Rússia
Queremos eleições livres e justas no Brasil, diz subsecretária de Estado dos EUA
Mariana Sanches*, da BBC News Brasil
No momento em que o presidente brasileiro Jair Bolsonaro (PL) volta a lançar dúvidas sobre o processo eleitoral, sugerindo que os militares deveriam supervisionar a contagem de votos do pleito presidencial de 2022, a subsecretária de Estado dos Estados Unidos, Victoria Nuland, afirmou em entrevista exclusiva à BBC News Brasil que, no Brasil, "o que precisa acontecer são eleições livres e justas, usando as estruturas institucionais que já serviram bem a vocês (brasileiros) no passado".
Nuland, responsável por assuntos políticos na diplomacia americana comandada por Antony Blinken, esteve há poucas semanas no Brasil, junto a uma delegação americana de alto nível. Os diplomatas dos dois países trataram, entre outros temas, de cooperação na área de defesa e de agricultura.
Na ocasião, os americanos voltaram a expressar "confiança na democracia brasileira". Segundo Nuland, no entanto, ela alertou o governo e a oposição sobre o risco de interferência russa nas eleições deste ano.
Candidato à reeleição e em segundo lugar nas pesquisas, Bolsonaro tem feito uma série de comentários sobre supostas fragilidades das urnas eletrônicas, sem apresentar provas, e atacado o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), que conduz o processo.
Na semana passada, a agência de notícias Reuters noticiou que, em julho de 2021, o diretor da agência de inteligência americana, a CIA, William Burns, teria advertido assessores diretos de Bolsonaro de que o presidente, que àquela altura já levantava dúvidas sobre a lisura do processo eleitoral, deveria deixar de questionar a integridade das eleições no país.
Tanto Bolsonaro como o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional (GSI), que teria estado presente na conversa, negam que ela tenha acontecido.
Questionada sobre o que os EUA fariam em caso de uma tentativa de golpe no país, Nuland afirmou: "Queremos eleições livres e justas em países ao redor do mundo e, particularmente, nas democracias. Julgamos a legitimidade daqueles que se dizem eleitos com base em se a eleição foi livre e justa e se os observadores, internos e externos, concordam com isso. Então, queremos ver, para o povo brasileiro, eleições livres e justas no Brasil".
Ao citar observadores externos, Nuland toca indiretamente em mais um ponto sensível no atual debate político brasileiro. Depois que o TSE remeteu dezenas de convites para instituições estrangeiras acompanharem o pleito, em outubro, o Itamaraty reclamou do convite à União Europeia, e o TSE teve de recuar. Bolsonaro também disparou críticas públicas à presença dos observadores, que acompanham eleições brasileiras ao menos desde 1994.
Brasil e EUA vivem uma "recalibragem" de suas relações, depois do mal-estar causado nos americanos pela visita do presidente brasileiro a Moscou em fevereiro, dias antes de o líder russo Vladimir Putin ordenar a invasão da vizinha Ucrânia. Entre diplomatas brasileiros existe a expectativa de que Bolsonaro e Biden se falem pela primeira vez pessoalmente em Los Angeles (EUA), em junho, durante a Cúpula das Américas.
Leia a seguir os principais trechos da entrevista, editada por concisão e clareza.
BBC News Brasil - Os EUA mudaram recentemente de tom em relação à Rússia: falam em 'enfraquecer' o país, enviam altos funcionários e parlamentares (como a presidente da Câmara, Nancy Pelosi) a Kiev, estão treinando soldados ucranianos. Não existe o risco de que essa nova postura contribua para o discurso de Putin de que esta é uma guerra do Ocidente contra a Rússia e aumente as chances de uma guerra nuclear? O que há para os EUA ganharem com essa nova abordagem?
Victoria Nuland - Eu diria que nosso tom em relação à Rússia é uma resposta direta ao fato de que Putin e seus militares invadiram a Ucrânia e à agressão cruel que estão perpetrando no país, incluindo os tipos de crimes de guerra que temos visto em Bucha e Kramatorsk etc. E os Estados Unidos, junto com o Brasil e muitos outros países, 141 países, foram ao Conselho de Segurança da ONU e à Assembleia Geral da ONU e disseram 'não' à agressão da Rússia.
Portanto, temos que chamar as coisas pelos seus nomes, e isso não é apenas uma guerra cruel contra a Ucrânia, mas uma violação de todos os princípios da carta da ONU e da soberania e integridade territorial dos países. Estamos defendendo o Estado de Direito, as regras globais que levaram à paz e à segurança por tantos anos e que a Rússia está violando flagrantemente agora.
BBC News Brasil - O ex-presidente brasileiro Luiz Inácio Lula da Silva, favorito para vencer as eleições de 2022 segundo pesquisas eleitorais, deu uma entrevista recente à revista Time em que critica o presidente dos EUA Joe Biden por não ter embarcado em um avião para Moscou para tentar dissuadir o líder russo Vladimir Putin da guerra. Como os EUA recebem essa crítica?
Nuland - Bem, em primeiro lugar, o presidente Biden falou com o presidente Putin duas, três, quatro vezes antes desta guerra, argumentando com ele. Como você deve se lembrar, os EUA descobriram esses planos de guerra no final de outubro e começaram a alertar o mundo em novembro, dezembro, janeiro, fevereiro que Putin tinha esses planos.
E durante esse período, o presidente Biden trabalhou muito para tentar convencer o presidente Putin a não ir à guerra, e em vez disso, seguir um caminho diplomático, trabalhar conosco, trabalhar com aliados da Otan (Organização do Tratado do Atlântico Norte), trabalhar com a Ucrânia, negociar quaisquer preocupações que ele tinha sobre as visões de segurança russas na Ucrânia. E nos oferecemos para ajudar. Tivemos uma rodada de conversas.
Enviamos uma proposta de dez páginas analisando todos os tipos de coisas, como preocupações (russas) com armas ocidentais, etc. Mas, em vez de vir à mesa diplomática, o presidente Putin optou por invadir e invadir de uma maneira muito, muito sangrenta. Portanto, não acreditamos que ele esteja ouvindo alguém.
BBC News Brasil - O presidente brasileiro Bolsonaro sugeriu ao governo turco recentemente uma missão conjunta a Moscou para participar das negociações para o fim da guerra. Os EUA diriam que essa tentativa é bem-vinda?
Nuland - Não temos dificuldade com nenhum líder global tentando convencer Putin a acabar com esta guerra. E vários já tentaram. O presidente Putin não está ouvindo. Esse é o problema. Então, torna-se uma questão de, se ao ir a Moscou você não for muito cuidadoso, parece estar dando apoio à guerra de Putin, especialmente visto que ele não mostrou nenhuma evidência de mudança de rumo com telefonemas e visitas recentes.
BBC News Brasil - Cerca de uma semana antes do início da guerra na Ucrânia, dois grandes líderes da América Latina, os presidentes da Angentina e do Brasil, foram a Moscou para se encontrar com Putin. O que isso diz sobre as relações dos EUA com esses países da região?
Nuland - Sabíamos que essas visitas iriam acontecer. Exortamos tanto o Brasil quanto a Argentina a darem a Putin a mesma mensagem que o presidente Biden estava enviando a ele e aos funcionários russos em todos os níveis, pública e privadamente, de que esta guerra seria um desastre, não apenas para a Ucrânia, mas para a Rússia, para a liderança de Putin e para sua economia e sua posição militar. E nosso entendimento é que em ambas as visitas, ambos os líderes, tentaram argumentar com Putin, mas ele não estava ouvindo. Então este é o problema, Putin não está ouvindo ninguém.
BBC News Brasil - Teremos eleições presidenciais este ano no Brasil. Os EUA têm alguma preocupação ou motivo para acreditar que os russos tentarão interferir ou se intrometer no processo?
Nuland - Obviamente, temos preocupações. Vimos a Rússia se intrometer em eleições em todo o mundo, inclusive nos Estados Unidos e na América Latina. Por isso, em minha recente visita ao Brasil, exortei o governo a ser extremamente vigilante, e a oposição também, para garantir que forças externas não estejam manipulando seu ambiente eleitoral de forma alguma. Isso precisa ser uma eleição de brasileiros para brasileiros, sobre seu próprio futuro.
BBC News Brasil - Assim como aconteceu em 2020 nos EUA, Bolsonaro está lançando dúvidas sobre o processo eleitoral no Brasil de antemão, exigindo a participação do Exército na apuração dos votos e dizendo que pode não reconhecer os resultados. Como os EUA veem esse tipo de declaração?
Nuland - Acreditamos que o Brasil tem um dos sistemas eleitorais mais fortes da América Latina. Vocês têm instituições fortes, salvaguardas fortes, uma base legal forte. Então, o que precisa acontecer são eleições livres e justas, usando suas estruturas institucionais que já serviram bem a vocês no passado. Temos confiança no seu sistema eleitoral. Os brasileiros também precisam ter confiança.
BBC News Brasil - O que os EUA fariam caso alguma tentativa de subversão dos resultados eleitorais acontecesse no país?
Nuland - Queremos eleições livres e justas em países ao redor do mundo e particularmente nas democracias. Julgamos a legitimidade daqueles que se dizem eleitos com base em se a eleição foi livre e justa e se os observadores, internos e externos, concordam com isso. Então, queremos ver, para o povo brasileiro, eleições livres e justas no Brasil. Vocês têm uma longa tradição nisso. E isso é o mais importante para manter a força do Brasil daqui para frente.
BBC News Brasil - Os fertilizantes são um suprimento crítico para a produção de alimentos e o Brasil enfrenta a falta do produto, importado principalmente da Rússia. Os EUA apoiariam a criação de algum corredor seguro ou um salvo-conduto para navios russos carregados de fertilizantes para o Brasil, como o presidente brasileiro solicitou recentemente à diretora da Organização Mundial do Comércio?
Nuland - O fato de haver uma escassez global de fertilizantes - e uma escassez no Brasil - é resultado direto da decisão de Putin de lançar essa guerra. No meu entendimento, a única coisa que impede o fertilizante russo de chegar ao mercado é a guerra que Putin lançou.
Então, o que os Estados Unidos estão tentando fazer é trabalhar com países como o Brasil. E o secretário Blinken terá uma reunião, para a qual o Brasil está convidado, em algumas semanas sobre alimentação, segurança e fertilizantes etc., para ajudar países como o Brasil que precisam de fertilizantes. E então, com fertilizantes, podemos ajudar a alimentar o mundo, porque também temos muitos países com insegurança alimentar que dependem de grãos vindos da Ucrânia.
Quando eu estive no Brasil, nós trabalhamos em um projeto do Departamento de Agricultura dos EUA, para ver como vocês usam os fertilizantes nas lavouras (brasileiras). Estamos tentando aumentar a produção de fertilizantes nos EUA.
Estamos trabalhando com o Canadá e outros países que podem ajudar, para acelerar isso, para que vocês tenham uma safra muito forte, para poder alimentar a si mesmos e seus parceiros de exportação habituais, mas também possa ajudar a alimentar o mundo, (para o Brasil) ser generoso com alimentos, como já foi com o petróleo, com o aumento da produção brasileira de petróleo neste momento de necessidade para o mundo
*Texto publicado originalmente no BBC Brasil
A globalização continua
Luiz Sérgio Henriques* / O Estado de S. Paulo
Vozes econômicas influentes informam que a globalização, tal como a conhecemos desde o fim do bloco soviético, tem os dias contados. O colapso financeiro de 2008, a pandemia e, por último, a invasão da Ucrânia teriam fraturado a articulação dos mercados e causado a crise da segunda grande onda globalizante, assim como a Guerra de 1914 teria encerrado a primeira. A discussão econômica está em aberto, naturalmente, ainda que, do ponto de vista estritamente político, seja bem menos perceptível a diminuição da interdependência entre povos e nações.
Na política, tudo continua a se relacionar tanto quanto antes – ou talvez mais. O fracasso eleitoral da oposição unificada na Hungria, caso paradigmático de “democracia iliberal”, reverbera como advertência para nós, tão distantes daquele singularíssimo país. As eleições francesas colocam novamente em confronto, repetindo o cenário de 2017, o centro liberal-democrático de Macron e a extrema-direita de Le Pen. E nem é bom imaginar o efeito de eventual mudança de rumos na política francesa, que corroeria a unificação europeia e sinalizaria o revigoramento da “Internacional de nacionalismos”, um dos muitos oxímoros que nos atormentam nestes tempos confusos.
Os nacionalismos em questão articulam-se em rede, trocam experiências, auxiliam-se mutuamente sem constrangimento. Não se limitam a proclamar, fechados em si mesmos, que cada uma das respectivas nações de referência deve vir “em primeiro lugar” ou “acima de tudo” – e acompanhada por alguma versão pré-moderna de um Deus “acima de todos”.
A inter-relação tem se imposto desde os triunfos inaugurais do moderno nacional-populismo com o Brexit e a eleição de Donald Trump. O fluxo planejado de desinformação, possivelmente gestado ainda na era soviética, esteve presente nestes dois acontecimentos e em muitos outros, acirrando ressentimentos e explorando situações inéditas, como a fragmentação das velhas classes sociais e a emergência de uma “sociedade dos indivíduos”, na expressão de Pierre Rosanvallon. Nada faz supor que tal fluxo se detenha em eleições futuras, inclusive na brasileira, e só este fato deveria servir como segunda e poderosa advertência.
Nunca é muito claro o exato momento em que uma “democracia iliberal” se despe de ornamentos e assume as feições de uma autocracia ou, para usar linguagem mais direta, de uma ditadura. E nem sempre lhe será possível, adequado ou conveniente apresentar-se como tal. O fato é que os nativistas aprenderam, ao menos em parte, a lição da hegemonia, empregando recursos que permitem dar uma orientação a amplos setores desnorteados com a velocidade das transformações em curso.
O nacionalismo autoritário sempre provê uma comunidade ilusória, permanentemente mobilizada contra os mais fracos e os “diferentes”. Às vésperas do fascismo clássico, há pouco mais de cem anos, espalhava-se a fantasia da “nação proletária” injustamente explorada pelas demais. Enquanto lutava pela sua parte no butim colonial, tal nação devia unir-se compactamente, calando as discrepâncias internas mediante a fruição do trabalho dos “povos inferiores”. Hoje, o populismo recorre demagogicamente a uma suposta defesa dos “perdedores da globalização”, investindo contra os imigrantes e tentando herdar os eleitores da esquerda clássica. O que não muda, em circunstâncias tão distintas, são o culto do homem providencial (Marine Le Pen é, aqui, uma exceção) e a consequente compressão da vida democrática.
Esta compressão apresenta-se com toda a nitidez no exemplo-limite da Rússia de Vladimir Putin, na qual o Estado aparece quase inteiramente como pura força. O plurissecular passado despótico – seja o dos czares, seja o do comunismo stalinista – constitui o repertório no qual se buscam as razões últimas do poder autocrático. A bem da verdade, o bolchevismo original é alvo da ideologia eslavófila de Putin, pois nele ainda pulsa uma ligação com o Iluminismo e a cultura ocidental, não obstante o radicalismo jacobino que o levaria à perdição. Internamente, por isso, o Estado de Putin se apoia no controle repressivo da sociedade civil; externamente, na guerra, em particular nas suas modalidades mais destrutivas, o que vemos a cada dia, com horror, na agressão à Ucrânia.
Recorrendo à lição hegemônica ou valendo-se da força, ou, ainda, empregando uma mistura de ambas, o nacionalismo populista é a grande ameaça atual à comunidade das nações democráticas. A estas últimas, também abaladas em seu interior por forças e personalidades autoritárias, não convém ostentar nenhum tipo de húbris ou vocação missionária. Elas podem regredir pavorosamente, bastando lembrar o assalto ao Capitólio e o mau exemplo semeado. Como indivíduos, para seguir viagem em meio às ondas tempestuosas da unificação do gênero humano, temos à disposição o cultivo do “instinto de nacionalidade”, na forma de lealdade à Constituição, e o aprofundamento da condição de cidadãos do mundo, envolvidos inexoravelmente em cada avanço e em cada recuo das nossas sociedades.
*Tradutor e ensaísta, é um dos organizadores das ‘Obras’ de Gramsci no Brasil
(Publicado originalmente em O Estado de São Paulo, em 17 de abril de 2022)
Biden convida Brasil para Cúpula pela Democracia, para isolar China e Rússia
Lista de convidados é razão de controvérsia por incluir outros países com governos acusados de minar Estado de direito, como a Polônia
O Globo e agências internacionais
WASHINGTON — O presidente americano, Joe Biden, convidou 110 países, entre eles o Brasil, para a Cúpula sobre a Democracia que será realizada de maneira virtual nos dias 9 e 10 de dezembro. A lista, que provocou controvérsia desde a convocação da cúpula, inclui aliados americanos como Iraque, Índia e Paquistão, mas deixa de fora outros como Arábia Saudita, Turquia e Hungria.
A cúpula foi prometida por Biden desde a campanha eleitoral de 2020, com o objetivo de ressaltar o que ele chama de volta da liderança internacional dos EUA depois dos anos de Donald Trump, marcados pelo rompimento com organismos e tratados multilaterais e pelas disputas com aliados tradicionais de Washington, como Alemanha e França.
Um dos principais objetivos do encontro é fazer um contraponto à China, classificada por Biden como a grande rival estratégica dos EUA, e à Rússia. Nesse sentido, nem o governo de Xi Jinping nem o de Vladimir Putin foram convidados, mas sim o governo de Taiwan, o que enfureceu Pequim, que considera a ilha uma "província rebelde".
Na América Latina, nem Venezuela nem Cuba estão na lista de convidados, mas ela inclui Argentina, México, Peru, Colômbia e Chile. O Brasil de Jair Bolsonaro é citado em estudo divulgado nesta semana sobre o "o estado global das democracias" como o país que registrou o maior retrocesso democrático em 2020, por causa dos ataques do presidente à Justiça e ao sistema eleitoral.
No estudo, da organização International Idea (Instituto Internacional para a Democracia e a Assistência Eleitoral), que desde 2016 analisa 150 países, os EUA apareceram pela primeira vez na lista das "democracias em retrocesso", por causa, entre outros fatores, do questionamento de Trump ao resultado da eleição de 2020 e de leis aprovadas em estados governador por republicanos que cerceiam o direito de voto, em especial de minorias.
Do Oriente Médio, apenas Israel e Iraque foram convidados para este encontro virtual, que será realizado em 9 e 10 de dezembro. Aliados árabes tradicionais dos EUA como Egito, Arábia Saudita, Jordânia, Qatar ou Emirados Árabes não foram chamados.
A Polônia também estará representada, apesar de tensões recorrentes com Bruxelas sobre o respeito ao Estado de direito. A Hungria, liderada pelo primeiro-ministro Viktor Orbán, não esteja na lista do Departamento de Estado. A Turquia, que assim como os EUA, é país-membro da Otan, também está ausente da lista de países participantes.
Já na África, estão entre os convidados a República Democrática do Congo, Quênia, África do Sul, Nigéria e Níger.
Oposição
Nesta quarta-feira, o governo de Pequim reagiu rapidamente ao convite feito a Taiwan por Biden:
— A China mostra sua firme oposição ao convite americano feito às autoridades de Taiwan — declarou o porta-voz do ministério das Relações Exteriores, Zhao Lijian.
Ele insistiu que Taiwan é "uma parte inalienável do território chinês.”
Taiwan é foco de tensões entre EUA e China. O governo local agradeceu a Biden pelo convite: "Com esta reunião de cúpula, Taiwan pode compartilhar sua história democrática de sucesso", afirmou o porta-voz da presidência, Xavier Chang, em um comunicado.
Na Rússia, o porta-voz do Kremlin Dmitri Peskov declarou nesta quarta-feira, durante uma conversa com a imprensa, que a iniciativa de Biden pretende dividir os países:
— Os EUA preferem criar novas linhas de divisão, dividir os países em bons, segundo sua opinião, e maus, segundo sua opinião — disse Peskov.
Segundo Laleh Ispahani, da Fundação Open Society, a diversidade da lista é importante:
— Para uma primeira cúpula (...) há boas razões para ter uma ampla gama de atores presentes: isso permite uma melhor troca de ideias — disse à AFP.
Segundo Ispahani, em vez de realizar uma reunião anti-China, que seria uma "oportunidade perdida", Biden deve aproveitar a reunião para "atacar a crise que representa o sério declínio da democracia em todo o mundo, mesmo para modelos relativamente robustos como os Estados Unidos."
Fonte: O Globo
https://oglobo.globo.com/mundo/biden-convida-brasil-para-cupula-pela-democracia-que-visa-isolar-china-russia-25289702
Pedro Fernando Nery: Piores elites do mundo
Brasil aparece atrás de México, Rússia, Índia e até de países como Casaquistão
O Brasil teria a 6.ª pior elite entre 32 países. Em ranking de qualidade das elites mundiais – liderado por Cingapura, Suíça e Alemanha –, o Brasil aparece atrás do México, da Rússia, da Índia e até de países como Casaquistão, Arábia Saudita e Botswana (embora na frente da Argentina). O Índice de Qualidade das Elites foi veiculado em relatório recente dos economistas Tomas Casas e Guido Cozzi (Fundação para a Criação de Valor). O que ele explica sobre o nosso País e como se relaciona com a agenda de reformas?
Os autores definem elites como grupos pequenos e coordenados, capazes de acumular riqueza, e que seriam uma “inevitabilidade empírica” – presentes em todas as sociedades. Um índice alto significaria que a elite do país cria mais valor do que captura, contribuindo para o crescimento econômico e o desenvolvimento humano. Já nos países com índices baixos as elites teriam desenhado instituições mais “extrativas”. Grosso modo, a questão é se, na acumulação de sua riqueza, a respectiva elite beneficia a sociedade ou dela se beneficia.
O relatório bebe em conceitos dos economistas Daron Acemoglu (MIT) e James Robinson (Chicago), do best-seller Por que as Nações Fracassam, mas em particular do livro mais recente da dupla, The Narrow Corridor (ainda sem tradução). Acemoglu e Robinson explicam o desenvolvimento dos países pela qualidade de suas instituições (regras informais ou formais, como leis, que regem o funcionamento da sociedade). Resumidamente, essas instituições podem ser inclusivas ou extrativas. No último caso, a riqueza do país é extraída pela sua elite – que por sua vez concentra seus esforços e recursos não em ser produtiva, mas em conquistar favores e privilégios. Essa postura que visa à renda improdutiva é expressa no termo rent-seeking, traduzido como caça às rendas ou rentismo.
A partir daí, Casas e Cozzi dividem as elites em três tipos principais: rentistas (extraem valor e detêm muito poder), competitivas (geram valor, mas não detêm muito poder) e iluministas (geram valor, a despeito de deterem muito poder). O estudo basicamente identifica apenas elites rentistas e competitivas.
A elite brasileira é do grupo das rentistas. Nossas piores classificações no indicador são na categoria que avalia como o Estado retira renda; na categoria de rentismo da produção; e na categoria de rentismo do trabalho.
A primeira compreende uma avaliação da regressividade e distorções do sistema tributário. A tributação dos lucros e a parcela da renda retida pelos 10% mais ricos são alguns dos itens. Aqui, é possível fazer ligação clara com a reforma tributária e instrumentos como a isenção no IR para lucros e dividendos, bem como outros mecanismos que permitem que os mais ricos paguem menos impostos que os mais pobres.
A segunda categoria que vamos especialmente mal diz respeito à exposição dos grandes à competição. Nessa categoria de rentismo dos produtores são avaliadas questões que podem levar à formação de monopólios ou oligopólios – aptos a extrair renda das famílias com produtos mais caros ou de pior qualidade. Inclui a proteção tarifária contra produtos estrangeiros, regulações que criam barreiras à entrada de novas empresas no mercado e a facilidade de fazer negócios. A agenda mais óbvia aqui é a da abertura comercial, mas também a de desburocratização.
Uma terceira categoria em que estamos perto da lanterna, a de rentismo do trabalho, contempla a forma como instituições do mercado de trabalho preterem os jovens. Demandaria pauta de abertura do mercado de trabalho, para tornar mais fácil empregar grupos excluídos. Seriam exemplos mudanças como a reforma trabalhista e a carteira de trabalho verde e amarelo – não à toa, duramente combatidas pelos representantes dos incluídos.
A agenda por instituições mais inclusivas, em prejuízo das atuais elites dominantes, não é exclusiva de nenhum ponto no espectro ideológico. Por exemplo, a esquerda é mais combativa pelo fim dos privilégios no sistema tributário, mas é historicamente contra a exposição à competição de empresas estrangeiras ou mulheres e jovens – respectivamente no mercado de bens e no mercado de trabalho. Há uma grande concertação nacional a ser feita nos próximos anos se quisermos subir da última divisão das elites mundiais.
*Doutor em economia
Demétrio Magnoli: Lukachenko é tirano da Belarus, mas vassalo de Putin
Presidente bielorrusso tem os traços de um fantoche ideal
No rastro de uma eleição farsesca, enquanto manifestantes sofriam brutal repressão, o presidente da Belarus, Aleksandr Lukachenko, recebia duas mensagens de congratulações.
Uma, do chinês Xi Jinping, desejando-lhe “muitas felicidades”, e a outra, mais específica, do russo Vladimir Putin, dizendo que o resultado “atende aos interesses fundamentais dos povos fraternos da Rússia e da Belarus” e assegura “relações de mútuo benefício em todas as áreas”. Ditadores ajudam uns aos outros —mas há algo mais neste caso.
Xi e Putin temem, acima de tudo, protestos nas ruas. As balas de borracha e a munição real empregadas pelas forças de segurança de Lukachenko, as 6.000 prisões, os espancamentos de detidos —tudo isso serve como alerta disciplinário para chineses e russos. O que aflige Putin, em particular, é o espectro de uma “Maidan bielorrussa”, isto é, a reprodução da revolução ucraniana de 2014 no Estado-vassalo vizinho.
Putin orienta-se pelo manual clássico da geopolítica russa, que enxerga o corredor de planícies entre a Alemanha e a Rússia europeia como estrada de trânsito de exércitos invasores. Há uma história longa, dramática, pontuada por Napoleão e Hitler, que sustenta o raciocínio.
Depois da implosão da URSS, a Otan avançou suas forças até a fronteira oriental polonesa. Moscou não classifica Belarus como nação soberana, mas como ativo territorial de profundidade estratégica russa.
“Maidan bielorrussa” é hipótese remota. O nacionalismo ucraniano antirrusso nutre-se de um trágico passado recente: o Holodomor, a Grande Fome de 1932-33 provocada pela coletivização forçada de Stálin. Não há um nacionalismo similar na Belarus.
Além do mais, depois de tudo, a Ucrânia não ganhou seu almejado passaporte para a União Europeia, um sonho difícil despedaçado de vez pela guerra separatista de baixa intensidade instalada pelo Kremlin no leste do país. Os bielorrussos sabem disso, como também conhecem a profunda dependência econômica que prende sua nação à Rússia.
Belarus é uma ponte crucial na geopolítica dos gasodutos russos. Por seu território, passa um quinto do gás fornecido pela Rússia à Europa. O duto Yamal transporta combustível extraído na Sibéria Ocidental para a Alemanha e o Luzes do Norte segue rota quase paralela, com destino à Polônia.
A Gazprom russa, que controla os dois dutos, absorveu a companhia de gás bielorrussa Beltransgaz em 2011. Belarus recebe petróleo e gás russos a preços subsidiados, ferramenta de chantagem que Putin utiliza para submeter Lukachenko às suas vontades.
Lukachenko, presidente bielorrusso desde que o cargo foi instituído, em 1994, tem os traços de um fantoche ideal. O antigo dirigente de uma fazenda coletiva, único deputado do Parlamento bielorrusso a votar contra a dissolução da URSS, conduziu seu país aos acordos da União com a Rússia de 1996-99, que preveem uma união monetária, cidadania comum e política unificada de defesa. Contudo, a vassalagem tem uma fronteira, que é a garantia de seu poder pessoal sobre a Belarus.
“Não somos russos, somos bielorrussos”, proclamou Lukachenko em 2014, após a anexação da Crimeia pela Rússia, no primeiro discurso em que trocou a língua russa pela bielorrussa. Ano passado, na mesma linha, o ditador resistiu à insistência de Putin pela imediata implementação da União com a Rússia.
Num contexto político diferente, ele se comporta como Nicolae Ceausescu, o tirano comunista da Romênia que rejeitou a submissão absoluta a Moscou. É por isso que, paradoxalmente, Putin sorri duas vezes diante da revolta em curso na Belarus.
A satisfação óbvia emerge da selvagem repressão, que ensina aos russos uma lição sobre limites. Menos explícita é a que emerge da conflagração social nas ruas do país vizinho: um Lukachenko debilitado não se atreverá a dizer “não” ao mestre e protetor.
*Demétrio Magnoli, sociólogo, autor de “Uma Gota de Sangue: História do Pensamento Racial”. É doutor em geografia humana pela USP.
Fernando Gabeira: Os russos não dão bandeira
A Rússia vai se concentrar no verdadeiro problema de segurança, que é o terrorismo
De repente, chegou por aqui uma notícia: quatro brasileiros foram presos por exibir uma bandeira do país na rua. Era fake news.
Talvez tenha nascido da cartilha da Embaixada do Brasil que aconselhava a não ostentar bandeiras nem carícias entre gente do mesmo sexo nas ruas da Rússia.
A Embaixada não fez mais do que seu dever. Informar as leis do país para defender os brasileiros que o visitam. Num país onde, por exemplo, as mulheres têm de usar véu, a obrigação consular é avisá-las. No entanto, apesar das precauções, é evidente que essa história da bandeira é uma regra que não pega na Copa do Mundo.
Saí pelas ruas e documentei, no domingo, como as imediações do Kremlin estavam cheias de gente com bandeira. Todos sul-americanos, e um russo.
Ouvi gente que vive aqui. Um diplomata contou que um dia usou uma bandeira no estádio e muita gente se aproximou, pedindo-a de presente. Já um jornalista que mora aqui alguns anos teve uma experiência diferente. Enrolado na do Brasil, atraiu a hostilidade de alguns transeuntes porque pensavam que era de algum movimento separatista.
Durante o conflito com a Ucrânia, muito possivelmente as pessoas que andassem com a bandeira do país nas ruas de Moscou seriam hostilizadas. Os russos têm uma palavra para isso. Soa mais ou menos assim: “provocacia”. Quer dizer provocação.
É improvável que o governo russo reprima latino-americanos cantando nas ruas com a bandeira de seu país. Num só trecho ao lado do Kremlin, encontrei bandeiras da Colômbia, México e Peru. O interessante é que apareceu um torcedor russo com a bandeira de seu país e se juntou ao alegre grupo mexicano que cantavam “Cielito Lindo”, origem provável do nosso “Está chegando a hora”.
Talvez a mesma tolerância exista para a bandeira do arco-íris, caso apareça nas ruas. Eu não a vi. O problema é que os russos sabem que o mundo está de olho na Copa e, com décadas de experiência de “provocacia”, vão se concentrar no verdadeiro problema de segurança, que é o terrorismo.
Além do terror, outro problema central são os hooligans, nome, por sinal, de origem russa. Eles estão sendo monitorados no país, e nove agentes especiais britânicos vieram para acompanhar os ingleses.
Ao que tudo indica, podem ser neutralizados nesta Copa. Numa entrevista concedida a um youtuber, um hooligan russo afirmou que a polícia estava vigiando de perto, e que a chance de haver conflito na Copa era menor. Isto porque já houve um grande confronto em Marseille, em 2016, entre os hooligans russos e ingleses:
— Estamos satisfeitos com aquilo. Foi o grande momento na nossa história. Daqui para diante, um outro confronto seria uma espécie de anticlímax.
O confronto de Marseille foi considerado o mais grave da história. Mais aguerridos e organizados, os russos deixaram muitos feridos no lado inglês. A polícia francesa, pega um pouco de surpresa, perdeu o controle da situação.
Embora não seja um especialista nesse região do mundo, a análise politica mais elementar indica que os russos farão tudo para que a Copa dê certo e a tendência é a de poucos incidentes.
Isso não significa um estímulo a sair com as bandeiras pelas ruas porque, como dizia Afonso Arinos, não se deve confiar apenas na cúpula: o problema está quase sempre no guarda da esquina.
El País: A reconquista do Extremo Oriente da Rússia
Kremlin promove o retorno dos descendentes de cristãos russos perseguidos por suas crenças, a fim de repovoar e trabalhar as terras de seus ancestrais. Alguns deles estavam no Brasil
Dersu, uma aldeia composta por cabanas de madeira cobertas de neve, foi o principal destino dos imigrantes de origem russa que vieram da América Latina para cumprir os planos de Moscou para a colonização do Extremo Oriente. Vivem aqui 74 Velhos Crentes, ou seja, membros da comunidade cristã que foi perseguida por se opor à reforma litúrgica do patriarca ortodoxo Nikon no século XVII. Os raskolniki, como são conhecidos, se dispersaram pela periferia da Rússia, e uma parte deles partiu para o exílio. A maioria dos que chegam à Rússia atualmente completa um périplo ao redor do mundo, que teve início na China, aonde se refugiaram da Revolução Bolchevique e da guerra civil, e prosseguiu na década de sessenta no Uruguai, no Brasil e na Bolívia, quando as relações entre Moscou e Pequim se deterioraram.
Ulian Murashov, de 53 anos, é o chefe da comunidade de Velhos Crentes de Dersu e, junto com sua esposa, Ksenia, e seus 12 filhos, chegou a esta localidade em 2012, em busca de um lugar mais apto à agricultura e à pecuária do que os apartamentos da guarnição militar na fronteira com a China, onde as autoridades os alojaram durante um ano depois que eles vieram da Bolívia. Nesse país sul-americano, o casal Murashov cultivava dezenas de hectares na província do Obispo Santistevan, no departamento da Santa Cruz (leste). Antes de empreenderem a viagem à Rússia, a pátria de seus antepassados, venderam tudo o que tinham. Suas atividades na Rússia são as mesmas que desempenhavam na Bolívia, com a diferença de que o clima nesta região só permite uma safra por ano. Os Murashov e os parentes que os acompanharam a Dersu dispõem de quase 2.200 hectares de terras, entre adquiridas e arrendadas. A família tem 100 cabeças de gado e vende laticínios e pão uma vez por semana no mercado de Roschino, a 36 quilômetros da sua aldeia.
Os Murashov parecem a reencarnação dos avós e bisavôs, cujos retratos estão pendurados na parede da sua izba (moradia típica). Ksenia usa vestido comprido e um lenço na cabeça. Ulian ostenta uma longa barba avermelhada. “Na Bolívia me chamavam de gringo”, brinca, num castelhano marcado pelo sotaque brasileiro. Ulian conseguiu rapidamente o passaporte russo, mas conserva também o passaporte do Brasil, país onde viveu antes de se mudar para a Bolívia. Daí o seu modo peculiar de se expressar.
“A primeira impressão que nos deram, pela roupa e pela maneira de falar em russo, foi a de uma representação teatral de outra época”, diz Fedor Kronikovski, que desde o verão passado é o defensor oficial dos direitos dos Velhos Crentes imigrados. Antes de ter sido nomeado, duas casas pertencentes aos Velhos Crentes queimaram em Dersu e o metropolita Korniliy transmitiu ao presidente Vladimir Putin sua preocupação com os membros de sua comunidade.
O líder dos Velhos Crentes e o chefe do Estado russo se entenderam nos primeiros contatos jamais mantidos entre o chefe do poder civil na Rússia e o mais alto dignitário daquela Igreja. Um grupo de trabalho especial dedicado aos Velhos Crentes foi criado na Administração do Kremlin e a agência governamental de desenvolvimento do capital humano do Extremo Oriente planeja uma visita ao Brasil, Bolívia, Uruguai e Argentina em abril para incentivar as comunidades locais de Velhos Crentes — entre 3.000 e 5.000 pessoas — a retornar à sua pátria histórica: o leste da Rússia. Em Moscou temem que a captação de novos imigrantes possa ser afetada por problemas em relação aos correligionários que já emigraram para a Rússia.
“Será que somos tão valiosos? Minhas lágrimas caem e estou profundamente agradecido quando penso na atenção impressionante dada pelo Estado [russo], mas as autoridades locais não têm interesse nesse programa de assentamento e muitos aqui nos encaram como parasitas e nos rejeitam”, diz Ulian. “Eu sei que o Governo está lutando, mas tem de renovar as prefeituras, que estão nas mãos das máfias”, diz o colono, preocupado também com a hostilidade de parte da vizinhança.
“Os Velhos Crentes destroem a cumplicidade entre as autoridades locais que quase não possuem recursos e os empresários que tentam influenciá-las por meio do dinheiro”, diz Kronikovski, segundo o qual “aqueles que contemplam os Velhos Crentes de uma posição egoísta são minoria”. “A maioria”, diz ele, “quer ajudá-los porque pensam que o país precisa deles, porque sua fé é uma garantia de imunidade contra a degradação e porque na Rússia atual não existe gente assim”.
Na espaçosa sala de estar dos Murashov, os dois filhos mais jovens, Agripina, de sete anos, e Filaret, de 12, observam o estrangeiro com curiosidade. Sua escolarização é feita por uma professora que dá aulas a domicílio duas vezes por semana. Nestes dias estão alojados na casa de Fedor Kilin e sua esposa Tatiana, os pais de Ksenia, que vieram fazer uma visita desde Svobodna, seu local de residência na vizinha província de Amur. Esses octogenários nascidos na China viveram mais tarde no Uruguai. Depois de uma missão de reconhecimento na Rússia em 2008, Fedor Kilin foi um dos pioneiros do retorno ao país dos czares. O primeiro grupo de colonos disposto a se instalar em Dersu chegou no dia da Páscoa de 2009. Kronikovski e o pope da Igreja Ortodoxa de Roschino receberam o grupo com uma mensagem acima das diferenças litúrgicas: “Cristo ressuscitou”.
Roschino, de 6.000 habitantes, fica a 500 quilômetros ao norte de Vladivostok e no passado tinha um aeroporto do qual se voava para as principais cidades próximas. A retomada das comunicações aéreas é pouco provável por enquanto. Na pista de pouso foram construídas casas e a torre de controle foi transformada em igreja. De Roschino a Dersu não há estrada asfaltada e, guiados por Kronikovski, se atravessam cerca de 36 quilômetros sobre o gelo e o também congelado rio Bolshaia Usurinka.
Dersu recebeu esse nome em homenagem ao caçador Dersu Uzala, imortalizado por Akira Kurosawa, o cineasta japonês que levou às telas a história do geógrafo e oficial czarista Vladimir Arsenev. A aldeia se chamava anteriormente Lauliu, mas os nomes de lugares chineses ou de comunidades autóctones do Extremo Oriente foram substituídos depois do confronto militar russo-chinês de 1969 em Zhenbao (Damanski para a Rússia), uma ilha do rio Usuri, que é fronteira entre os dois países. Zhenbao está na área de mais de 300 quilômetros quadrados que a Rússia cedeu à China em virtude de um tratado bilateral ratificado em 2005.
Os Velhos Crentes constroem grandes izbas em Dersu. Os Murashov têm um poço e uma bomba, razão pela qual abrigam em sua cozinha as máquinas de lavar automáticas de outras famílias da comunidade.
A família tem receio dos jornalistas em geral, mas se mostra hospitaleira com este jornal e a língua castelhana alternada com o russo soa exótica nestas paisagens nevadas. Ksenia nos oferece chá, pão e geleia caseiros, enquanto Ulian e o defensor de seus direitos se envolvem em um debate sobre o equipamento agrícola que a empresa estatal de petróleo Rosneft deu à comunidade. O equipamento é para todos, mas deve ser registrado em nome de apenas uma pessoa e Ulian teme que o titular tenha que assumir as reparações do maquinário enquanto os outros o usam sem responsabilidades.
Kronikovski tenta convencê-lo das virtudes do trabalho em comum, mas Ulian diz que se sente mais à vontade com a colheitadeira que construiu a partir de sucata. “Tudo o que preciso é terra e um pouco de ajuda para comprar sementes e combustível. Os empréstimos bancários, que devem ser reembolsados todos os meses, não foram pensados para a agricultura, e as subvenções do Estado são muito burocráticas”, diz o colono, a quem o Governo russo pagou a viagem e o transporte de pertences desde a América Latina e ajudou com uma subvenção financeira.
Ulian também se queixa da especulação dos intermediários e Kronikovski admite que “os empresários chineses são mais atraentes do que os russos porque oferecem equipamentos e créditos aos agricultores em troca de comprar-lhes toda a colheita”. “Moscou deveria se preocupar mais e tornar mais vantajoso trabalhar para os seus empresários”, diz.
Os Velhos Crentes não fumam nem bebem e têm prole numerosa. Também são críticos e teimosos. Possuem uma moral de trabalho rigorosa e um profundo senso de responsabilidade. De Moscou, o Estado os trata como se fossem espécimes de uma fauna rara e apreciada. Os vizinhos desses imigrantes os veem, no entanto, de outra maneira. Este jornal ouviu como Ulian e um de seus filhos, barbudo como ele, foram insultados em voz baixa por uma mulher que passou perto deles em Roschino. Segundo contam, a mulher era amiga da acusada de incendiar as casas de Dersu. Tatiana, aposentada, resmunga porque aos novos vizinhos “se dá tudo” e ela só tem uma pensão de 11.000 rublos (cerca de 626 reais) que não é suficiente “nem para pagar a lenha”.
Venedikt Reutov, de 25 anos, outro Velho Crente estabelecido na aldeia de Liubitovka, a duas horas de carro de Dersu, também teve conflitos com os vizinhos. Ele chegou da Bolívia em 2014, com os pais e os irmãos. Venedikt casou-se na Rússia com Faina, criada em uma comunidade de Velhos Crentes na província de Khabarovsk. Venedikt confessa que às vezes se desespera e tem vontade de abandonar tudo. O mesmo acontece com seus irmãos, mas “não sabem para onde ir”. Ele conta que um líder local, atualmente preso, roubou-lhe 5,3 milhões de rublos (cerca de 301.618 reais) e que de sua opinião agora depende que o coloquem em liberdade condicional. “Deveria dizer que o deixem preso até que pague o que me roubou.” Entre as experiências negativas, Venedikt Reutov conta os 700.000 rublos que foi obrigado a entregar a uma pessoa que inesperadamente reclamou direitos de propriedade do terreno de 270 hectares que ele estava comprando. Dos 630.000 dólares que a venda de seu patrimônio na Bolívia lhe proporcionou, não resta quase nada, diz.
Venedikt e Faina se consideram pessoas modernas e se distanciam das tradições de sua comunidade de Velhos Crentes, reticente em relação a telefones, computadores e inclusive à eletricidade. De fato, eles se conheceram através da rede social Facebook e têm WhatsApp e Instagram em seus celulares. Eles sorriem para as fotos e sonham em ir de férias aos Estados Unidos, onde vivem seus parentes, membros da diáspora dos Velhos Crentes russos. Da América Latina, Venedikt sente falta de cocos, mangas e das três colheitas anuais.
Alberto Aggio: De Beijing a Roma, os dilemas do pós-comunismo
O ex-PCI aprofundou a democracia e a China se aferra ao nacionalismo autoritário histórico
No ano passado relembraram-se os cem anos da revolução bolchevique, referência maior do chamado “comunismo histórico”. Muitos livros foram publicados, um sem-número de artigos ganharam as páginas de revistas e jornais, congressos e seminários foram realizados ao redor do mundo. Seria excessivo imaginar que uma revisão daquele processo histórico, por mais bem feita que fosse, tivesse o condão de superar todas as polêmicas em torno dele. O dado positivo, contudo, é que a “celebração” da efeméride não produz mais o mesmo efeito. A revolução comunista da Rússia já é um fato do passado e não promove as divisões que antes promovia entre os simpatizantes do seu ideário.
Imposto o comunismo na Rússia, não apenas o país foi revolvido, como o mundo passou a ser impactado por um sistema antagonista do capitalismo que se transformou num fenômeno global, influenciando vários países e milhões de pessoas. A crença no poder dos comunistas tornou seu movimento uma força global, não havendo no século 20 nenhuma dimensão da vida que não tenha sofrido sua influência. Mas esse movimento guardava paradoxos que, com o tempo, lhe seriam fatais.
Talvez não haja síntese mais fiel à glória e à tragédia do comunismo do que a formulada por Silvio Pons no seu livro A Revolução Global (Fap/Contraponto, 2014). Para ele, o comunismo se constituiu simultaneamente em “realidade e mitologia, sistema estatal e movimento de partidos, elite fechada e política de massas, ideologia progressista e dominação imperial, projeto de sociedade justa e experimento com a humanidade, retórica pacifista e estratégia de guerra civil, utopia libertadora e sistema concentracionário, polo antagônico da ordem mundial e modernidade anticapitalista. Os comunistas foram vítimas de regimes ditatoriais e artífices de Estados policiais”.
Entre os historiadores, em sua maioria, há um consenso quanto ao fracasso do “comunismo histórico”, levando em conta os objetivos que nortearam suas estratégias. De um ponto de vista analítico, não se aceita mais quem busque “erros” específicos dos principais dirigentes e governantes. Suas ações são inscritas em conjunturas precisas e postas como parte dos desafios e dilemas que se afirmaram no processo histórico. É a história in acto o que importa aos historiadores e aos demais intérpretes, e não uma discussão ideológica e justificativa. O que torna evidente a virada na perspectiva de muitos pesquisadores é o fato de a chamada “história do cotidiano” ter garantido o seu ingresso nessa historiografia, retirando centralidade da discussão sobre poder revolucionário e colocando sob novas luzes a história de homens e mulheres de carne e osso que viveram sob o comunismo.
O resultado não é em nada surpreendente. Diversos investigadores têm demonstrado que o comunismo foi incapaz de inspirar uma crença espiritual que envolvesse mais do que a realidade material da vida. Concluem que a revolução bolchevique e o poder soviético não produziram efetivamente uma hegemonia cultural como “religião civil” (Gramsci falaria em uma “hegemonia civil”) que lhe pudesse dar sustentação. O julgamento é assim categórico e definitivo.
Enganam-se os que pensam que foi uma questão de tempo. Que o capitalismo se afirmou durante séculos e o comunismo necessitaria ser pensando nessa chave. Equivocam-se. Ele entrou em colapso na antiga URSS e se despedaçou porque não foi capaz de construir o que prometeu: um novo mundo e um novo homem! Hoje, numa nova fase da humanidade, o comunismo não é mais do que história e, por essa razão, não há como sustentar que sua prática e seus horizontes possam ainda fazer sentido para os homens e mulheres do século 21.
Entretanto, essa história não está inteiramente arquivada, por conta da fulgurante presença da China na economia global. A sobrevivência do “comunismo capitalista” chinês, baseado num regime ditatorial, que instaurou o capitalismo como modo de produção material, constitui-se hoje no maior enigma quanto aos destinos do pós-comunismo.
Essa alternativa estava inteiramente descartada para os partidos comunistas no Ocidente, em particular para o maior deles, o Partido Comunista Italiano (PCI), ao abandonarem, no início dos anos 1990, o nome, seus símbolos e, especialmente, o que era reconhecido como sua “dupla alma”, isto é, a adesão ao comunismo soviético, (no caso do PCI) sobreposta à defesa da República democrática italiana, vinda à luz com sua colaboração ativa. Acabou prevalecendo o segundo termo da equação como orientação que seguirá presente até o tramonto do comunismo italiano.
A fase pós-comunista do partido de Gramsci, Togliatti e Berlinguer, ao contrário dos chineses, aprofundou a democracia ao se estabelecer como uma força política reformista voltada para a modernização do país e defesa da União Europeia. Abrindo-se para diferentes movimentos e culturas políticas, dentre elas os católicos progressistas, assumiu várias denominações: Partito Democratico di Sinistra (PDS), Democratici di Sinistra (DS) e, por fim, Partito Democratico (PD), nos últimos dez anos.
O pós-comunismo chinês aferra-se ao legado nacionalista e autoritário do comunismo histórico ao mesmo tempo que abre sua economia para o mundo. Essa linha se aprofunda de Deng Xiaoping a Xi Jinping, sem desvios.
Mesmo diante das incertezas da Europa, o caminho do PD parece ser o de superar a fase pós-comunista buscando combinar a ética de defesa do trabalho dos antigos comunistas com o europeísmo social-democrático e sua vertente democrático-reformista. A preponderância de uma ou outra vertente ora o empurra para a oposição, ora lhe abre possibilidades de ser governo.
Não mais comunista nem sequer pós-comunista, o PD talvez seja, na Europa, a possibilidade de um novo sujeito político. Imersa no pós-comunismo, a China parece estar longe disso.
Ivan Alves Filho: Um século russo
O século XX – um século breve, conforme a definição do historiador marxista britânico Eric Hobsbawm – começou e acabou na Rússia. Teve início em 1917, quando os revolucionários bolcheviques liderados por Vladimir Illitch Lênin tomaram de assalto o Palácio de Inverno, num sete de novembro, em São Petersburgo. E terminou com o fim da experiência soviética – iniciada em 1921 -, com a queda de Mikhail Gorbachev, o último secretário geral do Partido Comunista, em 1991.
Muito já se escreveu a propósito do desmoronamento do socialismo realmente existente. O sistema teria sido minado por seus próprios desvios burocráticos. Ou sucumbido à poderosa propaganda ideológica do inimigo capitalista. Ou, ainda, desdenhado a questão da democracia política. Para outros, a corrida armamentista deslanchada pelo campo ocidental, sobretudo pelos norte-americanos, enfraqueceria de maneira irreversível as economias socialistas, (historicamente debilitadas, se comparadas com o desenvolvimento das potências capitalistas, com o ponto de partida delas). Tudo isso é verdade. Mas existe um outro aspecto nunca lembrado nessa questão do desmoronamento da União Soviética: o país não soube – ou não pôde – se dotar de uma base material que possibilitasse sustentar no topo relações de produção de novo tipo, livres de qualquer exploração do homem pelo homem, conforme estabelecia o ideário marxista. E sem uma base material nova, não existe modo de produção historicamente novo. É o que a marcha da História nos ensina.
O fato é que a antiga URSS fez uma revolução política mas herdou a base material por excelência do sistema capitalista – a unidade fabril. E não criou nada no lugar dela. E o mais dramático ainda estaria por vir: a base material da sociedade sem classes – representada pela revolução técnico-científica em curso no mundo há pelo menos três décadas, com base na automação – surgiria primeiro no Ocidente capitalista. A base técnica dessa sociedade, bem entendido – e não a sua base social e política. É como se a Revolução Russa de 1917 tivesse colocado a política na frente da economia (ou das forças produtivas, mais concretamente) e o Ocidente tivesse feito justamente o contrário disso.
Seja como for, a União Soviética não somente deixaria de modificar essa base material (o capitalismo, diga-se de passagem, mudou a base do feudalismo, o que possibilitou explodir de fato com as relações servis de produção, reforçando assim o próprio capitalismo) como também manteria as relações assalariadas de produção já presentes no capitalismo. E o que é ainda mais sintomático, o capital permaneceria intocado também no interior do socialismo real. A pergunta parecia ser: o que fazer com ele?
O que o socialismo real modificaria estruturalmente, então? Na verdade, apenas o estatuto formal dos meios de produção, doravante sob o controle do Estado, não necessariamente socializado. É preciso reconhecer isso. Não é demérito. É que não havia condições de se caminhar mais longe do que isso, dada as condições da sua implantação. No fundo, os bolcheviques contavam com o pipocar da revolução na Alemanha, área mais avançada, para viabilizar de fato a Revolução Russa. Tanto que o idioma oficial da III Internacional, criada em 1919, era o alemão.
Problemas fundamentais que têm que ver com o caráter da gestão, tão ou mais importantes até do que o próprio estatuto da propriedade, foram praticamente postos de lado. Afinal, se apropriar dos meios de produção é inseparável de se apropriar dos meios de gestão – ou deveria ser. Pior ainda: a ideia de socialismo se restringia à esfera econômica, mais concretamente às nacionalizações operadas no âmbito da indústria. Vale destacar ainda que o próprio Karl Marx evitava se referir ao termo socialismo: para o filósofo e ativista alemão o que havia, na realidade, eram duas fases do comunismo, uma inferior e outra superior. Está na Crítica do Programa de Gotha.
E a relação com a propriedade assim como a relação de exploração do trabalho não eram as únicas apontadas por ele como responsáveis pela alienação do homem. Ou seja, a coisificação crescente do ser humano e a opressão exercida pelo Estado sobre ele foram ignoradas pelo socialismo realmente existente. Vale dizer, são muitas as áreas da experiência humana que mereceram a atenção de Marx, e não apenas a opressão econômica. Contudo, acabou prevalecendo a redução da “etapa inferior” do comunismo à simples organização de um sistema econômico com base nas empresas estatais. Deu no que deu.
Na seara política, prevaleceria um absolutismo próximo daquele vigente na Europa do Oeste durante o século XIX. Absolutismo esse que deitava raízes no velho czarismo, é bem verdade – mas que o fechamento da Assembleia Constituinte pelos bolcheviques só agravaria. Na realidade, os líderes políticos russos viraram as costas a algumas das mais caras práticas democráticas presentes desde o final do século XIX no movimento socialista e operário europeu, como os direitos de greve, de reunião e de voto. Ora, se essas conquistas foram obtidas sob o capitalismo, mais uma razão para que fossem mantidas por aqueles revolucionários. Questão complexa esta da democracia.
O fato é que a Revolução Russa teve dificuldades em assimilar o que a civilização humana havia produzido de melhor, até então. E a democracia é justamente isso: um conjunto de valores civilizatórios, em que despontam conquistas como o habeas corpus, que data do Império Romano. A tradição autoritária russa – uma área de frágil presença da sociedade civil, frequentemente engolida pelo Estado, em prática nitidamente “oriental” – acabou falando mais alto.
A extraordinária contribuição da União Soviética à luta contra o nazismo não seria, infelizmente, assimilada internamente no sentido de uma abertura política. Mesmo assim, os comunistas ajudaram a consolidar a democracia no Ocidente, participando de governos de União Nacional, como na França e na Itália, e estimulando políticas de frentes populares. Propuseram a importantíssima política de coexistência pacífica entre regimes sociais diferentes. E o papel dos comunistas nas lutas pela descolonização também foi digno de nota, com destaque para seu apoio inabalável ao povo do Vietnam. Os comunistas da III Internacional – é preciso dizer – também fizeram sua parte na luta contra a barbárie. Lamentavelmente, por momentos também mergulharam nela, como no período stalinista.
No fundo, a grande diferença entre a proposta comunista e a capitalista é de natureza antropológica. Ou seja, reside na batalha pela desalienação do homem em todos os planos da sua existência, do econômico ao modo de vida. Uma batalha pela superação daquilo que Marx denominava por “pré-história” do homem. Não basta mudar a sociedade; é preciso também mudar a própria civilização. A rigor, a Revolução Russa ficará para a História como uma espécie de ala esquerda da sociedade industrial.
A História ensina que, com todas as limitações de uma primeira experiência revolucionária, a luta pela preservação da Revolução e a montagem de um Capitalismo de Estado – a definição é do próprio Lênin, em seus escritos sobre o caráter da Rússia pós-1917, mais exatamente em seus artigos econômicos – liberaria uma energia extraordinária, como que represada por longos anos na velha Rússia dos czares. É que havia a esperança de uma mudança radical no modo de vida. E, em vários setores do conhecimento e da prática humanas, essa esperança se concretizou. E isso também é inegável, é preciso que se reconheça. Da servidão à industrialização: a Rússia, em pouquíssimas décadas, passou de um país de servos a um país onde os proletários almejavam, pela primeira vez na História, chegar ao poder. Tudo isso não é pouco mesmo.
Os artistas e a arte russa e soviética materializariam esse início de mudança – para melhor, imagino – das fontes da vida no chamado socialismo real. É o que a própria realidade objetiva nos diz. Vejamos a coisa de perto. O cinema documental, com Dziga Vertov à frente, nasceu durante o processo revolucionário russo. Seu belíssimo “Três cânticos para Lênin” até hoje emociona as plateias do mundo inteiro, pela força de suas imagens, até por uma certa aspereza que delas emana. Fascinante, realmente. Serguei Eisenstein, pelo lado do cinema ficcional, dirigiu e montou verdadeiras obras-primas, como “Outubro”, “Ivan, o Terrível” e “Que viva México!” (este último inacabado. Os soviéticos chegaram então a sondar Glauber Rocha para terminar o filme.). Como esquecer um criador como Eisenstein, se ele já pertence ao patrimônio cultural da humanidade?
Se caminharmos para o lado das artes plásticas, impossível deixar de mencionar os nomes dos criadores russos Marc Chagall (que chegou a ser comissário do povo ou ministro no novo governo da Revolução), Malevitch e Kandinsky, verdadeiros ícones da modernidade, compreendendo aí os experimentos com as linguagens abstratas na pintura.
E a história se repete na poesia, na dramaturgia e na novelística, onde despontam nomes como Maiacovski, Essenin, Bloch, Meierhold e Máximo Gorki, todos de primeiríssima linha. A influência desses artistas e escritores extrapolou a própria cultura russa, encantando o conjunto da cultura ocidental.
O que dizer ainda? No terreno das práticas educacionais, não podemos esquecer tampouco o nome de Makarenko. O pensamento revolucionário russo não ficaria atrás: teóricos como Lênin, Bukharin, Lunacharski e Trotsky enriqueceriam a compreensão dos fatos políticos no século XX. E é preciso reconhecer que o próprio Josef Stalin, em que pese seus erros e crimes brutais, foi autor de um estudo dos mais rigorosos sobre a questão da nacionalidade. Difícil encontrar um país como a Rússia, decididamente.
Revolução, pelo visto, também é cultura. Esta, talvez, uma das heranças mais memoráveis de 1917 – talvez até a principal delas. E essa memória aquece os nossos corações, irremediavelmente esperançosos, apesar das vicissitudes da História recente.
Na velha Rússia, e também fora dela.
* Ivan Alves Filho é jornalista, historiador, autor de mais de uma dezena de importantes livros, o último dos quais é O Homem e o Tapeceiro, editado pela Fundação Astrojildo Pereira
O Globo: Cem anos após a revolução, Putin tenta reinventar a Rússia olhando para trás
Nostalgia do período soviético impulsiona agenda de uma superpotência hoje apagada.
O longo processo de transformação por que passa a Rússia desde a Revolução de 1917 ainda não terminou, segundo historiadores. Nestes 100 anos, a vida mudou inúmeras vezes e obrigou os cidadãos, perplexos, a simplesmente se adaptar. Depois de sete décadas de regime soviético, o maior país do planeta perdeu mais de cinco milhões de quilômetros quadrados, bem mais do que metade do território brasileiro. Trata-se do maior decréscimo territorial da História do século XX. A ex-superpotência viu sua influência política se reduzir, assim como sua importância econômica. Viveu e reviveu momentos de caos. Mas ainda pairam sobre o inconsciente coletivo os antigos momentos de glória: a heroica vitória na Segunda Guerra Mundial, o desenvolvimento da bomba atômica, a corrida espacial, a rivalidade com os EUA.
A Rússia de 2017 está atrás de nova identidade. É exatamente isso que o presidente Vladimir Putin tenta construir com mão de ferro desde que assumiu o comando, no ano 2000. No poder há quase duas décadas, o líder russo defende um novo projeto de nação, sempre voltado, talvez de forma contraditória, para a vocação imperial desta que foi a segunda potência do planeta até bem pouco tempo atrás. Sua popularidade se alimenta, de certa forma, da nostalgia.
— A revolução de 1917 criou a tarefa de modernização sistêmica do país, de formar as instituições da sociedade civil e o Estado de direito. É isso que ainda vivemos hoje. A agenda não está finalizada. Por isso, muitos historiadores defendem que a revolução ainda não acabou — disse ao GLOBO o pesquisador Kirill Soloviev, do Instituto de História da Rússia.
A nostalgia das glórias passadas impulsiona a agenda do presente. Sob a batuta de Putin, o império se reordena e flexiona seus músculos para reconquistar seu lugar no xadrez da geopolítica mundial. A retórica militar, por sinal, tem sido uma constante na Rússia de Putin e um dos assuntos preferidos na TV do país, que mostra, diariamente, programas sobre guerras atuais e passadas. Com ajuda da alta dos preços do petróleo e um cenário econômico mundial favorável na primeira década no poder (2000-2010), o líder russo dera ao país a estabilidade não vista há muito tempo. Em troca recebeu apoio de boa parte da população e uma aprovação que, hoje, mesmo sob sanções, é de 85%.
— A revolução é um mito. Foi uma mudança que interessava a um grupo que queria tomar o poder. Beneficiou alguns. As pessoas viviam mal, passavam fome. Ninguém tinha nada. A vida é ótima hoje? Não. Aprendemos a conviver com a pobreza. Mas não resta dúvida de que é uma vida melhor — disse Gleb Andreevich, ex-professor de História, hoje vendedor em uma das centenas de lojas Evrocetr, de smatphones e acessórios.
Tal visão não é consensual. A professora Natalia Dimitrovna, 52 anos, fala com saudade dos tempos da URSS:
— A estabilidade nos dava a tranquilidade de saber que tudo estaria bem no dia seguinte. Hoje, ninguém sabe. E se eu perder o emprego? — indaga.
O passado soviético ainda não é questão pacificada. Uma das maiores especialistas em Rússia, Masha Lipman, que se divide entre os EUA, onde leciona na Universidade de Indiana, e Moscou, onde edita a revista “Counterpoint”, afirma que o país precisava de uma nova identidade após o fim da URSS. E explica que o projeto de nação do atual líder russo visa a consolidar o poder político, promover o desenvolvimento econômico e reconciliar os muitos lados de um país ainda dividido. Em 2016, Putin afirmou que existe “uma única Rússia”. É desta premissa, segundo Lipman, que parte o seu projeto de nação, que ganhou renovada expressão após a anexação da Crimeia em 2014. A Rússia teria se tornado uma fortaleza cercada sob ameaça do inimigo do Ocidente.
— Apoiar o líder não é apenas uma questão de lealdade, mas de segurança nacional e até de identidade nacional. Ser russo de verdade é apoiar Putin e comemorar a retomada da Crimeia. Achar diferente é ser não-russo, não-patriótico, e até um traidor — afirma.
Sob sanções econômicas do Ocidente desde então, a Rússia hoje já não vive a bonança dos primeiros anos Putin. Mesmo assim, seu peso ainda é fundamental nas questões globais. A relação com os americanos continua ruim. Nem mesmo a eleição do republicano Donald Trump, para quem os russos torciam, foi capaz de aproximar os dois países. Rapidamente a longa agenda das diferenças se impôs. Vai desde a Síria até as acusações de que hackers russos, por ordem do Kremlin, teriam influenciado a eleição americana.
— A Rússia descobriu que Trump depende das instituições democráticas americanas e que seu poder de decisão é limitado. Agora, ele e os EUA estão sob fogo cerrado da propaganda russa — disse o especialista sênior do Centro Carnegie de Moscou, Andrei Kolesnikov.
Para muitos analistas, entre eles, Evgeny Satanovsky, Rússia e EUA vivem de novo as tensões do século passado.
— São as relações da Guerra Fria. Não há ilusões nem expectativas — disse.
Nesse contexto de deterioração das relações com o Ocidente, a China, ainda “comunista”, tornou-se parceira importante. Temas como a Península Coreana aproximam os dois países. A Rússia apoia a solução negociada defendida pelos chineses para a queda de braço de EUA e Coreia do Norte, e se opõe à instalação de um escudo antimísseis na Coreia do Sul.
— Se não podemos estabelecer laços estreitos com os Estados Unidos, por que não fazer isso com a China, especialmente quando temos tantas coisas em comum? — pergunta Satanovsky.
Feridas ainda abertas da URSS
Os anos de rivalidade com os EUA lembram tempos em que o país era bem maior. O divórcio das repúblicas da URSS foi rápido, mas as feridas ainda doem. As relações com as ex-repúblicas nunca deixaram de ser problemáticas. Para Kolesnikov, esses países são considerados por Putin um império imaginário.
— Mas cada um deles, mesmo dentro da união econômica eurasiática, está jogando o seu próprio jogo — disse.
A Rússia travou uma guerra com a Geórgia em 2008 e tem relações difíceis com a Ucrânia. A narrativa do Kremlin sobre a Rússia forte tem sido reiterada no cotidiano. No metrô de Moscou, vagões circulam com a coletânea “Grandes Generais” — inclusive com um imenso retrato de Josef Stalin, maldito por décadas, mas a quem os russos atribuem a vitória na Segunda Guerra. Há 20 anos, dificilmente se veria um retrato assim de Stalin em exibição.
Natalia Dimitrovna refere-se a Vladimir Lenin como dyedushka (vovô) Lenin. A referência revela respeito e saudade, como quem recorda um querido membro da família — rigoroso, mas também doce e protetor. Como ela, muitos russos, mais velhos e mais jovens, preservam a memória da superpotência desaparecida. E, como todos os nostálgicos, sonham secretamente com a volta do passado.
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'Todo poder aos sovietes!': como a Revolução Russa aconteceu
Alberto Aggio: A Rússia de hoje
É claro que o título desse escrito ultrapassa tanto a intenção quanto o resultado expresso na publicação. O que se segue são apenas impressões de uma rápida viagem a um país que foi palco de uma revolução significativa na história e que completa 100 anos. Dizer que falo de um país também é força de expressão. Na verdade estive na Rússia por duas semanas, para um Congresso em São Petersburgo e depois visitei Moscou.
Não conhecia a Rússia. Estar lá é efetivamente como estar do outro lado do mundo ou, pelo menos, às portas dele. O Congresso de que participei (Foro Internacional Rússia e Iberoamérica) é um velho conhecido na área acadêmica. Não por já cumprir inúmeras sessões – ele está apenas na terceira – mas por ser como os outros desse tipo: um Congresso imenso, com muitos financiadores e participantes. De um ponto de vista acadêmico (de pesquisa) não serve para muita coisa, apenas para os participantes marcarem presença e levarem seus certificados para as avaliações quantitativas da Capes (no caso brasileiro) e similares.
O Congresso tinha varias conferências, simpósios e painéis simultâneos. Mas havia coisas mais bizarras: dentre os conferencistas estava a inefável ex-presidente Dilma Rousseff. Por informações in/off, ficamos sabendo que talvez os russos pensem ainda que lhe resta algum poder e influência no Brasil ou imaginam que ela possa voltar ao governo, caso Lula vença a próxima eleição presidencial. Não é o caso aqui de falarmos da conferência de Dilma porque todos têm, na memória, o seu desempenho nessa área.
Assisti ao simpósio sobre a Revolução de 1917 e o Brasil, do qual participaram alguns brasileiros (a plateia contava com aproximadamente 20 pessoas). Fiz uma exposição no simpósio sobre “Globalização e América Latina”, com um público de não mais de 10 pessoas no último dia do Congresso. Russos, brasileiros e latino-americanos acharam que era uma exposição muito provocadora, mas foram generosos nos comentários e perguntas (estive conversando com o pessoal jovem da Universidade de Moscou e eles têm uma perspectiva de fazer seminários sobre Brasil porque sabem muito pouco. Pensam que a busca de “um lugar no mundo”, que foi o tema da minha exposição sobre o Brasil e a América Latina, também pode ser útil a eles). Em termos gerais, se fizermos uma avaliação bem impressionista das conferências, simpósios e painéis, o esquerdismo prevalece. A Rússia de Vladimir Putin apoia Nicolas Maduro e os oradores, de forma implícita ou explícita, foram nessa linha. Como já mencionamos, suspeita-se que Dilma tenha sido uma imposição do Ministério de Relações Internacionais da Rússia, onde se pensa o embate com os EUA, mesmo que velado ou fragmentado, e a estratégia dos BRICs. O que fica claro é que o governo da Rússia não acionou o apoio incondicional ao atual governo brasileiro. Não foram apenas pesquisadores brasileiros que falaram do “golpe” de 2016, mas também estrangeiros.
Mas as impressões foram mais amplas, ainda que nem sempre conclusivas. A Rússia não é uma realidade político-cultural fácil de ser compreendida. A título de informação, na Rússia existem muitos partidos mas nem todos têm assento no Parlamento. Quatro são os principais: o partido de Putin é o maior (Rússia Unida, em tradução livre), depois vêm os Comunistas (que estão seriamente divididos: os velhos são brejenevianos e os jovens são mais estalinistas) e, em seguida, os liberal-democráticos; há partidos que tem representação e que de uma posição de extrema esquerda derivaram para o ultraliberalismo (realmente difícil de explicar).
Em termos de lideranças, do passado recente ou remoto, Gorbachov é uma referência declinante e é visto com pouca simpatia. Qualificam-no como liberal e anticomunista sans phrase. Stalin foi expulso das ruas e das praças, não existe mais. Ao contrário de Lenin, que ainda é visto como um grande russo, um teórico da grande Rússia.
São Petersburgo, a antiga capital, me pareceu muito mais acanhada que Moscou, que é hoje uma metrópole mundial. Em São Petersburgo, o destaque, sem dúvida, é o Hermitage, famoso Palácio de Inverno tomado pelos Bolcheviques em outubro de 1917. Com Kerensky se manteve como Palácio do Poder, com os Bolcheviques foi sendo abandonado dessa função para depois virar o grande museu. Mas com os Bolcheviques o poder se transfere a Moscou. É em Moscou que todo o poder soviético se estrutura e Stalin constrói os símbolos da sua era. Isso está presente até hoje, embora os grandes edifícios administrativos, iniciados por Stalin e concluídos na década de 1950, mesmo depois da sua morte, tenham mudado de função, mas permanecem marcando a paisagem urbana da grande metrópole.
Em Moscou, não fui ver a múmia (Lenin), não. Sou demasiado iconoclasta para isso, além do que a fila é enorme e nos convida para outras atrações do entorno do Kremlin. Assim, vou continuar minha sina de “herege”. Pode-se observar que hoje ainda há um cuidado excessivo, inclusive com obras ao lado da Praça Vermelha, para evitar a aproximação de muita gente. Um hotel foi demolido para virar um parque, um descampado ao lado do rio, evitando a presença de pessoas num edifício tão perto do Kremlin.
Moscou é uma cidade muito vibrante e dá realmente a impressão de muito dinheiro circulando. Há carros muito exclusivos, com motoristas exclusivos, por toda a parte do centro ampliado. Mas há uma mistura entre tradição e hipermodernidade; talvez a Alameda onde está o Café Pushkin, lugar muito exclusivo também, seja um dos exemplos.
Enfim, depois da derrota do comunismo histórico, a Rússia é hoje um país de ultramilionários e Moscou é a expressão disso. Mas continua a ser um país de transição entre a Europa e o Oriente, o Pacífico, a nova Meca do comércio mundial. Há povos inteiros se movimentando nessa transição. A Rússia arrasta sua tradição ao buscar – também ela – “um lugar no mundo”, ou melhor, nesse novo mundo.
No essencial da política que importa a nós o que fica claro, mais uma vez, é que o PT também bloqueou a Rússia. Dilma estava lá com seu séquito de seguidores, houve aplausos a Maduro e elogios, em alguns discursos, a Marco Aurélio Garcia. Como em outros lugares, o diagnóstico é o mesmo e teríamos que alimentar mais novas relações para romper o bloqueio petista.
Sérgio Augusto: O século vermelho
'Uma História Cultural da Rússia' é um monumental estudo do inglês Orlando Figes
Alexander Herzen, filósofo e escritor russo do século 19, não só acreditava no advento do socialismo como tinha certeza de que a Rússia o implantaria na Europa. Os alemães Marx e Engels duvidavam da segunda hipótese. Na avaliação da dupla, a Rússia agrária e atrasada não reunia as condições necessárias a uma revolução. De todo modo, Engels, precavido, começou a estudar russo para enfrentar em pé de igualdade a influência crescente do líder anarquista Mikhail Bakunin, que já nascera falando o idioma de Herzen. Depois que a coroação do czar Alexandre II, em 1855, incendiou o campo e incomodou a nobreza, Marx e Engels recuaram de sua descrença.
Marx ficou surpreso ao descobrir que o primeiro volume de O Capital fora traduzido para o russo e editado em São Petersburgo só um ano depois de seu lançamento por uma editora de Hamburgo. Mais surpreso ficaria se pudesse ter sabido que um jovem russo chamado Vladimir Ilyich Ulyanov elegera O Capital o seu vade-mécum revolucionário, após devorá-lo encarapitado no fogão da casa paterna.
A Rússia ganharia o devido destaque no segundo volume de O Capital. Pois Herzen estava correto: a tirania czarista um dia cairia de podre, abrindo caminho para a implantação dos ideais socialistas, mas não em toda a Europa. Fazia bastante tempo que os russos consideravam a pobreza uma virtude cristã, o excesso de riqueza imoral e o trabalho, a única fonte verdadeira de valor.
Se era débil o potencial “revolucionário” da população rural e pouco confiável a insatisfação da aristocracia, forte era a tradição de rebeldia da intelligentsia urbana e de perseguição aos seus mais inquietos criadores. O censurado Pushkin participou do levante dezembrista de 1825, que peitou a sucessão de Nicolau I. Gogol satirizou a opressão imposta aos servos pelo feudalismo czarista. Tolstoi combateu o absolutismo. Dostoievski chegou a flertar com o anarcoterrorismo.
Mesmo escritores apolíticos não conseguiam ocultar seu desgosto com a monarquia czarista. Exemplo clássico: Ivan Goncharov, criador de Oblomov, o suprassumo da inércia, da indolência e do vazio da aristocracia, personagem-título de um romance que se revelou premonitório, pois o oblomovismo contaminou não só a burocracia imperial como os apparatchiks bolcheviques.
Ocupando o vazio deixado pelo parlamento e a imprensa livre, as artes na Rússia czarista serviram de arena para o debate político, filosófico e religioso. Em lugar nenhum o artista foi mais sobrecarregado com a tarefa de liderança moral de seu povo, nem mais perseguido pelo Estado – e não apenas durante o ancien régime. Alienados das massas rurais pela distância e o analfabetismo (em 1920, três em cada cinco camponeses não sabiam ler), os artistas russos tomaram a si criar uma comunidade de valores e ideias por meio da literatura, do teatro, do cinema, das artes plásticas e da música, beneficiando-se do “espírito patriótico” e do “orgulho nacionalista” dos servos explorados pelos Romanov.
“Vista como guerra contra os privilégios, a ideologia prática da Revolução Russa devia menos a Marx – cujas obras mal era conhecidas pelas massas semianalfabetas – e mais pelos costumes igualitários e anseios utópicos do campesinato”, argumenta o historiador inglês Orlando Figes em seu monumental estudo sobre a cultura russa, recém-traduzido pela Record.
Com 880 páginas, Uma História Cultural da Rússia não é um “livro de hepatite”, mas de tendinite no punho. Figes remonta ao início do século 18, mas o que talvez mais interesse aos leitores, às vésperas do centenário da revolução soviética, seja o que se desenrola a partir da página 523, com a chegada da poeta Anna Akhmatova (1889-1966) ao palácio dos Sheremetev, transformado em santuário contra a destruição da guerra e da revolução, em 1918.
Akhmatova, cujos poemas Trotski desdenhou como “irrelevantes”, no Pravda, sentia mais temores do que esperanças na Revolução. Sustentou-se cuidando da tapeçaria oriental do Museu Hermitage e do acervo de uma biblioteca de Petrogrado, passou necessidades, como, aliás, todos ou quase todos os artistas e intelectuais da época, mas nem quando seu ex-marido, Nicolai Gumilev, foi fuzilado sem julgamento, acusado de conspirar pela volta da monarquia, parou de defender a permanência de seus pares no país. Ela sobreviveu ao sectarismo literário dos comunistas, ao stalinismo, e é, com justiça, uma das figuras de maior destaque no livro.
Todos os heróis e vilões do Outubro Vermelho lá estão: Vladimir Maiakovski (o “poeta da Revolução”), Eisenstein, Zamiatin, Meyerhold, Babel, Mandelstam, Blok, Shostakovich, Prokofiev, o comissário da cultura Andrei Jdanov, o supercensor de Stalin, além do próprio ditador, que, por incrível que pareça, era ultraletrado e cinéfilo. Sob a sua batuta (ou férula, se assim preferir), a deplorável doutrina do Realismo Socialista foi formulada, em outubro de 1932, numa reunião na casa de Gorki, que mantinha relações amistosas com o Kremlin.
Talvez a mais fulgurante e trágica vítima do revertério stalinista, Maiakovski, que fazia de tudo: poemas, panfletos, slogans, programas radiofônicas, jingles, textos para teatro e roteiros para cinema, suicidou-se ou foi suicidado em 1930. Não sem antes escrever uma sátira futurista (O Percevejo), gozando o modo de vida e a burocracia soviéticos dali a 50 anos. “Somos levados a concluir que a vida social sob o socialismo será muito maçante em 1979”, comentou um crítico da época, consagrando Maiakovski, involuntariamente, como um acurado profeta da era Brejnev.