Ruy Castro

Ruy Castro: A política é uma folia

Se vale essa algaravia de partidos, que tal a criação do Partido Nacional do Bola Preta?

Jair Bolsonaro demitiu o partido que lhe servia de cavalo e anunciou a fundação de um novo partido, o Aliança pelo Brasil, a partir do zero. Faz sentido —zero é mesmo o patamar dos partidos políticos brasileiros, exceto pelas subvenções que eles recebem do dinheiro público. Como Bolsonaro se diz defensor desse dinheiro, o mais econômico seria que se filiasse a um dos 32 partidos já existentes. Poupá-lo-ia, inclusive, de achar para seu partido uma denominação que o distinguisse dos outros 32.

Todas as combinações possíveis já pareciam esgotadas. Apenas entre os que comercializam a sigla trabalho, temos o Partido Trabalhista Brasileiro, o Partido Democrático Trabalhista, o Partido Trabalhista Cristão, o Partido Renovador Trabalhista Brasileiro, o Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado e —epa!— o Partido dos Trabalhadores.

Na área socialista ou social-democrata, temos o Partido Socialista Brasileiro, o Partido Social Cristão, o Partido Social Democrático, o já citado e meio coringa Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado e o Partido da Social-Democracia Brasileira, o falecido PSDB. E alguém sabia que o ex-partido de Bolsonaro, o PSL, se chama Partido Social Liberal?

Não há quem se entenda nessa algaravia de siglas: Pode, Pros, PCO, PTC, PRTB, PSTU. Há um PSB, um PSC e um PSD —quando virá o PSE? O dito PCO é o Partido da Causa Operária, com 3.688 filiados que chegam de kombi. Há o PMB, Partido da Mulher Brasileira, que, dizem, tem mais homens do que mulheres como adeptos. E a Justiça Eleitoral está analisando os registros de mais 76 partidos, entre os quais o Partido Militarista Brasileiro e o Partido Nacional Corinthiano.

Vou sugerir ao pessoal do Bola a criação do Partido Nacional do Bola Preta. Se a política é uma folia, um partido que leva para as ruas dois milhões de foliões no Carnaval pode arrasar nas urnas.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: Partidos sem sentido

Bolsonaro e Lula já não precisam de partidos. Só precisam um do outro

O Brasil tem 32 organizações para fins comerciais, chamadas partidos políticos. Ou 31 ½, se considerarmos que o presidente Jair Bolsonaro está abandonando o PSL, pelo qual se elegeu, levando 20, digamos, correligionários, com os quais ameaça fundar um novo partido. Como Bolsonaro se diz um cortador de gastos, essa decisão é dúbia. Partidos vivem do dinheiro público. Não seria mais econômico aderir a um dos outros 31 com cujo “programa” se identificasse? Mas, como não fará isso, a única explicação é que, para Bolsonaro, todos os partidos brasileiros são umas porcarias.

E devem ser mesmo, considerando-se que, em sua apagada carreira de 29 anos na Câmara dos Deputados, ele passou por oito deles —pouco mais de três anos em cada um. Ou não gostou de nenhum ou nenhum gostou dele. Talvez Bolsonaro simplesmente não goste de partidos políticos e acredite que, com ele à frente de um Executivo forte, para que partidos, para que política? Combina com seu asco pela democracia —a mesma que lhe serve para fazer sua inconstitucional pregação liberticida.

Lula, por sua vez, nunca saiu do PT, partido que fundou e comanda há 40 anos. Mas isso também não quer dizer muito porque, até hoje, ele não quis formar um só membro capaz de, um dia, sucedê-lo, conduzir suas bandeiras ou apenas ser seu reserva. A prova é que, durante sua temporada em Curitiba, o PT quase se extinguiu, por falta de programa, de lideranças e dos velhos dinheiros escusos. E, agora, o último mote que lhe restava, o “Lula livre”, perdeu a razão de ser.

O novo partido de Bolsonaro não passará de uma marca de fantasia dele próprio, a existir apenas enquanto o chefe achar conveniente. Quanto ao PT, pode-se marcar até a data de sua extinção: o dia seguinte ao do desaparecimento de Lula.

O fato é que Bolsonaro e Lula não precisam mais de partidos. Só precisam —e desesperadamente— um do outro.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: Visita ao rinoceronte

Bolsonaro nunca aproveitou seu circo matinal no Alvorada para dar uma declaração de estadista

Com a viagem de Bolsonaro ao Japão, China e adjacências, Brasília está privada de sua maior atração turística: a saída do presidente do Palácio da Alvorada, todas as manhãs, e os minutos que ele concede aos cerca de cem sujeitos que chegam de ônibus, vindos das mais remotas grotas, e se postam ali desde a madrugada à sua espera. Por volta das 10h, surge Bolsonaro e não os decepciona. Posa para selfies e, para gáudio geral, distribui agressões, afrontas e imprecações contra os inimigos e até contra os amigos. Como tudo é gravado por eles, não pode haver desmentidos.

Mas não há o que desmentir. Bolsonaro usa esse canal para mandar recados. Só não se sabe quem ele atacará, difamará ou fulminará naquele dia --um alvo importante é seu ministro de estimação, Sergio Moro, em cuja face ele aplica frequentes bofetadas verbais, para mantê-lo em seu lugar. O próprio Bolsonaro, em seu português de quinta, foi quem melhor se definiu nessa pantomima: "É o zoológico. Quando você vai no zoológico, você vai sempre na jaula do rinoceronte. Eu sou o rinoceronte da política". Mas logo se corrigiu: "O chifre é no nariz, hein, não é na testa, não!". A plateia teve frouxos de riso.

Bolsonaro nunca aproveitou esse circo matinal para fazer uma declaração digna de um estadista. Nunca disse uma palavra de estímulo sobre o trabalho de recuperação do Museu Nacional. Nunca demonstrou comoção pelos mortos de Brumadinho ou do Ninho do Urubu. Nunca lamentou a perda de símbolos nacionais, como Bibi Ferreira ou João Gilberto. O país não existe.

Reduziu a presidência à função de um vereador. Para ganhar a eleição, precisou do povo, mas, como governante, seu único mérito é o de estar unindo contra si todas as forças conscientes do país.

Em breve, só lhe restarão os filhos e os cem robotizados que o prestigiam no papel de, segundo ele próprio, rinoceronte do zoológico.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues


Ruy Castro: A nova normalidade

O populista pisa nos princípios políticos e parte do povo já não acha isso grave

Gérard Araud, ex-embaixador francês em Washington, foi o diplomata que, há tempos, respondeu à infeliz declaração de Jair Bolsonaro de que devia ser “insuportável viver em certos lugares da França”, por causa dos imigrantes. Araud disse apenas: “63.880 homicídios no Brasil em 2017; 825, na França. Sem comentários”. Observador da avalanche populista que gerou figuras como Bolsonaro e Donald Trump, ele deu uma pertinente entrevista a Fernando Eichenbergh, no Globo do dia 6 último. Eis alguns trechos.

“As pessoas de esquerda estão erradas em crer que um populista é um conservador como qualquer outro. Ele governa também contra os conservadores. O populista pisa sobre os próprios princípios da política. Na democracia, há o respeito, você não insulta, não ataca a vida privada. Mas os dirigentes populistas zombam totalmente dessas convicções. E se descobre que, no fim das contas, parte da população não considera isso grave. Torna-se uma nova normalidade.

“Me pergunto o que ocorrerá quando Bolsonaro e Trump desaparecerem da cena política. Tenho dúvida se as coisas voltarão a ser como antes. A primeira lição é a degradação do discurso político.

“O Brasil comete um erro pensando que obterá benefícios ao se alinhar a Trump. Quando Trump diz ‘America first’, significa ‘America alone’. [...] Ele não tem aliados, amigos ou inimigos. Que o filho de Bolsonaro seja embaixador nos EUA, não haverá nenhuma consequência para Trump. Dois continentes estão ausentes da sua política: a África e a América Latina. Nesta, só lhe interessa o México, por causa da imigração, e a Venezuela, pela crise política. Para o resto do continente, é a total indiferença.

“A palavra do especialista não existe mais. E há as mídias sociais. Antes, quatro bêbados em um bar falavam uma bobagem, mas aquilo ficava entre eles. Hoje, falam nas redes sociais e se tornam 4.000 imbecis”.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: A porra da árvore

Bolsonaro usou a palavra de forma negativa, esquecendo-se de que também já foi uma

Nesta terça-feira (1º), numa tentativa de elevar sua estatura como estadista, o presidente Bolsonaro subiu numa cadeira e discursou para um grupo de garimpeiros na entrada do Palácio do Planalto. Segundo ele, a campanha estrangeira em defesa da floresta amazônica não quer saber da preservação ambiental ou da proteção aos índios. E, de acordo com sua ideia do nível de sofisticação de sua plateia, declarou: "O interesse na Amazônia não é no índio, nem na porra da árvore. É no minério!".

A maneira de Bolsonaro se referir à árvore é injusta. A árvore não é uma porra. É verdade que contém uma seiva que, à visão desarmada, pode ser confundida com o esperma --ambos são espessos, aderentes e viscosos. Mas a semelhança acaba aí, e Bolsonaro, matuto de origem, sabe disso. Seu uso de "porra", portanto, só pode ter se dado na forma chula, significando, segundo o Aurélio, "enfado, impaciência, desagrado". É o que as árvores lhe provocam, donde estar dedicando seu mandato a transformar o Brasil num pasto ou numa Serra Pelada sem volta. Deve isso aos patronos da sua candidatura.

O jovem Bolsonaro certamente se aplicava em chutar árvores, desfolhar galhos ou urinar em canteiros. Mas, se cursou a escola fundamental, talvez tenha aprendido que o Brasil nasceu de uma árvore: o pau-brasil, cujo ciclo econômico durou pouco, pela exploração irresponsável que o levou à quase extinção. Bolsonaro não gosta dos índios, mas sua mentalidade tem algo em comum com a deles --também é extrativista.

Quanto à porra, expressão que usou para desmerecer a árvore, é bom lembrar que, na origem, Bolsonaro também já foi uma. Pelo menos, foi chapinhando nela que se cruzaram os genes que o formaram. Em respeito ao leitor, vou me abster de entrar em detalhes.

Basta dizer que, embora talvez Bolsonaro não acredite, o processo de sua fecundação foi o mesmo que gerou o cacique Raoni.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: País de mentira

Nenhum brasileiro reconheceu o Brasil que Bolsonaro descreveu na ONU

Eu gostaria de morar no país que Jair Bolsonaro descreveu em seu discurso na Assembleia Geral da ONU e que, segundo afirmou, se chama Brasil. Imagine, um país com 70% da sua mata original preservada, exceto por alguns metros em que foi preciso cortar umas árvores para os bois poderem passar. Um país sem queimadas, exceto a que os índios praticam, ainda mais agora que eles querem sair da idade da pedra cultivando soja. E um país que, se quiser destruir a Amazônia, é por nossa conta, digo, dele, e ninguém tem nada com isso.

Um país em que a vida é o maior dos direitos humanos, donde, para preservá-la, o controle de velocidade nas estradas é abolido, as armas são liberadas e quem passar na frente de uma bala é por sua conta e risco. Um país em que nenhum corrupto ficará impune, exceto nos casos de parentesco em primeiro grau, vínculo empregatício com estabilidade e cargo importante no governo. Governo este, aliás, estrelado por um antigo símbolo da luta contra a corrupção e ainda tão poderoso que, hoje, se sujeita aos papéis mais humilhantes sem prejuízo de sua aceitação popular.

E, que bom, um país sem ideologia, sem aparelhamento e sem doutrinação, exceto a praticada pelos atuais detentores do poder. Um país em constante vigília contra seus inimigos, como o cacique Raoni e a atriz Fernanda Montenegro --e, se você acha que eles são inofensivos por já estarem com 89 anos, é porque não leu o teórico comunista Gramsci, que sugeriu o uso de idosos na propaganda socialista. Um país governado sob a inspiração de Deus, embora este não tenha sido consultado.

Pois este é o país que Bolsonaro descreveu na ONU --e que seus habitantes não conseguem reconhecer.

O próprio Bolsonaro não parecia à vontade diante do teleprompter. Os olhos muito apertados podiam indicar miopia ou a suspeita de que nem ele acreditava em suas mentiras.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: Maneiras de morrer

Em vez de agir para que se morra menos, nossos governantes propõem matar mais

Uma recente pesquisa internacional classificou o Brasil em 64º lugar, num universo de 67 países, quanto ao grau de adequação para um estrangeiro viver. Mais um pouco e nem estaríamos entre os países considerados. A enquete se refere a 2018 e foi feita com 14.272 expatriados de 174 nacionalidades, a maioria funcionários de multinacionais e seus familiares. O Brasil recebeu notas vergonhosas em saúde, educação, transportes, segurança pública, estabilidade política e criminalidade.

Uma pesquisa idêntica, apenas entre brasileiros residentes no país, não resultaria muito diferente. No fator criminalidade, por exemplo, os números podem dizer que, entre homicídios dolosos, latrocínios e lesões corporais fatais, o número de mortes violentas intencionais caiu de 64.021 em 2017 para 57.431 em 2018 --mas que país se orgulharia desses números? E as provocadas por intervenção policial subiram de 5,1 mil para 6,1 mil. Você dirá que, não sendo nem policial, nem bandido, essa estatística não o afeta. Só se esquece de que, pela frequência com que os confrontos ocorrem, há sempre a possibilidade de se estar no meio deles.

No Brasil, uma mulher é agredida a cada quatro minutos. As notificações cresceram de 139 mil em 2017 para 145 mil em 2018 e se referem apenas às mulheres que sobreviveram. Entre essas, houve 66 mil casos de violência sexual --180 casos por dia--, dos quais 54% cometidos contra menores de 13 anos. E como saber quantas não notificaram?

No Brasil, morre-se aos 8 anos com um tiro nas costas. Morre-se nas ruas escuras, nas chacinas urbanas, no genocídio rural, nas contendas por terras, por execução, racismo, homofobia e uma miríade de motivos. Em vez de tomar providências para que se morra menos, nossos governantes propõem matar mais.

Mas o brasileiro não tem, como eles, essa curiosa fixação por homens armados e de farda.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: O futuro imprevisível

Mais difícil de prever o que acontecerá no Brasil é se haverá Brasil para acontecer

Uma coluna de jornal costuma dar a seu titular a duvidosa condição de oráculo. Alguns leitores, ao ver o colunista na rua, param para conversar, expressam suas aflições sobre a conjuntura política, econômica, cultural, e pedem sua opinião sobre o que irá acontecer --e a atual conjuntura mais que justifica essa aflição. Quando me fazem essa pergunta, só posso responder com a velha frase, de autoria incerta, mas de mortal precisão: quem diz que sabe o que vai acontecer é porque está muito mal informado.

Numa faxina recente, caiu-me às mãos um número da extinta revista Manchete, de 13 de janeiro de 1968, com Leila Diniz na capa. O prato forte era uma reportagem com videntes, daqui e de fora, sobre o que iria acontecer naquele ano. Resolvi ler.

Os videntes brasileiros previram grandes agitações estudantis no meio do ano, abalando o governo do ditador Costa e Silva, que, no entanto, terminaria seu mandato. Pois não é que houve mesmo o movimento estudantil, culminando na Passeata dos 100 mil, a 26 de junho? Mas isso não era difícil de prever, porque as agitações já vinham desde 1967. E Costa e Silva, como se sabe, não terminou seu mandato --morreria de um AVC, em 1969.

Os videntes europeus citados pela Manchete previram a vitória de Bob Kennedy na eleição presidencial americana, a tomada de Paris pelos ratos, a chegada do homem à Lua, a descoberta da cura do câncer e um desastre envolvendo um Beatle. Erraram tudo. Kennedy foi morto em campanha, os ratos fizeram forfait, o homem só chegaria à Lua em 1969, o câncer continuaria invicto e o único desastre envolvendo um Beatle foi a notícia do namoro de John Lennon com Yoko Ono. Ninguém previu a Primavera de Praga, o assassinato de Martin Luther King, a estreia da peça "Hair", o decreto do AI-5.

Hoje, mais difícil do que prever o que acontecerá no Brasil é se ainda haverá Brasil para acontecer.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues


Ruy Castro: Orgulhosamente sós

É como acabam os governantes que traem, humilham e se desfazem de seus aliados

A primeira vez que ouvi a expressão foi em meados de 1973, em Portugal, ainda sob uma ditadura de mais de 40 anos. O primeiro-ministro Marcello Caetano, sucessor do odiado Oliveira Salazar, foi à televisão e anunciou que, mesmo tendo contra si a opinião mundial, não negociaria com os movimentos de libertação de Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, suas colônias na África. A guerra colonial, já perdida para o país, sangrava não apenas a economia, mas a juventude portuguesa —os poucos jovens que se viam nas ruas de Lisboa usavam farda e tinham um braço ou perna a menos. E, então, Marcello Caetano disse que os portugueses não se importavam de ficar “orgulhosamente sós” diante do mundo.

Seria uma frase bonita se Caetano tivesse consultado os portugueses —o que ele não fez. Sua fala refletia somente a intransigência de meia dúzia de generais e banqueiros, habituados a mandar sem dar satisfações. Só que, em 1973, as antigas alianças estavam dando lugar a algo chamado pragmatismo. Pouco depois, quando a Guiné-Bissau declarou unilateralmente sua independência, Caetano deve ter caído da cadeira ao ver que, entre os países que reconheciam essa independência, estava o Brasil, velho capacho do salazarismo.

“Orgulhosamente sós” será o mote que restará a Jair Bolsonaro e seus filhos quando completarem o trabalho de trair, ofender, humilhar, demitir e se desfazer dos que, um dia, acreditaram neles. Não sobrará ninguém à sua volta —assim como, por causa deles, já rareiam os países ao lado do Brasil.

O pragmatismo de 1973 nunca foi abolido. Em breve, quando a Europa, a Ásia e a América do Sul nos derem uma definitiva banana, vamos ver para onde Bolsonaro irá se virar.

Em abril de 1974, a Revolução dos Cravos ensinou a Caetano que, ao atribuir aos portugueses a condição de “orgulhosamente sós”, ele estava falando apenas por conta própria.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: Guerra ao parlevu

Se é para brigar com a França, Bolsonaro deveria parar de usar o bidê

Em janeiro, Jair Bolsonaro assinou decreto sobre a posse de armas com uma caneta Bic e disparou enfáticas ameaças de que iria “usar a Bic” para fazer e acontecer. Agora, ao declarar guerra ao presidente francês Emmanuel Macron, anunciou que deixará de usar a Bic por ela ser francesa. Trocou-a pela Compactor, brasileira. Ao abandonar uma marca de caneta por ela representar a cultura de seu inimigo, embora a Bic esteja no Brasil há mais de 60 anos, Bolsonaro deveria estender esse boicote a outros produtos originários da França.

Não deveria, por exemplo, continuar indo ao toalete, ao lavabo e ao bidê. Seu —perdão— menu teria de cortar canapés, patês, baguetes, caviar, bombons, croissants, croquetes, omeletes, filés, suflês, purês, champignons e maioneses. E sua mulher, a bela, jovem, irresistível, incomparável e inútil Michelle, teria de deixar de usar sutiã, lingerie, robe, echarpe, maquiagem, bustiê, pompom, peruca, viseira, maiô, batom e bijuterias.

Bolsonaro teria também de suprimir palavras que simbolizam bem o seu estilo de governar: o deboche, a revanche, a chantagem, o complô. Seus filhos não poderiam mais usar boné, tomar champanhe ou ir a boates. Os desocupados que o aplaudem na porta do palácio —sua claque— seriam dispensados. Seus netos ficam proibidos de ter gripe ou coqueluche. E Bolsonaro deveria se preocupar com o Queiroz —seu ex-chofer. Mas o principal é que, como presidente, ele parasse de cometer gafes.

E é bom que Bolsonaro não brigue com a premiê alemã Angela Merkel. A caneta Compactor, que ele adotou, nasceu na Alemanha, fabricada pela Compaktor Fullhalterfabrik, e veio para o Brasil em 1952, produzindo canetas-tinteiro. Só aderiu às esferográficas —uma invenção da Bic —em 1984.

Mas, para que canetas? Para assinar qualquer coisa, basta a Bolsonaro enfiar um dedo na tinta e fazer um xis.


Ruy Castro: Fezes na cabeça

Bolsonaro estava ficando repetitivo, só pensando em cocô. Mas isso agora pode mudar

Andei pensando em demitir Bolsonaro desta coluna. O papel em que ela é impressa não tem a gramatura necessária para absorver as lambanças que lhe saem pela boca. Além disso, o jornal é um objeto que entra nas casas de família e costuma ser lido ao café da manhã. Não pega bem ficar citando um elemento que, depois de recomendar lavar o pênis com água e sabão, como fez há tempos, acaba de sugerir que se faça cocô dia sim, dia não. Como Bolsonaro só fala para seus eleitores, esta deve ser a ideia que ele faz deles —gente que não sabe se cuidar direito.

É preciso também considerar as crianças. Um jornal pode ser distraidamente deixado aberto, em cima da mesa, ao alcance delas —e quem pode prever as consequências da exposição de uma frase de Bolsonaro a uma criança? Você dirá que ele está à solta na televisão e as crianças podem vê-lo sem querer. É verdade, mas, nesse caso, cabe aos pais retirá-las da sala quando farejarem que ele vai aparecer.

É uma prerrogativa dos colunistas escolher sobre quem desejam escrever. Seja como for, o critério deve ser sempre jornalístico. E Bolsonaro há muito deixou de oferecer surpresa. Pode-se apostar que, todo dia, irá disparar suas barbaridades, mas contra os alvos de sempre: a Amazônia, as reservas indígenas, os direitos humanos, o desarmamento, a imprensa. E está ficando repetitivo —depois do cocô dia sim, dia não, veio agora com o cocô petrificado. Fezes não saem de sua mente. Já me perguntei: por que ele não faz algo realmente radical e tira as calças pela cabeça na frente de um general?

Mas, agora, podemos ter novidades. Em nome de um nacionalismo ardiloso e velhaco, Bolsonaro começou a insultar certos países estrangeiros. Uma coisa é bater numa árvore —a árvore não bate de volta. Outra coisa é falar grosso com a Europa.

Principalmente porque a resposta desses países é o talão de cheques.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: Avaliando o avaliador

As pessoas estão sendo obrigadas a achar soluções para problemas que não criaram

Até outro dia, sapateiros eram sapateiros, mecânicos eram mecânicos, cientistas eram cientistas. Um mecânico não ia além da sola, um cientista não trocava rebimbocas e um sapateiro não dividia o átomo. Um advogado não se passava por médico, um químico não dava uma de padre e um jogador de futebol não escrevia "Hamlet". E nenhum deles precisava aprender o ofício de um engenheiro eletrônico. Hoje, todo mundo precisa ser engenheiro eletrônico.

Dei-me conta disso quando ouvi falar que o Telegram de Sergio Moro e Deltan Dallagnol tinha sido invadido e pessoas estavam lendo suas mensagens. Logo imaginei um espião embuçado abrindo os telegramas entre os dois, talvez aproximando-os do vapor para derreter a cola, copiando seus conteúdos e os lambendo para colar de novo. E até me espantei de alguém ainda se comunicar por telegramas. Para minha surpresa, fui informado de que o Telegram era um "serviço de mensagens instantâneas criptografadas fim a fim no modo client-to-client ou client-to-server, baseadas na nuvem".

Eu disse "Ah, bom!" e, vexado por minha ignorância, perguntei como acontecera. Responderam-me que uma invasão dessas se dá quando o usuário é induzido a fazer um reset de senhas e recebe um arquivo Office ou um app comprometido.

Assustado, quis saber como evitar isto e me disseram que, ao baixar um app, é preciso ativar o aplicativo dentro desta página da web após avaliar a descrição do aplicativo associado à nota de avaliação e considerar a quantidade de downloads efetivos e os comentários dados por estes usuários. Simples.

Ou seja, o cidadão comum está sendo obrigado a achar soluções para problemas que não criou, é isso? Estou fora. Nos últimos cem anos, tenho ganhado a vida lendo, fazendo perguntas e escrevendo. Se, em breve, isso não bastar, vou para a lavoura, feliz da vida.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigue