salvador allende

George Gurgel: Chile, 11 de setembro de 1973

O Golpe militar, que culminou com o atentado terrorista ao Palácio de La Moneda, residência oficial do governo chileno, é um dos mais trágicos acontecimentos da vida política latino-americana, no século XX.

O socialista Salvador Allende, eleito democraticamente em 1970, é golpeado pelas forças mais conservadoras da sociedade chilena, apoiadas, como na maioria dos golpes militares acontecidos na América Latina no século XX, pelo governo norte-americano. Refletia as disputas entre EUA e a URSS, em plena Guerra Fria, pela hegemonia política internacional e regional.

O Chile, com a Unidade Popular e a liderança de Salvador Allende, era a possibilidade de construção de uma sociedade socialista, democrática, via eleições , em sintonia com os anseios da maioria da população, respeitando a Constituição e a pluralidade política e social do país.

A vitória eleitoral da Unidade Popular, em 1970, trouxe otimismo e grandes expectativas na América Latina, e em toda parte. O Chile estava cercado de ditaduras, inclusive a brasileira, onde os militares, depois de derrotar a luta armada, voltavam-se contra o Partido Comunista, de maneira seletiva e cruel: prendendo, torturando e matando muitas das lideranças do PCB que ficaram no Brasil, lutando pela democracia.

Eram tempos difíceis, de perseguições, torturas e mortes. As ditaduras militares davam a tônica da vida política, econômica e social do continente.

Salvador Allende e a Unidade Popular, por tudo que representavam, eram a esperança de dias melhores, de um processo político, econômico e social que nos levasse às transformações almejadas pelos chilenos e latino-americanos, por uma sociedade mais justa e fraterna em toda a América Latina.

Das altitudes andinas vinham as boas novas. O sonho podia ser realizado.

A vitória de Salvador Allende colocava uma nova perspectiva política: a relação entre socialismo e democracia, via eleições, era possível.

Nesta época, tinha eu 16 anos, vivia em Salvador. Estudava e fazia política estudantil contra a ditadura brasileira. As notícias da Unidade Popular e a eleição de Allende nos animavam e, com as poucas informações que tínhamos, íamos nos enchendo de esperanças, com o caminho trilhado pelos chilenos.

O mundo olhava para o Chile, país que nos trazia otimismo e nos alentava na luta contra a ditadura no Brasil, apontando caminhos e possibilidades de mudanças para toda a América Latina.

A notícia do Golpe, em 11 de setembro de 1973, foi muito dura.

Os setores conservadores da sociedade chilena, apoiados pelas ditaduras latino-americanas, inclusive a brasileira e os EUA, derrotaram politicamente, economicamente e militarmente a Unidade Popular e a esperança de construção de uma sociedade socialista democrática no Chile.

O ataque das forças militares golpistas ao La Moneda, anunciava a razzia fascista que viria contra a Unidad Popular e a democracia chilena.

Instalou-se o terror como política de Estado.

Prisões, torturas e mortes de milhares de pessoas começou a fazer parte do dia a dia da sociedade chilena.

O Chile virou uma grande prisão. O Estádio Nacional foi uma delas. A repressão desencadeada pelos militares e a necessidade de milhares de chilenos e estrangeiros, inclusive brasileiros, de saírem clandestinos do país deram a tônica, desde o início, do que seria o regime militar que ali se instalou, com a chegada do ditador Pinochet ao poder. O regime se estendeu, por muitos anos, até 1990.

Durante o período da ditadura pinochetista, milhares de pessoas foram presas, torturadas e mortas pelo regime militar. A diáspora chilena, provocada pela ditadura de Pinochet, é conhecida. Milhares de trabalhadores, lideranças políticas, sindicais e intelectuais deixaram o Chile.

Foram para onde puderam ir. A Europa recebeu muitos deles.

Conheci muitos companheiros chilenos, quando cheguei a Moscou, em 1975.

Na URSS e nos países socialistas, inclusive Cuba, foram acolhidos milhares de chilenos.

Na capital soviética, na Universidade da Amizade dos Povos Patrice Lumumba, eram centenas. Convivemos e fizemos amizade com muitos deles.

A cooperação e a solidariedade eram a tônica entre nós, estudantes latino-americanos.

Em Moscou, o nosso trabalho político era de denúncia da situação do Chile, do Brasil e de outras ditaduras latino-americanas.

Luis Corvalan, secretário geral do Partido Comunista do Chile, entre outras lideranças políticas chilenas, era exilado em Moscou.

Aprendemos muito sobre a realidade latino-americana, nesta rica e fraterna convivência com homens e mulheres advindos da pátria de Pablo Neruda, no dia a dia da nossa Universidade e no Instituto da América Latina, assim como da Academia de Ciências da União Soviética.

A solidariedade era vermelha.

O longo período das ditaduras chilena, brasileira e outras da América Latina desafiou e continua desafiando a luta e a valorização da democracia e a unidade das forças democráticas, como fundamentos de transformação e de superação dos desafios históricos e atuais do continente, explicitados de maneira contundente, nestes tempos de pandemia e de chefes de governos imprevisíveis como Jair Bolsonaro e Donald Trump, na perspectiva de uma alternativa democrática que nos leve à sustentabilidade econômica, social e ambiental, em cada um dos nossos países.

A questão democrática continua na ordem do dia de cada um de nós, da cidadania latino-americana.

Ditadura nunca mais!

*George Gurgel, professor da Universidade Federal da Bahia


Alberto Aggio: Chile, da revolução à democracia

Uma coluna de fumaça espessa e escura levantou-se na área central de Santiago do Chile na manhã de uma terça-feira, 11 de setembro de 1973. Era um estranho acontecimento. Não parecia um incêndio qualquer, mas algo mais grave e ameaçador, especialmente porque minutos antes foi possível ouvir o ruído dos caças da Força Aérea do Chile em voos rasantes sobre o centro da cidade, onde fica o Palácio La Moneda. O que ocorria não era fortuito.

O governo do socialista Salvador Allende chegava ao fim com seu suicídio no interior do palácio, que estava sendo bombardeado. O golpe militar e o regime autoritário que se instaurou em seguida alterariam profundamente a história contemporânea do Chile. Foi derrubado não apenas o governo da Unidade Popular (UP), que Allende encabeçava, mas suprimida a democracia em todos os aspectos da sociedade chilena.

O presidente deposto, que assumira o mandato em novembro de 1970, queria construir o socialismo por meio de mecanismos democráticos. Através de decretos do Executivo, Allende realizava estatizações e, em alguns momentos, procurou também fazer alianças no Parlamento com a Democracia Cristã (DC), um partido considerado de centro. Para ele e parte importante da esquerda de então, socialismo significava poder popular e estatização. Mas havia vertentes da esquerda que se opunham às vias institucionais. Fortemente influenciados pela Revolução Cubana, amplos setores da UP e do Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR) procuraram acirrar as contradições. Queriam acelerar as mudanças, pressionando o governo. As bases sociais mobilizadas por esses setores buscavam resolver a chamada “questão do poder” para implantar mais rapidamente o socialismo.

As diferenças de estratégias e condutas no interior da esquerda afetavam o ambiente político, que cada vez mais se polarizava com a radicalização de ações da direita em oposição ao governo Allende. A falta de consenso dentro da esquerda fez com que a “via chilena ao socialismo” permanecesse apenas como um slogan, o que bloqueou a sua real transformação numa “via democrática ao socialismo”, inédita na história. Era notório que o governo buscava realizar uma revolução feita por mecanismos legais do Estado, mas por meio dela pretendia implantar um socialismo equivalente ao que existia na União Soviética, na China ou em Cuba. A espiral crescente das contradições condenou a liderança de Allende como “disfuncional”, uma vez que o presidente nunca advogou a ruptura institucional, mas também não parecia ter completo controle do processo político. O resultado foi uma polarização catastrófica e o advento do golpe que colocou por terra o governo Allende.

Desfecho
Esse desfecho obviamente não estava estabelecido de antemão, mas acabou por comprovar que aquela proposta de revolução era impossível, ao menos no Chile da época. Salvador Allende e a UP concebiam a revolução e o socialismo a partir da cultura política convencional que predominava na esquerda latino-americana e mundial, com raízes marxistas, bolcheviques, maoístas e, mais tarde, guevaristas e castristas. Tais linhagens têm como referência a revolução como tomada de poder de Estado pela via armada, por insurreição ou guerrilhas. Essa cultura política revelou-se incapaz de enfrentar o ineditismo do processo, demonstrando que não estava amadurecido na esquerda chilena o significado e as implicações da adoção de uma via democrática ao socialismo. Por isso, o governo Allende não pode ser interpretado como o exemplo histórico da impossibilidade desta transição ao socialismo. A chamada “experiência chilena” apenas anunciou esta possibilidade, mas fracassou inapelavelmente.

Personificado no general Augusto Pinochet (1915-2006), a partir de 1973, o novo regime assumiu uma perspectiva fundacional — com a intenção de fundar um novo regime, e não de restaurar a democracia — e impôs ao país uma nova ordem econômica, social e política. Para isto, contou com um aparato repressivo que perseguiu, torturou e assassinou quem era considerado opositor. Em seus primeiros momentos, a ditadura procurou encarnar o inverso dos anseios revolucionários da UP. Paradoxalmente, foi a partir de sua negação que os chilenos vieram a conhecer, de fato, o significado da palavra revolução. Tratava-se agora de uma contrarrevolução: havia metas de transformação radical a serem alcançadas, e não prazos. Em analogia ao “socialismo real” (da URSS e do Leste europeu), o que se estabeleceu no Chile foi uma espécie de “liberalismo real”: um capitalismo quase sem regulações, apoiado num Estado autoritário sustentado por mecanismos institucionais conservadores.

O regime autoritário, que se estenderia até 1990, não foi um “parêntese” na história do Chile. Nesse período, a privatização de empresas, serviços de saúde e previdência, além da abertura comercial, do estímulo às exportações e da supressão do controle de preços redefiniram as estruturas da sociedade. O regime Pinochet transformou-se no show case dos neoliberais de todo o mundo. Até então, o neoliberalismo não havia sido implementado integralmente em nenhum país. O Chile foi, portanto, anterior à Inglaterra de Margareth Thatcher e aos Estados Unidos de Ronald Reagan. Para os ideólogos do regime, tratou-se de uma “revolução silenciosa”, cujo resultado mudaria os valores da sociedade, tornando-a mais individualista, consumista e despolitizada, ou seja, anulando traços distintivos da cultura política anterior. O reconhecimento dessa mudança profunda iria cobrar o seu preço no momento de superação do autoritarismo.

As tentativas de derrubar a ditadura por via armada fracassaram. As ações armadas, inclusive contra o próprio Pinochet, e as rebeliões populares (las protestas) que eclodiram entre 1983 e 1986, pensadas como possível embrião de uma insurreição de massas, revelaram-se impotentes. A batalha decisiva contra a ditadura viria de onde menos se cogitava. A Constituição de 1980, outorgada por Pinochet por meio de um referendo inteiramente controlado, previa a realização, em 1988, de um plebiscito para estabelecer mais um mandato de oito anos para o ditador. Foi em torno da ideia de politizar o plebiscito, negando esse novo mandato, que se vislumbrou a possibilidade de derrotar a ditadura.

Vitória do "No"
A surpreendente vitória eleitoral do Comando por el No, que dizia “não” ao governo Pinochet, em outubro de 1988, abriu o processo de transição à democracia. O resultado do plebiscito foi de 56% dos votos válidos pelo “Não” contra 44% pelo “Sim”. Os partidos políticos puderam se reorganizar e a oposição a Pinochet, com exceção do Partido Comunista, criou a Concertación de los Partidos por la Democracia, numa tentativa de manter-se unida para a eleição presidencial prevista para o ano seguinte. Mas Pinochet, presidente da República e chefe das Forças Armadas, forçou um pacto com a oposição em torno de reformas constitucionais. Este pacto redundou em um referendo, realizado em julho de 1989, para sancionar as reformas da Constituição de 1980 acordadas entre os principais atores políticos legalizados. Nesse ponto, a submissão da transição democrática à “política do autoritarismo” ficou evidente. O referendo sancionou o que ficou conhecido como enclaves autoritarios: normas concebidas para bloquear, sem transgredir a legalidade, qualquer iniciativa reformista que se propusesse a desmontar a arquitetura básica do ordenamento jurídico-constitucional da ditadura.

A derrota eleitoral sofrida por Pinochet em 1988 converteu-se, portanto, numa vitória política estratégica em 1989, uma vez que se aprovaram apenas reformas superficiais na Constituição de 1980. A transição, contudo, seguiria em marcha. No início da década de 1990, os espaços políticos se democratizam e a disputa se concentra em dois polos: a Concertación, agregando os partidos de centro-esquerda — como o Partido Socialista e a DC — e a Alianza por Chile, articulando as forças de direita e neoliberais — como a Renovação Nacional (RN) e a União Democrática Independente (UDI).

Em relação às outras transições para a democracia no continente latino-americano, o Chile viveu dois aspectos peculiares: não herdou nenhuma crise econômica do regime anterior e conseguiu eleger sucessivamente quatro presidentes pertencentes à mesma coalizão política que havia derrotado a ditadura. A partir de 1990, governaram o Chile Patricio Aylwin, Eduardo Frei, Ricardo Lagos e Michele Bachelet. Os governos da Concertación conduziram com êxito a integração do Chile ao processo de globalização, o que fez avançar os traços de modernidade do país, como a melhoria do setor de serviços, a especialização da produção agroindustrial para a exportação, a despoluição, a inovação e a diversificação empresariais. O crescimento contínuo da economia chilena nesses anos, até a crise econômica mundial que abriu o século XXI, foi notável. As temáticas sociais sufocadas durante a ditadura foram reconduzidas como tarefas do Estado, ampliando a coesão social, ainda que as políticas públicas dos governos da Concertación tenham se revelado insuficientes.

A manutenção de boa parte dos enclaves autoritários, pelo menos até 2005, acabou por gerar um paradoxo: o regime democrático está consolidado, mas a presença de Pinochet no imaginário político chileno deixa a sensação de que a transição permanece inconclusa. A imagem que fica do Chile pós-Pinochet é a de uma “democracia de má qualidade”, resultante de uma transição muito condicionada aos ditames do regime anterior, que só conseguiu produzir “governos de negociação” e, com eles, um “reformismo fraco”. Em 2010, o fim da sequência de governos da Concertación, com a eleição de Sebastián Piñera, da Alianza, representou uma preocupante involução.

Os 20 anos da Concertación não passaram em vão, mas deixaram muitos déficits nos planos político e social. Em meio a novos movimentos sociais de estudantes e indígenas e a um conjunto de insatisfações resultantes do excesso de privatizações realizadas durante a ditadura e do avanço de empresas capitalistas em terras indígenas, os chilenos vêm demonstrando nos últimos anos que procuram alternativas que possam resultar em reformas efetivas para uma vida melhor. Mas sabem também que essa é uma história aberta e bastante distinta daquilo que eles viveram 40 anos atrás.