Ruy Castro

Ruy Castro: Bolsonaro infecta pelo ouvido

Como será dizer 'bundão' e 'encher tua boca' com porrada em libras?

Jair Bolsonaro não se contenta em ser visto como desumano, mentiroso, sem compostura, incapaz de governar, conivente com a corrupção, destruidor do meio ambiente, defensor da tortura, amigo de milicianos, subornador de militares, golpista, genocida e cínico. Também é uma ameaça pessoal à saúde pública. Por seu passado de atleta —como ele define sua carreira de terrorista no Exército—, gaba-se de ser inexpugnável à Covid, chamando de bundões os 115 mil brasileiros que já morreram e quem não tem um serviço médico como o dele, pago com o nosso dinheiro.

Suspeita-se de que, ao circular infectado e sem máscara pelo país, Bolsonaro contaminou uma multidão. A prova é a de que as pessoas ao seu redor, constrangidas a não usar máscara, vivem pegando a doença —só os funcionários do Planalto a contraem à média de três por dia. O mais novo infectado é o seu filho Flávio “Queiroz” Bolsonaro. Mas isso não é causa de preocupação porque, por ser filho de quem é, ele está proibido de reagir como um bundão.

Para mim, quem mais corre perigo com Bolsonaro é aquele pobre intérprete de libras que se vê ao seu lado —também sem máscara— nas declarações oficiais. Não sei o nome, idade ou histórico de atleta do tal senhor, mas espero que ele sobreviva aos perdigotos de Bolsonaro, ao tentar converter em sinais os coices do chefe contra as instituições e a verdade.

Por seu visual sóbrio, parece um homem de família, de sólida formação moral, talvez evangélico. Como será, para ele, dizer “bundão” em libras? E como será quando tiver de traduzir expressões como “porra”, “bosta”, “merda”, “putaria”, “filho da puta” e “puta que pariu”, como as que Bolsonaro ejaculou 28 vezes na reunião ministerial de 22 de abril? E o recente “encher tua boca com porrada”?

É o que me faz temer pela saúde do intérprete de libras. Afinal, certas infecções penetram também pelo ouvido.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: Sem caráter, como toda nuvem

Os eleitores de Bolsonaro o olham e ele está de um jeito; olham de novo e já mudou

A frase é conhecida: “Política é como nuvem —você olha e ela está de um jeito; olha de novo e já mudou”. Deve ter sido inventada na Europa do século 18, mas, no Brasil, é atribuída ao mineiro Magalhães Pinto (1909-1996). Em março de 1964, como governador de Minas Gerais, ele se passava por aliado do presidente João Goulart. No dia 31, sentindo a mudança na nuvem, partiu para derrubá-lo. Mas, ao contrário do que esperava, não ganhou nada com isso. Bem feito, quem o mandou estar com a cabeça nas nuvens?

Há políticos que mudam tanto que nem as nuvens os acompanham. Vide Jair Bolsonaro. Só os papalvos o acreditavam diferente, mas de hora em hora se parece mais com os políticos que fingia combater. Ao sentir, por exemplo, que suas bravatas o estavam isolando, fez como todos os governos antes dele —comprou o centrão, com ministérios, bancos e verbas. Uma das moedas dessa compra foi passar o pano em Michel Temer e mandá-lo oficialmente ao Líbano.

A Lava Jato, em nome da qual Bolsonaro se elegeu, tornou-se a inimiga a destruir, no que ele se juntou a Lula, José Dirceu, Gleisi Hoffmann, Temer, Eduardo Cunha, Sérgio Cabral, Renan Calheiros, Romero Jucá e, agora, Aécio Neves, Geraldo Alckmin e José Serra, todos, por acaso, políticos cujas contas não fecham.

Há dias, José Sarney insinuou que deseja uma aproximação —que Bolsonaro, se for esperto, aceitará. Sarney é indispensável para qualquer governo que queira se garantir, motivo pelo qual Lula e Dilma Rousseff se deram tão bem com ele durante 14 anos. Bolsonaro, aliás, refreou seu desprezo pelo Nordeste e, como Lula, também decidiu garantir lá os votos para sua reeleição. Mas, para isso, terá de gastar dinheiro que não tem, no que ameaça ser acusado de irresponsabilidade fiscal, como Dilma.

Os bolsonaristas não elegeram um mito, como eles acreditam, mas uma nuvem —sem caráter, como toda nuvem.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: Dinheiro na mão dos Bolsonaros

Eles não acreditam em cartões ou transferências; no máximo, cheques

No começo, você sabe, tudo era dinheiro, desde uma vaca até um saco de sal. Depois vieram as barras de ouro, que, por muito pesadas, foram convertidas em moedas e, estas, em dinheiro de papel. O qual, após longo reinado, converteu-se em cheques, cartões de crédito e, agora, transferências digitais. A história do dinheiro é a da sua progressiva redução a algo simbólico, imaterial.

Não para a família de Jair Bolsonaro. Seus membros são fiéis ao dinheiro de papel. Transações que poderiam se realizar com um clique exigem, para eles, o trânsito de um pesado volume de cédulas, de um bolso ou carteira para outro, além do trabalho de contá-las. Um pagamento de R$ 100 mil constará de mil notas de R$ 100, a serem conferidas umedecendo os dedos numa esponja ou, como eles devem fazer, lambendo-os.

Flávio Bolsonaro, então deputado estadual, comprou em 2008 várias salas num centro comercial do Rio por R$ 86,7 mil em dinheiro vivo, que pediu emprestado ao pai, a um irmão e a um assessor do pai, enfiou numa sacola e levou ao caixa do banco. Em 2011, sua mulher, Fernanda Bolsonaro, foi agraciada com depósitos de R$ 89 mil igualmente em espécie por seu generoso ex-motorista Fabrício Queiroz, depósitos de que Flávio, marido distraído, disse que nunca ficou sabendo.

Em 1996, Rogéria Bolsonaro, primeira mulher de Bolsonaro, comprou um apartamento em Vila Isabel, à vista e com dinheiro vivo, por R$ 95 mil. Anna Cristina Valle, segunda mulher de Bolsonaro, também comprou 14 imóveis no Rio entre 1998 e 2008, num total de R$ 5,3 milhões, boa parte em dinheiro. Diante disso só se pode elogiar Michelle Bolsonaro, atual mulher do homem —pelo menos os R$ 89 mil que caíram em sua conta entre 2011 e 2016, cortesia idem de Queiroz, foram em cheque.

Notar que esses valores, atualizados, se multiplicariam e exigiriam muito mais cédulas. Sem problema. Os Bolsonaros gostam de pegar em dinheiro.


Ruy Castro: Para ser bolsonarista, basta ser

Dispensa-se de pensar, mas exige-se vista grossa à traição das promessas de campanha

A vantagem de ser bolsonarista é a de que não é preciso pensar. Basta ser. Ser bolsonarista é apoiar um discurso que encolhe a cada dia de acordo com as conveniências de seu chefe. Como elas não param de surgir, o dito discurso ameaça chegar à abstração pura, impossível até de ser entendido, o que não fará diferença para seus adeptos. Se Bolsonaro decretar que seus seguidores devem usar a cueca por cima das calças, eles obedecerão —o que facilitará identificá-los e avaliar o seu peso real na população.

Ungido por essa aura de infalibilidade que eles lhe conferiram, Bolsonaro tem traído uma a uma as promessas de campanha que hipnotizaram seus eleitores.

O discurso anticorrupção, por exemplo, esfarela-se nas jogadas para silenciar a Lava Jato, cuja defesa foi decisiva para elegê-lo. Só o abandono dessa bandeira já devia bastar para intrigá-los —mas, como estes abdicaram de pensar, Bolsonaro segue alegremente no esvaziamento dos órgãos de investigação, no que é aplaudido em silêncio pelo PT. Pelo visto, essa súbita e divertida identificação entre Bolsonaro e Lula não abala seus fãs.

Tal esvaziamento, comandado pelo funcionário que Bolsonaro designou para a tarefa, o procurador-geral Augusto Aras, é necessário para proteger seus novos aliados: os políticos de quem passou a depender para protegê-lo contra a ameaça de impeachment. O pagamento desse apoio não se limita aos seus eleitores, mas atinge todo o país, com a entrega de ministérios, conselhos e estatais à "velha política" que ele dizia combater.

Outro mistério que passa ao largo de seus seguidores é que, ao promover o desmatamento da Amazônia, o extermínio dos povos indígenas pela ocupação de suas terras e a sistemática destruição de áreas protegidas, Bolsonaro está beneficiando uma categoria bem específica de negocistas. Isso ele não prometeu em campanha.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues


Ruy Castro: Bolsonaro pode estar certo

Sua frase de que o brasileiro se joga no esgoto e não acontece nada todo dia se confirma

Jair Bolsonaro disse que o brasileiro se joga no esgoto e não acontece nada. Bolsonaro deve saber —porque, no caso dele, é verdade. Basta ver seus amigos: políticos rastaqueras, policiais desonestos, milicianos condenados, assessores corruptos e industriais da violência. Até seus ex-vizinhos na Barra têm contas com a lei. Um presidente da República com acusados de assassínio na casa ao lado? Para Bolsonaro, é normal. Imagino seus churrascos com eles no condomínio, discutindo duplas sertanejas, o último programa do Ratinho ou um novo modelo de fuzil.

Daí não surpreende que seu governo inclua as piores pessoas do país. Ele não conhece outras. Dizia-se que dois ou três de seus ministros eram pessoas bem intencionadas. Mas pessoas bem intencionadas não se sentam a uma mesa com Ricardo Salles, Damares Alves, Ernesto Araújo, André Mendonça e Marcelo Álvaro Antônio —como a reunião ministerial de 22 de abril, ainda abrilhantada por Abraham Weintraub, tão bem demonstrou.

Quando Bolsonaro tentou obrigar seu então ministro da Saúde, Henrique Mandetta, a t omar medidas que contrariavam o juramento médico, falou-se que, se se submetesse, Mandetta estaria rasgando seu diploma. Não se submeteu, foi despedido e saiu com o diploma intacto. Seu sucessor, Nelson Teich, também médico e submetido à mesma indignidade, saiu antes de manchar o diploma. O general Eduardo Pazuello, que o substituiu, não tem diploma médico para proteger. Apenas uma farda, que mandará para a lavanderia.

A intimidade com Bolsonaro não compromete só diplomas e fardas. Torna as togas também sujeitas a respingos. Não que alguns de seus ocupantes, como o procurador-geral Augusto Aras, e o presidente do STJ, João Otavio de Noronha, estejam preocupados. A vaga no STF lhes exigirá, de qualquer maneira, uma toga nova.

Pensando bem, todo dia se confirma a frase de Bolsonaro.


Ruy Castro: Por que só Bolsonaro?

O Tribunal de Haia deveria reservar um lugar também para os executores de sua política

O Tribunal Penal Internacional de Haia, na Holanda, recebeu as acusações contra Jair Bolsonaro de crimes contra a humanidade no contexto da pandemia. Foram levadas por entidades brasileiras que representam mais de um milhão de profissionais da saúde, responsabilizando-o pela morte de milhares no país por sua ação ou omissão. Matar não se limita a um tiro à queima-roupa.

Pode-se escolher entre as práticas de Bolsonaro desde a chegada da Covid: piadas com o vírus, minimização de seu perigo, desinformação deliberada sobre ações de prevenção, desprezo por medidas nacionais que amenizassem a quebra da economia, recusa em aceitar as orientações dos órgãos internacionais, instigação à desobediência dessas orientações, desmoralização dos encarregados por ele próprio de dirigir a saúde e sua substituição por estranhos à matéria, fazer propaganda falsa de remédio, debochar das vítimas da doença, indiferença quanto ao destino da população que jurou proteger. Com tudo isso ao alcance de seu poder, quem precisa de arminha?

Mas não nos iludamos. Os trâmites do tribunal são lentos e talvez só cheguem a uma conclusão quando um dos dois já tiver acabado, o mandato de Bolsonaro ou o Brasil --o que vier primeiro. Mas seria um consolo ver no banco dos réus, nem que fosse por uma sentada, os responsáveis pela maior calamidade pública na história deste país.

O que, como aconteceu em outros tribunais internacionais, deveria reservar lugar também a executores de sua política. Isso incluiria o general Eduardo Pazuello, que pôs a farda a serviço da farsa, estimulando o uso de medicamento impróprio e arriscado, sonegando informações sobre a evolução da crise, recusando-se a prestar contas diárias à sociedade e cercando-se de colegas de quartel, talvez para dividir sua responsabilidade.

Mas, você sabe, Haia é uma cidade pacata, com seu ritmo próprio.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: Nomes para impor respeito

Deve-se pensar bem antes de chamar alguém pelo apelido de infância. Ele pode achar coisa de viado

Outro dia escrevi que há muito deixei de me referir ao atual ocupante do Planalto como “Presidente Fulano de Tal”. Passei a tratá-lo apenas pelo nome e sobrenome e sem o “Sr.”, dispensável nas estrebarias. Da mesma forma, nunca me ocorreria citá-lo apenas por “Jair”. É uma intimidade que, por questões higiênicas, dispenso. E escrevi também que não me atreveria a chamar um de seus filhos, Carlos, de “Carluxo”, como fazem alguns. O nome sugere alguém humano, simpático, inofensivo. Não me parece aplicável ao personagem.

Houve tempo em que, diante da violência que começava a tomar o país, alguns jornais soltaram normas recomendando à Redação que evitasse chamar bandidos pelos apelidos com que eram conhecidos entre seus pares. Fernandinho Beira-Mar, Marcelinho Niterói e Lulu da Rocinha, por exemplo, soavam como nomes doces, quase cômicos. Outros pareciam ter saído de um programa de humor da TV ou de um desenho animado —Escadinha, Marcola, Bem-Te-Vi, Julinho Carambola. Não correspondiam à ferocidade de seus portadores e ao terror que infligiam às comunidades.

Bandido que se preza tem de ter nome de bandido, como Cara de Cavalo, Maníaco do Parque e Elias Maluco, ou currículo suficiente para ser temido apenas pelo próprio RG, vide Lucio Flavio, Mariel Mariscot, Hosmany Ramos.

O mesmo se dá hoje entre os milicianos, a organização mais próspera do Brasil e com aberta simpatia oficial. Alguns de seus mais famosos são conhecidos como Pogba, Bimbinha e Orelha, mas, com esses nomes bobos, eles nunca passarão do segundo time. Os acima de qualquer dúvida no crime atendem por Orlando Curicica, Capitão Leo, Cabo Biro e, claro, Ronnie Lessa. Não brinque com eles.

Daí convém pensar duas vezes antes de chamar alguém influente pelo apelido de infância. Sabe-se lá se, para Carlos Bolsonaro, o nome “Carluxo” não é coisa de viado?

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: Bolsonaro não quer compaixão

Não será surpresa se, ao se decretar 'recuperado', ele zombar dos que lhe desejaram saúde

Alguns leitores perceberam que há meses não me refiro ao ocupante do Planalto como “Presidente Jair Bolsonaro”. Trato-o como Jair Bolsonaro e dispenso-me do “Sr.” —afinal, ele não se comporta como tal. Basta-me ser compulsoriamente presidido por ele, o que já é suficiente para asco, e isso não implica ter votado ou não em seu adversário —porque há 31 anos não voto em ninguém. A última vez foi no primeiro turno da eleição presidencial de 1989, e meu candidato não chegou ao segundo turno. Antes que me perguntem, informo que não foi o Enéas, embora, se eleito, ele não seria tão nefasto quanto o elemento que hoje dita a destruição do Brasil.

Da mesma forma, ao me referir aos filhos de Bolsonaro, não me ocorre fazer como alguns colegas e tratar um deles, Carlos, por “Carlucho”. É um apelido benigno demais para indivíduo tão perigoso —o mais perigoso dos três que, em nome do pai, controlam o ministério, inspiram a operação das fake news, conspiram contra as instituições, falam grosso com o Exército e comandam o país a partir do porão. O nome “Carlucho” sugere algo vindo da infância e é difícil imaginar os filhos de Bolsonaro tendo infância.

A suposta contaminação de Bolsonaro pela Covid provocou manifestações de “direito à vida” e “pronto restabelecimento” até por seus críticos —mesmo que, no passado, ele tenha expelido votos de infarto e câncer para seus adversários políticos. E que, no próprio dia em que se declarou infectado, tenha debochado da doença, induzido milhões de pessoas a consumir um remédio inapropriado e, num ato de estudada crueldade, negado água potável e proteção às populações indígenas.

Bolsonaro é o primeiro a não querer despertar compaixão. Para ele, assim como o uso da máscara, isso deve ser “coisa de viado”.
Não será surpresa se, ao se decretar “recuperado”, Bolsonaro zombar dos que lhe desejaram saúde.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: Receita do Dr. Bolsonaro

É reconfortante como ele se autodiagnostica e decide quem vai morrer ou não

Subitamente diagnosticado com a Covid-19, Jair Bolsonaro convocou seus veículos de confiança e ofereceu um reconfortante relatório sobre sua saúde. “Estou perfeitamente bem!”, declarou, e atribuiu essa esplêndida condição à hidroxicloroquina, remédio indicado para malária. Pena que não possamos compartilhar sua euforia. Ao fazer um apanhado de quem deve ou não se preocupar com o vírus, foi tão categórico quanto fatalista: “É uma chuva, você vai pegar”.

É alarmante. A caminho dos primeiros 2 milhões de infectados e 100 mil óbitos nas próximas semanas, só podemos imaginar quantos brasileiros ainda tomarão essa chuva —e quantos irão encharcados para a cova.

É verdade que Bolsonaro tem trabalhado para que esses milhões sejam contaminados o quanto antes. Nas inúmeras aglomerações de que participou, sem máscara e nos braços de seus apoiadores, as imagens o mostram tirando ramela, cavoucando o nariz, disparando perdigotos e os levando em troca. Só mesmo seu histórico de atleta —exímio praticante de tiro ao alvo no Exército— explica que não tenha sido afetado antes, embora talvez não se possa dizer o mesmo dos festivos participantes de seus forrobodós.

O Dr. Bolsonaro não vacila em suas afirmações. Segundo ele, os jovens podem ficar tranquilos —mesmo que peguem o coronavírus, “a possibilidade de algo grave é próxima de zero”. Tal imunidade parece se estender também aos religiosos, presidiários, estudantes, comerciários e demais categorias que ele liberou do uso de máscara. Já os mais velhos, sim, devem se cuidar, principalmente se apresentarem “comorbidades”. Como esses coroas insistem em ser acometidos por “comorbidades”, podem ir botando suas barbas —brancas— de molho.

Já Bolsonaro está tranquilo. Se precisar, não lhe faltarão UTIs, respiradores e cânulas para intubação. E, enquanto isso, ninguém lhe perguntará pelo Queiroz.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: Estantes no vídeo

Ninguém dá entrevistas online na frente da geladeira ou do armário das panelas

Aldir Blanc, uma das grandes perdas impostas pela Covid, não podia ver uma foto em jornal de alguém diante de uma estante. Saía de lupa a ampliar a foto para ler os títulos nas lombadas dos livros. Aldir queria saber o que aquela pessoa gostava de ler e se tinha livros que ele ainda não tivesse e talvez precisasse ter. Lia dia e noite, sem parar. As fotos o mostravam em seu apartamento, na Muda da Tijuca, quase soterrado por eles. Se Aldir não tivesse sucumbido ao coronavírus, estaria hoje dando entrevistas online cercado por seu mundo de livros. Não seria exibicionismo e nem ele teria escolha. Eles tomavam os aposentos.

Transmissões online abundam agora na programação, e todo mundo aparece com uma estante ao fundo razoavelmente suprida de livros. Ou as pessoas lêem mais do que imaginávamos ou descobriu-se que a estante é o móvel mais nobre da casa, donde ser o cenário ideal. Não vi até agora ninguém se postar na frente da geladeira ou do armário das panelas. Não que não sejam também móveis da maior dignidade --- mas talvez uma parede com caçarolas não tenha o mesmo appeal de uma prateleira de livros.

Devido à alta incidência de estantes no vídeo, eu próprio passei a tentar decifrar os títulos nas lombadas e, pelo que já vi, cada entrevistado está bem servido de livros sobre sua especialidade. Os comentaristas políticos têm biografias de políticos; os esportivos têm histórias sobre futebol; os economistas, teorias econômicas.

Com uma exceção. Sempre que vejo o ministro da Economia Paulo Guedes na TV, ele está, sim, diante de uma estante, mas tristemente vazia exceto por alguns bibelôs e objetos não identificados. Zero livros.

Como o ministro se gaba de conhecer todas as teorias econômicas --- “no original”, frisou ---, imagino que tenha feito isso por correspondência. O que sua prática no ministério de Jair Bolsonaro, por sinal, demonstra.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: Quando ele tiver de se explicar

Um dia, diante do tribunal, Bolsonaro não poderá dizer Caso encerrado!

No dia ainda incerto, mas infalível, em que Jair Bolsonaro se sentar no banco dos réus, veremos se usará a tática a que se habituou no poder para se impor numa discussão —silenciar seus interlocutores cortando-lhes a palavra e repetindo aos gritos seus bordões, como “Chance zero!”, “Ponto final!”, “Caso encerrado!”, “Próxima pergunta!”, “O recado está dado!”, “Cala a boca!” e “E daí?”.

A Justiça não se contentará com uma argumentação tão lacônica. Bolsonaro terá de responder extensivamente sobre os episódios em que violou a Constituição, estuprou as instituições, acusou sem provas, jogou o povo contra o Congresso e o STF, botou órgãos de Estado a seu serviço, encobriu sujeiras dos filhos e dos asseclas, mentiu compulsivamente, agrediu minorias e promoveu o desmoronamento da nação com seu ministério de celerados. O crime de mandar os humildes para a morte, exortando-os a sair de casa em plena pandemia, talvez tenha de ser julgado por um tribunal com sede na Holanda.

Será fascinante seguir Bolsonaro pela TV, defendendo-se no julgamento com seu vocabulário indigente, português estropiado, expressões chulas, sotaque caipira, estoque de palavrões e abuso de taoquêis. E mais ainda porque, apesar de velho político, ele nunca fora contestado para valer —como deputado de quinta, ninguém perdia tempo com ele e, presidente, achava-se poderoso demais para discutir.

Condenado em várias instâncias, mas à espera de que se esgotem os recursos, Bolsonaro, como ex-presidente, deverá ter direito a uma sala de Estado Maior num quartel da Polícia Federal.

Talvez, então, ele já terá sido abandonado por seus seguidores. Aqueles que, nos áureos tempos, exerciam em seus ataques aos opositores um laconismo igual ao do chefe: “Lixo!”, “Chega de mimimi!”, “Simples assim!”, “Entendeu ou quer que desenhe?” e “Aceitem que dói menos!”.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.


Ruy Castro: Dilema do escritório

Os escritórios forjaram as relações humanas; como será o mundo sem eles?

Em 2016, li na Folha uma entrevista da governadora de Tóquio, Yuriko Koike, em que ela dizia que estava combatendo a ideia de que "é bonito ficar até tarde no escritório", como os japoneses foram ensinados a acreditar a partir da Segunda Guerra. E contou que começara uma campanha para que as pessoas dessem menos horas de expediente no escritório e as substituíssem pelo trabalho em casa.

Bem, isso foi em 2016. Hoje, todos os funcionários que Yuriko queria mandar mais cedo para casa já estão em casa —em quase toda parte e em tempo integral. Por causa do coronavírus, as empresas fecharam seus escritórios presenciais. E, quando a pandemia passar, talvez concluam que será besteira voltar para o escritório se se pode fazer o serviço em casa.

Os escritórios não existiam antes de 1800. Ideias, análise de problemas e tomadas de decisões, tudo se resolvia monocraticamente, com bons ou maus resultados. Mas, então, no século 19, os escritórios se institucionalizaram. As soluções ganharam em análise, as ideias pulularam e as decisões se tornaram mais práticas e objetivas, o que levou ao progresso, à eficiência, à riqueza. O mundo melhorou com os escritórios. É verdade que eles geraram também a burocracia, a luta pelos cargos e a rivalidade entre os colegas.

Mas geraram igualmente os afetos, desafetos, intrigas e paixões, com tudo que isso implica —prazer, êxtase, amor, assim como, às vezes, sofrimento, desespero, dor. Não terá sido essa fricção humana nos escritórios que nos fez vividos, experientes e adultos? E que, sem esses embates, continuaríamos tão infantilizados quanto ao nascer?

É o que veremos depois de superado o coronavírus: se o mundo a que voltaremos será o de antes, que nos moldou como somos, ou se será um novo mundo, habitado por pessoas que talvez não reconheçamos de saída e custaremos a entender quem são —nós mesmos.

*Ruy Castro, jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.