existentes sobre 53 opositores do governo fardado. Desaparecido em abril de 1974, quando tinha 55 anos, o pernambucano João Massena Melo é um dos nomes da lista.
O documento mostra a trajetória de um militante ligado ao partido comunista desde 1945. Não há qualquer referência a ações violentas. Eleito deputado estadual em 1962, Massena teve o mandato cassado depois do golpe militar. Por causa da atuação política, em 1966, foi condenado a 5 anos de reclusão. Entrou para o Comitê Central do PCB em 1967.
Em 1970, esteve preso em decorrência de um inquérito policial militar (IPM) instaurado pela Marinha. Era um dos poucos detentos que não optaram pela luta armada.
“Conheci Massena na cadeia na Ilha das Flores. Ele e o Elson Costa quase morreram na tortura”, afirma Carlos Alberto Muller Torres, ex-dirigente do “Partidão”. “Como ele era experiente e demonstrava liderança, uma semana depois de chegar foi escolhido representante do coletivo junto à direção do presídio”, lembrou Muller em entrevista ao Metrópoles.
Pesava contra Massena as acusações de contribuir financeiramente com o PCB, distribuir uma revista comunista no meio sindical e usar documentos falsos para ir à União Soviética.
Em 1971, foi absolvido pelo Superior Tribunal Militar (STM) por uma condenação. Segundo o relatório do SNI, o dirigente comunista era “subversivo”. Em 1974, depois de solto, continuava no partido e engajara-se no movimento sindical.
“Acha-se, provavelmente, atuando na clandestinidade”, diz o relatório do SNI. O documento acrescenta que Massena era considerado desaparecido pela Anistia Internacional e pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB).
De fato, o dirigente comunista foi morto pelo aparato repressivo. Desapareceu no dia 3 de abril de 1974 durante uma viagem a São Paulo.
Ex-integrantes do aparato repressivo, o delegado Cláudio Guerra e o ex-sargento Marival Chaves afirmaram em depoimentos que Massena foi morto em um centro de tortura da ditadura.
2 – José Roman
Filhos de espanhóis, José Roman nasceu em São Paulo no ano de 1926 e era desconhecido pelos órgãos de segurança antes de ser morto em setembro de 1974. Entrou para o partido comunista na década de 1950.
A falta de referências a Roman foi explicitada na Informação nº 1152/S-102-A12-CIE, produzida pelo Centro de Informações do Exército (CIE) com data de 13 de setembro de 1978.
“Sem dados de qualificação. Os registros existentes são posteriores, e em função do seu suposto desaparecimento. Destino atual: ignorado”, registra o documento.
Outro relatório, feito pelo Ministério da Justiça, atesta a falta de informações sobre o militante do PCB, conforme publicado na terceira reportagem da série Nada Consta.
“Nenhum registro foi encontrado sobre José Roman, Ana Rosa Kucinski, Ieda Rosa Delgado e Fernando Antonio da Silva Meirelles Neto”, diz o texto.
Roman desapareceu junto com David Capistrano da Costa, dirigente do PCB que voltava ao Brasil depois de uma temporada no Leste da Europa.
Assim como no caso de João Massena, o ex-delegado Cláudio Guerra e o ex-sargento Marival Chaves confirmaram que David Capistrano e José Roman foram presos pelo CIE quando viajavam de Uruguaiana (RS) para São Paulo. Ambos teriam sido mortos e incinerados no forno de uma usina no interior do Rio de Janeiro.
3 – David Capistrano da Costa
Dos seis nomes abordados nesta reportagem, David Capistrano Costa é o único com reconhecida atuação em movimentos armados. A militância política começou ainda na década de 1930.
Capistrano entrou para o partido e participou da tentativa de tomada do poder de 1935, conhecida como Intentona Comunista. Pela atuação no golpe frustrado, foi preso e condenado, mas fugiu em 1936 do presídio da Ilha Grande.
Nos anos seguintes, saiu do Brasil e engajou-se nas Brigadas Internacionais que lutaram na Guerra Civil Espanhola. Depois, mudou-se para a França e integrou a resistência contra a invasão nazista na Segunda Guerra Mundial.
Preso pelos alemães, esteve em um campo de concentração, mas escapou por não ser judeu. Retornou ao Brasil em 1942 e, três anos depois, foi preso e anistiado. Solto, retomou a militância no PCB, desta vez em Pernambuco.
Os documentos da ditadura contam parte da história de Capistrano. O mesmo relatório de 1978 do CIE, que trata de José Roman, tem um anexo com uma ficha de Capistrano. Cita o envolvimento na “revolução” de 1935, mas não faz referência às participações nas guerras na Espanha e na França.
Arte/Metrópoles
O CIE também anotou desempenho de Capistrano em Pernambuco, onde o militante comunista integrou a direção do partido e se elegeu deputado estadual em 1947, mas teve o mandato cassado com o cancelamento do registro do PCB.
Na ficha de Capistrano, também constam dados sobre condenações pela atuação política, uma delas a 19 anos de prisão. Não existe qualquer referência sobre sua participação na luta armada contra a ditadura militar. No final, o documento diz desconhecer o paradeiro do dirigente comunista.
“Situação atual. Foragido. Consta estar no exterior em Praga ou Paris.”
Depois do desaparecimento, companheiros de partido e familiares reconstituíram alguns dos últimos passos de Capistrano. Na volta ao Brasil, depois de alguns anos na Europa, o dirigente comunista atravessou a fronteira na altura de Uruguaiana (RS). Trazia volumosa bagagem de livros e documentos do partido.
Os riscos de cair nas mãos da repressão fizeram Capistrano esperar cerca de 10 dias na fronteira. O PCB, então, enviou Roman em um fusca para buscá-lo. A operação fracassou e os dois tombaram nas mãos da repressão.
Segundo o ex-delegado Cláudio Guerra, Capistrano também foi incinerado em uma usina no interior do Rio de Janeiro depois de assassinado pelos agentes do governo militar.
“Meu pai confiava muito na segurança proporcionada pelo PCB e, também, na própria experiência nas guerras”, afirmou ao Metrópoles Cristina Capistrano, filha do comunista.
Um relatório interno do partido, elaborado na década de 1970 pelo dirigente Hércules Corrêa, aponta falhas nessa rede de segurança. O documento conclui que houve negligência por parte dos envolvidos, a começar pelo fato de que Capistrano demorou muito tempo na fronteira, o que pode ter facilitado a captura pela repressão.
O trabalho organizado por Corrêa chama a atenção para os espiões infiltrados até na cúpula do Partidão. Por esse roteiro, pode-se concluir que o dirigente era acompanhado por agentes do governo antes mesmo de chegar ao Brasil.
4 – Elson Costa
Responsável pela área de agitação e propaganda do PCB, Elson Costa tinha 61 anos quando desapareceu em março de 1975 nas mãos da repressão militar. Nascido em Prata (MG), teve longa trajetória no “Partidão”. Em 1970, foi condenado pela Justiça Militar e cumpriu pena em Curitiba.
O documento Informação nº 025/16/75/ARJ/SNI, com data de 29 de abril de 1975, lista algumas atividades políticas de Costa. Em 1964, teve os direitos políticos cassados por 10 anos.
Elson costa foi preso em 1970, depois de condenado por crimes contra a Lei de Segurança Nacional (LSN). Também teve citação como participante do V e do VI congressos do PCB.
Na ficha do militante comunista, também consta a atuação na Seção de Agitação e Propaganda do partido.
Em entrevista concedida em 1992 ao jornalista Expedito Filho, da revista Veja, o ex-sargento Marival Chaves contou como foi o fim do homem que cuidava da agitação e propaganda do PCB. “Foi interrogado durante 20 dias e submetido a todo tipo de tortura e barbaridade. Seu corpo foi queimado. Banharam-no com álcool e tocaram fogo. Depois, Elson ainda recebeu a injeção para matar cavalo.”
5 – José Montenegro de Lima
Integrante do Comitê Central do PCB, José Montenegro de Lima era responsável pelo setor de juventude, com larga atuação junto ao movimento estudantil nas décadas de 1960 e 1970. Trabalhava, principalmente, nos bastidores e no recrutamento de novos militantes.
O documento Informação nº 1152/S-102-A12-CIE, com data de 13 de setembro de 1978, tem uma ficha do dirigente comunista. Nesse registro, Lima aparece como indiciado em um IPM da Faculdade Nacional do Rio de Janeiro em 1964/65.
Em 1968 e 1969, segundo a ficha, o dirigente participou do movimento estudantil em São Paulo. Na primeira metade da década de 1970, era encarregado da Comissão Nacional Juvenil do PCB.
Por fim, o documento tenta disfarçar a queda de Lima: “Seu destino atual é ignorado”.
De acordo com o ex-sargento Marival Chaves, Montenegro também foi morto pelos agente da repressão e jogado em um rio perto da cidade de Avaré (SP).
6 – Vladimir Herzog
Jornalista de destaque na imprensa paulista, Vladimir Herzog morreu no dia 25 de outubro de 1975, nas dependências do Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna (Doi-Codi) em decorrência de torturas.
Herzog se apresentara voluntariamente para depor junto com um grupo de comunistas. Não resistiu aos interrogatórios.
Preso na mesma época, o jornalista Paulo Markun escreveu um livro sobre Herzog, com quem trabalhava na TV Cultura. A obra “Meu querido Vlado” descreve a trajetória do amigo, observado pela repressão desde logo depois do golpe militar.
Judeu, nascido na antiga Iugoslávia, Herzog mudou-se com a família para o Brasil ainda criança, depois de expulsos de sua cidade pelos nazistas. Viveu em um campo de refugiados na Itália antes de atravessar o Atlântico.
Antes de ser morto pela ditadura, o jornalista voltou a viver na Europa com a família. Retornou ao Brasil logo depois da edição do AI-5, baixado no dia 13 de dezembro de 1969.
Nos documentos dos militares, o nome de Herzog se torna constante depois de sua morte. A repercussão negativa do episódio levou à queda do general Ednardo D’Ávila Mello, comandante do II Exército, com sede em São Paulo. A falsa versão de suicídio não se sustentou diante das evidências apontadas pelos outros presos, também torturados.
Um documento da agência do SNI do Rio de Janeiro, com data de 24 de junho de 1974, registra alguns dados sobre Herzog, na época editor em São Paulo da revista Visão.
A ficha diz que Herzog é “prontuariado” (ou seja, tem um prontuário) no SNI, mas “sem dados de qualificação”. A única atividade do jornalista citada no documento é a assinatura de um manifesto pela libertação, em 1965, de Enio Silveira, proprietário da editora Civilização Brasileira.
Assim como os outros militantes destacados nesta reportagem, Herzog não participou da luta armada no Brasil. Sua atuação no partido comunista era meramente política e tinha o objetivo de ajudar na redemocratização do Brasil. Lamentavelmente, o jornalista não chegou vivo ao fim da ditadura.
As décadas seguintes às mortes desses comunistas demonstraram que o PCB, de fato, trilhava o caminho pacífico na luta contra o regime militar. Legalizada no governo de José Sarney, a organização mudou de nome para PPS depois da queda do Muro de Berlim.
Em 2019, nova mudança na denominação transformou o antigo PCB no partido Cidadania, presidido pelo ex-deputado Roberto Freire. O antigo “Partidão” integrou-se completamente à vida democrática do país e participou de alguns governos.
No governo Temer, por exemplo, Freire foi ministro da Cultura. Outro ex-militante do PCB, Raul Jungmann, comandou as pastas da Defesa e da Segurança Pública. Pela histórica política dos seis comunistas apresentadas nesta reportagem, eles também teriam colaborado com a redemocratização caso não tivessem sido assassinados pela repressão militar.
O perfil pacifista das vítimas leva à conclusão óbvia de que, se não existisse o AI-5, não fariam parte da lista de mortos e desaparecidos da ditadura.
“Penso que a perseguição ao PCB aconteceu, em grande parte, pela nossa atuação tipo formiguinha na organização da sociedade”, opina Carlos Alberto Muller Torres, ex-militante e dirigente do velho “Partidão”.
Nesse sentido, os fatos narrados neste trabalho demonstram que, mais do que por qualquer outro motivo, os seis brasileiros foram eliminados por atuar em uma organização comunista – mesmo que fosse de paz.
Fonte: Metrópoles
https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/documentos-ineditos-com-ai-5-bastava-ser-comunista-para-morrer
Sem apontar violência, ficha do SNI chama Santa Cruz de “terrorista”
Militante da organização clandestina APML, pai de presidente da OAB participou de passeatas e comícios, mas não se envolveu com luta armada
Eumano Silva / Metrópoles
Uma ficha do Serviço Nacional de Informações (SNI) sobre o desaparecido político Fernando Santa Cruz usa as expressões “terrorista”, “subversivo” e “suspeito” para definir sua atuação nos movimentos contra a ditadura. Ao listar as atividades do militante, cita a participação em comícios, passeatas e agitações no movimento estudantil. O material, porém, não faz qualquer referência a ações violentas.
O nome do militante pernambucano entrou para o noticiário na última semana, depois que o presidente Jair Bolsonaro (PSL) fez insinuações sobre sua morte. O objetivo do chefe do Executivo foi atacar o presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, Felipe Santa Cruz, filho do estudante desaparecido desde o dia 23 de fevereiro de 1974.
Caracterizado como “dossiê”, o documento localizado pelo Metrópoles faz parte do acervo da ditadura preservado no Fundo SNI do Arquivo Nacional. O prontuário de Santa Cruz foi organizado em 25 de abril de 1983, nove anos depois do desaparecimento.
SNI foi o órgão responsável por coordenar o sistema de informação e espionagem da ditadura. Em duas folhas, o registro trata de fatos relacionados ao militante em 1967 e, também, das pressões feitas pela família e pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB), partido da oposição, sobre o governo militar em busca de esclarecimentos.
A primeira página, uma espécie de folha de rosto, foi produzida pela agência do SNI em Recife. Tem o título “Informe 359”. Classificada como “confidencial 4611/87”, ostenta também a marca da Presidência da República.
No cabeçalho da segunda folha, Santa Cruz é tratado como “suspeito (agitador)”. Esse prontuário lista cinco episódios relacionados a Santa Cruz, quatro deles posteriores ao desaparecimento.conteudo patrocinadoAMERICANAS.COMAr-Condicionado Portátil DeLonghi Pinguino 12.000 BTUs Só Frio 127VSUBMARINOLente Objetiva EF-M 22mm F/2 STM Canon PretaMOBLYMobly, o melhor preço
Além de apontar atividades do movimento estudantil em 1967, o documento faz inferências sem evidências sobre aspectos de sua atuação. “É subversivo e terrorista. Provavelmente atuando na clandestinidade. É procurado pelos órgãos de segurança”, diz a ficha. Cita também a filiação de Santa Cruz à Ação Popular Marxista Leninista do Brasil (APML do B).
Pelo menos uma informação é falsa. O prontuário aponta um suposto endereço do militante, em Olinda (PE), em julho de 1974. Nessa data, ele já havia sido preso pelos militares.
O dossiê contém anotações úteis para se reconstituir a militância de Santa Cruz. Tem valor, ainda, como pista para se constatar como os agentes responsáveis pelos arquivos militares atribuíam crimes aos inimigos sem lastro nas investigações.
Nos anos mais sangrentos do regime fardado, ser acusado de terrorista equivalia a uma sentença de morte. Foi o que, segundo todos relatos e registros, aconteceu com Santa Cruz.
O conteúdo do prontuário reforça a impressão de que Bolsonaro falou sobre fatos inexistentes ao atribuir a morte a companheiros de Santa Cruz. Neste e nos outros documentos sobre o militante da APML, não existe qualquer pista nessa direção.
Criada em 1962 por uma ala católica, a Ação Popular (AP) foi a mais influente corrente política no meio estudantil até o final da década. Integraram a organização, por exemplo, o ex-ministro da Saúde, ex-governador de São Paulo e hoje senador José Serra (PSDB-SP), o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho – falecido em 1997 – e os ex-deputados Aldo Arantes (PCdoB-GO) e Haroldo Lima (PCdoB-BA).
Distrito Federal
Em Brasília, fizeram parte da APML, por exemplo, os estudantes Honestino Guimarães, outro desaparecido político, e Maria José da Conceição, a Maninha, que fez carreira política, foi deputada federal pelo PT e secretária de Saúde do Distrito Federal.
Depois do golpe, a AP sofreu perseguição política e líderes expressivos foram para o exílio. Os que ficaram aproximaram-se do comunismo e, no início da década de 1970, o grupo majoritário incorporou-se ao PCdoB.
Santa Cruz pertencia à ala que não entrou para o partido comunista e adotou a denominação Ação Popular Marxista-Leninista (APML). Não se tem notícia de participação desse grupo em ações de guerrilha.
No que diz respeito a informações sobre execuções de militantes pelos próprios companheiros, vale ressaltar que os órgãos de segurança tinham todo interesse em registrar nos documentos secretos. Isso se deu, por exemplo, em relação à morte de Salatiel Teixeira Rolim, militante do Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), executado a tiros por ex-companheiros.
O caso foi narrado pelo Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (Cisa) em relatório de março de 1974, também arquivado pelo SNI. Um grupo de integrantes do PCBR decidiu matá-lo por considerá-lo traidor. Teria, sob tortura, fornecido dados que contribuíram para o esfacelamento do partido.
A execução de Rolim pelos companheiros se tornou pública, em 1987, com o lançamento do livro Combate nas trevas, escrito pelo historiador comunista Jacob Gorender, ex-dirigente do PCBR. Trata-se de uma das obras mais importantes para se conhecer a atuação das organizações de esquerda durante a ditadura.
Sobre Santa Cruz, nunca se ouviu nada parecido antes de Bolsonaro resolver atacar o presidente da OAB. Jamais foi comentado que ele poderia ter sido assassinado por companheiros da APML.
Importante destacar que o presidente não apresentou qualquer fonte. Indagado sobre a origem da informação, saiu-se com evasivas: “Com quem eu conversei na época, oras bolas. Conversava com muita gente, estive na fronteira… Conversava. (…) Essa é a informação que tive na época, sobre esse episódio”.
Do ponto de vista de quem pesquisa os fatos escondidos pela ditadura, a declaração de Bolsonaro tem as características de um boato sem valor histórico. Assemelha-se às mentiras, como os atropelamentos forjados, divulgadas pelos órgãos da repressão para encobrir os assassinatos nos porões do regime militar.
Um sinal evidente de que o presidente não tem compromisso com a verdade está em outra afirmação, feita em rede social. Para Bolsonaro, a Ação Popular era o “grupo terrorista mais sanguinário que tinha”.
Quem conhece minimamente a história da repressão durante os 21 anos de ditadura sabe que essa afirmação aleatória não faz o menor sentido. A AP foi uma das organizações da luta armada que menos praticou ações sanguinárias.
Seguramente, em um grau bastante superior de violência, destacaram-se em atividades de guerrilha a Ação Libertadora Nacional (ALN), a Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), o Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e o Partido Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR).
A APML não praticou sequestros, assaltos a bancos ou núcleos de guerrilha armada. Os casos conhecidos de crimes da organização nos anos 1970 relatados por militantes foram desvios de dinheiro do mercado financeiro para capitanear a vida na clandestinidade.
A organização priorizou a infiltração de militantes em fábricas e no meio rural para politização e maior aproximação com as classes trabalhadoras. Assim mesmo, teve a cúpula estudantil dizimada pela repressão.
Atentado a bomba
A rigor, pelo que se registrou, sabe-se de uma única ação violenta praticada por integrantes da APML: foi um atentado a bomba no aeroporto de Guararapes, em Recife, no dia 25 de julho de 1966. O ataque foi preparado, aparentemente, contra o marechal Artur da Costa e Silva, que fazia campanha para suceder Humberto de Alencar Castelo Branco na Presidência da República – o que se confirmou.
Em vez de ir para o aeroporto de Guararapes, no entanto, Costa e Silva tomou outro destino, mas a bomba explodiu assim mesmo. Nesse episódio, morreram o jornalista Edson Regis de Carvalho e o almirante reformado Nelson Gomes Fernandes. Mais de uma dezena de pessoas ficaram feridas, algumas com gravidade.
Esse é um dos poucos casos de terrorismo com bombas e vítimas praticado por grupos de esquerda durante a ditadura. O responsável pelo planejamento da ação, Padre Alípio de Freitas, pertencia à AP e entrou em atrito com o comando da organização depois desse ataque.
Embora a cúpula não assumisse o atentado, na história da guerrilha urbana, a responsabilidade pelo atentado ficou com a Ação Popular. Apesar da defesa da luta armada, por princípio, a AP nunca mais a praticou, segundo as informações disponíveis.
Fernando Santa Cruz nada teve a ver com a bomba no aeroporto de Guararapes. Rigorosamente nada. Na época, tinha 16 anos e era estudante secundarista na capital pernambucana. Embora, nesse ano, tenha sido detido durante uma semana por participar de uma manifestação, seu nome nunca esteve associado a qualquer ação da luta armada.
Tampouco se vê referência ao pai do presidente da OAB em atos de violência nos documentos militares ou nos relatos de ex-companheiros da APML. O livro de cabeceira de Bolsonaro, A verdade sufocada, escrito pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, tem um capítulo dedicado ao atentado no aeroporto de Guararapes. Santa Cruz não é citado entre os envolvidos.
Trinta e cinco anos depois do fim da ditadura, para merecer consideração, as informações sobre o período de sombras devem ser referendadas por documentos da época ou por declarações assumidas por quem viu ou praticou atos relacionados à morte e ao desaparecimento de militantes.
O boato tornado público na semana passada teria saído de “conversas” que Bolsonaro manteve na época em que Santa Cruz sumiu. Nada mais vago. Na prática, se não surgir nenhuma outra evidência, as declarações se enquadram por enquanto na categoria de fofoca presidencial.
Em linguagem popular, tem jeito de fuxico ou futrica. Só serve para incomodar desafetos e tumultuar o ambiente político.
Incinerado no forno de uma usina
Em relação a Fernando Santa Cruz, especificamente, um ex-agente da repressão assumiu a responsabilidade pelo seu desaparecimento. Segundo o ex-delegado Cláudio Guerra, do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS) do Espírito Santo, o militante da APML foi incinerado no forno de uma usina depois de morto por agentes da repressão.
Não há razão para se duvidar de Guerra. Convertido a uma religião evangélica, o ex-delegado leva vida pacífica e se diz arrependido do que fez no passado. Nenhuma informação que tornou pública desde 2012 – quando resolveu contar os fatos que viveu nos Anos de Chumbo – foi desmentida pelos envolvidos, pelos órgãos de direitos humanos ou pelos pesquisadores do assunto.
Outra evidência da falta de periculosidade – e até de relevância – de Santa Cruz se encontra no Encaminhamento nº 97916E/71/AC/SNI, do mesmo fundo do Arquivo Nacional, com data de 8 de dezembro de 1971. Na folha de rosto, lê-se “relação nominal de elementos implicados com as atividades da ‘Ação Popular Marxista-Leninista do Brasil – APML-doB’, no período compreendido entre 1968 e o 1º semestre de 1971”.
Em 18 páginas, o SNI lista 719 integrantes da “APML do Brasil”. Todos os líderes conhecidos da organização estão identificados. Santa Cruz nem aparece no rol de mais de sete centenas de pessoas recrutadas pela Ação Popular.
Observa-se, em resumo, que os fatos reconstituídos com base em documentos dos militares indicam que Fernando Santa Cruz atuou como militante do movimento estudantil e integrou uma organização clandestina que defendia a luta armada. Porém, nunca se envolveu em ação violenta.
Não cabia, portanto, no figurino de “terrorista”, propalado pelos órgãos de repressão a fim de justificar para a população as prisões, torturas e mortes de adversários. Quando desapareceu, o militante da APML morava em São Paulo com a mulher e o filho, Felipe. Era funcionário concursado do Departamento de Águas e Energia Elétrica do Estado.
No Carnaval de 1974, a família foi visitar amigos, alguns também da APML, no Rio de Janeiro. No dia 23 de fevereiro, saiu sozinho para se encontrar com Eduardo Collier Filho, da mesma organização.
Nunca mais os dois foram vistos e o quarto de Collier foi revirado por desconhecidos logo depois. Segundo documentos da Aeronáutica, da Marinha e do DOPS de São Paulo, Santa Cruz foi preso por órgãos de segurança.
Os dois militantes caíram quando a luta armada no Brasil se encontrava nos estertores. Derrotadas pelo aparato repressivo, as organizações clandestinas não tinham mais poder de fogo para a guerrilha urbana ou rural. Prisões, mortes e banimentos esfacelaram as correntes radicais de esquerda.
Dilma Rousseff
Para se ter uma ideia do momento vivido pelos grupos clandestinos, a então militante da VPR Dilma Rousseff – presidente da República entre 2011 e 2016, estava livre desde 1972, depois de quase três anos na cadeia. Vencida, a esquerda saía aos poucos da clandestinidade e retomava a vida na sociedade brasileira.
Fernando Santa Cruz e Eduardo Collier faziam parte de um grupo da APML que foi perseguido por tentar manter a mobilização nas universidades depois do fechamento da União Nacional dos Estudantes (UNE). Nessas atividades, estavam José Carlos da Mata Machado, Gildo Macedo Lacerda, Humberto Albuquerque Câmara Neto e Honestino Guimarães.
Da AP, também foram mortos pela ditadura o deputado estadual (SC) Paulo Stuart Wright, o engenheiro Jorge Leal e o operário Raimundo Eduardo da Silva. Ao todo, pelo menos nove militantes da AP se encontram na lista de vítimas do governo militar.
Sem registro de participação de Santa Cruz em ações violentas – ou mesmo contato com armas – a explicação pelo desaparecimento se dá pela fase de endurecimento das atividades repressivas quando uma ala dos militares iniciava os movimentos de abertura política.
Nesse contexto, a linha mais radical dos porões lançou-se contra o que ainda restava dos movimentos de esquerda, mesmo os que pregavam o enfrentamento pacífico com a ditadura – caso do Partido Comunista Brasileiro (PCB), também vitimado com o desaparecimento de dirigentes.
Pelo que relatam os documentos – e também ex-companheiros de militância e familiares –, o pai do presidente da OAB era um típico agitador de movimento estudantil, recrutado pelo grupo mais forte na política universitária no início da ditadura.
Com esse perfil, tornou-se um dos 210 desaparecidos políticos da ditadura. No total, durante os 21 anos do governo militar, 434 adversários foram mortos.
Fonte: Metrópoles
https://www.metropoles.com/brasil/politica-brasil/sem-apontar-violencia-ficha-do-sni-chama-santa-cruz-de-terrorista
Marcelo Godoy: Vacina e legalidade: as as razões que levaram Santos Cruz à oposição a Bolsonaro
Quando decidiu escrever um artigo para o Estadão, o general decidiu que era chegada a hora de parar de poupar o ex-chefe; falta de ação contra pandemia o fez aumentar as críticas
Caro leitor,
O general Santos Cruz estava cuidando da roça quando tocou o telefone em sua casa. Queriam avisá-lo do conteúdo do inquérito dos atos antidemocráticos da Polícia Federal divulgado pelo Estadão. Pouco depois, começaram as chamadas dos jornalistas. Para a Coluna do Estadão, o general disse que nada daquilo lhe causava surpresa: “É lastimável o fluxo de dinheiro para alguns apoiadores, As consequências tem de ser dentro da lei.” O general torce. Contar a razão disso ajuda a pôr luz em alguns dos principais eventos do governo de Jair Bolsonaro.
Os privilégios aos blogueiros inventados pelo bolsonarismo para fazer propaganda do governo e gerar lucro para os envolvidos nessa operação não surpreenderam o general porque Santos Cruz conheceu de perto a ascensão de pessoas como Alan dos Santos, um dos parvenus investigados pela PF. Afinal, quem bancava as viagens a Brasília, as instalações confortáveis e as estadias no exterior dessa turma? É o que a PF e o general gostariam de saber.
Uma coisa, no entanto, o general sabe: quem abriu o gabinete presidencial para essa tropa de ‘nouveau riche’? A resposta é simples: o próprio presidente, aquele que afirmou na reunião ministerial de 22 de abril que seus adversários queriam a “nossa hemorroida, a nossa liberdade”. Sem explicar até agora o que uma tinha a ver com a outra... Generais como Santos Cruz recebem seus salários de fonte conhecida e descontam os impostos na fonte. A PF indaga como essas coisas funcionam com os blogueiros bolsonaristas.
Santos Cruz fora Secretário Nacional da Segurança Pública no governo de Michel Temer e um dos oficiais que participaram da articulação que levou Jair Bolsonaro ao poder. É criticado, por isso, pela oposição, que não lhe perdoa a adesão ao bolsonarismo. Diz que, ao contrário da maioria dos eleitores que se decepcionou com o governo, ele conhecia Bolsonaro e sabia o que esperar do colega. E se pergunta quais as ligações de Santos Cruz com o chamado “partido militar”, o grupo que resolveu trocar a política do Exército pela opção de tentar fazer política no Exército.
Apesar das desconfianças de alguns, o ex-ministro-chefe da secretaria de Governo é cortejado por partidos políticos e chegou a ser convidado pelo governador João Doria para entrar no PSDB. O general se diz um homem de direita. E, ao lado de colegas, apresentava um argumento para justificar sua passagem pela política: o combate à corrupção. Mas pensava que um governo devia dialogar e ouvir a todos, independentemente de partidos.
Sabia da limitação dos militares para assumir funções civis para as quais não foram treinados. Aos amigos, dizia: "Cabos sabem fazer muito bem as coisas militares que se esperam dos cabos, assim como os sargentos, os tenentes e os generais. É uma ilusão pensar que podemos cuidar de tudo." No governo, teve a Secretaria de Comunicação – e suas verbas publicitárias – subordinada à sua pasta. Estudou como a publicidade oficial funcionava, quais contratos mantinha e com quem. E logo barrou um de R$ 39 milhões para divulgar a viagem de Bolsonaro a Davos. Justificou-se com o fato de que a imprensa já ia cobrir a presença do presidente no evento.
Também não aceitou direcionar a verba de publicidade a aliados e amigos, defendendo critérios técnicos como audiência, tiragem, abrangência e público alvo. Não demorou a entrar na mira da turma de Carlos Bolsonaro, o filho do presidente que é citado 43 vezes no inquérito que apura a existência de uma organização criminosa por trás dos atos em Brasília que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal. Santos Cruz não entendia por que um contrato de R$ 40 milhões era assinado com uma agência se a execução dele não passava de R$ 12 milhões.
Também não entendia por que o governo pretendia gastar tanto em publicidade com a reforma da Previdência, se era um tema já explorado pelo governo de Michel Temer e se havia apoio à medida ainda maior na atual Legislatura. Dizia então que a sociedade toda já sabia do que se tratava. E, ainda que pensasse que, ser filho de presidente, não é uma função pública, nada pôde contra as intrigas dos parvenus em busca de uma janelinha no Planalto.
Lembrava que a promessa do governo Bolsonaro era “fazer diferente” de seus antecessores. E pensava na Revolução dos Bichos, de quando Bola de Neve escreveu os princípios do animalismo – os sete mandamentos – na parede da granja. Naquele dia, todos partiram para colher o feno e quando voltaram à noite perceberam que o leite das vacas havia sumido.
Acabou demitido antes de apresentar seu plano de comunicação governamental no qual pretendia defender que a “comunicação do governo não pode ser mercadológica, não pode ser ideológica e deve transmitir informações, em vez de mera propaganda de governo ou de pessoas”. Por fim, o general pensava que a política do Planalto não podia concorrer com outros veículos de comunicação.
Após deixar o governo, Santos Cruz permaneceu quase um ano comedido ao falar do governo e poupava o presidente. Foi assim mesmo depois da demissão de Sérgio Moro e das afirmações do ministro da Justiça de que Bolsonaro queria usar a PF para favorecer o filho denunciado por desviar dinheiro público. O que o fez mudar de postura e passar a criticar abertamente o presidente foi a decisão de Bolsonaro comparecer a uma manifestação em frente ao QG do Exército, que pedia o fechamento do Congresso e do STF.
Decidiu falar no momento em que viu colegas da reserva próximos de Bolsonaro defenderem uma extravagância: o papel de Poder Moderador das Forças Armadas diante de conflitos institucionais. Era a tese do golpe de Estado que pretendia fingir legalidade onde só havia a intenção de se praticar um crime contra a Constituição. Ela levou o general a escrever um artigo publicado no Estadão. Seu primeiro passo na mudança de tom em relação ao governo.
Santos Cruz pressentiu a tentativa de se envolver o Exército em uma aventura, assim como o bridaieor Sérgio Xavier Ferolla, ex-presidente do Superior Tribunal Militar. Sabia que a grande maioria dos colegas não se envolveria na discussão, mas acreditava ser necessário enfrentar os extremistas que dominavam a cena. E se justificou para os amigos: “Há três pragas hoje no Brasil: a corrupção, o coronavírus e o fanatismo”. No dia 12 de novembro, foi mais longe ao escrever no Twitter: “Cansado do Show. O Brasil não é um País de maricas. É tolerante demais com a desigualdade social, corrupção, privilégios. Votou contra extremismos e corrupção. Votou por equilíbrio e união. Precisa de seriedade e não de show, espetáculo, embuste, fanfarronice e desrespeito."
CANSADO DE SHOW. O Brasil nâo é um país de maricas. É tolerante demais com a desigualdade social, corrupção, privilégios. Votou contra extremismos e corrupção. Votou por equilíbrio e união. Precisa de seriedade e não de show, espetáculo, embuste, fanfarronice e desrespeito. — General Santos Cruz (@GenSantosCruz) November 12, 2020
Um dia antes, havia desabafado contra Bolsonaro, que comemorara a morte de um brasileiro no que pensava ser o fracasso da coronavac, a vacina desenvolvida no Instituto Butantã em parceria com a Sinovac chinesa. “Ganhou de quem? Vacina, qualquer que seja, é saúde pública. É para a população. Não é assunto particular. O trato tem ser técnico e dentro da lei. Fora disso é irresponsabilidade, falta de noção mínima das obrigações, desrespeito pela saúde dos cidadãos. Vergonha! Sem classificação!"
Recentemente, para um político que o procurou pedindo que assinasse uma ficha de filiação partidária, o general explicou a recusa, afirmando que, assim, acredita que sua voz será ouvida por mais gente e não só pelos filiados daquele partido. Embora comemore a presença de militares na política como mais uma opção para o eleitor, Santos Cruz acredita que a uma ilusão de achar que eles são a solução para a gestão pública é muita vezes propagada pela imprensa. Militares são competentes para as coisas militares; as demais dependeriam da capacidade de cada um. Esse seria o caso do general Pazuello.
Não é de um intendente, como Pazuello, que o País precisaria à frente do Ministério da Saúde, mas de alguém que entenda de políticas públicas. O intendente especialista em logística não consegue comprar seringas e agulhas para vacinar a população. E se submete a um chefe que não o deixa comprar vacinas. Ou como afirmou Gonzalo Vecina, fundador ex-presidente da Anvisa: "Propor vacinação só em março e alcançar no máximo um terço da população em 2021 é um crime". Militar da ativa, Pazuello ajudaria a vincular o Exército ao governo que comete esse crime. Mas antes de responsabilizar o general, Santos Cruz sabe que é preciso olhar para o Planalto. É lá que está o presidente da República, que devia sentar na cabeceira da mesa de reuniões e definir o que se deve fazer na maior crise sanitária do século, em vez de se omitir, brigar por causa de vacina e chamar o povo de maricas.
El País: 'As Forças Armadas não caem em canto da sereia de WhatsApp', diz Santos Cruz
Ex-ministro de Bolsonaro, general da reserva alerta para a politização das polícias, mas diz que no Exército não há contaminação
Flávia Merreiro, do El País
“Quando sai o avião pra África?”. Foi assim, sem nenhum segundo de hesitação, que o general da reserva Carlos Alberto dos Santos Cruz reagiu quando recebeu, em 2013, um convite da ONU para comandar os milhares de capacetes azuis das forças de paz no Congo, então conflagrado. “Estava almoçando num boteco aqui da esquina quando um cara do Senegal me ligou. Saí de lá para comunicar à família”, contou, com meio sorriso, na sala de seu apartamento em Brasília, na manhã do último sábado.
A anedota emoldura a personalidade que o general de 67 anos, que também serviu no Haiti e até hoje é consultor das Nações Unidas para situações de conflito, gosta de cultivar. Ele é um dos únicos alto oficiais das Forças Armadas brasileiras a ter participado de um conflito aberto convencional. Na longa conversa com o EL PAÍS, mostrou-se de prontidão para falar de qualquer tema, – ainda que esquivando-se dos decibeis —, de cenários de alarme no Brasil (não vê risco institucional, apesar de apontar “loucuras” no discurso bolsonarista).
O gaúcho de Rio Grande só mudou de tom quando o assunto foi sua breve e turbulenta passagem pelo Governo Bolsonaro, na Secretaria Geral da Presidência da República, quando foi alvo de uma virulenta campanha na Internet movida pelas alas mais radicais do bolsonarismo. Uma mensagem falsa atribuída a ele atacando o presidente chegou a ser mostrada ao próprio Bolsonaro. “Meu interesse é saber quem foi o falsário que fez isso, coisa de bandidinho vagabundo de Internet.”
Desde sua saída do Governo, Santos Cruz nunca mais falou com Bolsonaro. Do Twitter, e do alto do seu prestígio no Exército, tem enviado recados, como nesta entrevista. “A instituição Forças Armadas não tem ligação nenhuma com resultados de Governo, com atitudes de governantes”, diz ele, que não descarta concorrer a algum cargo eleitoral no médio prazo. Já sobre as polícias militares adverte: há um processo forte de politização que precisa ser detido.
Pergunta. O senhor se manifestou contra o uso da imagem de generais na convocatória de uma manifestação a favor do presidente Bolsonaro e contra o Congresso. Disse também que “o extremismo só interessa aos extremistas”. Inclui o general Heleno entre os extremistas?
Resposta. Não... Isso eu falei em tese. Não me considero no direito de fazer a lista de quem é e quem não é [extremista]. Isso é o público que tem que analisar. Isso tem a ver com a disputa entre o Executivo e o Legislativo, uma questão orçamentária, aí a temperatura sobe e o pessoal fala mais alto. O artigo que escrevi atende a todos os setores, de direita e de esquerda. O extremismo sempre cria o oponente para poder se posicionar. Tem pessoas que são radicais e extremistas até pela personalidade, outras por ideologia, outras por interesse. Isso não ajuda o quadro geral.
P. O senhor considera o presidente Bolsonaro um extremista?
R. Não. Ele é obrigado a negociar com o Congresso. Não tem como. Mas ele tem um estilo e esse estilo pode deixar o pessoal mais irresponsável. É como torcida organizada. Tem milhões de corintianos, mas a Gaviões da Fiel é um núcleo entusiasmado. Quando você xinga o juiz, tem corintiano que pensa “tudo bem”, mas na Gaviões da Fiel eles vibram. Esse estilo do Bolsonaro, essas tiradas dele, etc têm uma sequência muito forte porque ele é o presidente, e tem pessoas que se entusiasmam.
P. Bolsonaro compartilhou vídeos pela manifestação que falam abertamente em fechar o Congresso. O presidente cruzou uma linha vermelha?
R. Mesmo que fique em cima da linha, você tem os poderes funcionando. Agora o mais importante é que teve reação do Legislativo, do Judiciário, teve reação social.
P. O senhor falou, citando os generais, que “estão confundindo o povo”. Qual o risco da convocatória? Vê risco institucional?
R. Não tem risco nenhum. Tem confusão. Você pega quatro generais de destaque, coloca foto e uma convocação ―não vou entrar no mérito da convocação, que entra na questão da liberdade de expressão e de associação. Mas aquela imagem fica parecendo que você tem uma instituição que está patrocinando aquele convite, e não é. São quatro oficiais de destaque, que já estão na reserva, que sem dúvida nenhuma não autorizaram aquilo. É muito ruim. Não cria risco, mas cria confusão na população.
P. Cria confusão também dentro da caserna, especialmente nas patentes mais baixas?
R. Não, porque essas pessoas conhecem os envolvidos, a situação. É mais pelo público em geral. Aí confunde. Dentro das Forças Armadas não tem efeito nenhum, dentro do Governo não tem efeito nenhum. Porque as pessoas sabem o posicionamento institucional. Eu, como militar, trabalhei no Governo e minha responsabilidade era individual. Não estava representando uma instituição.
P. Vou insistir na pergunta porque hoje há o maior número de militares do Governo desde a redemocratização. Há um general e um almirante na ativa, inclusive... Não confunde institucionalmente?
R. O pessoal da ativa está usando uma prerrogativa legal de que você poder ser cedido a outro poder. Eu, particularmente, acho que isso vai trazer um pouco de confusão. Continua não representando institucionalmente, mas pode criar confusão para um observador olhando de fora. Mesmo estando na ativa à disposição de outro poder, a responsabilidade é individual.
P. Muitos observadores apontam que o presidente está ancorando seu Governo no prestígio da instituição Forças Armadas. Esse vínculo tão forte não será prejudicial para as Forças Armadas a longo prazo?
R. Uma coisa precisa ficar bem esclarecida. Esse grande número de militares pode dar essa impressão para as pessoas, que não têm conhecimento institucional, de que tem um compromisso. E não tem nenhum. Eu não tenho status legal para falar pelas Forças Armadas nem pelo Exército, mas fiquei mais de 45 anos lá e eu posso dizer alguma coisa. Pode ter certeza: a instituição não tem ligação nenhuma com resultados de Governo, com atitudes de governantes. Não acredito que essa participação [de militares] tenha essa intenção. É uma opção do presidente porque ele vem desse meio, conhece muita gente, então facilita. Quando você convida um oficial, você não tem disputa partidária.
P. Há também uma preocupação com a contaminação do discurso bolsonarista nas patentes mais baixas. Tem ainda os chamados à intervenção militar, esse discurso de que os militares são a reserva moral da nação...
R. Não vejo nenhuma contaminação nas Forças Armadas, que eu conheço bem. [Sobre intervenção], você vê que isso não é coisa de militar, mas de civis, inclusive. A sociedade tem todos os tipos de preferência. E hoje, com a facilidade da mídia social, os grupos se expressam de maneira forte. A imprensa tradicional hoje compete com o WhatsApp...
P. Os soldados também leem redes sociais. Se ficam dizendo que vocês são a salvação, isso não pode ser um canto da sereia para algum grupo?
R. O importante é que a estrutura de liderança no Exército está muito em cima daqueles que têm poder de decisão. Essas pessoas têm cabeça no lugar, elas estão muito bem selecionadas e orientam a turma de baixo. Você pega hoje um tenente, um coronel, um sargento, e o pessoal é de alto nível. Sabe interpretar, o pessoal não cai no canto da sereia, é preparado. Tem uma missão constitucional. Mesmo um soldado que fica só um ano no Exército tem um plano de treinamento e percebe que aquela estrutura ali é sólida. Não é um canto [da sereia] de WhatsApp que vai desestabilizar as Forças Armadas. Não é assim, não.
“Você não pode ser militar quando interessa e não ser quando não interessa”
P. Vamos falar de outro corpo militarizado importante, as polícias militares. Como ex-secretário nacional de Segurança do Governo Temer, como o senhor vê o motim que aconteceu no Ceará?
R. Meu pai era da Polícia Militar, embora eu não o tenha conhecido, porque ele faleceu quando eu nasci. Tive um irmão, tenho muitos amigos na polícia. A Polícia Militar tem essa denominação porque tem as características militares: disciplina, hierarquia e dedicação, honestidade de propósito, respeito às autoridades. O comportamento que a gente está tendo não é de militar. Você teve um desvirtuamento em várias coisas. Você não pode ser militar quando interessa e não ser quando não interessa. Tem coisas como a greve, abandonar suas funções, deixar a população exposta sem segurança pública, colocar um capuz para fazer suas manifestações... Eu não posso vir aqui como militar e dar uma declaração para você de capuz. O que que é isso?
P. Não pode alvejar um senador...
R. Aí é briga. Você não pode jogar um trator em cima do pessoal. Eu não entro nessas brigas pessoais. A partir da hora em que você tem sensatez, há sensatez generalizada. Neste caso, chama a atenção a parte comportamental, fora da disciplina, estragar os veículos, sair encapuzado. Vai contra a hierarquia, a disciplina, contra tudo. Quem infringiu a lei que pague de acordo com a lei.
P. Nos bastidores, os governadores se queixam porque nem Bolsonaro nem o ministro Sergio Moro condenaram o motim claramente, como o senhor acaba de fazer. Faltou essa condenação?
R. O que falo aqui não tem reflexo como autoridade. Em compensação, o que o presidente e ministro falam têm uma importância muito grande… As polícias têm vários problemas. Não têm uma lei orgânica nacional que regule o sistema de promoção da mesma forma, a formação. Tem que ter, e aí os Estados seguem. O profissionalismo foi afetado porque hoje você tem polícias onde se trabalha um dia e se descansa três. Isso daí não é descanso. Nesses três dias, uma pessoa normal, com força para trabalhar, vai fazer outra coisa, não vai ficar três dias esperando o próximo turno. Tem que resolver esse regime de trabalho. O pacote de assistência ao policial não é só salário. A parte social das polícias, de saúde, o emocional. Você tem polícias com cinco vezes mais taxa de suicídio do que a média social. Uma coisa é você ter esse pacote de soluções, outra coisa é aceitar esse tipo de conduta.
P. Perguntava sobre a falta de condenação porque analistas também apontam eco dos discursos governistas na radicalização de grupos de policiais. O senhor diz que as Forças Armadas não caem no canto da sereia do WhatsApp. As polícias também não?
R. As polícias militares estão sofrendo um processo mais forte de politização. Não é de hoje. Por causa de sindicalização, por causa da participação em política local. As Forças Armadas têm uma estrutura diferente. Nos Estados, às vezes você pode ser promovido muito rapidamente. No Governo Federal não é assim, é um sistema mais fixo e a influência é menor. Isso é uma coisa que tem que se tratar dentro das polícias para que elas não sofram de politização excessiva.
P. O senhor é a favor de ampliar o excludente de ilicitude, como o presidente fala, por meio de uma mudança legal?
R. Acho que não. Você tem quatro excludentes de ilicitude. Legítima defesa, estado de necessidade, estrito cumprimento do dever legal e o exercício regular do direito. Isso já pega tudo. O problema está às vezes na interpretação da autoridade judiciária. É mais de interpretação da autoridade judiciária e do Ministério Público.
P. Quando o senhor fala da atuação no Haiti (2007-2009), faz ênfase na meta de evitar dano colateral. Quando o discurso é sobre o policial ou militar terem a certeza de que não vão ser punidos caso aconteça alguma coisa, não inverte essa lógica?
R. Eu sou a favor de aumentar o preparo. No Haiti porque o preparo do pessoal era muito forte. Para cada batalhão que ia, o Governo mandava alguns milhões para facilitar aquele treinamento. Eu participei de combate onde gastamos milhares de tiros e não teve nenhum dano colateral. De vez em quando ainda tinha mulheres saindo de casa no meio do tiroteio com criança e ninguém atirava, porque o cara está com reflexo treinado. Os policiais do Rio de Janeiro são uns herois. Os caras subindo naqueles lugares sem capacete... aquilo é uma guerra. Ele tem família também. Esse cara tem que ser super treinado, tem que receber o melhor equipamento do mundo. Ter Inteligência [por trás]. E não é só problema policial, você precisa ter medidas administrativas para melhorar a situação da população. A população só está na mão do bandido pela falta de Estado. Uma omissão histórica do Estado.
P. Essas operações aéreas nos morros do Rio de Janeiro... o que o senhor, que tem experiência nisso, acha?
R. Tem que ter muito cuidado. O tiro do helicóptero é um tiro muito problemático, porque a dificuldade de precisão é muito grande. Agora também você não pode achar que um sujeito com fuzil na mão não é uma ameaça. Esse cara é uma ameaça social para todo mundo. O problema do Rio de Janeiro não é policial. A corrupção começava no palácio de Governo. E isso vai dando o mau exemplo para baixo. Como ter uma polícia perfeita com a corrupção lá em cima? No Tribunal de Contas, na Assembleia Legislativa? Não é assim.
“Bandidinho vagabundo da internet”
P. A PF recentemente fez um relatório apontando que a mensagem atribuída ao senhor com ofensas ao presidente Bolsonaro foi forjada. O sr. já disse que pretende ir “até o fim” nesta investigação. O que significa?
R. Meu interesse é saber quem foi o falsário que fez isso, coisa de bandidinho vagabundo de Internet. É uma coisa que tem que ser combatida, não por minha causa —eu não tive prejuízo nenhum pessoal—, mas você não pode disseminar esse tipo de coisa na sociedade.
P. Ainda mais dentro do Palácio do Planalto.
R. Em lugar nenhum. Mas o que eu vou fazer prefiro não falar. Fui eu que solicitei à Polícia Federal [a análise das mensagens]. Aquilo não é só falso. Aquilo é medíocre, amador.
P. Bom, parece ter funcionado...
R. Não, acho que não. Porque a minha saída do Governo não tem nada a ver com isso. É aí que as pessoas confundem.
P. Então por que o senhor saiu do Governo?
R. Aí você tem que perguntar para o presidente. Ele que tem essa prerrogativa de convidar e dispensar. Nenhum governo no mundo começa e termina com o mesmo time de ministros. Quando eu fui trabalhar, era por um projeto. Você vai trabalhar porque você acha que pode ajudar. Não fui nem por status de ministro, que isso nunca me encantou. Onde eu cheguei ao máximo foi na minha profissão [no Exército]. Ministro é uma situação temporária. Nem é por necessidade financeira. Mas isso aí tem um limite, que é exatamente a decisão presidencial.
P. O senhor falou com o presidente depois da saída do Governo?
R. Não.
P. Voltaria a servir ao presidente?
R. Não, de jeito nenhum. Porque já tive minha chance. Nesse Brasil tem milhares de pessoas boas.
P. Em outras entrevistas o senhor já falou da influência de Carlos Bolsonaro…
R. Não falei especificamente dele. Eu evito falar de nomes, de pessoas. Tem gente que tem problema mental, tem gente que usa a Internet para terapia ocupacional, tem de tudo. Então hoje a gente tem que conviver com essa liberdade. Mas muita gente esqueceu que essa liberdade não elimina o Código Penal. Calúnia, injúria, difamação tudo isso continua valendo.
P. Se for comprovado que há pessoas do Palácio do Planalto envolvidas no caso contra o senhor, é um problema de Estado.
R. Aí é diferente. Se você tem pessoas em funções públicas, recebendo dinheiro público, é diferente. Mas tudo é coisa que precisa de comprovação. Estamos tratando de crime, não de política. Isso aí faz parte de um comportamento de milícia radical, de gangue de rua dentro do ambiente virtual. Satisfaz a um grupo de cães raivosos. Você percebe que é uma coisa montada, um comportamento de seita. Não significa nada.
P. O senhor falou em outra entrevista que via o Governo deixando de lado o combate à corrupção, que era uma bandeira de campanha. Por que o senhor acha isso?
R. Não falei que deixou de lado, falei que não pegou com a intensidade que poderia, já que era uma das grandes bandeiras.
P. O presidente deveria dar o exemplo no caso dos filhos dele, falando para abrir as portas para que eles sejam investigados? O Ministro do Turismo está denunciado, por exemplo. A denúncia já aconteceu, ele é réu.
R. Eu acho que a partir da hora que está sendo investigado, tem que esperar terminar a investigação. Seja contra quem for. (No caso do ministro), aí tem a promessa de campanha. Ele falou que se fosse denunciado, ele afastaria. Quando você não faz o que prometeu, tem que explicar por que não está fazendo. Mas aí é com o presidente, não vou entrar nessa..
“Não descarto concorrer”
Antes de trabalhar no Governo Bolsonaro, Santos Cruz já havia assumido a chefia de assuntos militares da Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) no Governo Dilma. Foi também secretário nacional de Segurança Pública sob Temer. Nas últimas semanas, ele tem se movimentado para criar canais diretos de comunicação com a população. Além do Twitter, tem agora um canal no YouTube.
Pergunta. O senhor fala com desenvoltura de política. Li que tem convites de vários partidos. Vai disputar as eleições? Descarta concorrer em 2022?
Resposta. Não descarto, mas não pensei ainda em nenhuma vertente política.
P. Como se definiria ideologicamente? Direita? Centro-direita?
R. Ideologicamente eu sou um clássico elemento de direita. Sou contra filosofia comunista, conheço os efeitos do socialismo tupiniquim demagógico. Sou contra extremismo. Sou contra essa divisão social de direita e esquerda, ter que estar em um extremo ou outro. A população brasileira quer equilíbrio. Nossa característica principal é de levar a vida. Não de levar a vida brigando.
P. O senhor já criticou o alinhamento automático do Brasil com os Estados Unidos em política externa. Quais custos podemos ter em termos de defesa?
R. Qualquer alinhamento automático não é bom, por filosofia. Você não pode se alinhar automaticamente com outro país, seja China ou Estados Unidos. O Governo pegou uma vertente muito forte pro lado dos Estados Unidos e isso não é bom. Você tem que analisar e não pode ter um comportamento ideológico, porque ele direciona você de tal forma que perde a capacidade de análise.
P. Na discussão atual, o que se sabe por uma reportagem da Folha, é que os americanos dizem que se o Brasil aceitar a empresa chinesa no leilão do 5G, o compartilhamento de tecnologia em defesa ficará comprometido.
R. Sim, mas você tem outras tecnologias de defesa que não só a americana. Isso é um jogo comercial, de política internacional. Eles não querem porque os chineses estão em um estado bem avançado de 5G. E o Brasil é um dos grandes mercados. Existem mecanismos para você fazer um cálculo, ver o que vale a pena e interessa estrategicamente, comercial e politicamente.
P. O Brasil historicamente mediou conflitos na região. O senhor acha que o Brasil perdeu, com o alinhamento automático aos Estados Unidos, uma capacidade de mediar, por exemplo, na Venezuela?
R. O Brasil não rompeu relações diplomáticas com a Venezuela. Teve um reconhecimento daquele [Juan] Guaidó... o Guaidó nem se confirmou como uma figura importante no cenário, né? Mas de qualquer jeito tem aqui uma embaixadora do Guaidó. Não se deve fechar portas e temos canais abertos.
P. Quais os maiores riscos para o Brasil no cenário internacional?
R. Não vejo o Brasil com grandes riscos internacionais. Vejo coisas internamente a que o Brasil precisa se dedicar muito, que é o combate à corrupção e à redução da desigualdade social. No preto no branco, a desigualdade social é uma dos fatores que mais agride o Brasil.
P. O senhor acha que falta essa menção à desigualdade no discurso do Governo?
R. Há algumas iniciativas, mas ainda é pouco. Você tem que ter um plano muito mais forte para reduzir a desigualdade. É um negócio muito sério. O Brasil tem supersalários inaceitáveis. Se você é centro-avante do Flamengo e ganha 500.000 o problema é teu. Paga imposto de renda e está tudo bem. O problema é quando é dinheiro público. Tem salários fantásticos, inimagináveis. Enquanto na base você tem discrepâncias muito grandes, que tem de ser reduzidas.
P. O senhor acha o PCC uma ameaça à soberania, já que agora eles dominam alguns pontos de fronteira no Paraguai?
R. Sem dúvida nenhuma. Tem que ser combatido. Começa a ter muito dinheiro e a querer financiar a política. Existiam boatos até deles financiarem os estudos de pessoas para serem juízes e promotores no futuro. Precisa investigar para ver se é verdade porque se não você daqui a pouco tem gente dentro do sistema, onde advogado, ao invés de ser advogado, é um membro da facção. Em São Paulo tiveram até que prender 25, 30 advogados porque não estavam fazendo um trabalho normal. O crime organizado pode entrar no financiamento de campanha em cidades pequenas na fronteira. O aparato policial precisa ser muito técnico para combater.
P. Para encerrar, quero falar da relação militares e civis na democracia. Hoje em dia existe uma preocupação de que essa exaltação do golpe de 64 ainda aconteça dentro dos quartéis...
R. O problema não é esse. O problema é tentar transferir para a realidade atual. Atualmente não tem sentido você imaginar. Naquela época teve. Era outro contexto.
P. O governo Temer quebrou a tradição, que vinha desde o governo de FHC, de nomear um civil para a Defesa. O senhor acha que precisa ser um militar ?
R. Civil ou militar, o importante é escolher bem. Não pode ter desconfiança [com civil no comando]. Isso se chama atraso. Você não pode criar desconfiança entre um e outro. Isso é mediocridade. Estimular briga, desconfiança entre civil e militar, falar que o Congresso não presta... Isso é loucura. Acho que os militares interferiram corretamente em 1964, mas isso é um posicionamento histórico. Não é porque eu acho isso que eu vou achar que agora tem cabimento. Não, não tem cabimento. Agora não tem conexão nenhuma com a realidade. Fica mais na paixão do que na realidade. Não tem esse negócio de que nós somos a salvação da pátria. A salvação da pátria é todo mundo.
Ricardo Noblat: Recado do general Santos Cruz aos seus colegas e a quem interesse
Sobre o papel do Exército
Ex-chefe da Secretaria de Governo da presidência da República, demitido por Jair Bolsonaro a pedido dos seus filhos, o general Carlos Alberto dos Santos Cruz, criticou, ontem, o uso do Exército para uma convocação de atos de rua contra o Congresso.
Circula nas redes sociais de bolsonaristas um cartaz com a foto de quatro militares do governo e a frase: “Fora Maia e Alcolumbre”. Maia é Rodrigo (DEM-RJ), presidente da Câmara dos Deputados. Alcolumbre, David (DEM-AP), o presidente do Senado.
Embaixo da foto, onde aparecem, entre outros, os generais Hamilton Mourão, o vice, e Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional, está escrito: “Vamos às ruas em massa. Os generais aguardam as ordens do povo”.
Como os retratados e ninguém pelo Exército se pronunciaram sobre o cartaz assinado pelos Movimentos Patriotas e Conservadores do Brasil”, Santos Cruz decidiu fazê-lo. E ensinou na sua conta no Twitter a quem interessar, possa:
“IRRESPONSABILIDADE
Exército Brasileiro – instituição de Estado, defesa da pátria e garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem. Confundir o Exército com alguns assuntos temporários de governo, partidos políticos e pessoas é usar de má fé, mentir, enganar a população.”
Duas horas depois, trocou a mensagem anterior por esta:
MONTAGEM IRRESPONSÁVEL
Exército – instituição de Estado, defesa da pátria e garantia dos poderes constitucionais, da lei e da ordem. Não confundir o Exército com alguns assuntos temporários. O uso de imagens de generais é grotesco. Manifestações dentro da lei são válidas.”
O que se passou entre uma mensagem e outra, só Santos Cruz sabe.
Moro, um ministro e aplicado leitor do Manual da Pós-Verdade
Enquadrar Lula na Lei de Segurança Nacional foi só “uma confusão”
Ensina o Manual da Pós-Verdade no artigo 22º (ou no 48º, ou no 101º ou em outro qualquer): se lhe atribuem algo prejudicial que disse ou que fez, negue. Não importa que tenha dito ou feito. Simplesmente negue e seja enfático ao negar. Se de todo, porém, for impossível, diga que foi mal interpretado ou que retiraram de contexto o que disse.
O ministro Sérgio Moro, da Justiça e da Segurança Pública, é um leitor aplicado do manual desde que largou a toga para servir ao presidente Jair Bolsonaro. Como juiz, já era um bom leitor. Mas como poucos, fora os eventuais acusados por crimes, ousavam contestar seu comportamento e suas decisões à época, não precisou valer-se do manual com assiduidade.
Seu atual chefe, não. É um caso especial. Bolsonaro enriquece o manual diariamente com pensamentos, palavras e obras, e por sua culpa, sua máxima e exclusiva culpa. O ministro Paulo Guedes, da Economia, está no estágio incial: aprende mais com o manual do que se aproveita dele. Moro não pode se queixar: aprende célere e sua popularidade segue intacta.
Ante o estupor do mundo jurídico ao saber que ele invocara um artigo da Lei da Segurança Nacional, antigo instrumento da ditadura militar de 64, para mandar investigar declarações ofensivas feitas por Lula contra Bolsonaro, Moro acabou recuando. Recuando, não. Disse que não invocara a lei e que tudo não passara de “confusão”. Jogou a culpa no seu ministério.
Vamos aos fatos. Em 11 de novembro último, Lula disse, entre outras coisas, que o Brasil não poderia ser governado por um presidente miliciano ou a eles ligado. No dia 22, Moro pediu à Polícia Federal a abertura de inquérito para apurar se o que dissera Lula poderia configurar crime contra a honra de Bolsonaro. “Em especial”, escreveu Moro, Lula havia caluniado o presidente.
No dia 26, “considerando” o pedido de Moro, o inquérito foi aberto “para apurar possível ocorrência do delito de calúnia/difamação previsto no artigo 26 da lei 7170/83”, informou a Polícia Federal. A dita ganhou o nome de Lei da Segurança Nacional ao ser baixada em dezembro de 1983 pelo último presidente do ciclo de generais da ditadura, João Batista Figueiredo.
Um instrumento tão infame, usado para perseguir, calar e encarcerar os que lutavam pela liberdade, continua em vigor, embora os governos da redemocratização para cá evitem acioná-la. Se, como insiste em dizer Moro, ele não a acionou, ficou sabendo que a Polícia Federal a acionara, sim. Poderia ter dito então: “Por aí, não”. Não disse. Preferiu o silêncio.
No último dia 19, após Lula ter sido ouvido pela Polícia Federal, o Ministério da Justiça, em nota, informou que a fala dele contra Bolsonaro “pode ter configurado os crimes previstos no artigo 138 do Código Penal e no artigo 26 da Lei de Segurança Nacional”. Ambos tratam de crimes de calúnia e difamação. Moro levou 10 dias para só agora dizer que foi tudo uma confusão.
Na semana passada, finalmente, o inquérito foi enviado à Justiça. Segundo a Polícia Federal, não faz menção à Lei de Segurança Nacional. O que concluiu o inquérito? A saber-se mais adiante. O que concluir do desempenho de Moro no caso? Ora, concluam o que quiserem. Moro está numa boa. Foi a Fortaleza e voltou de lá dizendo que não viu desordens. Tributo ao manual.
Folha de S. Paulo: General ex-ministro de Bolsonaro diz que 'fritura política é negócio de gente desqualificada'
Santos Cruz evita responsabilizar o presidente por sua saída do governo e defende ministro Moro
Ricardo Della Coletta, da FolhaEduardo Militão, do UOL
O general Carlos Alberto dos Santos Cruz, ex-ministro da Secretaria de Governo, afirma que sofreu uma situação de fritura política que culminou com sua saída do governo, em junho de 2019. Para ele, esse tipo de processo é coisa de “de gente desqualificada” e da “escória da política”.
“É um processo de que participam pessoas que não têm qualidade nenhuma, moral e profissional. Para você demitir um ministro, ou qualquer pessoa em função de confiança, é só conversar e mais nada”, disse o ex-ministro, durante programa de entrevistas da Folha e do UOL, em estúdio compartilhado em Brasília.
Apesar das declarações, ele evitou responsabilizar ou criticar diretamente o presidente Jair Bolsonaro e disse não considerar que o mandatário tenha tentado submeter o ministro Sergio Moro (Justiça) a rito de desgaste semelhante.
Fritura política
Eu até fico constrangido de falar desse negócio de fritura política. Acho isso um negócio de gente desqualificada, é coisa da escória da política. O político que se comporta fritando outros é gente desqualificada.
Alvo de fritura
Nunca me afetou emocionalmente e não dou bola para isso. Mas acredito que sim, houve esse processo. É um processo de que participam pessoas que não têm qualidade nenhuma, moral e profissional. Para você demitir um ministro, ou qualquer pessoa em função de confiança, é só conversar e mais nada. Você não precisa desse processo. Para compensar a covardia de não querer falar com a pessoa, você vai criar mil situações para constranger. Para mim, não cola.
Bolsonaro x Moro
Não, posso até considerar que ele está fazendo um erro político. O Sergio Moro é um ícone, uma pessoa que liderou uma virada contra a corrupção histórica no Brasil. A Lava Jato, com Sergio Moro à frente, se tornou uma coisa que vai ficar para sempre.
Outra coisa é que ele [Moro] é uma pessoa com prestígio fantástico na sociedade brasileira. Qualquer modificação nas [suas] atribuições vai ter um custo político muito alto. É uma pessoa que inspira seriedade, firmeza e valores que são necessários. Para mexer nisso, você tem que pensar muito bem.
Em catástrofes no mundo inteiro as Forças Armadas participam. Queimadas, grandes incêndios, enchentes, furacões... Então a participação dos militares na Amazônia [durante as queimadas] foi absolutamente dentro da normalidade.
O caso do INSS é administrativo e não tem nada a ver com catástrofe. Você tem dentro do INSS pessoas que podem resolver a questão. Você pode convocar ex-funcionários do INSS que conhecem o sistema, pode terceirizar, fazer concurso, uma série de coisas.
Basicamente tem que ouvir e valorizar o INSS. Você vai ter que treinar os militares, [porque] eles não são treinados para isso. Não vejo o militar como solução para tudo.
Avaliação do governo
Hoje eu torço para que dê certo. Qualquer governo faz coisas boas e ruins. Eu vejo o governo como absolutamente normal em termos de resultado, não é nada espetacular. Talvez as expectativas hoje sejam bem maiores do que a realidade: teve um crescimento de PIB, uma redução pequena de desemprego.
Os resultados não são fantásticos, absolutamente normais. A gente vê que tem uma expectativa positiva para a frente, isso é bom em termos emocionais. Vai ter que esperar essa coisa se concretizar ou não.
Ambiente político
O ambiente politicamente não é bom. Um governo tem que transmitir tranquilidade, união, um ambiente de trabalho onde as pessoas possam esperar com tranquilidade o desenvolvimento da sociedade. Não no tumulto de todo dia você ter uma intoxicação enorme de fake news e de grupos ideológicos espalhando conflitos. Não se pode viver num estado permanente pré-eleitoral.
Verba da Secom
Essa distribuição tem que ser feita com bastante critério. Se você for colocar preferências políticas e ideológicas, você pode ter problema. Eu sou absolutamente contra posicionamentos ideológicos e preferenciais por questões políticas, seja para A ou para B, em termos de comunicação.
Caso Fabio Wajgarten
Isso tem que ser analisado, em primeiro lugar, pela Comissão de Ética [da Presidência]. Precisa ser analisado do ponto de vista jurídico e para isso tem a SAJ [Subchefia para Assuntos Jurídicos] para verificar, além da CGU [Controladoria-Geral da União] e TCU [Tribunal de Contas da União]. Tem que verificar do ponto de vista legal.
Relacionamento Brasil-EUA
Em qualquer situação, sempre quem perde é quem que se alinha automaticamente. Os EUA são um país que tem a liderança mundial em muitas coisas. Um país que nós temos muitas ligações culturais, mas a política americana é baseada nos interesses dos EUA. Com razão. Ser alinhado automaticamente não significa que você vai ter peso na condução da política americana.
Voto do Brasil a favor do embargo a Cuba
Quando ocorreu o voto contra o embargo [americano a Cuba], o Brasil quebrou uma tradição [de 27 anos]. Você votava [contra o embargo] não por causa de alinhamento ideológico, mas por princípios de não se tomar esse tipo de medida seja contra quem for.
Era um posicionamento que se tinha e que foi quebrado. Um posicionamento quebrado por só três países [EUA, Brasil e Israel]. É pouco, nós temos aí quase 200 países. E quando você tem só três tomando uma direção é porque tem alguma coisa que precisa ser considerada.
Grupo ideológico no governo
O presidente Bolsonaro foi eleito por um grupo de pessoas que simpatiza com ele; por um pequeno grupo altamente ideológico, que faz um escândalo muito grande, e por uma grande massa movida pelo sentimento anti-PT.
Após a eleição, toda essa massa anti-PT e todos os que são simpatizantes da maneira de ser do presidente querem resultados de governo. O grupo ideológico, que é muito pequeno, continuou com uma influência muito grande. Ele se comporta como se fosse haver uma eleição na semana que vem.
Bolsonaro e PT
Quem é que mantém o perdedor [das eleições] na primeira página da mídia desde desde aquela época? É o PT ou foi o vencedor [das eleições]? É uma insensatez. Aquele grupo perdeu, ele espera e se candidata na próxima [vez]. É normal. Agora eles têm que esperar, se reorganizar e mudar o discurso.
Mas quem é que mantém a chama acesa daquele grupo ali [oposição]? Eu acho que é um grupo, não é só ele [Bolsonaro]. É um grupo exacerbado e ideológico, que mantém o perdedor na mídia. Na realidade, o perdedor está se beneficiando de toda essa insensatez.
Carlos Alberto dos Santos Cruz, 67
General da reserva do Exército, foi ministro da Secretaria de Governo até junho de 2019. Foi secretário de Segurança Pública do Ministério da Justiça durante a administração Temer. Comandou as tropas da ONU nas missões para estabilização do Haiti e da República Democrática do Congo.
O Estado de S. Paulo: Governo Bolsonaro ainda não tem plano de comunicação
Perto de completar 2 meses, gestão segue sem uma estratégia definida de divulgação; chefe da Secom dedicou maior parte da agenda para discutir EBC
Felipe Frazão, de O Estado de S.Paulo
BRASÍLIA - Quase dois meses depois de tomar posse, o presidente Jair Bolsonaro ainda não tem uma estratégia desenhada para a comunicação do governo. O problema ficou evidente há 11 dias, quando uma reunião da Secretaria de Comunicação Social da Presidência (Secom) com todas as repartições federais – incluindo equipes de ministérios, empresas estatais e entidades vinculadas – foi encerrada sem a apresentação das diretrizes para a divulgação das realizações de cada área. O motivo alegado foi o de que o plano não estava pronto.
Bolsonaro tem sido criticado por aliados e até por integrantes de seu partido, o PSL, por adotar tom de campanha nos pronunciamentos. No Congresso, é comum ouvir que o presidente ainda não desceu do palanque. É geral a avaliação de que a falta de um plano de comunicação ajuda a esconder eventuais realizações do governo, enquanto a agenda da crise se sobressai – como a que culminou, na semana passada, com a demissão do ministro da Secretaria-Geral, Gustavo Bebianno.
O receio de auxiliares de Bolsonaro é de que as turbulências na política respinguem nas negociações com o Congresso em torno da proposta de reforma da Previdência.
A reunião da Secom, no dia 14, vinha sendo tratada como o “1.º encontro sobre comunicação global” do Sistema de Comunicação de Governo do Poder Executivo Federal. O sistema reúne o conjunto de equipes de comunicação dos órgãos que compõem a administração pública federal. O evento lotou o auditório do prédio anexo no Palácio do Planalto.
Foram convocadas para o encontro as equipes de todos os ministérios, de empresas públicas, autarquias e fundações e demais órgãos federais. Houve envolvimento da cúpula da Secom com os responsáveis pelos setores de Imprensa, Pesquisa e Opinião Pública, Gestão e Controle, Publicidade e Promoção, Patrocínios, Eventos, Articulação e também pela Empresa Brasil de Comunicação (EBC).
Os assessores se apresentaram, trocaram contatos e ouviram discursos do ministro da Secretaria de Governo, general Carlos Alberto dos Santos Cruz, que abriu a reunião, depois presidida pelo chefe da Secom, Floriano Barbosa de Amorim Neto, publicitário de confiança do presidente e ex-assessor parlamentar do clã Bolsonaro.
Ao final, os participantes também puderam levantar dúvidas e sugestões. O principal recado do Palácio do Planalto foi o de que é preciso cortar despesas, mas a reunião transcorreu sem que fosse apresentada a linha de comunicação a ser trabalhada pelo governo.
O Estado conversou com cinco pessoas que estiveram no encontro. Todas disseram que Amorim chegou a anunciar que apresentaria um plano na reunião. Mesmo assim, passou pelo constrangimento de dizer que ele não ficara pronto a tempo. A reportagem pediu detalhes da reunião à Secom, mas não obteve resposta.
Bolsonaro privilegia comunicação por redes sociais
Desde a campanha eleitoral, Bolsonaro tem privilegiado a comunicação pelas redes sociais, e, para tanto, tem o apoio dos três filhos: o vereador Carlos (PSC-RJ), o deputado federal Eduardo (PSL-SP) e o senador Flávio (PSL-RJ). Ativo nas redes, Carlos é apontado como o responsável por mensagens postadas nas contas do pai.
Na semana passada, o ministro demitido Gustavo Bebianno deixou vazar áudio de uma conversa privada em que Bolsonaro trata a TV Globo como “inimiga” e diz não falar com jornalistas. No Planalto, o próprio chefe da Secom não costuma atender a imprensa.
Ministro da Secretaria de Governo, o general Santos Cruz disse na reunião da Secom que a ordem é otimizar recursos e unificar o discurso governamental, mas não deu detalhes sobre o que será feito.
Amorim também não falou em estratégia. Até agora, ele tem dedicado sua agenda a discussões internas no governo. Recentemente, recebeu apenas representantes do Google e do Twitter, além de autoridades públicas e a deputada Bia Kicis (PSL-DF). Boa parte da agenda do chefe da Secom tem sido dedicada a discutir o futuro da EBC. A interlocução com veículos de imprensa vem sendo feita por ministros, como Santos Cruz, e outros secretários.
Em administrações anteriores, as reuniões da Secom eram usadas para apresentar o planejamento de comunicação do governo, alinhar estratégias, definir temas relevantes e mídias prioritárias, além de estabelecer a coordenação de ações conjuntas entre ministérios, instituições vinculadas, empresas estatais e a Presidência.
Falta de pessoal e equipes reduzidas provocam reclamações
No encontro do dia 14, foram dados exemplos de como todos os ministérios podem fazer a defesa da reforma da Previdência – que tem uma campanha publicitária específica, para a qual foi contratado o marqueteiro Daniel Braga. Houve, ainda, quem reclamasse da falta de pessoal nas assessorias, uma vez que muitos ministérios estão com equipes reduzidas desde que Bolsonaro tomou posse.
É o caso de Meio Ambiente, Defesa e Cidadania – a pasta que acumulou atribuições de três ministérios (Desenvolvimento Social, Esporte e Cultura) e tem o contrato em processo de licitação.
Contratos da Secretaria de Comunicação estão sob avaliaçãoApesar da ordem de corte de gastos, não houve até agora o detalhamento de quais contratos da área de comunicação do governo serão extintos, mantidos ou alterados. O assunto vem sendo tratado com reserva pelo ministro Santos Cruz e pelo chefe da Secom, Floriano Barbosa de Amorim. Em todo o Executivo, os acordos com agências de publicidade somam R$ 3,1 bilhões.
Santos Cruz disse ao Estado, em janeiro, que pretendia rever contratos de R$ 400 milhões apenas na Secom. Na época, ele admitiu preocupação com o marketing do governo, para que ele não se transformasse em uma forma de “expansão de ideologia”.
Os ministérios, empresas e demais órgãos possuem, hoje, negociações independentes para a área de comunicação. Na Secom, dois contratos de comunicação com a TV1 e a AgênciaClick, que incluem produção de vídeos, administração de sites e redes sociais e produção de conteúdo, com valor de R$ 90 milhões, vencem em 6 de março. A continuidade deles é incerta.
Uma das ideias em estudo na Secretaria de Imprensa é acabar com a divisão no atendimento a jornalistas. As áreas de imprensa nacional, regional e internacional seriam unificadas em uma equipe só, reduzida.
Um contrato de R$ 30 milhões para relações públicas com a imprensa internacional, firmado com a empresa CDN, foi encerrado em janeiro.
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