russia

Petrobrás flag | SERGIO V S RANGEL

Privatização da Petrobras? Veja o que aconteceu com ex-estatais pelo mundo

Julia Braun, BBC News Brasil*

A proposta de privatização da Petrobras, anunciada pelo ministro de Minas e Energia, Adolfo Sachsida, na última semana, reacendeu discussões sobre o impacto de medidas de desestatização na eficácia produtiva de empresas e no controle dos preços dos combustíveis.

Enquanto membros do governo de Jair Bolsonaro (PL) e defensores da redução da presença do Estado nas relações econômicas do país comemoraram o anúncio, representantes da Federação Única dos Petroleiros (FUP-CUT) afirmaram que o presidente verá "a maior greve da história da categoria" caso avance na intenção.

O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (PSD-MG), afirmou que a privatização da estatal não está em seu "radar" neste momento — a proposta precisa ser aprovada pelo Congresso antes que o presidente possa assinar o decreto para incluir a Petrobras no Plano Nacional de Desestatização (PND).

Iniciativas de privatizações geram debates acalorados não só no Brasil, mas em diversos outros países que já colocaram ou cogitaram colocar medidas semelhantes em prática.

Não são incomuns casos de petrolíferas que decidiram seguir o caminho da capitalização como forma de obter mais recurso — como fez a própria Petrobras em 2010 — ou de governos que desinvestiram em determinados setores para ampliar a concorrência.

Mas quando se trata de grandes estatais produtoras de petróleo se tornando majoritariamente privadas, não há uma gama gigantesca de exemplos, de acordo com especialistas consultados pela BBC News Brasil.

A reportagem consultou estudiosos do mercado de gás e petróleo e da área de privatizações para identificar alguns dos mais notáveis casos e entender o que aconteceu com essas empresas.

Eles apontam que não há um único caminho a ser seguido por petrolíferas estatais no momento da privatização — mas que casos de sucesso costumam acontecer quando há ambiente regulatório forte e estável para atrair investimentos. Especialistas dizem, ainda, que a gestão privada costuma aumentar a eficiência operacional, mas argumentam que nem sempre a desestatização é a melhor escolha — a depender do momento político e econômico do país.

E quando se fala no assunto, os grandes exemplos citados são o da Rússia, que colocou em prática um grande projeto de privatizações após o fim da União Soviética (URSS); da YPF na Argentina, que voltou a ser estatizada após mudanças no governo; e da multinacional BP, no Reino Unido. Há ainda casos de petroleiras privatizadas no Canadá, França, Itália e Espanha, entre outros. Entenda:

Rússia e a formação da oligarquia

Após o colapso da URSS em 1991, o governo da Rússia — sob o comando do presidente Boris Yeltsin — colocou em prática um amplo projeto de privatizações.

O esforço foi iniciado em outubro de 1991 e concluído em julho de 1994, quando dois terços da indústria russa já era de propriedade privada.

Boris Yeltsin em discurso em 1989 em Moscou
Presidente Boris Yeltsin colocou em prática um amplo projeto de privatizações na Rússia

A desestatização do setor de gás e petróleo foi regulamentada por um decreto presidencial em 1992. Petroleiras e refinarias foram agrupadas, transformando-se em empresas de capital aberto.

A Lukoil, considerada a maior companhia russa não-estatal do setor de petróleo, foi formada em 1991 quando três estatais sediadas na Sibéria se fundiram. Em 1993, ela foi privatizada e transformada em uma empresa de capital aberto.

A Gazprom também se tornou privada nesse contexto. A empresa, porém, retornou ao controle do governo no início dos anos 2000, e em 2021 foi responsável por 68% da produção de gás russa.

Especialistas afirmam, porém, que o modelo de privatização adotado pela Rússia ajudou a criar um poderoso grupo de magnatas, os oligarcas russos, e a aprofundar a desigualdade no país.

O economista Marshall Goldman, especialista em economia da URSS, afirma em seu livro "The Piratization of Russia: Russian Reform Goes Awry" que o movimento de desestatização russo apenas transformou o monopólio do Estado em um monopólio privado.

"Mas o monopólio privado não funciona de maneira muito diferente", disse o autor em sua obra.

Logo da Gazprom
A Gazprom retornou ao controle do governo no início dos anos 2000

O governo utilizou um sistema de privatização por meio de vouchers, previamente implementado na Checoslováquia.

Sob esse modelo, o governo distribuiu vouchers entre a população, que poderiam ser usados para comprar ações das cerca de 15.000 empresas que estavam sendo desestatizadas. Empresários bem relacionados, porém, adquiriram enormes blocos desses vouchers e garantiram grandes participação ou controle das companhias.

O movimento criou uma oligarquia russa que ainda está intimamente ligada a uma grande parcela da riqueza nacional. Eles controlam importante parte de setores como o de energia, mineração, mídia e transporte do país e possuem conexões no governo central.

Segundo Sérgio Lazzarini, professor do Insper e estudioso das privatizações, após o fracasso na Rússia, o sistema de vouchers deixou de ser considerado. "Esse modelo é bastante controverso e se provou que não funciona bem".

"A passagem de ativos aconteceu também de uma forma não transparente na Rússia, o que contribuiu ainda mais para a concentração de renda dos oligarcas", afirmou o especialista à BBC News Brasil.

Quando chegou ao governo em 1999, Vladimir Putin começou a controlar os oligarcas. Aqueles que seguiram alinhados politicamente com o atual presidente tornaram-se ainda mais bem-sucedidos. Mas alguns dos oligarcas originais que se recusaram a seguir essa linha foram forçados a fugir do país.

Talvez o oligarca mais conhecido fora da Rússia seja o empresário Roman Abramovich, proprietário do Chelsea Football Club. Com um patrimônio estimado em US$ 14,3 bilhões (R$ 73 bilhões), ele fez sua fortuna vendendo ativos após a queda da União Soviética.

Roman Abramovich
Roman Abramovich, que tem patrimônio estimado em US$ 14,3 bilhões (R$ 73 bilhões)

Em março deste ano, uma investigação da BBC revelou novas evidências sobre como Abramovich lucrou bilhões de dólares de forma indevida ao fazer negócios com o Estado russo na área do petróleo.

O russo teria comprado a estatal de petróleo Sibneft do governo russo em 1995, pela qual pagou cerca de US$ 250 milhões (R$ 1,2 trilhão). Contudo, ele revendeu a empresa ao Estado, em 2005, por US$ 13 bilhões (R$ 65 bilhões).

Abramovich e outros oligarcas russos foram sancionados pela União Europeia, Reino Unido e Estados Unidos após a invasão à Ucrânia. O magnata do futebol decidiu então se afastar de algumas de suas funções e vender o Chelsea.

O Instituto Ucraniano para o Futuro (UIF), uma organização independente com sede em Kiev, culpa a ampla influência dos oligarcas na sociedade, na indústria e na política ucranianas pela falta de desenvolvimento do país.

Reino Unido e BP

A multinacional britânica de capital aberto BP foi privatizada em fases, entre 1979 e 1987.

A desestatização aconteceu durante a onda de privatizações implementada pela ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher.

Margaret Thatcher em 1978 em Londres
Margaret Thatcher comandou o governo britânico entre 1979 e 1990

Durante o governo da Dama de Ferro (1979-1990), muitas companhias e serviços que haviam sido estatizados no mandato do ex-primeiro-ministro Clement Attlee entre 1945 e 1951 foram transformados em empresas privadas: indústrias, siderúrgicas, ferroviárias, aeroviárias, aeroportos e companhias de gás, eletricidade, telecomunicações e água.

Em 1979, o governo de Thatcher vendeu pouco mais de 5% de suas ações da BP e reduziu sua participação na empresa para 46%, tornando-se minoritário pela primeira vez desde que a petroleira foi incorporada pela Inglaterra em 1909.

A participação estatal foi sendo reduzida ainda mais nos anos seguintes e, em 1987, a privatização foi concluída quando o governo vendeu suas últimas ações.

Inicialmente chamada de Anglo-Persian Oil Company Limited e depois de British Petroleum, a petroleira se fundiu com a americana Amoco em 1998 e adquiriu a também americana ARCO e a escocesa Burmah Castrol em 2000, tornando-se oficialmente BP plc em 2001.

Logo da BP
BP foi privatizada em fases, entre 1979 e 1987

No livro "The Org: The Underlying Logic of the Office", o economista Raymond Fisman e o historiador Tim Sullivan descrevem como nas primeiras décadas após a privatização, a BP se tornou um exemplo no setor energético de como uma estatal pouco lucrativa poderia ser transformada em um negócio frutífero com a privatização.

O comando da empresa foi todo substituído por funcionários empenhados em cortar custos e reduzir riscos e alguns empreendimentos que antes faziam parte da companhia — como os dedicados à produção de alimento e mineração de urânio, por exemplo — foram vendidos.

"A BP passou de perdas de quase US$ 1 bilhão [cerca de R$ 5 bilhões na cotação atual] em 1992 para lucros de quase US$ 5 bilhões [R$ 25 bilhões] até o final de 1997. A folha de pagamento foi reduzida para 53.000 [funcionários], bem abaixo das 129.000 pessoas que a BP empregava antes", escreveram Fisman e Sullivan.

Em 2005, uma refinaria da BP no Texas explodiu, matando 15 e ferindo cerca de 170 pessoas. Em 2006, um vazamento em um oleoduto da BP derramou centenas de milhares de galões de petróleo em uma baía no Alasca.

E em 2010, a plataforma Deepwater Horizon, de propriedade da empresa suíça Transocean e operada pela BP no Golfo do México, explodiu e afundou, matando 11 funcionários.

Durante os meses seguintes, quase 5 milhões de barris de petróleo foram despejados no oceano, no que é considerado o maior vazamento acidental de petróleo da história. Cinco Estados (Flórida, Alabama, Mississippi, Louisiana e Texas) foram atingidos pela mancha de óleo, que encobriu aves marinhas, danificou praias e provocou enormes perdas para as indústrias de pesca e turismo.

O acidente de 2010, em especial, prejudicou a imagem da empresa, que teve sua avaliação rebaixada por agências de risco após o desastre.

Explosão na plataforma Deepwater Horizon
Em 2010, a plataforma Deepwater Horizon explodiu e afundou, deixando 11 mortos

A BP foi alvo de múltiplos processos judiciais, vários deles movidos pelo governo americano, tanto por violações criminais quanto por violações a regulações civis. Em um acordo considerado o maior do tipo na história americana, a BP concordou em pagar cerca de US$ 20 bilhões (aproximadamente R$ 100 bilhões) ao governo federal e aos cinco Estados afetados pela catástrofe ambiental.

No ano passado, os lucros da petroleira atingiram seu maior nível em oito anos, impulsionados pelo aumento dos preços do gás e do petróleo no mercado internacional. Após um ano de perdas em 2020, a BP fechou 2021 com ganho de US$ 12,85 bilhões (R$ 64 bilhões).

Os lucros continuaram a crescer no primeiro trimestre de 2022, alcançando um patamar de US$ 6,2 bilhões (R$ 31 bilhões) — mais do que o dobro dos US$ 2,6 bilhões (R$ 13 bilhões) que a empresa lucrou no mesmo período do ano passado.

O balanço provocou um movimento pela imposição de uma taxação especial, destinada a coletar parte do que é chamado de "lucro inesperado". A ideia por trás desse tipo de imposto é taxar empresas que se beneficiaram de uma situação pela qual não são responsáveis, como é o caso da alta dos preços de gás e petróleo.

Segundo fontes ouvidas pela BBC, o Tesouro britânico está estudando a possibilidade de adotar tal imposto para o setor energético do país. A BP, porém, rejeita a ideia e afirmou que novas taxas poderiam significar menos investimentos em projetos de energia renovável.

Argentina e o caso YPF

Tanques da estatal argentina de energia YPF em Comodoro Rivadavia, na província patagônica de Chubut
Tanques da estatal argentina de energia YPF em Comodoro Rivadavia, na província patagônica de Chubut

A estatal e maior produtora de petróleo da Argentina, Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF), foi privatizada em 1999, mas reestatizada em 2012, durante o governo de Cristina Kirchner.

A YPF foi criada em 1922 como a primeira petroleira estatal integrada verticalmente em todo o mundo. Durante o período inicial da ditadura militar, que se estendeu de 1976 a 1983, houve um recuo na política de nacionalização no país.

O governo abriu ao setor privado a possibilidade de concessões e permitiu contratos da YPF com terceiros. Essas medidas foram parcialmente anuladas em 1974 e posteriormente reorganizadas em 1985 pelo governo de Raúl Alfonsín.

Mas a privatização só foi concretizada no fim do governo de Carlos Menem, em 1999.

O primeiro passo desse processo foi a transformação da YPF de uma empresa estatal para uma de sociedade anônima com capital aberto. A desestatização foi concluída quando o Estado argentino vendeu 14,99% de suas ações à empresa espanhola Repsol.

No fim de 2011, a Repsol já controlava 57% do capital da YPF.

Em abril de 2012, porém, a presidente Cristina Kirchner apresentou um projeto de lei ao Congresso que declara "de utilidade pública e sujeito à expropriação" 51% do capital da YPF. O texto foi aprovado com ampla maioria no Congresso e a repatriação efetivada.

O governo culpava a YPF pela queda na produção petrolífera, o que teria obrigado a Argentina a gastar muito com a importação de combustível, num momento em que o país sofria uma escassez de dólares devido a uma fuga de capitais.

Economistas que também apoiaram a medida afirmaram ainda que, desde que a Repsol assumiu o controle da YPF, houve fuga sistemática de divisas sem reinvestimento para a exploração, tornando o modelo insustentável.

Cristina Krichner em 2008
YPF foi privatizada em 1999, mas foi reestatizada em 2012, durante o governo de Cristina Kirchner

Uma pesquisa realizada na época do anúncio da reestatização pelo jornal portenho La Nación mostrou que seis em cada dez argentinos apoiavam a medida.

A YPF, por sua vez, afirmava que as próprias políticas econômicas intervencionistas do governo deram origem à crise energética no país.

Fora do país, a medida gerou grande desconforto com o governo da Espanha e outras potências. A decisão foi duramente criticada pela União Europeia, FMI e pelos centros econômicos mundiais.

A nacionalização desencadeou ainda uma intensa batalha jurídica entre o governo e a Repsol, que terminou em um acordo de US$ 5 bilhões (R$ 25 bilhões) de indenização pela expropriação das ações.

"A reestatização da YPF aconteceu sem nenhum amparo regulatório institucional", diz Sérgio Lazzarini, do Insper.

"Ao mesmo tempo, é preciso um ambiente institucional e legal relativamente estável para que os investimentos privados prosperem, algo que faltou na Argentina após a privatização da petroleira".

Antes de ser estatizada, a empresa tinha um valor de mercado de cerca de US$ 16 bilhões (R$ 80 bilhões). No momento do anúncio da expropriação, a empresa já havia perdido quase metade de seu valor, passando a US$ 8 bilhões (R$ 40 bilhões).

Dez anos depois, as ações da YPF valem 75% menos, segundo análise feita pelo jornal argentino El Clarín. O valor de mercado da companhia está hoje em torno de US$ 3,4 bilhões (R$ 17 bilhões).

As ações da YPF estão sendo negociadas a cerca de US$ 5 (R$ 25) desde a invasão russa na Ucrânia. Em 2012, elas chegavam a US$ 41 (R$ 204), segundo o Clarín.

Afinal, existe uma receita para o sucesso?

Segundo os especialistas consultados pela BBC, não há um único caminho a ser seguido por petrolíferas estatais no momento da privatização.

Da mesma forma, nem sempre a desestatização é a melhor escolha, a depender do momento político e econômico do país, de acordo com Sérgio Lazzarini.

"Às vezes pode ser indicado apenas melhorar a governança, blindar a empresa de interferência governamental, atrair mais investimentos e implementar estratégias para desinvestir setores estratégicos e ampliar a concorrência", diz o professor do Insper.

"Mas experiência em geral, não só no setor do petróleo, mostra que a gestão privada, de fato, aumenta a eficiência operacional".

Refinaria Presidente Bernardes da Petrobras em Cubatão, estado de São Paulo
Refinaria Presidente Bernardes da Petrobras em Cubatão, estado de São Paulo

Lazzarini lançou em março deste ano o livro "The Right Privatization - Why Private Firms in Public Initiatives Need Capable Governments" (A Privatização Certa - Porque Empresas Privadas em Iniciativas Públicas Precisam de Governos Capazes, em tradução livre).

Na obra, o especialista destaca justamente a importância de um governo bem-organizado e preparado no processo de privatização de estatais de diversos setores.

"E o que são governos capazes? Governos que levam o tema da privatização para o debate público adequadamente e criam um ambiente regulatório adequado para tratar do problema", diz.

Ainda segundo Lazzarini, os casos de sucesso costumam acontecer quando há um ambiente regulatório forte e institucional estável que consiga atrair investimentos, além de competição no setor. "Os preços só começam a cair quando há mais atores e mais competição", diz.

Patrick Heller, diretor Executivo do Natural Resource Governance Institute e pesquisador do Centro de Direito, Energia e Meio Ambiente da Universidade da Califórnia em Berkeley, lista ainda outros fatores que considera essenciais para uma boa transição.

"O primeiro deles é fazer uma boa avaliação dos preços das ações antes da privatização. Definir um bom mecanismo para encontrar um valor inicial de referência e a partir daí seguir com as negociações", diz.

"Fazer isso sempre foi complexo, mas está ainda mais difícil neste momento, diante das incertezas reais em torno do futuro da indústria de petróleo e gás no mundo e da necessidade de se investir em energia limpa".

Heller lembra ainda da importância da transparência em qualquer processo de privatização. "Todas as etapas precisam ser transparentes, seja no momento da avaliação dos ativos, da definição dos modelos de privatização ou de estabelecer os requisitos para que as partes tenham acesso aos recursos desestatizados", afirma.

"Por fim, há um terceiro ponto importante e que se conecta ao anterior, que é a construção de um processo justo e objetivo", diz. Segundo Heller, o princípio deve ser obedecido independentemente do modelo de privatização escolhido.

"É preciso se certificar de que as ações não sejam entregues a pessoas politicamente conectadas ou que um grupo específico de investidores seja privilegiado".

Segundo os especialistas, os casos de fracasso na história acontecem justamente quando esses princípios não são respeitados.

"Pode haver falhas em três estágios da privatização: no desenho do modelo, na implementação e na fase pós-privatização", diz Sérgio Lazzarini.

Para o professor do Insper, quando há falha no modelo, por vezes troca-se o monopólio estatal por um privado, como aconteceu na Rússia.

"Na implementação é preciso estar atento para falhas no momento de identificar compradores e licitar a venda. Já no pós os problemas estão na não regulamentação do setor ou definição dos padrões de qualidade e quantidade dos investimentos", complementa Lazzarini.

Os estudiosos afirmam ainda que associar diretamente a queda dos preços dos combustíveis a um sucesso na privatização nem sempre é o melhor caminho, já que o preço no setor é ditado internacionalmente e muito influenciado por fatores externos.

"Em geral, empresas privadas do setor de gás e petróleo tendem a ser mais eficientes quando se trata de gerenciar recursos e custos de produção", diz Patrick Heller. "Mas o petróleo é uma commodity global e, portanto, o que mais influencia os preços que chegam até os consumidores não é a eficiência de uma empresa de extração em particular, mas sim o mercado global de energia".

*Texto publicado originalmente no BBC News Brasil


Pedro Doria: Biden muda o jogo da nova guerra fria, entre EUA e China

Em meio a tantas mudanças no governo americano, passou despercebida uma carta escrita pelo presidente Joe Biden à direção do Instituto Broad. Dedicado ao encontro entre tecnologia digital e genética, entre ciência pura e medicina prática, o Broad nasceu de uma rara colaboração de duas universidades vizinhas — Harvard e MIT.

E Biden quer repetir a experiência de um de seus mais importantes antecessores — Franklin Roosevelt. De um presidente que virava as costas para a ciência, os EUA mudaram para um que vai ao seu encontro. E que deseja, com ciência e tecnologia, redefinir o conflito com a China.

“Em 1944, o presidente Franklin Roosevelt escreveu uma carta a seu assessor científico, Vannevar Bush, lhe perguntando como ciência e tecnologia poderiam ser aplicadas para beneficiar a saúde, a prosperidade econômica e a segurança nacional nas décadas após a Segunda Guerra”, escreveu Biden.

 “A resposta do Dr. Bush veio na forma de um relatório que deu curso ao avanço científico americano dos 75 anos seguintes.”

No centro do debate está uma discussão sobre o papel do Estado, uma mudança no pensamento liberal, e a compreensão de que os EUA estão entrando numa nova Guerra Fria.

O problema que Roosevelt tinha pela frente já era claro em 1944. A Alemanha Nazista ia perder a guerra, o fascismo seria limado do mapa, EUA e União Soviética venceriam e entrariam em disputa por influência no mundo.

Nos anos 1940 e 50, batiam-se os dois polos do mundo em igualdade de condições no desenvolvimento científico. Na briga ideológica de qual sistema seria capaz de gerar riqueza, desenvolver conhecimento e avançar com sua sociedade à frente, a democracia liberal bateu o comunismo.

A China é muito diferente do que foi a União Soviética. Segue tendo um governo altamente centralizado, não há liberdades individuais, e o planejamento econômico é feito em Pequim. A diferença é que o regime agora é capitalista, há gente que enriquece, histórias de empresários que ergueram suas companhias do nada, e eficiência na produção nunca é deixada de lado por burocracia.

A China produz tecnologia de ponta, de ponta mesmo. Conseguiu o que a URSS jamais chegou perto de atingir.

Assim como a segunda metade do século 20 foi marcada por uma disputa de sistemas, também a primeira metade do século 21 será desenhada assim. A diferença é que o adversário das democracias liberais, desta vez, é competente.

Por isso mesmo, por parecer ter criado a ditadura eficiente, capaz de gerar riqueza e de distribuí-la, a China se torna um modelo tentador para muitos.

Donald Trump entendia este jogo como mera disputa comercial. Pouco afeito à ideia de democracia, não entendeu onde estava o verdadeiro potencial americano. Do governo Reagan para cá, o Estado se ausentou de ter um papel maior no futuro dos EUA.

Biden, agora, volta àquele modelo de John Maynard Keynes e John Kenneth Galbraith, que permeou as presidências de Eisenhower, Kennedy e Johnson.

Não se trata do Estado central dos nacional-desenvolvimentistas. Não é um Estado que decide indústrias e orienta a nação de Washington. Mas é um Estado que gasta dinheiro pesado para desenvolver ciência e atrair cérebros de toda parte, um Estado em essência multicultural.

A aposta é de que conhecimento será criado em tal quantidade, e com a liberdade de inquirir e testar que só democracias são capazes de produzir, que o resultado inevitável será o surgimento de empresas e até mesmo de novas indústrias inteiras.

O Vale do Silício nasceu assim.


El País: Fábrica russa de mentiras está ativa e se espalha a novos continentes

Usina de desinformação que interferiu nas eleições norte-americanas de 2016, numa operação preparada por um homem do círculo de Putin, agora age também na África

MARÍA R. SAHUQUILLO, El País

Em um edifício de escritórios na cidade russa de São Petersburgo, na nação balcânica de Montenegro ou em centros empresariais de Gana e da Nigéria. A fábrica russa de mentiras, a usina de trolls que semeou uma profusão de boatos falsos na campanha para as eleições presidenciais norte-americanas de 2016, polarizando o debate e interferindo na sua propaganda, nunca foi desativada. A usina original foi copiada, e muitas de suas operações foram terceirizadas. As operações da máquina de propaganda, que deixou à vista as vulnerabilidades do sistema e a magnitude e força das operações de ingerência e desinformação da Rússia, espalharam-se pelos Estados Unidos, por vários países europeus e alguns da África. Enquanto isso, os gigantes da Internet e os governos ocidentais tratam de confrontá-la, em alguns casos com táticas não totalmente limpas.

A técnica é a mesma que Vitaly Bespalov praticou durante algumas semanas em 2015. Esse jovem trabalhava em um edifício de concreto de quatro andares na rua Savushkina, em São Petersburgo, sede da chamada Agência de Pesquisas da Internet (AII) e matriz da usina de trolls. Sua missão era defender posições pró-russas durante um dos picos do conflito na Ucrânia, e mais tarde sobre a política norte-americana. “Tratava-se de alimentar o discurso e semear as redes com comentários falsos e interessados para beneficiar a Rússia”, comenta Bespalov, que hoje trabalha em uma organização de defesa dos direitos LGTBI. Por trás de catracas camufladas e com a proteção de seguranças, blogueiros, ex-jornalistas e outros profissionais recrutados pela agência trabalhavam para lançar esse “carrossel de mentiras”, como descreve a ativista e pesquisadora Liudmila Savchuk, que no final de 2014 trabalhou infiltrada na fábrica de trolls de São Petersburgo e ajudou a desmascarar a estrutura.

Aquela operação de desinformação na Ucrânia foi considerada bem-sucedida e serviu de germe para uma nova missão, desenhada para intervir nas eleições presidenciais de 2016, e voltada desta vez para o público dos EUA. Uma nova equipe de pessoas, fluentes em inglês e dotada de salários mais suculentos, criou uma rigorosa quota de publicações incendiárias sobre a candidata Hillary Clinton, a justiça racial e Donald Trump, fazendo-se passar por norte-americanos. O entorno polarizado foi um terreno fértil para os trolls russos, que amplificaram a discórdia que já fervilhava.

Era uma máquina de propaganda que também se dedicou a comprar publicidade e publicar anúncios sobre raça, imigração e armas de fogo, que chegaram a 10 milhões de pessoas nos Estados Unidos. O exército digital de trolls, acusado de interferir no pleito de 2016 é, segundo Washington, parte do império empresarial de um dos oligarcas da órbita mais próxima do Kremlin, Yevgeni Prigozhin, empresário do ramo gastronômico e alvo de sanções dos EUA. Apelidado como “o chef de Putin”, ele provou que o sistema era eficaz em 2011, quando contratou dezenas de pessoas para que elogiassem na mídia e nos principais fóruns da Internet russa a comida do sua empresa de catering, cuja qualidade havia sido questionada em várias denúncias.

Prigozhin, apontado como suspeito nas investigações sobre a ingerência eleitoral do promotor especial Robert Mueller, negou qualquer vinculação com a agência e com as atividades de sua máquina de propaganda. Também o Kremlin rechaçou as acusações.

Apesar dos alertas e dos mecanismos de vigilância adotados pelos gigantes da Internet e pelas redes sociais após o escândalo de 2016, as usinas russas de trolls continuaram operando, embora tenham mudado um pouco as suas técnicas de publicação, para reduzir os riscos de serem detectadas. Mesmo assim, sua influência e sua sombra são longas. Suas ambições e seus tentáculos, também. Nos últimos meses, o Twitter anunciou a eliminação de milhares de contas vinculadas à AII. Em março, o Facebook revelou que tinha descoberto uma subsidiária da usina russa de trolls em Gana e na Nigéria, operada por pessoas locais, mas vinculada à AII de São Petersburgo, e que tinha como alvo os Estados Unidos. E em setembro a empresa eliminou outra leva de contas, que ainda estavam em etapa de desenvolvimento e centravam suas atividades nos Estados Unidos, Reino Unido, Argélia e Egito. Esses usuários faziam publicações em inglês e árabe sobre temas como o movimento Black Lives Matter, a OTAN, Donald Trump, a campanha presidencial de Joe Biden e a conspiração do grupo radical QAnon.

Nos últimos meses, essa intensa atividade chegou a resultar em guerra de trolls na África. Há duas semanas, o Facebook anunciou que tinha identificado outra usina de desinformação russa vinculada à AII e direcionada a países africanos, e também uma estrutura francesa. São campanhas rivais voltadas, sobretudo, para as eleições deste fim de semana na República Centro-Africana ―onde Moscou tem cada vez mais interesses― e a outros 13 países da África que procuravam enganar os usuários da Internet e se desmascararem entre si.

É a primeira vez que a rede social identificou e bloqueou um grupo de trolls, vinculado a “pessoas associadas ao exército francês”, que atuam pelos interesses de um Governo ocidental. “Não se pode combater fogo com fogo”, advertiu Nathaniel Gleicher, chefe de política de segurança cibernética do Facebook. E acrescentou: “Temos estes dois esforços de diferentes lados destes problemas utilizando as mesmas táticas e técnicas, e terminam parecendo a mesma coisa”.