Ruy Castro

Ruy Castro: Pazonaro, digo Bolsuello, ganhou

Quem não sabe fazer perguntas não tem chance contra respostas que não querem dizer nada

O general Eduardo Pazuello, quem diria, hein? Promovido da chefia do serviço de rodos e vassouras dos quartéis ao posto de ministro da Morte por Jair Bolsonaro, botou no bolso seus inquiridores na CPI da Covid apenas por vencê-los numa arte que se julgava extinta: a oratória. Resposta após resposta, quase se podia ver seu sorriso sob a máscara, ao ouvir sua voz ressoar triunfalmente no auditório sem ser intimado a detalhar ou fundamentar suas declarações.

Se alguém se limitasse ao áudio dos interrogatórios de Pazuello, só escutaria a sua voz —firme, sonora, em alto volume, temperada em anos de ordens na caserna a soldados, cabos e sargentos, com eventuais humilhações a um ou outro ao obrigá-lo a se fazer de mula e puxar carroça na frente da tropa. Em contraposição, tínhamos a elocução tíbia, raquítica, titubeante e súplice dos senadores encarregados de lhe fazer perguntas.

Perguntas essas que só vinham à tona depois de 15 minutos de discurso por parte de cada senador —talvez de grande valia para os anais da CPI, mas de eficácia zero para fazer o inquirido falar. Pazuello foi brilhante ao enrolar, tergiversar, dar voltas e adiar cada resposta de modo a que, ao fim desta, ninguém mais se lembrasse da pergunta. Foi também eficiente ao interromper, transferir culpas, mentir e desmentir antigas declarações e mesmo as que tinha acabado de pronunciar e repetir com tanta ênfase essas negações que parecia até acreditar no que estava dizendo.

Mas o ponto alto era quando Pazonaro, digo Bolsuello, recebia certas perguntas dos senadores e as analisava, criticava, aferia seu grau de precisão e orientava o relator e o presidente da CPI sobre como elas deveriam ser feitas e como ele pretendia respondê-las. “Eu vou explicar de novo e os senhores vão entender”, dizia, soberanamente.

Está certo. Quem não sabe perguntar precisa de alguém que lhe ensine.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ruycastro/2021/05/pazonaro-digo-bolsuello-ganhou.shtml


Ruy Castro: A arte de fazer perguntas

Nas últimas semanas, recorri à minha já quase secular trajetória pela imprensa para cometer dois artigos (“Perguntas à queima-roupa”, 7/5, e “Pequeno manual para a CPI”, 12/5), em que tentei passar a possíveis interessados —os senadores da CPI da Covid, por exemplo— algumas dicas sobre como fazer perguntas. Afinal, é delas que vivem os jornalistas, e alguns tiveram a sorte de trabalhar em veículos em que a entrevista era uma grande atração.

Um deles, a antiga Playboy, cujas entrevistas passavam tal seriedade que mesmo os mais alérgicos a elas, como Frank Sinatra e Miles Davis, aceitaram concedê-las. A própria edição brasileira, em sua melhor fase, nos anos 80 e 90, entrevistou empresários, candidatos à Presidência e até suas maiores inimigas: as feministas. E por que eram tão boas as entrevistas de Playboy? Porque seus repórteres tinham cláusulas pétreas a seguir na elaboração da pauta e na sua aplicação. Eis algumas.

Preparar-se para a entrevista como se fosse a última que o sujeito daria em vida. Ler sobre ele para aprender tudo que se sabia a seu respeito, para perguntar justamente sobre o que não se sabia. Fazer uma pauta com centenas de perguntas, com perguntas alternativas entre uma e outra, como repique à pergunta anterior.

Nunca fazer duas perguntas ao mesmo tempo —faz-se a primeira e mantém-se a seguinte engatilhada. Ficar atento à resposta para possíveis buracos e ir a eles em seguida. Nunca cortar ou se intrometer numa resposta —afinal, o camarada está ali para falar. Em caso de súbito branco numa resposta, nunca tentar “ajudar” o entrevistado —ele que se obrigue a preenchê-lo e, ao fazer isso, dirá o que não queria.

E, se o entrevistado mentir, nunca chamá-lo de mentiroso na lata, claro, mas fazer com que ele perceba logo que você não se deixou tapear. Afinal, os repórteres, ao contrário da CPI, não têm poder de prisão.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ruycastro/2021/05/a-arte-de-fazer-perguntas.shtml


Ruy Castro: Pequeno manual para a CPI

Uma sessão de CPI, em que parlamentares interrogam judicialmente um depoente, se parece com uma coletiva de imprensa, em que jornalistas fazem perguntas a uma pessoa. Em ambas, o objetivo é extrair informações. O entrevistado pode omitir ou mentir para os repórteres, porque sabe que nada lhe acontecerá. Já o inquirido pela CPI está sob juramento. É obrigado a responder a tudo e só dizer a verdade, ou sair dali preso. Mas, na prática, contando com a própria esperteza ou com o despreparo dos inquisidores, ele também omite ou mente à vontade e volta para casa assobiando.

Tanto o entrevistado como o inquirido percebem logo o que o espera. Repórteres e inquisidores vaidosos, adeptos de perguntas longas, em que uma questão vai saindo de dentro da outra —e, no fundo, respondendo-se mutuamente—, não oferecem perigo. Dão tempo para que o sujeito mastigue com calma o assunto e prepare uma resposta neutra. O que ele teme são perguntas curtas, diretas, objetivas, que não lhe deixem brecha para escapar. Ou responde e assume o risco ou mente e tenta fugir, mas isso será tão ostensivo que permitirá a quem pergunta um repique tão agudo quanto.

Nem todos os repórteres e parlamentares se dão conta de que o importante não é a pergunta, e sim a resposta. Mas, para isso, a pergunta, além de à queima-roupa, exige trabalho de casa. Perguntas sobre “o que o senhor acha” ou “sabe” sobre isso ou aquilo dão margem a vaguezas ou surtos de amnésia. A pergunta certa ainda é aquela que os antigos jornalistas aprendiam: a que começa com quem, quando, onde, como, por que e com quem —e termina por um mortífero ponto de interrogação.

Antes de perguntar, deve-se também prever uma possível resposta e preparar o repique. Nenhuma pergunta pode ficar sem resposta.

Se for para ficar, é melhor sair dali, entregar a chave ao porteiro e continuar o papo no botequim.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ruycastro/2021/05/pequeno-manual-para-a-cpi.shtml

 


Ruy Castro: Estão gostando do palhaço?

Paulo Guedes, ministro-bufo de Jair Bolsonaro encarregado dos esquetes sobre economia, disse que “livro é coisa de rico”. E, como sempre, desafinou. Bolsonaro, por exemplo, é rico e não gosta de livros. O último que teve em mãos foi no dia de sua posse —um exemplar da Constituição, que ele jurou defender, mas nunca abriu e na qual cospe com regularidade.

Bolsonaro tem razão em não ligar para livros. Não só porque lê com dificuldade, acompanhando as linhas com a cabeça e tropeçando nas palavras quebradas, mas porque construiu seu patrimônio sem precisar deles, valendo-se apenas do salário de deputado e, dizem, do de seus servidores. A estante ao fundo em seus pronunciamentos no Planalto é cenográfica, com livros comprados a metro. Às vezes variam a cor das lombadas para combinar com sua gravata. Um brincalhão poderia rechear as prateleiras com as obras completas de Karl Marx e Bolsonaro não perceberia.

Esse brincalhão poderia ser Paulo Guedes. Numa trupe de momos como Abraham Weintraub, Ernesto Araújo e Eduardo Pazuello, era difícil notá-lo no picadeiro. À medida que eles foram sendo defenestrados, Guedes saltou para o centro da lona e nunca mais perdeu uma oportunidade de ficar calado. Exprobou as domésticas por irem à Disney, tachou os servidores públicos de parasitas, acusou os pobres de destruir o meio ambiente e ainda os condenou por não saberem poupar e só pensarem em consumir.

Como o show não pode parar, Guedes há pouco criticou o brasileiro por “querer viver 100, 120, 130 anos” e sobrecarregar a Previdência. Deu mais uma cotovelada na China, acusando-a de ter inventado o vírus e vender uma vacina de segunda. E avisou o IBGE que não lhe mandaria dinheiro para fazer o Censo porque “quem muito pergunta ouve o que não quer”.

Está certo. Imagine se, em meio ao espetáculo, alguém perguntar ao público se estão gostando do palhaço.

Fonte:

Folha de S. Paulo

https://www1.folha.uol.com.br/colunas/ruycastro/2021/04/estao-gostando-do-palhaco.shtml


Ruy Castro: Nosso destino é a estupidez

Em 1964, o Brasil ficou impossível para Celso Furtado - que os outros países, agradecidos, acolheram

Um mês e meio depois do golpe militar de 1º de abril de 1964, o economista Celso Furtado teve de deixar o Brasil. Seu nome estava na primeira leva de brasileiros com os direitos políticos e civis cassados. De uma lista aberta pelo presidente deposto João Goulart e pelo deputado Leonel Brizola, Celso era já o 26º. Entre os motivos para isto estavam sua passagem pela Cepal (Comissão Econômica para a América Latina), a criação e presidência da Sudene (Superintendência do Desenvolvimento do Nordeste) e ter sido o primeiro ministro do Planejamento do país. No Brasil dos generais, o ex-pracinha Celso Furtado não podia ser deixado à solta. Estava com 43 anos.

Seu primeiro destino foi Santiago do Chile. Mas não passou muito tempo por lá. Tinha convites de três universidades americanas para lecionar economia: Harvard, Columbia e Yale. Escolheu Yale, onde ficou de setembro daquele ano a junho de 1965, e só saiu porque o governo brasileiro pressionou a congregação para não renovar seu contrato. Foi para Paris, contratado pela pós-graduação da Sorbonne, em ato assinado pelo presidente De Gaulle, para ensinar economia do desenvolvimento.

Somente em 1968 teve 15 convites para ser paraninfo de turma.Em 20 anos de Sorbonne, Celso formou futuros presidentes da República e ministros de Estado, publicou livros e trabalhos, falou para governos e privou com potestades como Bertrand Russell, Jean-Paul Sartre, James Baldwin, Theodor Adorno, Herbert Marcuse, Octavio Paz, Jürgen Habermas —alguns, seus amigos.As cartas que mostram essa extraordinária trajetória estão no livro recém-lançado “Celso Furtado - Correspondência Intelectual 1949-2004”, organizado por Rosa Freire d’Aguiar.

Os militares o condenaram a levar seu conhecimento a plateias alheias ao seu coração. O que o Brasil dispensou, o mundo, agradecido, acolheu. Nosso destino é a estupidez —vide hoje.


Ruy Castro: Bilhete a um jovem bolsonarista

Se estiver sentindo o vírus perigosamente por perto, prepare-se para vir conhecer o Brasil real

Se o amigo vive no Brasil de Jair Bolsonaro, parabéns. Até há pouco, jovem, feliz, negacionista e com histórico de atleta, você era imune à Covid. Enquanto os velhos morriam, você assobiava no azul —distanciamento, higiene, restrições ao comércio, máscara e vacinas eram coisa de maricas e comunistas. Nas últimas semanas, no entanto, ao sentir o vírus perigosamente por perto e sabendo que amigos de seu porte físico e idade estavam intubados ou já no cemitério, é possível que você esteja pedindo ingresso no Brasil real —o nosso.

Não podemos bater-lhe a porta na cara, mas não espere muito de nossa parte. Somos 200 milhões à mercê da pandemia, dependendo apenas de nossos cuidados e do sacrifício dos profissionais da saúde —aqueles que nunca mereceram uma palavra de gratidão de Bolsonaro, muito menos uma visita de solidariedade a uma linha de frente. Mas fique certo de que esses profissionais o tratarão com a mesma heróica dedicação com que nos tratam —para eles, você será só mais um a ser salvo, não um farrista de aglomerações, festas clandestinas e carreatas.

Nós, brasileiros de segunda classe, estamos há um ano lendo e ouvindo entrevistas dos epidemiologistas e infectologistas. Mês a mês, eles avisaram sobre o que iria acontecer —e aconteceu. O combate a uma pandemia não pode caber a uma besta fardada como Eduardo Pazuello, cuja grande façanha militar foi obrigar um soldado a puxar uma carroça diante dos colegas num quartel em Brasília, em 2005. Talvez não seja também da sola de um cardiologista invertebrado como Marcelo Queiroga. Os especialistas continuam a avisar e a não serem levados em conta.

Neste Brasil à deriva, torça para não ser intubado. E, se for, que os hospitais tenham os remédios para ajudá-lo a engolir aquela tubulação.

Suas chances de sobreviver não serão muitas, mas, se sair dessa, aí, sim, bem-vindo ao Brasil real.


Ruy Castro: Extinção do nome Bolsonaro

Assim como Drakul, Torquemada e Hitler, ele desaparecerá por falta de quem ouse usá-lo

Imagine se, nascido na Romênia, você portar o sobrenome Drakul. Será difícil esconder que, por mais correto como cidadão, marido e pai exemplar e dedicado colecionador de selos, você é tatatatatataraneto de Vlad Drakul (1431-76) —ou príncipe Vlad, o Empalador, famoso por ter executado 40 mil inimigos atravessando-os do ânus à boca, vivos, lentamente, com estacas pontiagudas. Drakul foi também o nome em que se inspirou o irlandês Bram Stoker ao batizar seu vampiro Drácula, em 1897. Não é sobrenome dos mais confortáveis para se levar pela vida.

Mas, assim como há séculos não deve haver mais Drakuls por lá, não se conhecem também Torquemadas na Espanha —quem vai admitir ser descendente de Tomás de Torquemada, que mandou milhares de hereges e judeus para a fogueira no século 15? E de quantos Hitlers você ouviu falar na Alemanha e na Áustria desde o suicídio de Adolf em 1945? É verdade que, possivelmente broxa, o Führer não deixou filhos, mas não terão sobrado sobrinhos e primos com seu nome? E será conveniente ter hoje o sobrenome Tsé-tung na China, Amin Dada em Uganda e Pol Pot no Camboja? Os três somados ordenaram quase 80 milhões de mortes no século 20.

Façanhas invejáveis até por Jair Bolsonaro, responsável por boa parte dos por enquanto 13,6 milhões de brasileiros contaminados com a Covid e 358 mil mortos, números de que logo sentiremos saudade. Aos quais Bolsonaro chegou por um somatório de negação, sabotagem e mentiras, imortalizadas em tantas declarações gravadas. Nunca um criminoso se entregou tanto pela palavra.

O nome Bolsonaro também desaparecerá por falta de quem ouse usá-lo. Claro que, sabendo como seus filhos devem lavar o cérebro de seus próximos, talvez leve mais uma ou duas gerações para ele se tornar uma maldição.

Neste momento, pelo menos, já desprende um hálito putrefato, impossível de disfarçar.


Ruy Castro: 'Presidente, por que o senhor...?'

Se a pergunta for curta, direta e objetiva, a resposta de Bolsonaro pode consagrar o repórter

Em novembro de 1979, na campanha por sua indicação à disputa da Presidência dos EUA pelo Partido Democrata, o senador Ted Kennedy foi entrevistado pelo repórter da CBS Roger Mudd. O qual só precisou lhe fazer a primeira pergunta: "Senador, por que o senhor quer ser presidente dos EUA?". Kennedy vacilou, engoliu e gaguejou: "Bem, eu--- se eu for--- eu acho--- se disser que--- concorrer--- uma das razões---", para terminar num clichê de quinta categoria: "É que--- eu acredito neste país".

Sepultava ali sua chance de enfrentar o republicano Ronald Reagan. Os americanos não perdoam hesitação e despreparo num político, e, se Kennedy não conseguia responder a algo tão simples, o que seria quando voltassem a cobrá-lo sobre a morte por afogamento de sua secretária num acidente de carro dirigido por ele, em Chappaquiddick, Massachussetts, em 1969, e que ele nunca explicara direito?

Roger Mudd morreu na semana passada, em Nova York, aos 93 anos, de causas naturais, e a notícia trouxe de volta essa entrevista --uma aula para repórteres, principalmente de televisão. Ela mostra que não há nada mais mortífero para um político do que uma pergunta curta, objetiva, rápida e que termine com ponto de interrogação --porque não lhe dá tempo para pensar. Ou ele responde de bate pronto, arriscando-se a dizer o que não quer, ou embatuca ou dá uma resposta agressiva e malcriada. E, de qualquer maneira, reveladora.

No caso de Jair Bolsonaro, cuja relação com a imprensa independente é a de um javali acuado e excretando, seu atual estado de nervos pode desencadear uma agressão ao repórter por ferrabrases. Mas qualquer oportunidade de se lhe fazer uma pergunta educada, porém direta, de primeira e com um máximo de dez palavras —como a de Mudd—, deve ser aproveitada.

Não que se espere dele uma resposta racional. Nem precisa. A que vier arrisca consagrar o repórter.


Ruy Castro: Abominável senhor dos destinos

Nunca a vida de tantos brasileiros esteve nas mãos de tão poucos, garantidos pelas instituições

Um encontro numa sala reservada do Palácio do Planalto, no último domingo (14), reuniu quatro pessoas. Em jogo na conversa, a vida de centenas de milhares de brasileiros. O resultado da reunião, inevitável pelas circunstâncias, parece indicar que esses brasileiros perderam —muitos que acompanharam o caso pelo celular ou pela televisão talvez não estejam vivos daqui a um mês. Esse desfecho terá as digitais de três dos presentes na sala: Jair Bolsonaro, o general Eduardo Pazuello e o deputado Flávio Bolsonaro. Já a quarta pessoa, a médica Ludhmila Hajjar, poderá dormir em paz.

O encontro, todos sabemos, referia-se ao convite de Bolsonaro para que ela aceitasse a suposta pasta do Ministério da Saúde no lugar do pesado, mas invertebrado, Pazuello. Para isso, teria de declarar sua sujeição às ordens do verdadeiro ministro, que é Bolsonaro, e assumir a co-autoria na chacina da população pela Covid. Co-autoria esta já garantida a Pazuello, cujos netos lerão nos livros que o vovô foi cúmplice na morte de 265 mil brasileiros pela pandemia. O que a dra. Ludhmilla recusou não foi um convite, mas uma intimação.

O tenebroso nessa reunião é como tantos destinos —o número de vidas perdidas no Brasil ameaça chegar a inacreditáveis 500 mil ou 600 mil— podem depender de tão poucos. Entende-se que Bolsonaro e Pazuello quisessem arguir a dra. Ludhmilla, para certificar-se de que ela seria um capacho à altura de Pazuello. Mas o que Flávio Bolsonaro fazia ali, mesmo em ameaçador silêncio?

Não apenas a saúde no Brasil está refém de um grupo de sujeitos abomináveis. Tudo mais está refém deles. Quando se diz que as instituições "estão funcionando", é para garantir a continuidade do desmoronamento do país.

Já não há instituição do Estado que não esteja visceralmente aparelhada. A costura da provável ditadura está sendo feita por dentro e aos nossos olhos.


Ruy Castro: Aos biógrafos de Bolsonaro

O trabalho deveria começar por seus antepassados: Hitler, Jack o Estripador, Drácula, Herodes e Belzebu

Sempre achei um risco biografar gente viva. Não por medo do biografado ou de sofrer um processo, mas por motivo mais sério: como contar uma história que ainda não terminou? Imagine se, no dia seguinte ao lançamento de uma biografia, o biografado comete algo terrível, como estrangular seu papagaio ou fugir com a mãe de sua mulher. Em um segundo lá se vai o trabalho de anos do biógrafo —por que ele não previu que seu biografado seria capaz daquilo? Donde o certo é esperar que o fulano abotoe naturalmente o paletó, para só então mergulhar na investigação de sua vida.

Mas, com Jair Bolsonaro, não se pode mais esperar que ele vá para o diabo que o carregue. É urgente começar a biografá-lo porque, pela velocidade de sua trajetória —não passa um dia sem praticar um crime contra a democracia, a saúde, a educação, a ciência, a cultura, a economia, a ecologia, a diplomacia, a Justiça, os direitos humanos e a vida—, em breve ela não caberá em um volume. E isso apenas desde que assumiu a Presidência.

Ai está. Uma biografia de Bolsonaro deveria recuar aos seus antepassados, como Hitler, Jack o Estripador, Drácula, Herodes e Belzebu; explorar suas origens em Glicério (SP), burgo de 2.000 habitantes em 1955, onde depositaram o ovo do qual ele nasceu— e chegar à sua infame carreira militar e ascensão política. Vai-se revelar o seu longo e meticuloso processo de corrupção de colegas, servidores, generais, policiais e juízes, e, de passagem, descobrir como construiu seu patrimônio imobiliário e transferiu esse know-how para filhos e mulheres.

O importante é que, em alguma etapa, surja algo que explique o seu grau de desumanidade estudada, demência, crueldade e ódio.

Pelo que sei, já há profissionais biografando Bolsonaro. Só garanto que não sou um deles. Há um limite para a náusea, e basta-me ter ânsias de vômito quando o vejo na televisão.


Ruy Castro: Bolsonaro prestes a espumar

Quando isso acontecer é porque só lhe restará ser enjaulado

Alguns comentaristas acreditam que, em toda sua carreira, Jair Bolsonaro "viveu do confronto" e que, agora, com Lula à solta, ganhou uma saída para disfarçar o caráter criminoso de seu governo. Ouso discordar. Até dois dias atrás, o imbrochável Bolsonaro nunca soube o que era debater com alguém. Em seus 30 anos como um dos deputados mais medíocres da história, limitou-se a eventuais trocas de insultos e cusparadas com adversários imaginários. Ele próprio era tão desimportante, até para seus pares, que seus ganidos mal chegavam ao noticiário.

Como candidato à Presidência, a facada em Juiz de Fora permitiu-lhe escapar dos debates, o que escondeu sua personalidade demente e inaptidão administrativa e seu potencial de risco para as instituições. Enquanto os adversários se destruíam entre si, elegeu-se sem ser posto à prova. Daí, no trono, não conseguir disfarçar sua incapacidade de debater e dialogar, instrumentos comuns aos que já descemos da árvore.

No Planalto, Bolsonaro só usou até hoje os microfones para escoicear e mentir. Só pode falar em palanques preparados, onde cada palavra sua provoca um coro de kkks cacarejados pelos apoiadores e o estimula a mandar as pessoas enfiarem coisas no rabo. Esse é o seu nível e dos seus. E perguntas de repórteres são respondidas com um grosseiro "Página virada!", "Assunto encerrado!" ou "Acabou a entrevista!". Grosseiro, mas conveniente —Bolsonaro não responde porque não sabe responder.

A claque imediata também lhe serve de escudo. Por maiores as barbaridades, os bovinos de terno e de farda que o cercam babam e justificam tudo o que ele fala. Bolsonaro nunca teve um opositor de verdade.

Agora tem. E, na esteira de Lula, é preciso que outros saiam do torpor e também o contestem com fatos, números e argumentos. Quando Bolsonaro começar a espumar pelo canto da boca é porque só lhe restará ser enjaulado.


Ruy Castro: Sem limites morais ou humanos

Bolsonaro segue uma estratégia já vitoriosa no passado --a de Mao Tsé-tung na China

Na sexta-feira última (26), Jair Bolsonaro foi na mosca ao escolher o Ceará para cometer novos crimes contra a vida, induzindo o país a ignorar o isolamento, aglomerar-se nas ruas e não usar máscara. O Ceará é um dos estados em escuro no mapa, em que a taxa de ocupação das UTIs passa de 90%. Significa que muitos de seus apoiadores cearenses —ou os pais ou mães deles—, eventualmente apanhados pela Covid, podem estar morrendo na porta do hospital por falta de leito.

Vindo de um presidente da República, tal atitude só seria natural num irresponsável. Mas Bolsonaro sabe o que faz —o que tem a ganhar com isso é mais importante. Suponha que tal convite à insubordinação, assim como suas mentiras, seu poder corruptor e sua truculência, faça parte de uma estratégia anterior a ele, já provada vitoriosa.

Há mais de 50 anos, outro governante rompeu com seu partido, traiu os aliados e dedicou-se a desmoralizar o Congresso, o Judiciário e até as Forças Armadas. Esvaziou também a ciência, o ensino, a segurança pública e a própria administração e exortou seus seguidores a exercer a chamada democracia direta, através de grupos paramilitares livres para atuar. Esse governante —o "mito" que garantia tamanho caos— se chamava Mao Tsé-tung. E essa política foi a Revolução Cultural, que, enquanto durou, de 1966 a 1976, praticou toda espécie de violência em nome da "verdade".

Bolsonaro está cumprindo à risca esse plano, que não conhece limites morais ou humanos. Seu objetivo é o poder absoluto, e, para isso, corrompe e paga bem os que lhe são úteis --enquanto lhe são úteis. Virada a página, Bolsonaro os abate e abandona na estrada, donde os de farda, terno ou toga que se julgam seus aliados por ideologia preparem-se para surpresas. O poder só é poder se absoluto.

Mao morreu em 1976, aos 82 anos, e a Revolução Cultural acabou. Nem o poder absoluto é eterno.