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'Cultura deveria funcionar dentro do Ministério da Educação’, diz Caio de Carvalho

Diretor executivo do Canal Arte 1 do Grupo Bandeirantes de Comunicação concedeu entrevista exclusiva à nova edição da revista Política Democrática online

“Penso que a cultura não deveria estar em um ministério à parte. Deveria funcionar dentro do Ministério da Educação, para que se pudesse fazer um trabalho de base, junto às escolas, à garotada, isto é, de forma que a gente pudesse ter um processo realmente na base da pirâmide”. A afirmação é do diretor executivo do Canal Arte 1 do Grupo Bandeirantes de Comunicação, Caio de Carvalho, em entrevista à 12ª edição da revista Política Democrática online, produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), em Brasília.

» Acesse aqui a 12ª edição da revista Política Democrática online

Com acesso gratuito pelo site da FAP, a revista traz em sua nova edição a entrevista exclusiva com doutor em comunicação social e advogado formado pela USP (Universidade de São Paulo). Ele acredita que, se fosse feito um trabalho de base, seria possível influenciar, em um país com imensos problemas educacionais e culturais, a TV aberta a usar sua força para ajudar a educar e levar cultura a todos os brasileiros, e não medir com réguas de pesquisas programação centrada em alegria, entretenimento, como se o povo preferisse o banal.

“Um escritor conservador, como Mario Vargas Llosa, já questionou tudo isso que está acontecendo na televisão de nossos dias”, comentou ele, durante a entrevista concedida ao diretor da FAP Caetano Araújo, com colaboração de Vladimir Carvalho e Martin Cézar Feijó. Segundo ele, o Arte1 surgiu, justamente, por causa de legislação, que dispõe a obrigatoriedade de reservar três horas por dia para produção nacional.

“É uma missão do canal. Nessas três horas, temos de apresentar, no mínimo, de 22 a 23 horas por semana de produção nacional, que é fruto de produção independente e de produção própria nossa”, afirma. “Quanto à produção estrangeira, minha equipe, integrada por jovens muito competentes, circula por feiras e amostras no exterior, em busca de materiais novos que valham a pena. A tarefa se facilita porque nossos parceiros internacionais sabem já o que nós queremos”, conta.

Carvalho, que também é professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (EAESP) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), considera-se um cinéfilo. “Daí ter trazido para o Arte1 os filmes chamados clássicos, para não mencionar produções próprias, como a entrevista que fizemos com Ettore Scola, uma obra prima, um mês de sua morte. Outro dia eu peguei o Giancarlo Gianinni – que nem sabia que ele quase veio trabalhar no Brasil aqui, antes de ser cineasta – para falar de toda a história de seus filmes”.

Ele também foi ministro de Estado de Esportes e Turismo. Foi presidente da Empresa Brasileira de Turismo (Embratur), do Conselho Executivo da Organização Mundial de Turismo (OMT) e da São Paulo Turismo S/A. É membro dos Conselhos da Japan House, do Museu de Arte Moderna e do Museu da Língua Portuguesa.

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Promessa de Bolsonaro movimenta garimpos em Serra Pelada, destaca nova edição da Política Democrática

Região vive à míngua do ouro, ao contrário do que viveu há 40 anos, quando passou a ser conhecida como o maior garimpo a céu aberto do mundo

A promessa do presidente Jair Bolsonaro reacende uma nova onda em busca do ouro em Serra Pelada, no Sudeste do Pará, conforme revela a primeira reportagem da série Sonho Dourado: 40 anos depois, publicada em destaque na 12ª edição da revista Política Democrática online. A publicação foi lançada, nesta sexta-feira (25), e também leva ao público artigos do presidente do Cidadania, Roberto Freire, e do ministro aposentado do STF (Supremo Tribunal Federal), Eros Grau. A revista é produzida e editada pela FAP (Fundação Astrojildo Pereira), vinculada ao Cidadania e que a disponibiliza ao público gratuitamente em seu site.

A equipe de reportagem viajou a Serra Pelada para mostrar o tortuoso caminho em busca do ouro, mostrando que Bolsonaro repete uma promessa de legalização dos garimpos nos mesmos moldes da que foi feita, em 12 de novembro de 1980, pelo então presidente João Batista Figueiredo, em viagem à região. Além disso, a reportagem também mostra detalhes de uma guerra silenciosa entre garimpeiros e de uma batalha aberta por todos eles contra a mineradora Vale. Há 40 anos, teve início a corrida do ouro em Serra Pelada, que foi considerado o maior garimpo a céu aberto do mundo.

» Acesse aqui a 12ª edição da revista Política Democrática online

No editorial, a revista analisa que, após a sua posse de Bolsonaro, difundiu-se a esperança de uma iminente mudança radical no discurso dele e de seus colaboradores mais próximos. “Os motes da campanha teriam sido úteis para obter a vitória”, diz um trecho, para continuar: “Ganha a eleição, não persistiriam razões para manter a racionalidade longe das palavras do Presidente. Os fatos, contudo, mostraram rapidamente a irrelevância dessas formulações, reveladoras apenas dos desejos de seus autores”.

A nova edição da Política Democrática também tem uma entrevista exclusiva com o diretor executivo do Canal Arte 1, do Grupo Bandeirantes de Comunicação.  Ele diz que “a cultura não deveria estar em um ministério à parte”. “Deveria funcionar dentro do Ministério da Educação, para que se pudesse fazer um trabalho de base, junto às escolas, à garotada, isto é, de forma que pudesse ter um processo realmente na base da pirâmide”, afirma.

Em artigo de sua autoria, Eros Grau relembra a amizade e um pouco da história de Armênio Guedes, o irmão mais velho, como ele o chamava. “Lá se foi o corpo de Armênio. A esperança refletida no fundo de seus olhos serenos resta entre nós. Iluminando os caminhos a serem experimentados pelos amigos que ainda cá estão. Um dia por certo nos reencontraremos na cidade de férias, férias boas que não acabam mais”, conta, em um trecho.

Já Roberto Freire destaca que o Cidadania quer ser protagonista de uma nova jornada, com um horizonte para se transformar em importante referência de centro-esquerda e contribuir de forma positiva para a democracia brasileira e o desenvolvimento do país. “Além das dimensões políticas e programáticas, o Cidadania tem por vocação a criação de uma nova formação política, longe dos modelos centralizados e verticalizados, totalizantes”, diz o presidente do partido.

A edição também tem outros artigos sobre política, além de abordar cultura e análises de filmes, como Bacurau. Integram o conselho editorial da revista Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.


Revista Política Democrática || Reportagem especial - Serra Pelada vive à míngua do ouro (Parte 1)

Promessa do governo, de legalizar garimpo, reacende a exploração manual na Amazônia, como mostra a primeira das duas reportagens da série Sonho Dourado: 40 anos depois 

Cleomar Almeida

Nas mãos calejadas de Antônio Soares (69 anos), a picareta com cabo de madeira ganha velocidade e avança contra a estrutura rochosa no fundo de um barranco de 70 metros de profundidade que ele e outros garimpeiros abrem em Serra Pelada, no Sudeste do Pará. O suor mina do corpo. O barro vermelho-amarelado ofusca a pele. Eles atuam na clandestinidade em busca de ouro, mas só encontram migalhas na região em que, há 40 anos, teve início o maior garimpo a céu aberto do mundo.

Em situação ilegal, a maioria dos garimpeiros deflagra entre si uma guerra silenciosa em parte da floresta amazônica, sem qualquer precisão sobre a existência de ouro no local em que operam e sem infraestrutura que diminua o risco de desabamento dos barrancos. Para não perderem tempo na corrida pelo ouro, outros já exploram o metal com auxílio de empresas que identificam minas por meio de imagem via satélite.

O consenso entre diversos grupos de garimpeiros é para que o presidente Jair Bolsonaro cumpra a promessa, feita em agosto, de que pretende legalizar os garimpos. No início deste mês, Bolsonaro criticou a empresa mineradora Vale pela exploração de minérios no país e reforçou seu discurso em defesa dos garimpeiros, que veem a multinacional como uma grande barreira para exercerem a atividade, manualmente.

– Minha alma está no garimpo. Aqui tem muita riqueza ainda e não quero que o ouro escorra entre os meus dedos de novo, afirma Antônio, que atua em um barranco perfurado aleatoriamente, enquanto solta um largo sorriso com dois dentes de ouro.

Antônio esteve em Serra Pelada em 1980, mas foi embora no ano seguinte porque diz ter se desanimado pela multidão atraída para a região. Voltou em janeiro. Deixou a família para trás – 17 filhos em Mato Grosso, Maranhão e São Paulo, além de netos e bisnetos – para se unir aos garimpeiros. Sem equipamentos de segurança, eles passam o dia inteiro revezando picareta, cavadeira, enxada e pá. Na minguada disputa pelo ouro, só há intervalo para fazerem uma rápida refeição em fogão de tijolo à lenha, tomar água e dormir, à noite. Ninguém dá detalhes da quantidade de ouro encontrado.

– A gente trabalha para o patrão, que ajuda com o sustento e dá proteção. De vez em quando, aparece uma pepita, mas é coisa miúda, diz o garimpeiro José da Silva (66), que trabalha no mesmo barranco que Antônio.

Entre os garimpeiros, vale a lei do silêncio. No grupo, o olhar de um é suficiente para chamar o outro em um canto afastado. Qualquer comportamento suspeito por parte de algum integrante é recebido pelo garimpeiro-chefe com sinal de advertência. A maioria deles é analfabeta e mora em casas de madeira desgastada, como é predominante em Serra Pelada, aonde as pessoas chegam em lotação após trafegarem 50 quilômetros – 35 deles em estrada de terra – a partir de Curionópolis, a 675 quilômetros de Belém.

Apesar de boa parte deles atuarem em terreno público, garimpeiros que descobrem uma área com potencial de exploração antes dos demais se autodefinem como donos dela e convidam outros para trabalhar, pagando-lhes por meio de diária ou porcentagem do total de ouro achado. Eles reproduzem um código próprio do garimpo, semelhante ao que existia na década de 1980, quando foram extraídas 42 toneladas do metal na região. Na época, Serra Pelada atraiu 100 mil pessoas. Hoje, tem oito mil moradores.

O garimpeiro Jó Borges da Silva (33) opera em uma mina conhecida como mais bem organizada e identificada com auxílio de uma empresa de monitoramento de imagem via satélite. Na cabeça, usa um capacete improvisado e passa o dia explorando ouro em um barranco de 80 metros de profundidade com as laterais protegidas por estrutura de madeira. Usada para puxar as pedras de dentro do buraco, uma gangorra com corda grossa também serve como elevador improvisado dos garimpeiros.

– Meu sonho é achar uma pepita de 30 quilos, maior que a minha cabeça. A maior que já achei aqui tem dois gramas. Quero terminar de construir minha casa em Eldorado dos Carajás. Comecei há três anos e nunca consegui terminar, conta Jó.

O sonho dele corresponde à metade do peso da maior pepita identificada em Serra Pelada e que fica exposta no Museu de Valores do Banco Central, em Brasília. Em 1983, o garimpeiro Júlio de Deus Filho encontrou a pepita Canaã (de 60,8 quilos no total, dos quais 52,3 quilos são de ouro). É a maior parte de uma pedra de quase 150 quilos, que se partiu em vários pedaços quando foi retirada do solo.

O garimpeiro Antônio da Cruz Arantes (59), que se apresenta como proprietário de um dos garimpos identificados por imagem via satélite em Serra Pelada, pretende expandir o negócio e torce para que tenha apoio do Governo Federal. Enquanto faz o processo de lavagem da terra para separar o ouro em uma bateia, ele mostra onde vai instalar um britador próximo ao pequeno barranco.

– Em poucos dias, vamos colocar esta estrutura para funcionar e aqui já queremos separar o ouro o máximo possível. O garimpo está quase vencido, mas a proposta de Bolsonaro vem reacender o sonho de milhares de garimpeiros que esperam pelo funcionamento do garimpo de Serra Pelada, que está adormecido desde os anos 1990, diz Antônio.

Assim como outros trabalhadores da região, o garimpeiro dos dois dentes de ouro torce para que a atividade seja legalizada e que o governo promova ampla discussão com a sociedade, além de ter mais controle sobre a área para coibir a exploração indevida de minérios e mão de obra. Seu maior desafio é, como disse, não deixar o ouro escorrer pelos dedos, como ocorreu quando esteve em Serra Pelada pela primeira vez.

– Não sei se estarei vivo, mas tomara que isso tudo melhore. Vai que eu consiga completar os dentes de ouro da minha boca. Mas, para falar a verdade, não quero, não, porque depois me matam só para roubar os dentes.



Garimpeiros e mineradora Vale acirram briga
Garimpeiros de Serra Pelada reclamam que a empresa mineradora Vale atrapalha as atividades de exploração manual de ouro que eles realizam no Sudeste do Pará. Desde os anos 1970, segundo líderes locais, a multinacional avançou sobre a área que antes estava demarcada para a atividade da cooperativa. Em nota, a Vale nega e informa que não tem intenção de prejudicar os garimpeiros.

Diretor da Cooperativa de Mineração dos Garimpeiros de Serra Pelada (Coomigasp), Almir José da Cruz Arantes diz que a Vale expandiu seu campo de atuação após a descoberta de ouro por parte de um grupo de garimpeiros na região. A empresa informa que não é contra a exploração de minério realizada por pequenos garimpeiros e que cedeu à cooperativa o título minerário de ouro.

A cooperativa também reclama que a Vale construiu em cima da pista de pouso do garimpo uma estrada de escoamento de produção de minério de ferro da mina da unidade de Serra Leste. Segundo os garimpeiros, a obra teve como objetivo atrapalhar a logística de exploração de minério por parte deles e a chegada de pessoas em pequenos aviões.

A Vale informa que construiu a estrada em 2015, com o devido cumprimento do que estabelece a legislação brasileira e licenciamento ambiental junto ao órgão competente. A atividade, segundo a empresa, contribui para o desenvolvimento de Curionópolis, do qual Serra Pelada é distrito, com a geração de empregos, arrecadação e a dinamização da economia local.

Somente em 2018, segundo a mineradora, a operação de Serra Leste gerou R$ 17,3 milhões à União, ao Estado e ao município. Deste total, acrescenta, Curionópolis recolheu R$ 10,4 milhões em Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais. A Vale diz que, no Pará, desenvolve atividades diversificadas de mineração, com produção de ferro, cobre, níquel e manganês e também atividade logística, por meio da Estrada de Ferro Carajás.

 



BLOCO | NA HISTÓRIA

Em outubro de 1977, o então presidente da Companhia Vale do Rio Doce, que tinha direitos sobre a jazida, confirmou a existência de ouro na Serra dos Carajás. Em 21 de maio de 1980, o Governo Federal promoveu uma intervenção na área. No ano seguinte, os depósitos de ouro na superfície se esgotaram e a Vale tentou reaver a posse da área. Na época, interesses eleitorais, porém, levaram o governo a fazer obras para prorrogar a extração manual, já que havia 80 mil garimpeiros na área. Em 1984, a Vale recebeu indenização de US$ 59 milhões.

Diante da queda do volume da extração no final dos anos 1980, o governo, em março de 1992, não renovou a autorização de 1984, e o garimpo voltou a ser concessão da Vale. Em 1996, os garimpeiros restantes invadiram a mina, mas uma operação do Exército e da Polícia Federal pôs fim à obstrução de 171 dias nos acessos a Serra Pelada.


 

25% do ouro produzido no Brasil é ilegal, diz agência
A Agência Nacional de Mineração (ANM) estima que até 25% de ouro produzido no país é ilegal. Em média, segundo a autarquia, o volume da produção do minério chega a 80 toneladas por ano. Desse total, 20 toneladas estariam em situação irregular. A agência não informou se fiscaliza regiões de garimpo para evitar a exploração ilegal de minério e com qual frequência.

Segundo relatório da agência, os estados com maiores reservas de ouro são Pará, Minas Gerais, Bahia, Goiás e Mato Grosso. A ANM também informa que concedeu 2.394 Permissões de Lavra Garimpeira (PLGs) no país. Desse total, 1.711 são para exploração de ouro. O documento, emitido pela autarquia, é a autorização do garimpo.

Para legalizar um garimpo, primeiramente tem de ser observado se a área está livre, ou seja, não onerada por título de lavra, por questão de conservação ambiental ou outro motivo, como barragens de água e linhas de transmissão de energia. Se estiver onerada, deve-se verificar a possibilidade de solução do conflito, como a cessão parcial da área. Depois, é preciso providenciar o título autorizativo de lavra.

Segundo a ANM, a exploração ilegal de minério pode ser verificada em diversas situações. Entre elas, a inexistência do título autorizativo ou de licença ambiental, inobservância das normas regulamentares, lavra ambiciosa pelo não aproveitamento racional e condições operacionais inseguras e insalubres.

A agência não informou se realiza investimentos em monitoramento por satélite para identificação de jazidas de ouro no país, assim como fazem alguns pequenos garimpeiros da região de Serra Pelada. A ANM alega que depende de denúncias para apurar os casos de garimpos ilegais e saber quantos foram registrados no país.


Revista Política Democrática || Entrevista Especial - Caio Luiz de Carvalho: "Objetivo é levar arte e cultura a todos os brasileiros, sem censura"

Diretor Executivo no Grupo Bandeirantes de Comunicação e coordenador do Canal Arte 1, Caio Luiz de Carvalho critica qualquer tentativa de impor, de volta, a censura nos meios de comunicação em nosso país, onde a liberdade de expressão foi conquistada a duras penas

Por Caetano Araujo e com a colaboração de Vladimir Carvalho e Martin Cezar Feijó

Doutor pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (2009), graduado em Direito pela Universidade de São Paulo (1976) e professor extra carreira da Fundação Getúlio Vargas, o diretor geral da ENTER-Entertainment Experience, empresa de eventos do Grupo Bandeirantes de Comunicação, Caio Luiz de Carvalho, há 12 anos é responsável pelo Canal Arte 1, que nasceu com o objetivo de levar arte e cultura a todos os brasileiros. Ferrenho defensor da liberdade de expressão em nosso país, ele é o entrevistado especial desta edição da Revista Política Democrática Online.

Caio de Carvalho foi ministro de Estado de Esportes e Turismo, presidente da Embratur, presidente do Conselho Executivo da OMT –Organização Mundial de Turismo e presidente da São Paulo Turismo S/A. De acordo com ele, que também é membro dos Conselhos da Japan House, Museu de Arte Moderna e Museu da Língua Portuguesa, no Arte 1 não existe nenhuma forma de censura. "Os produtores dispõem de espaço totalmente aberto para criar nas mais diversas linguagens", afirma Caio de Carvalho. "O Arte 1 continua cumprindo seu papel, de ser um canal que nasceu com o objetivo de levar arte e cultura a todos os brasileiros. Censura não passa pela porta do canal, nem do grupo Bandeirantes", completa

Na entrevista especial, Caio de Carvalho comenta o papel do Arte 1 na difusão da cultura em todo o país, bem como a questão da democratização do acesso à cultura em nosso país e o avanço das novas tecnologias e plataformas digitais, como o streaming. Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista:

 

Revista Política Democrática Online (RPD): O Arte 1 tem um formato clássico de televisão pública, a exemplo do que se passa na Europa e nos Estados Unidos. E, no entanto, o Arte 1 é levado por empresa privada. Como foi essa mágica?
Caio de Carvalho (CC): Tenho de esclarecer que não foi mágica minha. Quando saí do governo, em 2002, fui para Oxford e lá tomei contato e me apaixonei pelo projeto dos ingleses das indústrias criativas. Mais de dez anos depois, em 2011, veio o convite para assumir um posto no grupo Bandeirantes de Comunicação. Era, na realidade, um posto na área de seminários, eventos e tudo mais. Só que estava em gestação uma legislação na área de audiovisual, que abriria espaço para o surgimento de canais de espaços qualificados. No grupo Bandeirantes, o presidente, João Carlos Saad, o Johnny Saad, é um apaixonado por arte, ele mesmo sendo colecionador de obras. Seu sonho era atuar nessa área. A ele, juntaram-se outros amantes de arte, Paulo Saad Jafet e Salomão Schwartz, infelizmente falecido há pouco, além de Rogério Galo, que ainda hoje continua em televisão. Ao surgir a oportunidade de um canal cultural, a Bandeirantes conseguiu tornar realidade o sonho da família, e o Arte1 foi lançado, em 2011.

Assumi em fins de 2012 a direção executiva do que hoje é considerada a obra prima da televisão brasileira. Inspirou-se, sem dúvida, no exemplo da França, mas nos esforçamos para encontrar nosso próprio caminho. O canal “Artè” francês, de certa forma, se popularizou um pouco, ou seja, sua curadoria se abriu para permitir tipos de conteúdo mais light. O Arte1 se pauta por pesquisas que nos indicam estarmos com melhores conteúdos na comparação com os outros canais com programação semelhante. Atingimos o público classe A e B, mas, de certa forma, o canal nasceu com o objetivo de levar arte e cultura a todos os brasileiros. Pode parecer um paradoxo, porque nós estamos na TV paga, mas teve de ser assim. Não temos propriamente anúncios comerciais convencionais; temos, sim, bons parceiros, que querem estar com suas marcas associadas a conteúdos especiais, como é o caso daquilo que exibimos no canal Arte1. Ainda assim graças a esses parceiros e aos assinantes somos um canal autossustentável.

Estamos celebrando o sétimo aniversário, com cerca de 12 milhões e meio de assinantes. É um canal de sucesso. Já tivemos, é verdade, 13 milhões e 200, redução que acompanhou, no entanto, a queda dos assinantes das operadoras, no rastro de novas estratégias de mercado, como o streaming, plataformas diversas como Netflix, plataformas independentes etc. Os assinantes vêm migrando das operadoras para essas plataformas. De olho nisso, nós já estamos no streaming também com o Arte1 Play, que, para nós, é um desafio e é motivo de enorme orgulho. Arte1 está-se firmando como um produto de conteúdo, com mais de 40, 50 produtoras parceiras independentes. Ao longo desses sete anos, o canal já tem cerca de 800 horas de produção de conteúdo próprio, atemporal.

 

RPD: Em algum momento, vocês enfrentaram problemas com a censura?
CC: É um absurdo pensar em censura no mundo de hoje e num país como o nosso, cuja liberdade de expressão foi conquistada a duras penas. O Arte 1 continua cumprindo seu papel. Aqui não existe nenhuma forma de censura. Os produtores dispõem de espaço totalmente aberto para criar nas mais diversas linguagens. Censura não passa pela porta do canal, nem do grupo Bandeirantes. Adotamos, porém, alguns critérios de classificação etária para alguns programas, como se vê, aliás, no universo dos filmes comerciais.

 

RPD: A seu juízo, existe alguma relação entre a programação cultural, num sentido amplo, e a democratização do acesso a bens culturais? Caberia falar-se de uma questão paralela, o fortalecimento de uma política cultural democrática?
CC: O tema é extremamente complexo. Penso que a cultura não deveria estar em um ministério à parte. Deveria funcionar dentro do ministério da Educação, para que se pudesse fazer um trabalho de base, junto às escolas, à garotada, isto é, de forma que a gente pudesse ter um processo realmente na base da pirâmide. Talvez assim fosse possível influenciar, em um país com nossos imensos problemas educacionais e culturais, a TV aberta a usar sua força para ajudar a educar e levar cultura a todos os brasileiros, e não medir com réguas de pesquisas programação centrada em alegria, entretenimento, como se o povo preferisse o banal. Um escritor conservador, como Mario Vargas Llosa, já questionou tudo isso que está acontecendo na televisão de nossos dias. [1] Canais do tipo Arte1 se preocupam em fazer uma programação de qualidade para todo o público.

Você fez uma relação entre democracia e cultura. Acho que uma não existe sem a outra. Discutimos muito se tudo que é arte é cultura, se tudo que é cultura é arte. Mas o fato é que não são temas, conceitos, devidamente valorizados hoje pelos governos municipais, estaduais ou federal. A cultura é uma coisa muito séria, e eu só vejo essa questão da cultura a partir da educação. Não adianta termos ministérios frágeis, sem recursos. Reforço: a cultura é fundamental para qualquer país que queria tornar-se civilizado, um país que queira cuidar de suas gerações futuras.

 

RPD: Você se referiu à tendência à banalização das mensagens da televisão. No entanto, o Arte 1 populariza sem vulgarizar. Como conciliar entretenimento e arte?
CC: Acho que é possível. Eu mesmo fui atrás de um projeto francês de música clássica, proibido para maiores de 50 anos. Fiz de tudo para comprá-lo e consegui. Trata-se de um projeto maravilhoso, destinado a educar a criança sobre como se constitui uma orquestra, como se faz uma composição, a história dos grandes clássicos da música e tudo mais. É, sem dúvida, uma forma de entretenimento.

Há outro projeto no Arte 1, que é vitorioso. Estamos partindo para a quarta temporada. É sobre a arte da fotografia, que, na verdade, é um reality, sem ser uma competição, mais uma aula de fotografia. É conduzido por dois profissionais experientes, Claudio Feijó e Herbert Nogueira, que não ensinam apenas fotografia, ensinam a questão do olhar. É um projeto que está dando certo, num canal fechado, e é, também, de entretenimento.

Estamos explorando, agora, outro programa: uma batalha de pianos com a participação de jovens talentos de piano. Acreditamos, pois, que é possível trabalhar no Arte 1 mais para o lado do entretenimento, sem deixar o objetivo principal que é educar para a arte, educar para aquilo que é o objetivo do canal. Estamos convencidos de que esse é o caminho.

 

RPD: Como o Arte1 distribui a programação entre material produzido no Brasil e no exterior?
CC: O Arte1 surgiu, justamente, por causa de legislação, que dispõe a obrigatoriedade de reservar três horas por dia para produção nacional. É uma missão do canal. Nessas três horas, temos de apresentar no mínimo de 22 a 23 horas por semana de produção nacional, que é fruto de produção independente e de produção própria nossa. Quanto à produção estrangeira, minha equipe, integrada por jovens muito competentes, circula por feiras e mostras no exterior, em busca de materiais novos que valham a pena. A tarefa se facilita porque nossos parceiros internacionais já sabem o que nós queremos.

Além disso, tenho minhas preferências, que cultivo desde a universidade. Sou um cinéfilo. Daí ter trazido para o Arte1 os filmes chamados clássicos, para não mencionar produções próprias, como a entrevista que fizemos com Ettore Scola, uma obra prima, um mês antes de sua morte. Outro dia eu peguei o Giancarlo Giannini – que eu nem sabia que quase veio trabalhar aqui no Brasil, antes de ser cineasta – para falar de toda a história de seus filmes. Temos mais de 30 filmes brutos aqui, produções nossas, que estamos editando para passar em seu momento no canal, filmes atemporais e muito especiais.

 

RPD: Esses vídeos estão à venda?
CC: Temos o Arte1 Play que está no ar. Tanto em plataforma iOS da Apple quanto Android de Samsung e outros aparelhos nesse formato. É um produto barato, R$ 7,99 por mês, que dá direito a conteúdos os mais diversos possíveis e que podem ser acessados não só por televisores grandes, mas também por smartphones e tablets. Tenho uma série que é a paixão de muita gente. Já comprei a segunda temporada, num total de 30 programas, se chama This is Opera. É uma maravilha. É conduzido por um catalão que estou pensando em trazer para fazer uma apresentação aqui no Brasil. Esse programa é outro exemplo de que é possível conjugar arte e entretenimento.

 

RPD: Arte1 trabalha com grande diversidade de programas: música, cinema, filmes, artes plásticas, fotografia, dança. A seu ver, quais são, hoje, as principais frentes de atuação do Arte1 e quais serão em futuro próximo?
CC: Desde 2013, usamos o horário das 10 e meia da noite para programas com a diversidade a que você se refere. Sabemos que há amplo leque de idade em nosso universo de telespectadores, e que, naquela hora, as novelas já se encerraram, dando início à prática do zapeamento de canais. Decidimos nos concentrar aí em nosso prime time. Às segundas, é dia de concertos; às terças, artes visuais; às quartas, dança; às quintas, séries de arte; às sextas, filmes clássicos; aos sábados, Magazine Arte 1 com o New York Times, que é a única parceria fora da mídia impressa feita no mundo pelo New York Times; e aos domingos, literatura, com o Manoel da Costa Pinto, ComTexto, programa que já estamos renovando, graças ao apoio do Itaú Cultural.

A questão da literatura é para nós a mais complexa, porque envolve programas densos, em torno da obra de um escritor convidado e o Manoel. Mas, para nossa boa surpresa, em termos de audiência, nem tanto. Em termos de audiência, os filmes clássicos, as séries, os próprios concertos ganham, mas, na questão de tempo de permanência, Comtexto está bem à frente.

Isso reforça nossa proposta de programação cultural: interessar o público pelos caminhos das artes, como acontece em Arte na Fotografia e Thisis Opera. Não vulgarizamos e nem diminuímos a seriedade do canal; apenas permitimos que novos públicos também se interessem de uma maneira mais lúdica pela arte e pela cultura.

 

RPD: Arte1 sempre pergunta aos artistas da atualidade cultural sua definição de arte. Chegou sua vez: o que você entende por arte?
CC: Ferreira Gullar dizia que a arte existe porque a vida não basta. Acho que as definições de arte estão ligadas muito à questão da criatividade e do talento. Arte é fundamental para a gente sobreviver, pensar, refletir. Fico muito feliz de ter hoje a condição de dirigir uma equipe de jovens talentos, apaixonados pelo canal, que, embora sem receber grandes somas, vestem a camisa do canal, brigam por ele, porque têm esse prazer de saber que estão contribuindo para fazer uma obra prima na televisão. De certa forma, eles também estão fazendo arte, trabalhando no Arte1.

[1] Caio de Carvalho refere-se à obra La civilización del espetáculo, Santillana Ediciones Generales, S. L., Madrid, España, 2013.


Revista Política Democrática || Roberto Freire: Cidadania, o trilhar por novos caminhos

O Cidadania quer ser protagonista de uma nova jornada, com um horizonte para se transformar em importante referência de centro-esquerda e contribuir de forma positiva para a democracia brasileira e o desenvolvimento do país, destaca Roberto Freire

Há anos – talvez um marco importante tenha sido o desmoronamento do antigo sistema soviético e de suas repúblicas –, o mundo vem experimentando fortes transformações em seu modo de produzir e nas suas relações sociais, fruto de uma revolução cientifica e das inovações tecnológicas – era dos robôs e da inteligência artificial –, que impactam muito fortemente também no campos da política e das ideias.

Os padrões aceitos como universais e pouco mutáveis, todos eles herdados do iluminismo, da revolução industrial e da criação dos estados nacionais ainda no século XIX, começaram a se dissolver e passaram a não mais corresponder às realidades dos povos e aos formatos políticos de intervenção social. Ficaram velhos e foram perdendo apelo junto à opinião pública.

Se, antes, a divisão entre liberalismo e socialismo, entre capitalistas e trabalhadores, entre imperialismo e países periféricos tinha algum sentido e conformava a história do século XX com revoluções, golpes, experiências de governo e de Estado de todos os tipos, nos dias de hoje soa quase como tragédia.

Os dois arranjos representados pela social democracia clássica do pós-guerra e pelo neoliberalismo de Reagan e Thatcher não se firmaram como alternativas de longo prazo, mesmo que tenham trazido mudanças significativas às sociedades onde se instalaram.

Na Europa, por exemplo, com muita tradição política, a socialdemocracia gerou largos benefícios de justiça social, deu solidez por décadas às instituições públicas, ampliou o rol dos direitos sociais, alargou a democracia, mas não suportou ou não vem suportando as crises que assolam o continente e o mundo.

O neoliberalismo, uma tentativa de contornar o keynesiasnismo que salvara o capitalismo, conseguiu alguns resultados econômicos positivos na Inglaterra e Estados Unidos, porém faliu em sua pauta conservadora e não conseguiu fazer frente aos movimentos de conteúdo mais extremado de direita. Trump, dentro do Partido Republicano nos Estados Unidos e Johnson, no Partido Conservador inglês, são exemplos dessa falência.

Outros ideólogos surgiram para dar sentido político ao mundo em desalinho e esbarraram contra uma muralha invisível que ia se formando, pelo advento das novas tecnologias, o intercâmbio das informações e as novas relações sociais e de consciência, estas nascidas nos desvãos ideológicos e à sombra do poder velho.

Fukuyama, nos Estados Unidos, acalentado por toda mídia, e após a queda do regime soviético, falava na vitória final da democracia, como se ela, ao estilo ocidental e americano, fosse se plasmar a todas as nações do mundo. A tese morreu em poucos anos – o nacionalismo explodiu no leste europeu e no Oriente Médio, salvo pequenos intervalos com a chamada Primavera árabe, a visão teocrática e baseada em um poder de alta concentração continuou a se impor, até com mais truculência.

Pelo lado do Ocidente, o paradigma do Movimento Verde deu demonstração de vitalidade inicial entre os jovens, porém não se consolidou como alternativa de poder até porque não conseguiu produzir programas exequíveis de governo.

O pólo marxista renitente se esvaziou e em nenhum lugar do mundo é mais força motriz – não falamos da China, onde a discussão é outra, por conta de um estado absoluto e uma economia só reconhecida como de mercado por interesses comerciais ligeiros do Ocidente.

Os grupos e partidos beneficiados pelo chamado voto antissistema ou eurocéticos, vitoriosos na Grécia e com muito apelo na Itália e Espanha, parecem ter chegado ao limite. À frente de governos ou com posições de destaque no Parlamento, demonstraram-se frágeis, contraditórios, sem propostas coerentes e estáveis para dirigir um país.

No momento, em meio ao tumulto de ideias e de paradigmas, vemos movimentos de cunho restaurador, de um nacionalismo xenófobo e antiglobalista, querendo se afirmar em várias partes do mundo, tendo como centro principal os Estados Unidos, onde grupos religiosos, econômicos e políticos operam essa vertente sem qualquer pudor. A vitória de Jair Bolsonaro, em uma vertente tupiniquim, se insere nesse contexto.

Para onde o mundo vai? Para onde vamos no Brasil?

Ao certo, creio que ninguém tem uma resposta exata quanto aos desígnios do mundo e do Brasil. Muito se escreve sobre o futuro, sobre ideias, sobre governos e governabilidade. Mas nada se consolidou como paradigma que possa se abrir como uma perspectiva renovadora de forma estável, por décadas. Tudo está em aberto, por construir, em movimento.

Herdeiros que somos do iluminismo e da convencionada democracia ocidental, alguns postulados nos são caros e devem estar no centro de qualquer projeto: a democracia como valor universal, o inescusável respeito aos direitos humanos, a República, as liberdades individuais e coletivas, a busca da justiça social como um objetivo permanente, e a sustentabilidade (descartando-se o fundamentalismo, muito presente nessa área), o Estado laico, o internacionalismo, a paz e a solidariedade como os fios condutores nas relações entre as nações e o caminhar em direção a um mundo sem fronteiras e que supere o conceito de estrangeiro - nenhum ser humano é um estranho -,  tudo alicerçado porém nas culturas afirmativas dos povos.

Os partidos, com larga funcionalidade na sociedade industrial e em virtude dos estados nacionais, claudicam em sua forma atual. Estão ainda contaminados pela concepção de classes antagônicas e se firmam na democracia indireta, quando a democracia direta escancarou a sociedade moderna, sobretudo nos últimos 10 anos. Ou mudam ou morrem de vez, não há saída para eles se ficarem com a cabeça encravada na política do século XX.

O Cidadania, assim entendendo o mundo e o Brasil, quer ser protagonista dessa nova jornada. Longe de possuir respostas definitivas, apenas se abre para buscá-las. Certamente cometerá muitos erros, porém não poderá ser acusado de errar por se negar a trilhar novos caminhos.

De partida, distancia-se do legado classista, embora tenha em sua formação uma histórica sensibilidade e solidariedade com os mais pobres e os trabalhadores. Não acredita em uma ideologia acabada, mesmo sabendo que é impossível elidir cortes ideológicos em um grupo e de amplitude nacional, com suas histórias e dificuldades regionais. Nem tem a certeza da possibilidade no mundo contemporâneo de se construir um paradigma único, mas talvez um comum programa de governo.

A história, segundo entendemos, empurrou para um encontro mais profícuo liberais e social democratas, os dois nascidos do ideário pós revolução industrial. A uni-los o ideal da democracia e da liberdade numa nova etapa histórica das relações das pessoas na sociedade e da economia, onde mercado e Estado não mais necessariamente se opõem num duelo de vida ou morte.

No Cidadania com certeza não estarão todos os liberais nem todos os socialistas e socialdemocratas. As clivagens e as diferenças internas nesses dois campos são inúmeras. Acreditamos, porém, que o Cidadania tem horizonte para se transformar em importante referência de centro-esquerda e contribuir de forma positiva para a nossa democracia e o nosso desenvolvimento.

Além das dimensões políticas e programáticas, o Cidadania tem por vocação a criação de uma nova formação política, longe dos modelos centralizados e verticalizados, totalizantes. Um dos seus dilemas é permitir ao máximo possível o plasmar das diferenças de ideias e concepções, ser mais movimento e transparência, sem, no entanto, perder a credibilidade e capacidade diretiva. Se não resolver esse dilema, qualquer partido que se pretenda novo já nasce em conflito e em processo de decadência.

O Cidadania não é um projeto para 100 anos e não tem qualquer vocação para a prática da hegemonia em seu sentido totalizante. Pretende crescer, aumentar bancadas, ser eleito para dirigir Executivos, tendo clareza de buscar alianças amplas, duradouras, honestas e fraternas com forças políticas afins. Não vemos o poder como uma dimensão de luta fratricida e sem princípios.

A ética e o combate à corrupção são cláusula pétrea para o partido. Como são também o respeito e o equilíbrio entre os poderes republicanos. O desrespeito e o desmontar desse equilíbrio seriam a tragédia da democracia.

Em um de seus poemas, o português José Régio diz não saber por onde ir, mas se nega a caminhar pela bitola das sugestões e dos pensamentos velhos e consolidados.

Temos as nossas convicções e não queremos também caminhar pela senda do oportunismo e dos arranjos sem ética e sem princípios. Importante dizer: não estamos perdidos.

O Cidadania vem de caminhos antigos e honrados e que fazem parte de uma digna história. São referências.

Agora queremos construir e trilhar caminhos novos, até desconhecidos. Sem essa atitude, nossa e de outros, não haverá o futuro que todos desejamos.

* Roberto Freire é presidente do Cidadania.


Revista Política Democrática || Marco Aurélio Nogueira: Oposição depende do centro democrático expandido

Falta de iniciativa e unidade na oposição faz com que Jair Bolsonaro seja perturbado somente por seus próprios demônios e pelo fogo que arde a seu redor.  Governo não sabe que país é esse que o elegeu para governar

Não é só como metáfora da modernidade que a imagem do “carro de Jagrená” é eloquente. Disseminada pelo sociólogo inglês Anthony Giddens, trata-se de uma máquina mítica dos hindus que evolui arrastando consigo tudo o que encontra pela frente, sem que ninguém consiga controlá-la.

A metáfora serve bem para que se ilustrem situações como a brasileira, que escapa de avaliações simples e mostra um País flertando com o precipício, com a política em baixa, sem contar com um governo que atenue a carreira alucinada em que foi jogado.

A Presidência da República tornou-se um deserto de ideias. A paralisia e a mediocridade devoram suas entranhas. O primeiro mandatário não está à altura do cargo que ocupa, nem sequer se mostra à vontade nele, assusta-se com a própria sombra e acumula inimigos por onde passa. Não planta nem colhe nada de positivo, só atua para defender os próprios interesses restritos, seus e dos filhos. O governo não sabe que País é esse que o elegeu para governar. Não sabe e não se preocupa em querer saber.

O presidente segue pilotando seu Jagrená, indiferente aos estragos que provoca. Faz isso porque não é confrontado por uma oposição que vá além da agitação retórica e do jogo de cena. Como não há iniciativa e unidade na oposição, o governo só é perturbado por seus próprios demônios e pelo fogo que arde a seu redor. Movimenta-se sem demonstrar coesão ou a posse de um programa concatenado de ação.

Na economia, por exemplo, a gestão de Paulo Guedes avança porque foi assimilada por Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, que não só garantiu a progressão da Reforma Previdenciária, mas mantém ambiente favorável ao reformismo econômico que se deseja institucionalizar. Mesmo assim, a economia patina e, a sensação é de que não se sabe bem o que fazer para dar respostas efetivas aos problemas que afligem a sociedade. Algum desdobramento desse quadro deverá surgir nas eleições do ano que vem, com um possível aumento da frustração do eleitor.

A mistura exótica de ultraliberalismo na economia e ultraconservadorismo nos costumes não está servindo para que se dê um salto para a frente. O governo demoniza a globalização e a revolução tecnológica, mas não sabe decodificá-las, o que faz com que não consiga enfrentar os problemas reais do País, as desigualdades, o desemprego, a desindustrialização, a miséria, a pobreza. Falta imaginação, falta criatividade, falta um mapa de navegação. Há mais disputas internas que articulação. Muito mais ideologia que racionalidade.

A confusão governamental mostra-se às escâncaras na luta entre as facções incrustradas no Incra, como falou o general José Carlos Jesus após ser demitido pelo secretário de Assuntos Fundiários, Nabhan Garcia. A crise amazônica, sufocada entre a “porra da árvore” desprezada por Bolsonaro e a acusação governamental de que tudo não passa de uma disputa pelo minério que haveria em terras indígenas, exibe a céu aberto a inexistência de um plano que coordene a ação do governo na região. Por ali, militares não se entendem com o pessoal do ruralista Nabhan, que também não se entende com a turma do Ministério da Agricultura, cada qual amarrado a seu tronco.

As brigas dentro do PSL, até então tido como esteio parlamentar do governo, mostram uma combinação tóxica de miséria doutrinária com desejo de poder e controle do dinheiro.

Na Educação, o ministro Weintraub consegue a proeza de falar uma barbaridade sempre pior que a anterior. A área se arrasta, sem que haja qualquer indício de que uma luz por fim aparecerá.

Na Cultura, a censura corre solta, movida a guerra ideológica, a ingerências autoritárias, ataques e perseguições, chantagens e sufocamento orçamentário. Vetos a filmes entendidos como “pornográficos” convivem com a defesa de películas que fazem apologia a torturadores, igrejas e “valores cristãos”, no mais completo desrespeito à cultura, à arte, à liberdade de criação.

À margem de tudo, atacada por todos os lados e sendo devorada pela fogueira do governo, a Lava Jato agarra-se à opinião pública, que ainda lhe é favorável, sem poder contar com maiores apoios institucionais, o que a faz girar em falso. Confusões e trambiques como os do senador Flavio Bolsonaro e do ministro Marcelo Álvaro Antonio permanecem na crônica político-policial, sob o olhar plácido de Sergio Moro, outrora um impávido combatente anticorrupção. Pode ser que a Operação sofra algum ajuste e até volte a se fortalecer, mas seu momento atual é de declínio.

A palavra de ordem geral é de desconstrução: terra arrasada. Deseja-se um capitalismo livre de antolhos políticos, de regulação, de moderação, autocentrado e concentrado. Sem governo.

O presidente atira nos próprios pés, atrapalha-se na execução de coisas básicas, não consegue manter um ritmo proativo de gestão, nem administrar a gula de suas bases parlamentares. Sua natureza é o confronto. Está convencido da força de sua retórica e do estado de ânimo das parcelas da população que se retraem à política democrática e se deixam seduzir pelo ilusionismo do “mito”.

A “velha política” continua no comando, por mais que seja atacada por todos os lados. Entendida pejorativamente como sinônimo de práticas tidas como espúrias – entre as quais são enfiados, com mão de gato, o diálogo, o convencimento, a negociação –, a ela é contraposto o confronto como valor permanente, a intransigência, a veemência verbal, a localização de “inimigos”. O ambiente fica contaminado por “polarizações” recorrentes.

Ainda que aos trancos e barrancos, o sistema político resiste, chegando mesmo, em alguns momentos, a impulsionar o processo de tomada de decisões e compensar a conduta errática do Executivo. Mas é um sistema que reitera suas marcas negativas, que opera olhando para o próprio umbigo e em nome de interesses próprios. Em parte, se contrapõe ao governo e mostra independência; em parte, se consome em seu próprio fogo corporativista.

Algo precisa surgir de suas bordas, onde se aloja o centro democrático expandido: liberais, a esquerda social-democrática, ambientalistas, verdes, cristãos progressistas, humanistas. Não só para nortear a política, permitindo-lhe retomar suas virtudes cívicas e sua capacidade de articulação, mas também para que se possa criar uma oposição consistente, que enfrente o governo, dialogue pedagogicamente com a sociedade, module o “carro de Jagrená” e prepare o caminho para as disputas eleitorais que haverá pela frente.

Se o terreno ficar congestionado de candidatos presidenciais disputando espaço entre si, será difícil sair do túnel em que meteram o País. Alguns, por exemplo, como o governador paulista João Dória, querem monopolizar a centro-direita e isolar Bolsonaro na extrema. Para vencer, porém, Dória terá de atrair parte substancial dos votos da centro-esquerda e dos liberais, que não rezam por sua cartilha. Outros batem no peito para proclamar sua superioridade perante os demais, há quem trabalhe em silêncio para cavar a própria trincheira e quem levante poeira para chamar atenção. Há donos demais, lideranças de menos. E a bandeira do antipetismo já não funciona como catalizador.

Fiel ao egocentrismo que os caracteriza, cada pedaço do universo político deseja ter um candidato para chamar de seu. Pode ser que a ideia seja ganhar força e negociar depois. Se tal não acontecer, porém, e o PT insistir em manter a carreira-solo com ou sem Lula, as urnas de 2022 nem precisarão ser abertas para que se saiba o que conterão.

*Marco Aurélio Nogueira é professor Titular de Teoria Política da Unesp (Universidade Estadual Paulista).


Revista Política Democrática || Luiz Paulo Vellozo Lucas: Os caminhos da nova política

Nova política no país navega entre parlamentares de perfil liberal na economia e progressista nas políticas públicas a integrantes de blocos conservadores como o PSL e seguidores do presidente Jair Bolsonaro

A política brasileira bate cabeça em busca da sua restauração moral pela via que se convencionou chamar de “nova política”. Esta bandeira, no entanto, é empunhada por grupos muito diferentes. Os mandatos de Tábata Amaral, Felipe Rigoni e os outros deputados oriundos dos movimentos de renovação que votaram favoravelmente à reforma da Previdência contrariando seus partidos, respectivamente o PDT e o PSB, refletem um dos caminhos da nova política, de perfil liberal na economia e progressista nas políticas públicas. Marina Silva foi uma espécie de precursora desta tendência que já estava parcialmente presente no eleitorado nas eleições de 2010.

O bloco conservador liderado pelo presidente e seus filhos, por enquanto abrigados no PSL, representa claramente outra vertente política, mas não se pode negar que eles chegaram ao poder enfrentando e derrotando o sistema de partidos e a política tradicional no Brasil. Seus seguidores também acreditam estar lutando contra a podridão do sistema e apoiando a nova política.

A luta interna no PSL se dá principalmente em função da disputa pelo controle e distribuição do fundo partidário e da definição de candidaturas e alianças nas eleições. Temas particularmente caros à política tradicional e às velhas raposas que se articulam a todo vapor, visando às eleições municipais do próximo ano. O calendário eleitoral de 2020 já começou. A primeira disputa será pela bandeira da nova política e, por isso, todos querem distância regulamentar das brigas que podem ser vistas como “sujas” pelo eleitorado, isto é, cargos e dinheiro público para a eleição. É claro que, em off, a batalha é violenta!

A força das igrejas evangélicas estará presente, assim como muitas candidaturas de militares e policiais, para disputar eleições em nome da renovação. O interesse do empresariado e da opinião pública mais informada, movida principalmente pelo cansaço com a prolongada crise econômica e pelo pânico com a possibilidade de volta do PT, acaba sendo seduzida por qualquer caricatura de liberalismo econômico que se apropria da indignação nacional com o estatismo e os privilégios cevados ao longo dos séculos no Brasil, sem demostrar, contudo, compromisso e capacidade política para liderar uma agenda liberal reformista.

As máquinas dos governos municipais em fim de mandato estão enferrujadas e desgastadas e tendem a entrar com dificuldade no pleito majoritário, mas serão fortíssimas nas eleições de vereador, quando, pela primeira vez, será proibido fazer coligações proporcionais. O fisiologismo será determinante e o aparelhamento de estruturas de poder local para abrigar candidaturas a vereador para fazer legenda vai ser prática corrente. Até o STE já descobriu que só o voto distrital melhora a qualidade do voto e do pleito. Voto distrital e candidaturas avulsas.

O dinheiro do Fundão vai atrair políticos sem expressão e subcelebridades locais para o pleito, e os partidos em busca de sobrevivência também vão se virar para arranjar candidatos a prefeito e formar chapa de vereador. Políticos experientes derrotados pela onda conservadora em 2018 vão aparecer, alguns fantasiados de nova política, outros com o traje costumeiro. Os profissionais de campanha foram muito desvalorizados com o advento do whatsapp, mas os novos estrategistas digitais já estão oferecendo seus serviços e alguns já estão trabalhando. Ricos, famosos ou não, serão assediados com força pelos partidos para participar e, naturalmente, financiar a campanha de 2020.

Finalmente teremos alguns verdadeiros políticos por vocação que, apesar das circunstancias terríveis da política brasileira hoje, vão aceitar o chamado da vida pública e participar do processo eleitoral como candidatos. Gente como Tábata e Rigoni, que estão de fato se dedicando a melhorar a qualidade da política através do único modo comprovadamente eficaz: o exercício de seus mandatos com espirito público, preparo intelectual e coragem cívica, depois de disputar e vencer eleições usando como únicas armas suas convicções, corações e mentes.

Pode até não parecer, mas sou otimista. A proximidade das eleições municipais me faz sonhar com um debate público e informado sobre a crise urbana brasileira e com candidaturas renovadoras de verdade. O desenvolvimento sustentável e includente do Brasil começa nas cidades, com a liderança e o protagonismo do poder local, restaurando a confiança nas instituições da democracia e formando capital cívico.

 


Revista Política Democrática || Henrique Herkenhoff: Bola pelas costas

Ausência de uma estrutura de inteligência e, especialmente, de contrainteligência nos órgãos públicos exibe o despreparo das altas autoridades e instituições do governo em relação às questões de segurança

Enquanto diálogos entre autoridades ligadas à operação Lava-jato são divulgados de maneira homeopática, a opinião pública discute acaloradamente suas implicações políticas e jurídicas, muito embora uma análise racional mostre que elas dependem sobretudo do Judiciário e dificilmente terão lugar antes de uma revelação completa e verificada do conteúdo. Entretanto, outra questão menos empolgante fica esquecida, ainda que ela já seja uma certeza grave: a falta de uma estrutura de inteligência e, especialmente, de contrainteligência nos órgãos públicos.

Sim, qualquer instituição, grande ou pequena, pública ou privada, pode experimentar os benefícios da informação oportuna, confiável e estruturada, seja para as decisões operacionais cotidianas, seja para as grandes escolhas estratégicas. E não se deve desprezar, tampouco, a importância de evitar que seu adversário disponha desse mesmo conhecimento a seu respeito ou, melhor ainda, de o fazer acreditar em notícias falsas. Some-se a tudo isso a necessidade de proteger seu pessoal das agressões de qualquer espécie, e suas atividades, de vazamentos, invasões, traições, armadilhas.

Descobre-se que número espantoso de altas autoridades teve seus telefones hackeados, sem que houvesse medidas de prevenção, detecção ou correção à altura dos riscos incorridos. Se os criminosos não houvessem decidido utilizar esses conteúdos em público, as invasões poderiam se prolongar e espalhar indefinidamente. Por outro lado, é de espantar a ingenuidade com que se comunicam agentes públicos que legalmente interceptavam conversas alheias, sem que lhes passasse pela cabeça a possibilidade de também serem alvos. Nas investigações, ao contrário do futebol, não há uma bola só em campo, de maneira que o ataque não é defesa. Não vai aqui uma acusação, uma culpabilização; se foi obtido acesso indevido, houve uma falha ipso facto, que não pode se repetir, e ponto final.

Um programa televisivo tornou públicos, entre outros, diálogos de Lyndon Johnson com seu alfaiate. Nada comprometedor de sua honestidade, mas certamente íntimo e mesmo um tanto constrangedor. Não foi clandestino: os Presidentes dos EUA sabem de antemão que a Casa Branca grava tudo o que dizem ao telefone ou não, para disponibilizar algumas décadas depois. Jornalistas, pesquisadores acadêmicos e simples curiosos escarafuncham enorme material. A finalidade não é tanto a transparência, mas lembrar seu atual ocupante de ter cautela ao abrir a boca. Claro que isso não funciona com qualquer presidente, mas é uma tentativa.

Falhas em série podem ser identificadas nesta intrusão e, a contrainteligência simplesmente não funcionou, ou não havia. Não temos como prever as consequências, mas, em todas as hipóteses, o custo será alto. Independentemente de revelarem, ou não, alguma irregularidade por parte dos interlocutores, tais contatos jamais poderiam ter sido mantidos de uma maneira que pudesse ser acessada. Aliás, é sempre bom lembrar que não se pode deixar os investigados saberem o que está sendo feito, ainda que estritamente dentro da lei. Como se não bastasse, detalhes banais de sua vida privada podem ser mais embaraçosos, se publicados, do que algum verdadeiro ilícito. Não importa de que lado da lei você está: os acusados algum dia serão julgados; promotores e juízes são julgados todos os dias.

Quanto mais longa a apuração de determinada organização criminosa, maiores as probabilidades de que, em algum momento, ela providencie que seus próprios sistemas de inteligência – ainda que não os chame assim – levantem cada detalhe disponível, a respeito seja das investigações, seja dos investigadores. Grandes organizações, portanto, são exponencialmente mais capazes de revidar, não só por serem maiores, mais ricas e mais estruturadas, mas também porque não são arrasadas com a primeira investida.

As instituições públicas em geral e o Ministério Público, em particular, precisam estabelecer seus próprios serviços de inteligência, sem depender daqueles a quem, inclusive, devem fiscalizar, o que por si só implica uma completa contradição. Devem, por outro lado, utilizá-los tanto para suas atividades finalísticas, quanto para salvaguarda dos seus membros, equipamentos e ações, analisando, prevenindo, identificando e corrigindo falhas de segurança. Não há apenas ameaças à integridade física individual; há também graves riscos jurídicos, políticos, e institucionais para quem lida com forças adversas poderosas.

  


Revista Política Democrática || Martin Cezar Feijó: Bacurau - um faroeste do século 21

O artigo de Martin Cezar Feijó, segundo o autor, não tem o objetivo de fazer uma crítica cinematográfica, mas um comentário cultural. Polêmico, Bacurau é, antes de tudo, um filme, cumprindo o que se propõe: contar uma história atual

Bacurau (Brasil, 2019), dos brasileiros Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, é um filme polêmico; gerou debates polarizados; muitos amaram, outros odiaram, nem sempre por razões cinematográficas, em grande parte por razões políticas e ideológicas; mas, antes de tudo, é um filme. E bom. Cumpre o que se propõe: contar uma história atual, mesmo que anuncie se passar em um futuro próximo.

Até porque o objetivo deste texto não é fazer uma crítica cinematográfica, mas um comentário cultural. O filme estreou mundialmente no Festival de Cannes deste ano e levou o Prêmio do Júri. O que não é pouco. Também ganhou como melhor filme no Festival de Munique. E deve participar ainda em muitas competições internacionais.

Está, portanto, fazendo uma carreira internacional vitoriosa, com boas avaliações em Paris ou Nova York, por exemplo. E, o mais importante, atraindo um grande público.

Um filme a que se assiste com grande atenção. Com um grande elenco. E que conta uma história original, da ameaça a uma comunidade por um grupo de atiradores estrangeiros, dotados de aparelhos sofisticados como drones e se comunicando em inglês através de satélites. A população da cidade também, apesar de pobre, é bem atualizada, reconhecendo tecnologias e até reclamando quando não recebe sinais para seus aparelhos de telefones celulares.

Os invasores, apesar de serem em sua maioria constituídos de norte-americanos, têm entre eles dois brasileiros da região Sudeste, revelando no decorrer do filme um divertimento entre pessoas que querem descarregar frustrações alvejando uma população pobre impunemente. Até com a ajuda de líderes políticos regionais.

Uma questão social vem à tona no decorrer da narrativa. Racistas demonstram todo um ódio quando descarregam nos brasileiros do grupo muitos tiros por “não terem entendido” que deveriam respeitar regras e serem submissos a seus “superiores” estrangeiros.

É neste ponto que o filme revela seu caráter político – na linha de Brecht, até didático –, assim como fica explicita uma vocação para aderir a uma resistência que se organiza na comunidade. Até um proscrito foragido é convocado à resistência, que desenterra armas para a população se preparar para o enfrentamento ao ataque de que está sendo ameaçada.

O tiroteio corre solto, os invasores são mortos até entre si, e suas cabeças cortadas, lembrando a morte dos cangaceiros liderados por Lampião, em 1938.

Enquanto gênero, Bacurau pode ser visto como parte de um cinema de ação, conhecido como western. Até pela localização geográfica em que a ação se passa – Oeste de Pernambuco.

Western, um gênero decisivo, a ponto de o crítico francês André Bazin escrever que o gênero se confunde com o próprio cinema. E que mantém sua vitalidade, apesar das variações, em toda a história do cinema. Bacurau é definido por um de seus diretores, Kleber Mendonça Filho, em entrevista à revista Veja, como um faroeste e não um panfleto, como às vezes é visto e analisado.  Claro que o filme faz referências não só aos filmes de faroeste, como ao maior cineasta da história do cinema brasileiro, Glauber Rocha, para quem o cangaço e o messianismo, a partir de Euclides da Cunha, demonstram um Brasil pouco conhecido nas metrópoles.

Mas Bacurau é, antes de tudo, um filme. Um filme de ação. Violento, sim. Mas que deve ser visto em sua estrutura narrativa como um filme que provoca emoções, uma catarse. Que alguns amam, outros odeiam. Um filme político na melhor tradição do cinema, que entretêm e faz pensar nesses tempos sombrios em que a cultura vem sendo cerceada de várias formas, de censura a bloqueios burocráticos. Portanto, é muito bom o sucesso de um filme que emociona, conta uma história de ação e resistência, e enfrenta uma situação que revela nos comentários emitidos muito mais uma relação subjetiva e, portanto, ideológica, do que estética.

Que Bacurau siga sua trilha de sucesso e abra caminhos para mais filmes ousados no cinema brasileiro.


Revista Política Democrática || André Amado: Calvino e a erudição

Para André Amado, o escritor italiano Italo Calvino teve a ousadia de declarar que “a literatura (e talvez só a literatura) pode criar anticorpos que neutralizam a expansão da peste da linguagem"

Já deverão ter notado que não sou crítico literário. A razão principal, por mais que me doa reconhecer, é que me faltam credenciais, o que, em bom português, quer dizer competência. Por isso, conformo-me em abrir aspas e convidar a escrever nestas páginas autores do quilate de um Flaubert, Umberto Eco, Vargas Llosa e, desta vez, Italo Calvino, um dos mais célebres escritores italianos, que teve a ousadia de declarar que “a literatura (e talvez só a literatura) pode criar anticorpos que neutralizam a expansão da peste da linguagem”.[1]

Dá até vontade de traduzir “linguagem” por “erudição”, para mantermos a ironia típica de muitas reflexões de Calvino. Mas, se o fizéssemos, incorreríamos em imensa injustiça com outra de suas obras, Por que ler os clássicos [2], em que se consagra o mais profundo e íntimo conhecimento dos autores selecionados, o que, em uma palavra, se chama erudição, no bom sentido do conceito.

A lista de escritores é longuíssima, embora cada texto se concentre em transmitir o que de fato interessa em literatura. Lá estão Homero, Cyrano, Defoe, Voltaire, Stendhal, Balzac, Dickens, Flaubert, Tolstoi, Mark Twain, Henry James, Stevenson, Conrad, Hemingway e Borges. Para os que se autoproclamam iniciados no tema, encontrarão também Xenofonte, Ovídio, Ariosto, Galileu, Pasternak e Pavese. E, que me perdoem os mais letrados, mas a lista inclui ainda escritores de quem apenas ouvi falar, se tanto, como Plínio, Nezami, Cardono, Ortes, Gadda, Montale e Queneau.

É fascinante como Calvino aborda cada um. Com relação a Homero, claro, o foco está na Odisseia (mas com que ângulos inexplorados!).

Defoe desfila com seu célebre Robinson Crusoe, tanto quanto Stendhal, com Cartuxa de Parma. Mas Dickens entra no livro com Our Mutual Friend; Flaubert, com Trois contes; Tolstoi, com Dois Hussardos; Stevenson, com o O pavilhão das dunas, e assim por diante. Por intermédio dessas obras, que sem dúvida não são as mais conhecidas dos escritores, Calvino supera o desafio e as transforma em peças maestras, magia que estende à produção literária dos demais integrantes de sua lista, a ponto de nos produzir certo constrangimento por nunca os termos visitado.

De alguma maneira, no entanto, a despeito da coleção das críticas finas e envolventes com que nos brinda na maior parte do livro, é na introdução de somente oito páginas que Calvino revela o sentido da pergunta estampada no título do livro e, para isso, desfia algumas propostas (na verdade, 14) de definição do que considera “clássico”, das quais destaco as seguintes:

– Os clássicos são aqueles livros dos quais, em geral, se ouve dizer “Estou relendo...” e nunca “estou lendo...” (p. 9);

– Os clássicos são livros que exercem uma influência particular quando se impõem como inesquecíveis e também quando se ocultam nas dobras da memória, mimetizando-se como inconsciente coletivo ou individual (p. 10);

– Um clássico é um livro que nunca terminou de dizer aquilo que tinha para dizer (p. 11);

– Os clássicos são livros que, quanto mais pensamos conhecer por ouvir dizer, quando são lidos de fato se revelam novos, inesperados, inéditos (p. 12); e

- É clássico aquilo que tende a relegar as atualidades à posição de barulhos de fundo, mas, ao mesmo tempo, não pode prescindir desse barulho de fundo (p. 15).

Calvino acrescenta comentários tópícos, ao lado dessas propostas, como, por exemplo: “o clássico não necessariamente nos ensina algo que não sabíamos; às vezes, descobrimos nele algo que sempre soubéramos..., mas desconhecíamos que ele o dissera primeiro... Esta é a surpresa que dá muita satisfação”. E, de repente, o escritor italiano se cansa de destrinchar o óbvio e encerra a introdução bem a seu estilo: “a única razão que se pode apresentar é que ler os clássicos é melhor do que não os ler”.

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[1] Seis propuestas para el próximo milênio, Ediciones Siruela, Madrid, 9ª edición, 2010, p. 68.
[2] Perché leggere i classici (2002). Tradução de Nilson Moulin. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

 


Pesquisa e inovação são destaques da nova edição de Política Democrática online

Produzida e editada pela FAP, revista também publica reportagem sobre acordo frustrado entre Brasil e Paraguai sobre usina de Itaipu

A FAP (Fundação Astrojildo Pereira) lançou, nesta quarta-feira (9), a 11ª edição da revista mensal Política Democrática online, com destaque para a entrevista do físico e diretor científico da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), Carlos Henrique Brito. A publicação também leva ao público reportagem especial sobre o movimento político liderado pelo Cidadania 23 na Câmara dos Deputados que cobra audiência pública para esclarecer o acordo frustrado entre Brasil e Paraguai sobre a usina de Itaipu, além de análises sobre os cenários político e econômico.

» Acesse aqui a 11ª edição da revista mensal Política Democrática online

Na entrevista, Brito diz que “o país precisa mudar a forma como trata a pesquisa científica, acabando com um sistema distorcido de incentivos e recompensas que mata a inovação”. Ele destaca que, em todos os países onde se consegue criar desenvolvimento econômico e social usando ciência e tecnologia, há parte expressiva de recursos investidos na pesquisa, tanto pela universidade quanto por institutos de pesquisa governamentais e por empresas.

Já a reportagem especial revela a dificuldade de parlamentares da oposição democrática, entre os quais Rubens Bueno (Cidadania-PR), para realizarem audiência pública na Comissão de Relações Exteriores da Câmara sobre o acordo do Brasil com o Paraguai que teve de ser anulado para evitar o impeachment do presidente daquele país, Mario Abdo Benítez. Há suspeitas de que o acordo beneficiaria a empresa brasileira Léros, supostamente ligada a aliados do presidente Jair Bolsonaro.

No editorial, a revista considera que a Operação Lava-Jato ocupa o centro do debate político. “No balanço parcial de sua atividade, o saldo é positivo para a democracia, menos pelas estatísticas de desempenho, em termos de número de condenações e volume de recursos recuperados, e muito mais pelo aumento da informação em benefício de toda a sociedade”, diz um trecho, para continuar: “Sabemos hoje que a política no Brasil operava com base em regras ilegítimas e ilegais, inaceitáveis para a grande maioria dos cidadãos”.

A nova edição da Política Democrática online também aponta a necessidade de o Brasil ter eficiência econômica. Por isso, de acordo com um dos analistas políticas, as propostas para o país devem contemplar a reestruturação do Estado, reorientando investimentos e gastos públicos, conforme sugere Sérgio Buarque.

A revista também traz outros artigos de opinião, com análises sobre democracia, cultura e economia. Integram o conselho editorial da Política Democrática online Alberto Aggio, Caetano Araújo, Francisco Almeida, Luiz Sérgio Henriques e Maria Alice Resende de Carvalho.


Revista Política Democrática Online || Entrevista: “Apoiar a pesquisa e a inovação é fundamental para o país”, diz Carlos Henrique Brito Cruz

Para o físico e diretor científico da Fapesp, o país precisa mudar a forma como trata a pesquisa científica, acabando com um sistema distorcido de incentivos e recompensas que mata a inovação

Por Caetano Araujo e Aldo Pinheiro da Fonseca 

O mundo inteiro, atualmente, se beneficia de ciência e tecnologia feitas em muitos lugares. O Brasil não foge a essa regra. "Somos um país praticamente autossuficiente em energia para o transporte, gasolina e etanol, porque investiu-se muito em ciência, tecnologia e engenharia para achar petróleo no alto-mar e criar um substituto para o petróleo, o etanol, que vai nos automóveis. Essa história do etanol é uma das maiores realizações que o Brasil logrou no campo da ciência, tecnologia e engenharia. E os brasileiros não valorizam isso", diz Carlos Henrique Brito Cruz, engenheiro eletrônico e físico, diretor científico da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), entrevistado especial desta 11ª edição da Revista Política Democrática Online.

Ex-reitor da Unicamp, Carlos Henrique Brito Cruz está há 13 anos à frente da Diretoria Científica da Fapesp, instituição de fomento que, em geral, sofre menos com as intempéries de Brasília. Seu orçamento anual corresponde a 1% da receita tributária de São Paulo.

Brito Cruz destaca que, em todos os países onde se consegue criar desenvolvimento econômico e social usando ciência e tecnologia, há parte expressiva de recursos investidos na pesquisa, tanto pela universidade quanto por institutos de pesquisa governamentais e por empresas. "No Brasil, há quem ache que o único lugar onde tem pesquisa é nas universidades; nem é assim nem é para ser assim. Nos Estados Unidos, o laboratório de pesquisa da Google tem mais cientistas de computação do que qualquer departamento de universidade americana. O mesmo ocorre com o laboratório da Microsoft. Na Boeing, Airbus, Embraer, a quantidade de engenheiros é impressionante. É desse jeito que funciona. A empresa está conectada com um mercado e com as demandas do consumidor", diz.

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista de Carlos Henrique Brito Cruz à Revista Política Democrática Online.

Revista Política Democrática Online (RPD): Por que a ciência, a tecnologia são fundamentais para o desenvolvimento de um país?
Carlos Henrique Brito Cruz (BC): Por um lado, porque um número enorme dos facilitadores da nossa vida atual é facilmente conectado com ciência e tecnologia criadas no passado. Telefone celular, vacina, automóvel, drogas e remédios, técnicas usadas nos hospitais, a própria ideia de agricultura eficiente, como se tem no Brasil, a preservação do meio ambiente... Inúmeros exemplos mostram como a ciência e a tecnologia têm ajudado a viver melhor. A gente se beneficia de ciência e tecnologia feitas em muitos lugares do mundo e, também, da ciência e tecnologia feita no Brasil. Por exemplo, hoje o Brasil é um país praticamente autossuficiente em energia para o transporte, gasolina e etanol, porque investiu muito em ciência, tecnologia e engenharia para achar petróleo no alto mar e criar um substituto para o petróleo, o etanol, que vai nos automóveis. Essa história do etanol é uma das maiores realizações que o Brasil logrou no campo da ciência, tecnologia e engenharia. E os brasileiros não valorizam isso.
Todos os países industrializados têm procurado maneiras de substituir a gasolina por algum combustível que produza menos emissão de gás carbônico. O único que conseguiu fazer isso, em escala nacional, grande, é o Brasil, com o programa do álcool. Este é um exemplo de como a ciência e a tecnologia, desenvolvidas pela universidade, pela empresa, pela usina de etanol, pelo agricultor, possibilitaram nossa conquista.
As várias vacinas que são usadas no Brasil: o Butantã e a Fiocruz são entidades que investem pesado em atividade de pesquisa. O Butantã agora vai produzir 90 milhões de doses de vacina contra gripe. Não existe no mundo quem produza 90 milhões de doses de vacina contra gripe, levando-se ainda em conta que, dada a variação constante do vírus da gripe, a pesquisa não pode ser interrompida: uma vacina é boa para um tipo de vírus; se mudar, tem-se de descobrir outra vacina.
A eficiência e a produtividade da agricultura no Brasil também são resultado de ciência e tecnologia, tanto quanto a organização de sistema de saúde, o SUS. Numerosos pesquisadores, liderados pelo saudoso Sergio Arouca, montaram essa ideia: “olha, vamos fazer no Brasil um sistema único de saúde que vai atender a todos os brasileiros”. Os americanos até hoje não conseguem ter um sistema de saúde pública nacional.
Quer dizer, ciência e tecnologia têm sido superimportantes para o Brasil. Não consigo explicar por que certas pessoas no Brasil não entendem isso.

RPD: Há interação entre o setor privado e o governo para se incentivar a pesquisa nos setores de ciência e tecnologia?
BC: Em todos os países onde se consegue criar desenvolvimento econômico e social usando ciência e tecnologia, há parte expressiva de recursos investidos na pesquisa, tanto pela universidade quanto por institutos de pesquisa governamentais e por empresas. No Brasil, há quem ache que o único lugar onde tem pesquisa é nas universidades; nem é assim nem é para ser assim. Nos Estados Unidos, o laboratório de pesquisa da Google tem mais cientistas de computação do que qualquer departamento de universidade americana. O mesmo ocorre com o laboratório da Microsoft. Na Boeing, Airbus, Embraer, a quantidade de engenheiros é impressionante. É desse jeito que funciona. A empresa está conectada com um mercado e com as demandas do consumidor. Sabe, portanto, identificar problemas que precisa resolver para fazer sua economia funcionar melhor, coisa que uma universidade provavelmente não saberia.

A pesquisa na universidade também é importante, fundamental. Primeiro, para manter uma base de conhecimento suficientemente ampla, conseguir tratar dos problemas novos que vão aparecer e que a gente ainda não sabe que vão aparecer. Por exemplo, há 15 anos, as pessoas não sabiam aqui no Brasil que haveria uma epidemia de Zika. Onde estava o estoque de pessoas capazes de tratar disso? Nas universidades. Quando houve a epidemia, existia gente capaz de orientar as ações e contribuir para minorar o problema.

A universidade precisa também treinar as novas gerações de pesquisadores que vão trabalhar na empresa, no governo, na própria universidade e em institutos de pesquisa orientados a problemas ou temas específicos. Estes últimos, no Brasil, seriam os casos da Embrapa, para elevar os índices de produtividade da agricultura; do Instituto Butantã, para melhorar a saúde dos brasileiros, ou do INPE, de observação da terra, da floresta, das atividades espaciais.

Quem financia essas atividades? Empresas, governos e universidades. Em geral, no mundo desenvolvido, o maior financiador são as empresas. Mas elas investem quase tudo em pesquisa delas mesmas. Pouco vai para financiar a pesquisa em universidades ou institutos. Nos Estados Unidos, por ano, as empresas gastam US$ 370 bilhões em pesquisa. Desse total, menos de 1% destina-se a contratar pesquisa em universidades. Olhando de dentro da universidade, esse repasse nunca superou 7% do custo da pesquisa acadêmica. Então, quem financia a pesquisa nas universidades americanas? É o governo federal, o governo estadual e a própria universidade. Não conheço exemplo em lugar nenhum do mundo em que o dinheiro privado financie a totalidade ou a maior parte da pesquisa na universidade. Há dinheiro privado que financia a pesquisa, é bom que haja, só que esse dinheiro sempre é a menor parte do financiamento.

RPD: O que aconteceu com os fundos setoriais concebidos para financiar pesquisas?
BC: Tiveram papel relevante, em termos de volume de dinheiro, mas perderam recursos demais em contingenciamentos. A eficiência do dinheiro federal aplicado em pesquisa acaba sendo diminuída. De um lado, a instabilidade; de outro lado, a falta de autonomia das agências e universidades. Muitas oportunidades, mesmo com quantidades menores de recursos, mas usadas de maneira eficiente, acabam inviabilizadas por causa da maneira como funciona o sistema. Em dezembro aparece dinheiro, e a instrução é: “gastem até o dia 12 ou vão perder tudo”. Aí é uma festa de contratar. Dali a uns meses volta o desespero de como financiar o programa de trabalho.

É o que está acontecendo com as universidades federais, agora, em função do teto de gastos. Se uma universidade federal consegue captar dinheiro de uma empresa, para financiar um pedaço da pesquisa, o Governo Federal tira do orçamento dela a quantidade equivalente do dinheiro extra recebido. É inexplicável e punitivo.

Outra deficiência do sistema de financiamento e definir, de antemão, no orçamento, quanto se poderá gastar com bolsa, fomento, compra de equipamento etc. Se chegar em abril e precisar mudar isso é uma mega complicação para o CNPQ e para a CAPES. Por que não dar autonomia a essas agências? Elas saberão usar os recursos do melhor jeito para fazer o desenvolvimento da ciência e da tecnologia no Brasil.

RPD: Qual é sua avaliação do governo Bolsonaro na área de ciência e tecnologia?
BC: O que se ouve de altos dirigentes, em geral, é horrível. Mesmo que haja um ou outro que fale uma coisa certa – o ministro da Ciência fala que a Terra é esférica. Foi positivo, porque até isso já se punha em dúvida no Brasil. Mas a mensagem geral que passam é que não gostam de educação, ciência e tecnologia. Os atos parecem reforçar essa ideia. Os cortes que anunciaram no orçamento do ano que vem são terríveis. Podem argumentar que o Brasil está falido. Pode ser. Se as coisas que eles dizem fossem mais positivas, se poderia, talvez, ser levado a acreditar que estão tentando fazer o melhor em uma situação difícil. Mas quando se soma o que falam e o que fazem, o quadro é desanimador. Exceções têm sido os presidentes da CAPES e do CNPq, que têm sido prudentes e demonstrado empenho em funcionar de forma republicana.

RPD: O governo deveria ser mais proativo no setor?
BC: O governo tem um papel fundamental. Seja subsidiando P&D em empresas, seja apoiando a pesquisa básica em universidades. Em geral, cabe ao governo investir em pesquisas relevantes e que não serão financiadas pelo setor privado. Projetos de interesse da sociedade, como uma inter-relação entre reforma tributária e desigualdade. É importante, por exemplo, para os brasileiros, entenderem se a reforma do sistema fiscal terá repercussão positiva no combate à desigualdade no país. Tem de haver um equilíbrio no financiamento de pesquisas pelo governo entre aquelas que ajudam a empresa e aquelas que contribuirão para uma sociedade melhor. As duas coisas são importantes.

RPD: Por que a história de êxito da FAPESP não se repete em outros Estados?
BC: O governo paulista segue a Constituição estadual. Disposições semelhantes existem em outras constituições estaduais, mas não se cumprem. No Ceará, o governo local fez um plano de dez anos, para chegar a 100% de cumprimento da Constituição. Resultado: a FUNCAP, a fundação de amparo à pesquisa de lá, está operando favoravelmente e com ideias imaginativas, como a do cientista-chefe nos órgãos do governo. Em Minas Gerais e Rio de Janeiro, as fundações chegaram a operar bem, até que os estados quebraram. A essência do problema é não haver um grau de convicção de que esse recurso é importante para o desenvolvimento. Em São Paulo, de alguma forma, isso se estabeleceu quando o governador Carvalho Pinto criou a FAPESP, em 1962. De resultados em resultados, os paulistas foram entendendo que valia a pena. Tanto que, em 1989, dobraram o percentual.

RPD: Que recomendações o sr. faria para melhorar o gerenciamento do setor de C&T&I?
BC: Em primeiro lugar, cabe reconhecer que o governo atual enfrenta situação econômica extremamente difícil. A economia brasileira está paralisada e o governo enfrenta limites muito claros na capacidade de gasto público. Inclusive por terem gastado ineficientemente em ciência e tecnologia. Para minorar os efeitos da crise econômica, impõe-se uma ação complementar com os estados, buscando-se maneiras de interagir e colaborar, no entendimento de que o sistema de ciência e tecnologia é um sistema nacional, mais do que federal.

Segundo, facilitar a obtenção de financiamento do setor privado, evitando, por exemplo, que o dinheiro repassado pelas empresas implique em corte no orçamento da universidade ou instituto.

Em terceiro lugar, definir e respeitar os recursos de organizações como a CAPES e CNPQ. Isso não significa desconhecer os limites reais, mas garantir que o aprovado em janeiro não se reduza à metade em março.

E quarto, o mais importante: o Governo Federal precisa se dedicar a fazer a economia brasileira voltar a funcionar. Não adianta ficar apenas cortando a despesa – é fundamental aumentar a receita. É preciso reiterar ao mundo que o Brasil é um lugar que pode funcionar, que tem gente bem-educada, para fazer o país progredir. Este seria um caminho para a recuperação econômica, em um prazo médio, tanto quanto do respeito da comunidade internacional. Mas requer que as lideranças do Brasil queiram nos levar a fazer parte do concerto internacional.

Enfim, sejamos otimistas. “Não há mal que dure para sempre”. A conjuntura econômica é difícil, terrível mesmo e não faz sentido estancar as doações ao Fundo da Amazônia que tantas pesquisas poderia financiar sobre a mudança climática global, sobre a Amazônia, buscar formas racionais e efetivas de se evitar desmatamento...

O Brasil abriga uma comunidade científica muito bem qualificada, bem treinada e respeitada mundialmente. Essa comunidade, mesmo nas atuais circunstâncias, consegue extrair e obter resultado das pedras. É desse jeito que a ciência está funcionando no Brasil, mas temo que não consiga funcionar assim por muito tempo.