Rubens Barbosa

Rubens Barbosa: O Reino Unido abandona a Europa

Com o Brexit a União Europeia perde uma voz enérgica e ativa no cenário internacional

A eleição parlamentar de 12 de dezembro resultou na maior derrota do Partido Trabalhista desde 1935 e, de 1987 até hoje, na maior vitória dos conservadores. Apesar da divisão do país, o primeiro-ministro Boris Johnson passou a ter ampla maioria e maior liberdade para operar a saída do Reino Unido da União Europeia (UE).

Com a aprovação do Parlamento britânico, o Reino Unido deverá sair juridicamente da União Europeia na sexta-feira próxima, dia 31, três anos depois do referendo de junho de 2016. Haverá, até 31 de dezembro de 2020, um período de transição que o primeiro-ministro Boris Johnson pretende não prorrogar, mas que poderá estender-se até dezembro de 2022, dependendo da evolução das negociações.

No corrente ano a principal prioridade do governo britânico será abrir negociações comerciais com a UE e aprovar medidas legislativas internas em praticamente todas as áreas, pondo fim a um casamento que durou 45 anos. O Parlamento deverá examinar e aprovar legislação em todas as áreas para substituir normas e regulamentos da União Europeia hoje em vigor. Johnson, na contramão de políticas do Partido Conservador, tem reafirmado que pretende ter mais flexibilidade no tocante à presença do Estado sobretudo nos programas sociais, ao contrário das políticas seguidas até aqui no âmbito da UE.

No período de transição, o Reino Unido deverá seguir respeitando as regras da UE, apesar de não mais participar de sua elaboração. E acertar o pagamento de dívidas resultantes da retirada de diversos órgãos comunitários. A negociação do acordo comercial com a UE parece ser um projeto muito ambicioso, visto que normalmente levaria cerca de dois anos para ser concluído. Se a saída efetiva do Reino Unido se der em janeiro de 2021, como quer Johnson, poderá ocorrer uma retirada sem negociação comercial, o pior cenário para Londres. A futura relação com a União Europeia torna-se, assim, incerta no tocante ao intercâmbio comercial, além de outras áreas, como defesa e segurança, pesquisas, troca de estudantes, agricultura e pesca. Esses e outros acordos, como a presença de cidadãos europeus no Reino Unido e de imigrantes, deverão ser aprovados pelos Parlamentos de todos os países-membros.

Com relação aos acordos comerciais, o Reino Unido deverá pedir admissão à Organização Mundial de Comércio (OMC) e negociá-los com a UE e outros parceiros, segundo suas regras, justo num momento em que a OMC vive uma crise de identidade pelo esvaziamento a que é submetida pela ação dos EUA. Cabe notar, porém, que só depois de o acordo com o Reino Unido ser ratificado por todos os países-membros da UE será possível iniciar negociação com outros países, como EUA e Brasil.

Uma das questões mais delicadas será conhecer o pensamento do novo governo já fora da UE no tocante à cooperação no âmbito da defesa. Como será o papel do Reino Unido nos trabalhos da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan)? É possível antecipar que o Reino Unido deverá respaldar as posições críticas dos EUA quanto aos compromissos financeiros e outros da Otan?

Com relação ao impacto sobre as relações com o Brasil, a saída do Reino Unido representa uma perda nas negociações comerciais com a UE, tendo em mente as políticas mais liberais de Londres, sobretudo nas questões agrícolas. Por outro lado, na época de Theresa May o governo britânico havia indicado, publicamente, interesse em negociar um acordo de livre-comércio com o Brasil quando fosse efetivado o divorcio da UE. O Mercosul certamente deverá tomar posição acerca da negociação de um acordo de livre-comércio com o Reino Unido. Resta saber se Boris Johnson vai manter o interesse em avançar nessas negociações. Outra consequência será a realocação de cotas atribuídas ao Reino Unido na UE em alguns produtos agrícolas. De acordo com as novas cotas anunciadas pela UE na OMC, será preciso compensar a perda de cotas de 11 produtos do setor.

Os desafios do governo Johnson não são pequenos: terá de dissociar uma economia profundamente integrada ao bloco comercial há 45 anos, ao mesmo tempo que terá de executar planos para o pós-Brexit e minimizar os danos imediatos aos interesses das empresas britânicas, já ocorrendo em especial no setor financeiro da City. A saída da UE trará forte impacto sobre o papel do Reino Unido no mundo e ao futuro da união do país. O Partido Nacionalista Escocês, fortalecido nas eleições, já pediu novo referendo sobre a independência da Escócia, de imediato negado por Johnson.

A Europa também sentirá as consequências do Brexit. A saída do Reino Unido deve acelerar a perda de relevância da UE no mundo. Os líderes dos países europeus vêm enfrentando problemas econômicos e a emergência do populismo e do nacionalismo conservador. Alemanha e França, motores do crescimento e principais atores da União Europeia, se veem às voltas com crises econômicas e políticas internas. Sem Londres a UE perde uma voz enérgica e ativa no cenário internacional e o grupo de nações que dominaram o cenário global por tantos anos perderá espaço no mundo e encolherá melancolicamente.

*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio exterior (IRICE)


Rubens Barbosa: França dividida

Depois de 18 meses de governo, Macron parece isolado e com crescente dificuldade política

De passagem por Paris, procurei entender a controvérsia em curso hoje na França sobre a reforma da previdência social. O país está dividido entre a pressão de parte da sociedade para preservar regimes especiais de aposentadorias e a necessidade de se ajustar a um mundo em rápida transformação.

A eleição presidencial de 2017 trouxe uma forte renovação na vida política da França. A vitória do presidente Emmanuel Macron contra o establishment e contra os extremos de direita e de esquerda deu-lhe um mandato para reformar o país. Criou-se uma grande expectativa pelo anúncio de reformas muito semelhantes à da atual agenda brasileira: reforma das relações trabalhistas, da previdência social, tributária e da educação, redução de privilégios corporativos e do gasto público, mudanças na economia para melhorar a competitividade dos produtos franceses. Depois de dois nos e meio de governo, não houve muitos avanços: nem os impostos nem o desemprego (8,5%) foram reduzidos, o déficit comercial é crescente e poucas reformas chegaram a ser efetuadas (as 35 horas de trabalho semanal continuam). A crise política e social vivida pelo governo Macron tem como substrato uma rápida deterioração da dívida pública, que em setembro alcançou seu recorde histórico de 100,2% do produto interno bruto (PIB), sem perspectiva de redução do gasto.

As medidas iniciais provocaram forte reação e manifestações dos coletes amarelos. A resposta do governo foi a organização de “grandes debates” para abordar todas as reivindicações populares e as reformas propostas. O resultado dos encontros mostrou algumas áreas de consenso nacional, como a urgência de providências relacionadas à mudança do clima e à redução dos impostos, a melhoria dos serviços públicos e a desburocratização com a redução do papel do Estado. No fim de janeiro Macron apresentará o conteúdo do que chama de “pacto produtivo”. Nele estarão mencionados, entre outros itens, dispositivos fiscais a favor de investimentos no que denominou transição ecológica da economia, o que incluirá pedido para que a União Europeia adote um mecanismo de taxação para evitar a importação de produtos com forte teor de carbono e um programa de investimento voltado para o futuro da indústria 4.0. São esperadas também a redução do Imposto de Renda, medidas na saúde e educação e maior autonomia para governantes eleitos regionalmente.

A apresentação da reforma da previdência levou ao maior movimento grevista depois da 2.ª Guerra Mundial. O país está paralisado há 40 dias e viu ressurgir o poder dos sindicatos, abalado pela ação espontânea dos coletes amarelos, o movimento social mais sério e complexo desde as manifestações estudantis de maio de 1968.

O sistema previdenciário francês mantém muitos privilégios e vantagens, obtidos durante os chamados gloriosos 30 anos que começaram logo depois da guerra e se estenderam durante os anos mais positivos da globalização, de 1989 a 2008. Nesses momentos, reforma significava progresso, avanços sociais para melhorar a vida das pessoas: proteção contra as incertezas, maiores salários, melhor aposentadoria, redução da duração do trabalho. Hoje transformação ou reforma, na visão da oposição a Macron, significa sacrifício e recuo social, isto é, salários reduzidos, mercado de trabalho liberalizado, ortodoxia financeira, orçamentos apertados, aposentadorias retardadas.

A proposta de Macron previa mudanças significativas, em especial o aumento da idade mínima de aposentadoria de 62 para 64 anos a partir de 2027, a fusão num só dos 42 fundos de pensão, administrados independentemente e o fim dos regimes especiais (ferroviários, militares, policiais, bailarinos da Ópera de Paris, por exemplo, se aposentam com menos de 60 anos e maiores pensões). Propõe também um regime de pontuação pelo qual quanto mais tempo um trabalhador ficar no mercado, mais pontos ele acumula e maior será sua pensão. Hoje 18% da força de trabalho se aposenta pelos regimes especiais com pensões maiores do que a média.

Depois de 18 meses de governo, Macron parece isolado e com crescente dificuldade política. O primeiro-ministro Édouard Philippe continua a negociação com os sindicatos para poder avançar com a reforma da previdência. No fim de semana, para tentar desbloquear as negociações, o governo cedeu e ofereceu retirar provisoriamente a proposta da idade mínima de 64 anos (dependendo de acordo com os sindicatos sobre o equilíbrio e o financiamento das aposentadorias). Com isso é difícil que a reforma consiga reduzir o custo crescente previdenciário (14% do PIB). Essa significativa concessão aos sindicatos contraria o pronunciamento presidencial de fim de ano, no qual Macron reafirmou que não recuaria no tocante ao fim dos regimes especiais, mas admitiu que o caráter universal da reforma não significa uniformidade (concessões foram feitas aos militares, policiais e bombeiros, entre outros). A versão final da reforma será submetida à votação da Assembleia Nacional em fevereiro.

O resultado da queda de braço com os sindicatos determinará o futuro do governo Macron e se a França pode ser reformada e modernizada. Tudo indica que, prevalecendo a força dos sindicatos, a reforma saia bastante diminuída. Macron se enfraquecerá e o centro, representado pelo movimento criado pelo presidente francês, tenderá a desaparecer, a exemplo do que aconteceu no Reino Unido.

A crise interna vai debilitar as ações externas do presidente francês. Defensor do fortalecimento da soberania da Europa, Macron vê a unidade europeia diminuir com a saída do Reino Unido da União Europeia, com a emergência de movimentos nacionalistas e populistas de direita em muitos países europeus e com a saída de cena de Angela Merkel, sua principal parceira. Nesse quadro, com a Europa fragilizada, “à beira do precipício”, num mundo hostil, entre os Estados Unidos e a China, é difícil Macron realizar sua ambição de liderar a União Europeia, como ficou claro agora na crise EUA-Irã.

*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)


Rubens Barbosa: Bioeconomia e a Zona Franca de Manaus

Não se pode mais adiar a discussão da mudança de foco nas políticas públicas da região

O tema do meio ambiente entrou definitivamente na agenda global. E mais cedo ou mais tarde voltará a ser uma prioridade para o governo brasileiro, por realismo político e por razões pragmáticas.

Diante das atitudes do atual governo, são crescentes as ameaças de prejuízo para o setor do agronegócio pela possibilidade de boicote de consumidores e pela crescente influência da política ambiental sobre as negociações comerciais. A atuação na defesa dos legítimos interesses do setor está levando as associações das diferentes áreas e a frente parlamentar da agropecuária a defender mais atenção aos compromissos internacionais assumidos pelo Brasil nos acordos assinados desde 1992 e, sobretudo, uma atenuação da retórica governamental e uma correção de rumo de algumas políticas anunciadas pelo governo.

As percepções críticas no exterior têm como foco a Amazônia. Recentemente, as queimadas e o desmatamento foram alvo de manifestações no mundo todo. Informações distorcidas e meias verdades se misturaram a fatos, ampliando as consequências negativas para nossos interesses comerciais e políticos. As diferenças quanto à gestão do Fundo Amazônico puseram em risco a cooperação internacional com Alemanha e Noruega.

Não estão em questão a soberania e a capacidade do governo de determinar as políticas para a região. As recentes manifestações no mundo inteiro, sobretudo de jovens, para sensibilizar os governos a tomar medidas que evitem as grandes alterações no clima com o aumento da temperatura no planeta, incluem a preocupação com a preservação da Floresta Amazônica.

No Brasil, nos últimos 50 anos, houve uma política declarada dos governos para integrar a Amazônia e gerar emprego para a população que habita a região. Uma das mais relevantes foi a criação da Zona Franca de Manaus (ZFM), no final dos anos 60. Com subsídios anuais do governo federal que sobem atualmente a cerca de R$ 25 bilhões, a ZFM nunca se voltou para o maior potencial da Amazônia: a floresta e a biodiversidade.

Sujeita a muitos questionamentos quanto a seus resultados em relação à preservação da floresta, ao custo/benefício das isenções e incentivos fiscais, estão surgindo algumas ideias que merecem ser examinadas. Todas vão na linha da defesa do interesse brasileiro ao defender a biodiversidade da região.

O Instituto Escolhas, sob a coordenação de Sergio Leitão (www.escolhas.org), apresentou proposta de uma nova economia para o Amazonas: a Zona Franca de Manaus e a bioeconomia. A proposta sugere um novo modelo de desenvolvimento sustentável com estímulos aos investimentos, diversificação das atividades econômicas e dinamização do parque industrial com o objetivo de integrar a ZFM com a vocação natural da região à inovação tecnológica e ao uso da biodiversidade amazônica - a bioeconomia.

Para a preservação da floresta e a interiorização do desenvolvimento e do consumo, foram definidas algumas diretrizes: desenvolvimento científico e tecnológico, com foco em inovação; uso do potencial da biodiversidade de modo sustentável; descentralização econômica e geração de ganhos sociais e ambientais; dinamização do polo industrial de Manaus e de seu modelo atual.

Com investimentos públicos e privados de R$ 7,15 bilhões ao longo de dez anos - oriundos de concessões, parcerias público-privadas e outras -, a geração de empregos diretos e indiretos no Amazonas poderia chegar a 218 mil vagas. Só durante as obras de infraestrutura seriam gerados 12 mil empregos.

Não podem mais ser adiadas a discussão sobre uma mudança de foco nas atuais políticas públicas da ZFM e em todo o Amazonas e a definição de uma política de estímulos aos investimentos na região com o objetivo de alavancar o desenvolvimento tecnológico, produtivo, industrial e social com foco em pesquisa e desenvolvimento tripartite - governo, empresas e academia.

A geração de inovação partiria do uso de matérias-primas existentes nas diversas regiões do Estado, com ênfase nos insumos de biodiversidade. Para suscitar exportações e internacionalizar os negócios, as empresas deveriam estar capacitadas a ser competitivas para garantir a integração às cadeias globais produtivas de valor.

A análise desses elementos resultou na identificação de quatro eixos de oportunidades: bioeconomia, polo de economia da transformação digital, ecoturismo e piscicultura.

Na bioeconomia, o estudo sugere a dinamização do Centro de Biotecnologia da Amazônia para se transformar num foco de excelência da floresta. Manaus poderia ser o primeiro hub de pesquisa em bioeconomia, integrado com os principais centros de pesquisa do mundo, com conhecimento específico sobre os ecossistemas de florestas tropicais. Poderiam ser desenvolvidas pesquisas para emprego de madeira tropical em escala industrial nos sistemas estruturais da construção civil, para emprego dos produtos da floresta nas indústrias da moda e têxteis, das fibras amazônicas na indústria automobilística e de plásticos verdes, dos produtos da biodiversidade na indústria de cosméticos, das plantas e insetos para food tech.

O polo de economia da transformação digital seria viabilizado pela criação de governança tripartite para estruturar ecossistemas de inovação em tecnologia, informação e comunicação.

O ecoturismo seria desenvolvido pela identificação de nichos de interesse para realização de ecoturismo científico.

Na piscicultura, sugere-se a dinamização do Centro de Biotecnologia da Amazônia com linhas de pesquisa sobre os peixes para seu emprego em escala industrial em food service e food premium, além do couro do peixe na indústria da moda.

O Ministério da Economia está estudando um plano para o desenvolvimento econômico da região com o objetivo de discutir o regime de incentivos fiscais da União, inclusive no contexto da reforma tributária. A proposta de associar a ZFM com a biodiversidade da Floresta Amazônica poderia inicialmente complementar as atividades industriais hoje existentes.

* Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio exterior (IRICE)


Brasil e Argentina têm nova tensão, explica Rubens Barbosa na Política Democrática de dezembro

Embaixador analisa relação entre os dois países da América do Sul em artigo publicado na revista produzida e editada pela FAP

Cleomar Almeida, assessor de comunicação da FAP

O embaixador e presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (Irice), Rubens Barbosa, a relação entre os centros do poder do Brasil e da Argentina é marcada por nova tensão. Em artigo exclusivo de sua autoria publicado na edição de dezembro da revista Política Democrática online, ele afirma que “declarações de lado a lado acirraram os ânimos entre os presidentes, ministros e altos funcionários”.

» Acesse aqui a 14ª edição da revista Política Democrática online

De acordo com o embaixador, a nova tensão entre Brasília e Buenos Aires ocorre por causa de uma escalada retórica em função de divergências ideológicas. No Brasil, há um governo de direita, liberal na economia e conservador nos costumes, e, na Argentina, um governo de centro-esquerda, que acabou de assumir o poder, avalia o autor, no artigo. Todos os conteúdos da revista podem ser acessados, gratuitamente, no site da FAP (Fundação Astrojildo Pereira) e são compartilhados nas redes sociais.

A política econômica e comercial do novo governo argentino, conforme o artigo publicado na revista Política Democrática online, passou a ser preocupação do governo brasileiro. Isto, segundo Barbosa, por causa da possibilidade de a abertura da economia e a ampliação da negociação externa do Mercosul serem contestadas por políticas protecionistas.

“Sinalizações, nesse sentido, poderiam questionar o comércio bilateral e a aprovação do acordo com a União Europeia. A retórica confrontacionista põe em risco, de um lado, o relacionamento político e diplomático e a cooperação econômica e comercial entre os dois parceiros. E, de outro lado, o futuro do Mercosul”, analisa o presidente do Irice para a Política Democrática online.

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Revista Política Democrática || Rubens Barbosa: Encontros e desencontros entre Brasil e Argentina

Nova tensão entre Brasília e Buenos Aires ocorre por conta de uma escalada retórica em função de divergências ideológicas entre um governo de direita, liberal na economia e conservador nos costumes, no Brasil, e um governo de centro-esquerda, prestes a assumir o poder na Argentina

Como é normal entre países vizinhos, Brasil e Argentina passaram por muitos desencontros e crises ao longo de suas histórias.

Poderíamos começar ainda no século XIX, quando, em 1826, as Províncias Unidas (hoje Argentina) organizaram complô para sequestrar Dom Pedro II, de modo a pôr fim à guerra com o Brasil pelo controle da Banda Oriental (hoje, Uruguai). No início do século XX, de 1906 a 1910, nova crise por um incidente menor: apreensão de um barco uruguaio no Rio da Prata, em área de demarcação contestada entre Argentina e Uruguai. O governo uruguaio pediu apoio ao governo brasileiro. O conflito aumentou e só foi resolvido por ação do barão do Rio Branco e do presidente argentino, Saenz Peña.

Mais recentemente, tivemos momentos de tensão bilateral por ocasião da construção da Hidrelétrica de Itaipu – com questionamentos públicos pela Argentina nos organismos multilaterais, por conta da questão do compartilhamento das águas –, durante a Guerra das Malvinas e no período de governos militares nos dois países.

Agora, nova tensão entre Brasília e Buenos Aires em decorrência não de uma crise, mas de uma escalada retórica em função de divergências ideológicas entre um governo de direita, liberal na economia e conservador nos costumes, no Brasil, e um governo de centro-esquerda, prestes a assumir o poder na Argentina. Declarações de lado a lado acirraram os ânimos entre os presidentes, ministros e altos funcionários, que, do lado argentino, sequer tomaram posse.

A política econômica e comercial do novo governo argentino passou a ser preocupação do governo brasileiro, pela possibilidade de a abertura da economia e a ampliação da negociação externa do Mercosul serem contestadas por políticas protecionistas. Sinalizações nesse sentido poderiam questionar o comércio bilateral e a aprovação do acordo com a União Europeia.

A retórica confrontacionista põe em risco, de um lado, o relacionamento político e diplomático e a cooperação econômica e comercial entre os dois parceiros. E, de outro lado, o futuro do Mercosul.

O processo de integração sub-regional foi reforçado nas últimas reuniões presidenciais por medidas de modernização, enxugamento da burocracia e negociação de acordos comerciais com parceiros extra-zona. Na reunião presidencial do dia 4 de dezembro, encerrando a presidência brasileira, todos apoiaram o fortalecimento do Mercosul, e a sugestão de redução da Tarifa Externa Comum, sem acordo, ficou para 2020.

A Argentina e o Brasil têm, no âmbito do Mercosul, interesses comerciais importantes a preservar. O mercado brasileiro é fundamental para as exportações argentinas, que ajudarão na recuperação da economia, junto com políticas econômicas voltadas para a estabilização que o novo governo vier a tomar. Quanto ao setor privado brasileiro, o mercado argentino é importante para a indústria automobilística e a linha branca. A Fiesp recentemente emitiu nota a favor do fortalecimento do Mercosul, ressaltando que os problemas de funcionamento do bloco devem ser resolvidos de maneira consensual entre os países membros.

A diplomacia parlamentar do presidente da Câmara, Rodrigo Maia, quebrou o gelo e propiciou encontro com Alberto Fernández, que deveria assumir a Presidência no dia 10. Vozes moderadas do Itamaraty preferem aguardar as definições das novas autoridades argentinas e, depois de informados sobre a nova realidade, buscar consultas bilaterais em nível técnico. Ao Brasil interessa uma Argentina que volte a crescer, estável política e economicamente. Para tanto, Brasília deveria deixar de lado divisões ideológicas e mesmo provocações políticas, como os gestos em relação ao ex-presidente Lula, e manter a “paciência estratégica”.

O bom senso começa a prevalecer e declarações mais moderadas apontam para uma distensão retórica.

Ao longo da história, em todos os momentos de tensão entre os dois países, as crises foram superadas pela ação pragmática da nossa diplomacia, que sempre levou em conta interesses concretos. Essa lição do passado pode ser útil quando a Argentina e o Brasil atravessam mais um momento delicado na relação bilateral.

O determinismo geográfico da vizinhança é um fator que o governo brasileiro não poderá deixar de levar em conta. Diferenças ideológicas não podem contaminar o relacionamento civilizado entre os dois países.

Como disse Saenz Peña, ao superar a crise no início do século passado, “tudo nos une e nada nos separa”. Que suas palavras nos sirvam agora de exemplo. E que prevaleça o que é do interesse nacional dos dois países.


Rubens Barbosa: O Mercosul em questão

O bom senso e o pragmatismo devem prevalecer e, assim, o bloco sair fortalecido

A discussão sobre o futuro do Mercosul tornou-se urgente. Não se trata de um debate no vácuo ou teórico. Há uma situação real que tem de ser examinada à luz dos interesses concretos do governo e do setor privado.

Essa discussão tem necessariamente de levar em conta as recentes mudanças políticas e econômicas resultantes das últimas eleições no Brasil, com tendência liberal na economia, e a vitória do centro-esquerda na Argentina. O fim do isolamento do Mercosul, com a conclusão das negociações com a União Europeia (UE) e a Efta, mais as consequências de eventual redução da Tarifa Externa Comum (TEC), da ampliação da rede de acordos comerciais (incluído um improvável acordo com os EUA) e da repercussão da crise ambiental na Amazônia sobre a ratificação do acordo com UE e Efta, não podem ser descartados. Devem-se também ter presente as transformações globais que apontam para uma mudança do eixo econômico para a Ásia e a guerra comercial entre os EUA e a China.

Nas últimas reuniões presidenciais do Mercosul, na Argentina, e na semana passada no Brasil, os governos tomaram a decisão de adotar medidas para fazer do Mercosul novamente um instrumento de abertura comercial, conforme previsto no Tratado de Assunção. As principais decisões tomadas pelos presidentes reforçaram o bloco e enfocaram as regras econômicas, o enxugamento das instituições e a facilitação do comércio. O Brasil apresentou estudo para permitir uma rebaixa da TEC média (hoje de 14%) para níveis que sejam similares à média global, o que, sem acordo, ficou de ser retomado no próximo ano com o novo governo de Buenos Aires.

A política econômica e comercial do novo governo argentino – antes mesmo de ser conhecida – passou a ser uma preocupação do governo brasileiro pela possibilidade de que medidas protecionistas de nossos hermanos sejam contrárias às medidas de abertura da economia e de ampliação da negociação externa do Mercosul.

Sem entrar no exame das consequências comerciais para o Brasil, a simples cogitação de mudanças profundas no funcionamento do Mercosul pareceriam desconhecer as regras incluídas no Tratado de Assunção, que criou o bloco regional, e em outros atos relevantes. Modificações substantivas do seu funcionamento não entram em vigor imediatamente, nem podem ser tomadas unilateralmente por nenhum membro do bloco, sob pena de representar o descumprimento do Tratado de Assunção. Em termos concretos, essas modificações terão de ser aprovadas por todos os países-membros, depois de ratificada a modificação do tratado. A redução da TEC, se não aprovada por todos os países-membros, e a entrada em vigor do acordo com a UE, na medida em que os Congressos do Mercosul o ratificarem, poderão levantar dúvidas sobre a necessidade de alterar o tratado para serem implementadas.

Torna-se, assim, difícil analisar o futuro do Mercosul levando em conta tantas e tão importantes variáveis políticas e econômico-comerciais. A vontade política que permitiu a criação e a evolução do subgrupo regional até aqui deve prevalecer. É pouco provável – apesar da retórica em Brasília e Buenos Aires – que o processo de integração seja substancialmente alterado na direção contrária ao real interesse nacional, tanto do ponto de vista econômico-comercial, quanto de política externa.

O determinismo geográfico da vizinhança é um fator que o governo brasileiro terá de levar em conta, acima das considerações ideológicas. Brasil e Argentina já passaram por crises sérias, superadas por pragmatismo e interesses concretos. No momento não existe uma crise com a Argentina. Há diferenças ideológicas e provocações de ambos os lados, que não podem contaminar o relacionamento civilizado entre os dois países. A paciência estratégica pode ser o caminho. Os empresários daqui e de lá estão preocupados com a escalada ideológica de lado a lado. A Fiesp emitiu nota em defesa do fortalecimento do Mercosul, ressaltando que os problemas de funcionamento do bloco devem ser superados de maneira consensual entre todos os países-membros. A Argentina é o principal mercado brasileiro para produtos manufaturados e, portanto, o impacto sobre o setor industrial não pode ser ignorado, em especial o automobilístico e o de linha branca.

Os países-membros do Mercosul deveriam é estar preocupados com o day after da entrada em vigor do acordo Mercosul-União Europeia, até fins de 2021. Sem reformas estruturais, como a trabalhista, a tributária, a do papel do Estado, e o implemento das medidas de facilitação e desburocratização com o objetivo de reduzir o custo Brasil (que representa 22% do PIB) para melhorar a competitividade, a simples redução das tarifas no mercado europeu não poderá ser aproveitada pelas empresas nacionais. Sem avanços relevantes na inovação e na tecnologia, o setor industrial não terá como competir com empresas chinesas, sul-coreanas e norte-americanas no mercado europeu. Sem o fortalecimento institucional do Mercosul será mais difícil enfrentar os desafios que o acordo colocará para o Brasil e os demais membros do subgrupo.

Depois de conhecidas a política econômica e a linha de atuação do governo de Alberto Fernández, caberia uma atitude de moderação e de consultas bilaterais em nível técnico. A diplomacia parlamentar, recém-inaugurada pelo presidente da Câmara, Rodrigo Maia, também poderia ajudar. Ao Brasil interessa uma Argentina que volte a crescer, estável política e economicamente. Parece improvável que Brasília possa adotar uma posição ideológica radical em relação ao Mercosul sem um amplo debate com a sociedade e dentro do Congresso Nacional.

Como das vezes em que tensões entre os dois países foram superadas, o bom senso e o pragmatismo deveriam prevalecer e, assim, o Mercosul sair fortalecido. Ideologias não devem afetar o interesse nacional. Em primeiro lugar deveria estar o Brasil.

*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)


Rubens Barbosa: O desaparecimento do centro

O Brasil deve se espelhar em países onde convivem forças de todo o espectro político

Com o desaparecimento do voto moderado de centro, a votação do referendo que aprovou a saída do país da União Europeia (UE) mudou radicalmente o cenário político no Reino Unido. A busca desse voto sempre teve muita influência nas eleições britânicas. As eleições deixaram de ser uma disputa entre a esquerda (Partido Trabalhista) e a direita (Partido Conservador) acima das diferenças ideológicas, econômicas e sociais. Quando as eleições são disputadas tendo como foco questões econômicas entre esquerda e direita, os partidos políticos podem escolher um ponto ao meio, mais moderado, e conquistar votos decisivos. Em contraposição, quando se trata de política de identidade ou questões que envolvam grandes reformas não há possibilidade de negociação. É mais fácil haver compromisso em questões econômicas, como impostos e salários, e muito mais difícil quando se trata de noções como soberania e papel do Estado.

Com a discussão sobre o Brexit como tópico principal da eleição britânica de 12 de dezembro, o voto de centro terá pouca influência pela polarização entre os que querem sair e os que querem permanecer na UE. Desapareceu o senso comum de que o partido que pudesse focalizar as preocupações do eleitor de centro poderia ganhar, enquanto que os partidos que buscassem os extremos seriam derrotados.

As posições moderadas de centro também estão desaparecendo em muitos países, tendo como pano de fundo a insatisfação da população com a crescente concentração de renda, a pobreza e a falta de oportunidades de emprego. Essa frustração se materializa em manifestações e confrontações em países como Líbano, Iraque e França, na cidade chinesa de Hong Kong e, na América do Sul, no Chile e na Bolívia. Essa reação não representa disputas entre os partidos de esquerda e direita por reformas sociais, mas a luta da população, sobretudo dos jovens sem liderança e sem coloração partidária, contra o establishment, ou seja, o governo da vez.

As situações descritas acima estão causando crescente instabilidade política, confrontações violentas e impasse institucional, sem perspectiva de solução pela ausência de negociações possíveis.

No caso do Brasil, nos últimos 20 anos a polarização ideológica começou com a ação política do “nós contra eles” e culminou com a campanha eleitoral de outubro passado. A eleição de 2018 foi um divisor de águas. Pela primeira vez na História recente do País surgiu, com sucesso, um candidato e um partido assumidamente de direita que disputaram a Presidência contra representantes da esquerda e de uma centro-esquerda fragmentada. O segundo turno, polarizado entre direita e esquerda, acentuou a divisão interna como nunca antes no País, refletindo, em parte, a crescente influência da mídia social.

Diferentemente dos Estados Unidos, onde a divisão interna tem crescido nos últimos 30 anos e a insatisfação da população contra o governo desaguou na eleição de Donald Trump, o Brasil, com exceção da maior parte do período autoritário, sempre se caracterizou pela busca da conciliação e do entendimento entre as diferentes tendências políticas. Nos últimos anos, as visões ideológicas e populistas, que passaram a ter grande influência, e as crises políticas, sobretudo em 2016, com o impedimento da presidente Dilma Rousseff, fizeram que posições radicais de esquerda e de direita fossem gradualmente eliminando as percepções centristas mais moderadas. Pouco antes da eleição de outubro, para evitar os extremos, chegou a haver a tentativa de busca de uma terceira via, de centro, moderada, que não teve condição de prosperar.

A eleição de um presidente e a grande votação de um partido, ambos com uma agenda de direita conservadora nos costumes e liberal na economia, mudou o quadro político interno. Depois da eleição, fragilizada, com seu líder condenado e preso, a esquerda, desorganizada, estava sem efetiva capacidade de fazer oposição ao governo. Apesar disso, a narrativa das forças de direita continuou a insistir que esse grupo era o único que poderia ser uma ameaça à volta da esquerda e do comunismo e a tudo apostar na manutenção do clima de polarização política.

A decisão do STF sobre a prisão em segunda instância e a saída da prisão da principal liderança da oposição reforçam a retórica da polarização e da radicalização, justo no momento em que forças políticas começavam a articular a formação de um centro moderado. Evitando os extremos de direita e de esquerda, essa posição superaria os antagonismos radicais com uma agenda liberal na economia, preocupação com a desigualdade social, sem excessos nos costumes e com uma visão de mundo sem ideologia e sem alinhamentos automáticos, colocando o Brasil em primeiro lugar.

No novo cenário da política interna, a oposição, agora com um líder que em seus primeiros pronunciamentos se mostrou mais à esquerda do que até aqui esteve e promete percorrer o País para atacar as reformas e defender seu ideário ideológico, só tenderá a acirrar a contestação ao governo. À direita interessa essa radicalização para manter unidos e atuantes seus seguidores e para atrair parcelas do centro com a ameaça da volta da esquerda ao poder, como ocorreu na eleição presidencial.

O desaparecimento do centro – se vier a ocorrer – será um retrocesso e poderá acarretar, no limite, até a confrontação física entre os mais radicais de ambos os lados. A ampla agenda de reformas em discussão no Congresso e a perspectiva de crescimento da economia aconselham a busca de moderação para evitar a instabilidade política, que poderá ameaçar a volta do investimento e a redução do desemprego.

Com visão de futuro e buscando o fortalecimento das instituições, o Brasil deve espelhar-se em países onde no cenário interno convivem forças de todo o espectro político. A sociedade brasileira não tem alternativa senão buscar rapidamente a formação de um centro político forte que evite a polarização e o crescimento da radicalização, que possam pôr em risco a democracia.

*Presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio Exterior (IRICE)


Rubens Barbosa: O Brasil e o Atlântico Sul

Essa é uma área geoestratégica de interesse vital para o nosso país

Na definição do conceito estratégico da Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), em 2010, o Atlântico Sul não foi incluído como área geoestratégica prioritária, mas não se exclui totalmente a possibilidade de sua atuação “onde possível e quando necessário” caso os interesses dos membros sejam ameaçados. Portugal, nessa discussão, apoiou a Iniciativa da Bacia do Atlântico, que previa a unificação dos oceanos, com incorporação dos assuntos do Atlântico Sul no escopo estratégico da organização.

Em pronunciamento recente, o atual ministro português da Defesa Nacional, João Gomes Cravinho, observou que “a segurança do espaço euro-atlântico tem de ser pensada a partir das pontes que o Atlântico permite criar e para as quais Portugal tem um posicionamento privilegiado para contribuir ativamente”. Dentro desse entendimento, Portugal está criando o Centro para a Defesa do Atlântico (CeDA) no Arquipélago dos Açores. O CeDA tem como objetivo a reflexão, a capacitação e a promoção da segurança no espaço atlântico. O centro pretende tornar-se um fórum multinacional, que contará com a participação de peritos civis e militares de países localizados na Bacia Atlântica ou com interesses nesse espaço.

Localizado na Ilha Terceira, em parte das instalações de base norte-americana, e em Lisboa, o CeDA deverá focalizar inicialmente as dinâmicas de insegurança no Golfo da Guiné e na África Ocidental, estando, contudo, vocacionado para trabalhar todas as temáticas relevantes para a segurança do Atlântico de norte a sul, de leste a oeste, e onde a capacitação no domínio da defesa possa contribuir positivamente. Vai estabelecer parcerias, desenvolver e implementar projetos de capacitação que permitam aos Estados ribeirinhos do Atlântico reforçar as suas capacidades na prevenção, no combate e na mitigação das ameaças transnacionais, tais como tráfico de drogas, de seres humanos e de armas, pirataria e assalto à mão armada contra navios, e pesca ilegal, não regulamentada e não declarada. Também a poluição, as alterações climáticas e a resposta de emergência estão na mira; e numa fase posterior poderão surgir as ameaças cibernéticas, entre outras possíveis a prevenir. O balizamento conceitual do centro está ainda em desenvolvimento, com contribuições dos países atlânticos envolvidos, entre os quais o Brasil.

No que concerne às principais atividades do CeDA, para além de projetos de capacitação por meio de parcerias com a ONU, a Otan, a União Europeia e a União Africana, entre outros, o centro trabalhará igualmente na busca, no tratamento e na análise de informação, na elaboração de estratégias de capacitação e doutrina, na monitorização de ameaças transnacionais e na implementação de projetos.

O Instituto de Defesa Nacional, em Lisboa, deverá realizar seminário para apresentar, discutir e divulgar o CeDA. Esse evento contará com especialistas, nacionais e estrangeiros, civis e militares, que aprofundarão os requisitos e a missão fundamental do centro e como estudo de caso serão analisadas as várias dimensões dos desafios à segurança na região do Golfo da Guiné.

No início de 2020, prevê-se, nos Açores, uma primeira ação de formação de uma rede de peritos internacionalmente reconhecidos que possam dar continuidade ao trabalho de capacitação dos quadros civis e militares, bem como das forças de defesa e segurança dos países do Golfo da Guiné.

Com a constituição do CeDA, Portugal pretende dar corpo à ideia de contribuir para manter o Atlântico como um espaço de paz e segurança internacional e de trabalhar com parceiros atlânticos na identificação de contribuições para esse objetivo.

O Brasil manifestou preocupação porque não foi informado previamente da criação do centro e pela intenção explicitamente indicada pelo Conselho de Ministros da Otan de empregar o centro como plataforma para a Organização e para a União Europeia com vista à segurança de todo o Atlântico (incluindo o Atlântico Sul e também, em especial, o Golfo da Guiné). O Brasil, nessa região, está presente e desenvolve esforços para o enfrentamento da pirataria.

O Brasil sempre deixou clara sua reserva no tocante às iniciativas que incluam a Bacia Atlântica e, por via de consequência, o Atlântico Sul como área de atuação da Otan. O sul do Atlântico é área geoestratégica de interesse vital para o Brasil. As questões de segurança relacionadas às duas metades desse oceano são distintas e devem merecer respostas diferenciadas – tão mais eficientes e legítimas quanto menos envolverem organizações ou Estados estranhos à região.

A Política Nacional de Defesa menciona o Atlântico Sul como uma das áreas prioritárias para a defesa nacional e amplia o horizonte estratégico para incluir a parte oriental do Atlântico Sul e a África Ocidental e Meridional. Por essa razão, o Brasil não deveria ignorar a iniciativa. Seria de nosso interesse acompanhar de perto a definição de como o centro vai atuar.

Por outro lado, o governo norte-americano decidiu designar o Brasil como “aliado prioritário extra-Otan”, elevando a parceria estratégica com os Estados Unidos a novo patamar de confiança e cooperação. Esse status é conferido a um número restrito de países, considerados de interesse estratégico para os Estados Unidos, e os torna elegíveis para maiores oportunidades de intercâmbio e assistência militar, compra de material de defesa, treinamentos conjuntos e participação em projetos. Embora não tenha relação direta com a Otan, o novo status do Brasil recomendaria o acompanhamento do que está acontecendo na Organização.

O ministro da Defesa, Fernando Azevedo e Silva, esteve em Portugal recentemente e foi informado da criação do centro. Para manter a prioridade sobre o Atlântico Sul, como previsto na Estratégia Nacional de Defesa, o Brasil deveria participar da criação do CeDA e oferecer contribuição na definição de suas atribuições e formas de atuação.

*PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE)


Rubens Barbosa: Ser embaixador em Washington

Talvez mais do que em outros postos, nos EUA o que conta é ter acesso e influência

O Dissenso de Washington, livro onde descrevo como exerci a função de embaixador nos Estados Unidos por quase cinco anos e as atividades da embaixada, foi publicado em 2011. Por sua atualidade, transcrevo trechos do capítulo Ser Embaixador Junto ao Governo Americano, lembrando que, por mais que as relações entre os governos sejam excelentes, o embaixador tem de ficar atento para defender os interesses do País, pois os Estados Unidos haverão de defender os seus com vigor. A defesa é feita acima de partidos e ideologias, com prudência e comedimento, sobretudo nos pronunciamentos públicos.

Ser embaixador em Washington, o posto mais importante no exterior para profissionais de qualquer país do mundo, é o sonho de todo diplomata, mas poucos alcançam esse objetivo. Até ser indicado, por mais de 30 anos ocupei cargos de chefia no governo e na área econômica do Ministério das Relações Exteriores e no Ministério da Fazenda.

O embaixador em Washington tem de estar amplamente atualizado não só sobre o que acontece em seu próprio país e naquele em que está acreditado, como também sobre os acontecimentos que se desenvolvem nos outros países do mundo.

Talvez mais do que em outros postos, em Washington o que conta para um embaixador é ter acesso e influência. O processo de construção do que se traduz em prestígio perante o governo e a sociedade local é, em grande parte, executado nos contatos desenvolvidos e aprofundados em ocasiões em que os interesses do Brasil são manifestados e defendidos.

No mundo globalizado, onde a comunicação é instantânea, é enorme a competição por espaço na mídia, no mundo cultural e no acesso à comunidade acadêmica. Participei de programas de televisão, rádio, debates acadêmicos, think tanks e em instituições relacionadas com comércio exterior. Assumi o cargo com plena consciência de que a disputa por espaço para tentar influir a favor do Brasil seria uma das principais linhas de atuação da embaixada.

O poder de atração de Washington sobre autoridades de todos os quadrantes é uma das facetas da vida da capital dos EUA. Presidentes, primeiros-ministros, altas autoridades visitam quase diariamente seus contrapartes norte-americanos. Em torno dessas autoridades são organizados seminários, reuniões e palestras, preciosas fontes de informação para o trabalho diplomático. A presença da embaixada brasileira nas reuniões para debater a situação no Hemisfério, a política externa dos EUA e os principais temas globais facilitou muito o nosso trabalho de coleta de informações e análises sobre o que se passava no continente e no mundo.

Quando cheguei a Washington havia ali 194 embaixadas. Fiz um trabalho de ampliação de contatos de modo a que o Brasil se distinguisse como um interlocutor privilegiado para os Estados Unidos no conjunto dos países ali representados. Minha primeira preocupação foi definir a vocação que imprimiria à embaixada brasileira, pois isso determinaria a escolha das prioridades e dos instrumentos de trabalho durante minha gestão.

Nas primeiras reuniões com a equipe tracei a estratégia da atuação futura, que visava a dinamizar alguns setores e criar novos setores na Chancelaria. Dentre as prioridades iniciais, estavam a ampliação da interlocução com as autoridades americanas, a ênfase econômica e comercial e o desenvolvimento de um programa de diplomacia pública com a realização de seminários e encontros sobre o Brasil. Empenhei-me também em ampliar a presença no Congresso e em estabelecer sólida aproximação com o meio acadêmico e toda a comunidade brasileira.

Nesse contexto, meu objetivo imediato foi ampliar os contatos e o relacionamento da embaixada brasileira com o governo e o Congresso norte-americanos, assim como com as universidades, escolas, mídia, think tanks, ONGs (direitos humanos e meio ambiente), instituições financeiras internacionais e privadas. A meta era fazer da embaixada uma interlocutora proativa nesses setores, que definimos como prioritários.

Faz parte do trabalho de qualquer embaixada hoje, em especial em países estratégicos, adicionar valor às informações que o Itamaraty pode obter por seus próprios meios. Cuidei que desenvolvêssemos análises que superassem as meras notícias e informações oriundas de qualquer parte do mundo e praticamente simultâneas aos próprios acontecimentos. Dentro dessa perspectiva e sem descurar do fato de que os Estados Unidos não se resumem a Washington, desenvolvi o trabalho diplomático por meio de viagens e contatos pessoais também fora da capital. Visitei oficialmente 30 Estados (mídia, câmaras de comércio, universidades).

A embaixada em Washington goza de situação bastante peculiar: o embaixador atua não só no âmbito bilateral, mas também na mediação do contato de governadores e ministros de Estado visitantes com o Banco Mundial, o BID e o Fundo Monetário Internacional. Nunca deixamos de acompanhar as reuniões dessas autoridades brasileiras com o governo norte-americano e com os organismos multilaterais na capital norte-americana.

A residência funcionava como uma espécie de braço para a ação diplomática. Muitas vezes, o dia começava com um café da manhã de trabalho. E era rotina recebermos convidados norte-americanos, o corpo diplomático, os correspondentes de jornais e autoridades brasileiras em almoços e jantares de trabalho.

Em qualquer representação, mas, sobretudo, na embaixada junto à Casa Branca, o papel da mulher é especialmente valioso. Sendo Washington uma cidade administrativa, os contatos se desenvolvem no âmbito da sociedade local, composta de congressistas, membros do governo, dos tribunais, da mídia e dos milhares de lobistas de carteirinha.


Rubens Barbosa: Vitória do PT, prejuízo para o Brasil

Atraso de duas décadas do programa espacial foi o preço da atitude ideológica do partido

O resultado mais importante da visita do presidente Jair Bolsonaro a Washington, na semana passada, foi a assinatura do Acordo de Salvaguarda Tecnológica (AST), que torna possível o uso comercial do Centro de Lançamento de Alcântara, no Maranhão. Com isso se tornam viáveis significativas perspectivas comerciais para o Brasil entrar num mercado anual de mais de US$ 12 bilhões, em especial no de satélites de pequeno porte.

O AST entre o Brasil e os Estados Unidos, proposto inicialmente por Brasília, foi assinado em abril de 2000 pelo governo Fernando Henrique Cardoso, mas foi inviabilizado pelo Partido dos Trabalhadores (PT), como oposição no Congresso Nacional e, depois, como governo.

A principal reclamação do PT era a de que não havia transferência de tecnologia para o Brasil e nossa soberania ficaria afetada porque equipamentos entrariam em território nacional sem interferência das autoridades alfandegárias brasileiras. Além da questão da soberania, criticada ainda recentemente pelo ex-ministro da Defesa e das Relações Exteriores Celso Amorim, as principais objeções do PT ao acordo referiam-se à proibição do uso da receita dos lançamentos no desenvolvimento de veículos lançadores; ao impedimento de o Brasil cooperar com países que não fossem membros do Regime de Controle de Tecnologia de Mísseis (MTCR, na sigla em inglês); à possibilidade de veto político unilateral de lançamentos e à obrigatoriedade de assinar novos acordos de salvaguardas com outros países. Como foi sempre esclarecido às lideranças do PT, o acordo não é de transferência de tecnologia, mas de proteção de informações confidenciais na prestação de serviços. Todos esses aspectos criticados pelo PT foram agora satisfatoriamente negociados e superados.

Por minha iniciativa quando chefiei a Embaixada do Brasil em Washington, no segundo semestre de 2003, foi reaberta a negociação com o Departamento de Estado sobre os pontos que contavam com a forte e vocal oposição do PT. O processo avançou, para surpresa de muitos, e as cláusulas de divergência foram eliminadas. Em abril de 2004, as maiores objeções políticas para a ratificação do acordo estavam superadas. O governo brasileiro teria de propor formalmente algumas mudanças menores que seriam aceitas pelo governo norte-americano. Com esses avanços o acordo poderia ser ratificado pelo Congresso brasileiro, mas os governos do PT não deram seguimento ao assunto.

Vale lembrar, ainda no primeiro governo do presidente Lula da Silva, a assinatura de um acordo de salvaguardas com a Ucrânia. Bastante similar ao firmado com os Estados Unidos, o acordo foi submetido ao Congresso e rapidamente aprovado. Apesar de estar em vigor, o entendimento com a Ucrânia não teve nenhuma consequência comercial para o Brasil, em vista das dificuldades econômicas por que passa esse país. Esse foi um dos exemplos de descoordenação do governo petista, pois, sem o AST, o acordo com a Ucrânia não poderia ser levado adiante porque o veículo lançador daquele país precisava de autorização do governo de Washington.

No governo Dilma Rousseff, em 2013, ao final da visita do presidente Barack Obama ao Brasil, e em 2015, durante a visita do então ministro da Defesa, Jaques Wagner, a Washington, houve referências ao interesse de ambos os lados em retomar as discussões sobre o AST, sem nenhuma ação do governo brasileiro nesse sentido. Somente no governo de Michel Temer os entendimentos avançaram concretamente e puderam agora ser completados pelo governo Bolsonaro, atendidas as preocupações de ambos os governos.

O preço dessa atitude ideológica do PT foi o atraso do programa espacial brasileiro por duas décadas. Vitória do partido e prejuízo para os interesses brasileiros.

Apesar do interesse das empresas norte-americanas, as conversações com os Estados Unidos não foram fáceis, pelas preocupações com a não proliferação de veículos lançadores de satélites prevista no programa espacial brasileiro.

O interesse brasileiro é de tornar possível um centro de lançamento competitivo, o que permitirá a entrada do Brasil no nicho de mercado de satélites de telecomunicações e de meteorologia. Não haverá dificuldades internacionais para o estabelecimento da base pelo fato de o Brasil ser membro do MTCR. O tratamento que o Brasil receberá será idêntico ao dispensado a outros países, como a Rússia e a China, que assinaram acordos de salvaguardas com os Estados Unidos.

A viabilização comercial do Centro de Lançamento de Alcântara e sua atualização tecnológica dependerão de recursos financeiros que virão de empresas que alugarem espaços dentro dele para efetuarem os lançamentos de seus satélites.

A estratégica localização geográfica da base de Alcântara, situada a apenas dois graus de latitude sul, quase na Linha do Equador, permitirá o lançamento de foguetes com 13% de economia de combustível em relação ao consumido em Cabo Canaveral, nos Estados Unidos, e 31% se comparado com Baikonur, no Casaquistão. Mais de 80% dos satélites comerciais são de propriedade de empresas americanas e sem o acordo nenhum satélite poderia ser lançado de Alcântara. A base só poderá tornar-se viável comercialmente quando o acordo de salvaguardas tiver sido ratificado.

Espera-se que o Congresso Nacional ratifique esse acordo no mais breve prazo possível. E que as discussões sejam feitas sem a carga ideológica que tem prevalecido nos últimos 20 anos.

Igualmente importante é que a partir de agora o governo federal acelere e complete as mudanças na governança do setor e defina uma estratégia de longo prazo, que dê previsibilidade às eventuais empresas interessas, não só dos Estados Unidos, mas de outros países, com França, Israel e Japão.

*PRESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE)


Política Democrática: ‘País precisa de choque liberal para reformar Estado’, diz Rubens Barbosa

Ex-embaixador do Brasil em Washington (1999-2004) analisa, em artigo publicado na quinta edição da revista Política Democrática online, as medidas  que o país precisa para reformar o Estado e destravar o mercado

Cleomar Almeida

O Brasil precisa cada vez mais de um choque liberal na economia para reformar o Estado, destravar o mercado, recuperar as finanças públicas e redirecionar os recursos públicos do dispêndio com pessoal e previdência. A avaliação é do ex-embaixador do Brasil em Washington (1999-2004), Rubens Barbosa, em artigo publicado na quinta edição da revista Política Democrática online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira).

» Acesse aqui a edição de fevereiro da revista Política Democrática online

De acordo com o autor do artigo, o Fórum Econômico Mundial em 2019 não teve nem o brilho, nem o otimismo dos anos anteriores, pela ausência dos líderes das principais potências e desaceleração da economia global e risco de guerra comercial. “Nesse contexto, o Brasil, uma das dez maiores economias do mundo, acenou com amplas oportunidades de investimento e de cooperação com a apresentação de um programa liberal de abertura da economia e de correção de práticas de corrupção, o que o auditório queria ouvir”, escreveu Barbosa.

Não pode ser ignorado, na avaliação do ex-embaixador, o atual contexto internacional muito negativo em relação ao Brasil em decorrência da muito bem-sucedida campanha de descrédito contra o país desenvolvida pelo PT junto à mídia, aos políticos e à academia nos EUA e na Europa, nos últimos três anos. “A percepção no exterior está dominada pela retórica do golpe, depois do impeachment de Dilma Rousseff, passando pela perseguição a Lula, presentado como um prisioneiro político, e culminando com a teoria de fraude na eleição de outubro passado pela não participação do ex-presidente”, ressaltou ele, para continuar: “A expectativa que se criou em Davos, pela presença do presidente Jair Bolsonaro na abertura do World Economic Forum, foi correspondida, em grande parte, pelos pronunciamentos presidencial e dos ministros Paulo Guedes e Sergio Moro”.

Barbosa também é consultor de negócios, presidente do Conselho Superior de Comércio Exterior da FIESP (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo), presidente do Conselho Deliberativo da SOBEET (Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e da Globalização Econômica). Ele é membro do Gacinte (Grupo de Análise da Conjuntura Internacional) da USP) (Universidade de São Paulo), presidente emérito do CEBEU (Conselho Empresarial Brasil – Estados Unidos) e editor responsável da revista “Interesse Nacional”. É autor de “Interesse nacional e visão de futuro” (Sesi SP, 2012), “O Dissenso de Washington” (Agir, 2011) e “Mercosul e a integração regional” (Imprensa oficial – SP, 2009).

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Rubens Barbosa: Mudança da Embaixada para Jerusalém

Consulado-geral na cidade poderia evitar mudança dramática na nossa política externa

Durante a campanha eleitoral, o candidato Jair Bolsonaro disse que, se eleito, iria transferir a Embaixada do Brasil de Tel-Aviv para Jerusalém: “Israel é um Estado soberano, que decide qual é sua capital, e nós vamos segui-lo”. A promessa respondia à reivindicação da comunidade evangélica, que apoiava fortemente o candidato.

Depois de eleito, o presidente decidiu dar prioridade às relações com Israel e se comprometeu a concretizar a transferência a ninguém menos que o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, que em entrevista disse que a “questão não é se, mas quando”. Posteriormente, Bolsonaro recuou ao afirmar que “essa não é uma questão de honra” e “por ora” não haveria transferência, o que deve ter estimulado o vice-presidente Hamilton Mourão a receber duas delegações árabes e observar publicamente que “não haverá mudança da embaixada para Jerusalém”. O chanceler Ernesto Araújo qualificou declarações anteriores e notou que a decisão seria “parte de um processo de elevação do patamar da relação com Israel, isso, sim, uma determinação, independente da mudança ou não da embaixada”. A comunidade evangélica reagiu e deixou saber que vai cobrar a decisão presidencial para concretizar a transferência.

Como era previsível, a ideia causou reação em diversas frentes. Na área diplomática, porque representaria uma guinada radical na política externa brasileira, que desde 1947 se mantém coerente com o apoio da política de uma solução negociada para o conflito Israel-Palestina, com a implementação da política de dois Estados, com a criação também do Estado Palestino. Caso venha a concretizar-se, o Brasil ficará em Jerusalém ao lado apenas da Guatemala, que se alinhou automaticamente aos EUA. Por outro lado, a Liga Árabe e a União das Câmaras Árabes de comércio manifestaram preocupação com essa eventual decisão e uma comitiva ministerial brasileira teve visita ao Egito cancelada.

Na área econômica houve reação mais explícita, com menção à perspectiva de as exportações brasileiras de frango e carne bovina poderem vir a ser suspensas. O Ministério da Agricultura e associações de produtores manifestaram apreensão quanto às consequências negativas para as exportações brasileiras e a balança comercial.

Nas prioridades para os primeiros cem dias de governo, o Itamaraty incluiu a visita presidencial a Israel e o interesse em ampliar a colaboração nas áreas de defesa, segurança e tecnologia. E em pronunciamento recente nas Nações Unidas, o representante alterno brasileiro reafirmou a política do Itamaraty de dois Estados, indicando que nada havia mudado.

O governo brasileiro tem assim nas mãos uma questão delicada a resolver, procurando evitar ao mesmo tempo um desgaste desnecessário com Israel e uma perda significativa para o agronegócio. Qualquer que seja a decisão do governo, não está em questão o interesse em elevar o nível do relacionamento bilateral com Israel, mantendo a posição tradicional de excelente relação bilateral.

Nesse contexto, cabe mencionar um antecedente histórico que poderia ajudar na busca de uma solução de compromisso para essa questão. O Brasil tem uma relação histórica com Israel, desde que o então presidente da Assembleia-Geral da ONU, Oswaldo Aranha, coordenou pessoalmente a aprovação da resolução de 1947 que determinou a criação dos Estados e Israel e da Palestina.

No governo de Juscelino Kubitschek, com Macedo Soares como chanceler, foi instalada a representação diplomática com a criação da legação do Brasil na capital, Tel-Aviv. Em 27 de março de 1958, a legação foi elevada ao status de embaixada. Como medida de rotina diplomática, e a fim de evitar contrariar a política dos dois Estados, por decreto de 22 de abril do mesmo ano o governo brasileiro decidiu criar um consulado-geral em Jerusalém. Em 1993, com Itamar Franco e Celso Amorim, o decreto foi revogado. O posto, assim, nunca chegou a ser efetivamente aberto.

A exposição de motivos que justificava a criação do consulado-geral, publicada nos jornais na época, causou controvérsia por imprecisões diplomáticas sobre as peculiaridades da disputa regional. Na consulta realizada ao governo de Tel-Aviv sobre a abertura do consulado foi afirmado que não seria objetada a criação de “uma seção consular” da embaixada, o que contrariava a decisão anunciada pelo governo de Juscelino Kubitschek, que talvez tenha motivado a não designação de pessoal para o posto. Indagado sobre as razões que levaram o governo brasileiro a abrir o consulado-geral em Jerusalém, Macedo Soares disse que foi “por razões espirituais, políticas e diplomáticas”. Mencionou também que “a existência de uma repartição consular brasileira” significava “a presença de milhões de católicos brasileiros na Cidade Santa”, que “a principal missão dos consulados é a defesa e o amparo de brasileiros que se acham no exterior” e, no caso de Israel, “de peregrinos que se encontravam naquela cidade”.

A recriação do consulado-geral em Jerusalém poderia ser uma solução para evitar uma mudança dramática de diretriz de política externa de mais de 60 anos. Essa solução - amparada em precedente histórico - seria até melhor, do ponto de vista brasileiro, do que outras soluções, como a criação de um escritório comercial em Jerusalém, a exemplo do que fez a Austrália. Ao anunciar o estabelecimento do escritório, o primeiro-ministro australiano manteve a coerência de sua administração e confirmou sua posição favorável à política de dois Estados.

Apresentada de maneira apropriada, o governo israelense e a comunidade evangélica entenderiam a decisão do Brasil, coerente com sua tradicional atitude, compreendendo as dificuldades internas para alterar uma política tão consolidada e evitar o isolamento internacional.

*Rubens Barbosa é presidente do Instituto de Relações Internacionais e Comércio exterior (IRICE)